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O discurso adolescente numa sociedade na virada do século

Le discours adolescent dans une société au tournant du siècle

The adolescent discourse in a turn-of-the-century society

Resumos

Este trabalho procura expor alguns resultados de uma pesquisa sobre as expectativas e ideais de adolescentes de classes populares, na região urbana de São Paulo, e a relação desses jovens com a geração a que pertencem. A investigação do imaginário destes, além de favorecer a reflexão sobre questões sociais que ficam depositadas na geração jovem, permite a reflexão sobre o processo constituinte do sujeito (adolescente) como ser social. Foram formados três grupos de jovens que participaram de atividades lúdicas, nas quais puderam expressar expectativas diversas e a partir das quais foi feita a análise de suas falas. Foi possível constatar, por um lado, uma mensagem de ceticismo, decorrente de sua falta de perspectivas; por outro, um esforço no sentido de construir projetos de acordo com as referências que encontram. Tal esforço resulta na restrição de expectativas a metas mais tangíveis, tais como a conquista de uma profissão, a construção de uma família ou o estabelecimento de laços de solidariedade. Mas a restrição produz um resto, que é uma disposição disruptiva em seu discurso, que assume diferentes facetas, mais ou menos mediatizadas. Se, no caso da versão menos mediatizada, as demais gerações são obrigadas a se defrontarem com um mal-estar do qual elas próprias são co-responsáveis, no caso da versão mais mediatizada, emerge a denúncia das rachaduras de um corpo social que muitos procuram não perceber.

Adolescência; Juventude; Idealismo; Geração; Ceticismo


Ce travail cherche à exposer quelques résultats d'une recherche sur les expectatives et les idéaux d'adolescents des classes populaires, dans la région urbaine de Sao Paulo, et la relation de ces jeunes avec la génération à laquelle ils appartiennent. L'étude de leur imaginaire, au-delà de favoriser la réflexion sur les questions sociales déposées dans la génération des jeunes, permet aussi la réflexion sur le processus constituant du sujet (adolescent) comme être social. On a formé trois groupes de jeunes qui ont participé d'activités ludiques, dans lesquelles ils ont pu exprimer diverses expectatives et à partir desquelles on a analysé leurs discours. On a pu constater d'un côté un message de scepticisme, du au manque de perspectives ; d'un autre côté un effort pour construire des projets en accord avec les références qu'ils trouvent. Un tel effort résulte dans la restriction d'expectatives les buts les plus tangibles comme la conquête d'une profession, la construction d'une famille ou l'établissement de liens de solidarité. Mais la restriction produit un reste, qui est une disposition en rupture avec son discours, qui assume différentes facettes, plus ou moins médiatisées. Si, dans le cas de la version moins médiatisée les autres générations sont obligées d'affronter un mal être duquel elles sont elles-mêmes co-responsables, dans le cas de la version la plus médiatisée, émerge la dénonciation des lézardes d'un corps social que beaucoup préfèrent ne pas percevoir.

Adolescence; Jeunesse; Idéalisme; Génération; Scepticisme


This paper attempts to draw certain conclusions from a study into the expectations and ideals of a group of adolescents from the lower socio-economic levels in the city of São Paulo and their relationship with the generation to which they belong. The study of their imaginary, in addition to favouring reflection on social issues which are projected on the present young generation, also permits reflection on the subject’s (adolescent’s) process of becoming a social being. Three groups of young people were formed, each of which was then asked to take part in activities during which they could express various expectations. The content of this speech was then subjected to analysis. On the one hand, it was possible to detect a message of skepticism, arising from their lack of prospects; on the other, an effort to construct viable projects in accordance with the references they encounter. Such efforts result in the limiting of expectations to more tangible goals, such as joining a profession, building a family or establishing neighbourhood ties. But this limiting process has certain consequences, including a disruptive tendency in their discourse which assumes different facets, either more or less psychically elaborated. If in the case of the latter the other generations are forced to confront an uneasyness for which they themselves are jointly responsible; in the case of the former, there emerges an exposure of the fissures in the social order which many people try not to perceive.

Adolescence; Youth; Idealism; Generation; Skepticism


O discurso adolescente numa sociedade na virada do século1 1 Este trabalho retoma algumas reflexões desenvolvidas no artigo "Sobre os Ideais na Adolescência na Virada do Século" (Nesme, 2001), que se encontram mais desenvolvidas na dissertação de mestrado Ideais na Adolescência: Falta e Perspectivas na Virada do Século (Matheus, 2000b).

The adolescent discourse in a turn-of-the-century society

Le discours adolescent dans une société au tournant du siècle

Tiago Corbisier Matheus2 2 Tiago Corbisier Matheus é psicanalista, mestre em Psicologia Social pela USP, membro do Núcleo Sociedade e Psicanálise da PUC-SP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor da UNIP. Endereço eletrônico: tmatheus@uol.com.br

Instituto Sedes Sapientiae

RESUMO

Este trabalho procura expor alguns resultados de uma pesquisa sobre as expectativas e ideais de adolescentes de classes populares, na região urbana de São Paulo, e a relação desses jovens com a geração a que pertencem. A investigação do imaginário destes, além de favorecer a reflexão sobre questões sociais que ficam depositadas na geração jovem, permite a reflexão sobre o processo constituinte do sujeito (adolescente) como ser social. Foram formados três grupos de jovens que participaram de atividades lúdicas, nas quais puderam expressar expectativas diversas e a partir das quais foi feita a análise de suas falas. Foi possível constatar, por um lado, uma mensagem de ceticismo, decorrente de sua falta de perspectivas; por outro, um esforço no sentido de construir projetos de acordo com as referências que encontram. Tal esforço resulta na restrição de expectativas a metas mais tangíveis, tais como a conquista de uma profissão, a construção de uma família ou o estabelecimento de laços de solidariedade. Mas a restrição produz um resto, que é uma disposição disruptiva em seu discurso, que assume diferentes facetas, mais ou menos mediatizadas. Se, no caso da versão menos mediatizada, as demais gerações são obrigadas a se defrontarem com um mal-estar do qual elas próprias são co-responsáveis, no caso da versão mais mediatizada, emerge a denúncia das rachaduras de um corpo social que muitos procuram não perceber.

Descritores: Adolescência. Juventude. Idealismo. Geração. Ceticismo.

ABSTRACT

This paper attempts to draw certain conclusions from a study into the expectations and ideals of a group of adolescents from the lower socio-economic levels in the city of São Paulo and their relationship with the generation to which they belong. The study of their imaginary, in addition to favouring reflection on social issues which are projected on the present young generation, also permits reflection on the subject’s (adolescent’s) process of becoming a social being. Three groups of young people were formed, each of which was then asked to take part in activities during which they could express various expectations. The content of this speech was then subjected to analysis. On the one hand, it was possible to detect a message of skepticism, arising from their lack of prospects; on the other, an effort to construct viable projects in accordance with the references they encounter. Such efforts result in the limiting of expectations to more tangible goals, such as joining a profession, building a family or establishing neighbourhood ties. But this limiting process has certain consequences, including a disruptive tendency in their discourse which assumes different facets, either more or less psychically elaborated. If in the case of the latter the other generations are forced to confront an uneasyness for which they themselves are jointly responsible; in the case of the former, there emerges an exposure of the fissures in the social order which many people try not to perceive.

Index terms: Adolescence. Youth. Idealism. Generation. Skepticism.

RÉSUMÉ

Ce travail cherche à exposer quelques résultats d'une recherche sur les expectatives et les idéaux d'adolescents des classes populaires, dans la région urbaine de Sao Paulo, et la relation de ces jeunes avec la génération à laquelle ils appartiennent. L'étude de leur imaginaire, au-delà de favoriser la réflexion sur les questions sociales déposées dans la génération des jeunes, permet aussi la réflexion sur le processus constituant du sujet (adolescent) comme être social. On a formé trois groupes de jeunes qui ont participé d'activités ludiques, dans lesquelles ils ont pu exprimer diverses expectatives et à partir desquelles on a analysé leurs discours. On a pu constater d'un côté un message de scepticisme, du au manque de perspectives ; d'un autre côté un effort pour construire des projets en accord avec les références qu'ils trouvent. Un tel effort résulte dans la restriction d'expectatives les buts les plus tangibles comme la conquête d'une profession, la construction d'une famille ou l'établissement de liens de solidarité. Mais la restriction produit un reste, qui est une disposition en rupture avec son discours, qui assume différentes facettes, plus ou moins médiatisées. Si, dans le cas de la version moins médiatisée les autres générations sont obligées d'affronter un mal être duquel elles sont elles-mêmes co-responsables, dans le cas de la version la plus médiatisée, émerge la dénonciation des lézardes d'un corps social que beaucoup préfèrent ne pas percevoir.

Mots-clés: Adolescence. Jeunesse. Idéalisme. Génération. Scepticisme.

Têm aumentado nos últimos anos as pesquisas, projetos e o espaço na mídia a respeito de adolescência e juventude. Entre as várias razões para isso, está a chamada "onda jovem" (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados [SEADE], 1998), expressão usada para denominar a explosão da taxa de natalidade que ocorreu no início da década de 80, e que resultou num significativo aumento da população juvenil na virada do século. Tal fenômeno, coincidindo com um cenário social e econômico adverso, com dificuldades para absorver o novo afluxo de mão-de-obra e para oferecer perspectivas efetivas de inserção social, torna-se problemático. No início da década de 70, o crescimento da população juvenil não causou maior impacto uma vez que a situação econômica do país favorecia a absorção de boa parte deste contingente. No início da década de 80, a crise econômica acompanhou uma diminuição significativa da população juvenil. No final do século, a situação é outra: o crescimento da população juvenil ocorre num momento de mercado recessivo, forte desemprego e incremento dos problemas urbanos, o que torna ainda mais precárias as condições de vida da população em geral (SEADE, 1998, p. 12).

Nesse quadro, a preocupação com a adolescência não é desinteressada. Surge para as gerações precedentes quando estas se defrontam com questões que também as afetam, direta ou indiretamente, seja por se tratar de problemas sociais que envolvem a todos (como o desemprego, a violência etc.), seja pelo significado que a nova geração possui para as anteriores. Perguntar sobre a adolescência é, então, perguntar sobre nossa própria cultura.

O adolescente busca respostas às questões que lhe foram transmitidas. Não é simplesmente produto de seu meio: é sujeito, que reage ativamente ao que lhe é proposto, buscando formular respostas próprias que façam sentido para ele e permitam sua inserção social. Cada geração, em sua heterogeneidade, contém a diversidade de caminhos produzidos por seus membros; porém, nas diferenças, os pares tendem a estabelecer laços de identificação que lhes facultam permanência neste momento errante. É deste prisma que se pretende tratar os ideais da geração jovem3 3 Utilizam-se aqui adolescência e juventude como noções distintas e articuladas; considera-se o primeiro como processo psíquico, singular, de passagem do mundo infantil ao adulto; o segundo privilegia o âmbito social do problema. Distinção proposta a partir do comentário de Lapassade, que assinala o uso do termo adolescência na psicologia e de juventude na sociologia (Lapassade, citado por Abramo, 1994, p. 14). , enquanto pontos de aproximação de sujeitos que, no hiato do mundo infantil ao adulto, constroem referências comuns, a partir de experiências afins, em dado momento histórico e cultural. Lembre-se, porém, que os ideais de cada sujeito não são congruentes aos de sua geração: deles participam4 4 A noção de ideais de geração pode ser formulada a partir da noção de ideais de massa formulado por Freud (1930/1993). Ver também Matheus (2002). , cada qual a seu modo, ficando por eles marcados. Os ideais singulares, portanto, expressam os da geração, mas estes últimos não estão circunscritos a este ou àquele sujeito.

Este trabalho busca refletir sobre a mensagem da geração jovem, paulistana, na virada do século, pois considera-se que ela expressa algo sobre os ideais de todo o corpo social. Algo que freqüentemente é depositado em outrem ou mesmo negado. Partiu-se da escuta da fala de 50 jovens entre 13 e 17 anos, estudantes da escola pública, residentes em três bairros populares da cidade de São Paulo5 5 Pesquisa realizada pelo CENPEC (Centro de Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária), a partir da qual foi possível fazer a leitura do material sob a ótica aqui enfocada. Para um maior detalhamento do trabalho ver Matheus (2002). (Paraisópolis, Monte Azul e Bexiga). Formaram-se 3 grupos de jovens, um em cada uma das regiões; cada qual participou de atividades lúdicas e de conversas junto à equipe de pesquisadores, nas quais puderam expressar suas opiniões, expectativas, interesses e angústias.

No grupo formado na região em torno da favela Monte Azul, onde os conflitos sociais não se mostravam tão intensos (havendo ali um processo de reurbanização concomitante à instalação de cadeias comerciais e empresas de porte, com algum incremento na oferta de empregos e a presença marcante do trabalho de associações comunitárias), a fala dos jovens se mostrou menos cética do que nos demais. O clima geral se mostrava mais tranqüilo e se criaram menos situações de conflito, seja entre os próprios jovens, seja entre eles e a equipe coordenadora. Destaca-se que, além de descreverem um contexto urbano mais favorável, os jovens deste grupo também faziam alusão a organizações familiares mais presentes e integradas.

Nos outros dois grupos, em Paraisópolis e no Bexiga, regiões em que as desigualdades sociais pareciam mais intensas e evidentes e a violência, mais próxima e ameaçadora, ocorreram com maior freqüência disputas internas e falta de flexibilidade nos laços ali estabelecidos. Parece haver uma relação entre as condições sociais específicas de cada região e o modo como cada um se posiciona. Tal relação faz pensar que num contexto mais adverso e refratário, a agressividade tende a se mostrar mais intensa, a crítica, mais contundente e as expectativas, mais frágeis.

De modo geral, foi predominante entre os jovens pesquisados o ceticismo em relação às possibilidades de mudança do universo que os cerca, assim como no que se refere a suas oportunidades de inserção social. Percebem uma realidade pautada pela desigualdade social, pela violência e por condições de vida insalubres, sem sinais de abrandamento ou contenção. O que leva a crer que em tal contexto a ameaça de exclusão que persegue o adolescente se intensifica, potencializando sua angústia frente aos conflitos que experimenta e fragilizando a constituição de seus ideais.

O ceticismo manifesto referia-se primeiramente a mudanças mais amplas de sua realidade, do país e da estrutura social. Porém, a vontade de poder acreditar em algo se manteve presente: voltavam-se para focos mais tangíveis, de acordo com as referências que encontram à disposição em seu universo mais próximo. Para alguns, trabalho e família representam as pequenas mudanças que estão a seu alcance. O trabalho (qualificado, que pode configurar uma profissão) representa para a maioria a condição para a conquista de reconhecimento e inserção social.

A escolaridade, por sua vez, representa uma pré-condição para esta meta, não em função de um saber, mas como exigência formal. Relacionam o saber, sobretudo, à experiência que determinadas práticas oferecem ou aos laços que logram estabelecer com algum professor em especial ou pessoa de seu convívio próximo, por quem se sintam respeitados e nos quais percebam um ouvinte sensível a suas inquietações.

Investem na imagem da família particularmente aqueles que demonstram possuir referências familiares significativas. Entre estes, o modelo é o da família nuclear, que por um lado é associado a um ideal romântico e fantasioso, por outro implica numa sobrecarga inerente à vida cotidiana com poucos recursos. Esta aparente contradição entre fantasia e concretude parece uma conseqüência do viés pragmático que a restrição a metas mais próximas implica. Se para sustentar algum projeto, se vêem impelidos a restringir suas expectativas, é porque sua disposição fantasiosa teve que ser contida, forçando seu deslocamento ou recalque. O pragmatismo, além de nortear a imagem de família almejada, se mostrou um viés recorrente no discurso dos demais jovens.

No segundo grupo, formado por habitantes de Paraisópolis, bairro onde as diferenças sócio-econômicas são mais acirradas e os problemas daí decorrentes se mostram constantes, as expectativas se restringiam às possibilidades de fortalecimento dos vínculos de solidariedade entre moradores, ou então, de transposição individual da díade - irredutível - entre ricos e pobres.

No terceiro, realizado no Bexiga, é a imagem de uma megalópolis desenvolvida que surge como expectativa, com seus problemas não resolvidos, mas controlados. A referência explorada parecia emergir da imagem que faziam de seu bairro, considerado ponto turístico e freqüentado pelos diversos segmentos da sociedade. A dimensão positiva dessa imagem era capaz de lhes dar respaldo para considerar os problemas do bairro - violência constante e diferenças sociais.

O que se viu entre os vários jovens pesquisados, foi o esforço de construir projetos a partir das referências disponíveis, seja no âmbito familiar, seja na comunidade à qual pertencem. Tais projetos, ao transformarem os poucos recursos percebidos em algo possível, implicam em trabalho psíquico e transformam os jovens em sujeitos, na medida em que marcam sua diferença - naquilo que o projeto possui de particular - e sua pertinência ao corpo social.

No entanto, a restrição de expectativas tem um preço. O empenho em construí-las, a despeito das adversidades da realidade refratária com que se defrontam, parece produzir um resto - a disposição agressiva, que manifestam de modo mais ou menos mediatizado. Numa primeira versão, a agressividade expressa-se como crítica ou questionamento das contradições da realidade que vivem. Numa segunda, menos mediatizada, é mais disruptiva; trata-se da agressividade que, de diversas formas explosivas, põe em xeque, radicalmente, a (des)ordem estabelecida. Ela própria é reação à violência com as quais são obrigados a conviver em seu cotidiano, violência das desigualdades e injustiças sociais. Para se fazer escutar por um meio social freqüentemente amortecido e surdo aos problemas coletivos, a violência surge, para os jovens, como recurso extremo.

Tais resultados têm pontos em comum com os de outras pesquisas realizadas com jovens de distintas camadas sócio-econômicas. Os trabalhos realizados por Escritório de Pesquisa e Planejamento Wilma Rocca (1999) e McCann-Ericson Brasil (1989), com jovens de classe média e alta nos principais centros urbanos do país, já apontava a falta de perspectivas e a busca de metas mais tangíveis para cada um, individualmente.6 6 Respectivamente: pesquisa qualitativa e quantitativa realizada com jovens de classe A, B e C entre 15 a 24 anos, em São Paulo e Rio de Janeiro (McCann-Erickson Brasil, 1998); pesquisa qualitativa e quantitativa realizada com pessoas entre 12 e 30 anos, nos centros urbanos do País (Escritório de Pesquisa e Planejamento Wilma Rocca, 1999). A ênfase na preocupação profissional, em constituir família e o descrédito quanto ao futuro, também apareceram, assim como a disposição violenta.

Ainda que aquelas pesquisas tenham sido realizadas com enfoques bastante distintos, oferecem a possibilidade de reflexão sobre o peso do fator sócio-econômico nos resultados deste trabalho. Sugerem que a falta de perspectivas não diz respeito, somente, às camadas menos favorecidas. Estas, pelo tom do discurso de seus jovens representantes, estariam expostas de maneira mais contundente frente às ameaças de exclusão, que em maior ou menor medida, cercam cada adolescente em seu processo de passagem. O ceticismo e o desamparo, que pautam a posição dos menos favorecidos, seriam a expressão deste aspecto.

Os mais favorecidos, por sua vez, em um corpo social fragmentado e sob constante ameaça de ruptura, também não estariam imunes à precariedade de perspectivas; ainda que sua posição futura de dominação, por não estar garantida, não seja mais num contexto tão adverso. Portanto, considerando as diferenças de tonalidades dos discursos, percebe-se que a falta de perspectiva e o movimento no sentido de restrição das expectativas e ideais a dimensões mais estritas ou tangíveis, permeia os vários segmentos da geração jovem no universo urbano brasileiro atual.

Em função do processo adolescente, durante o qual o sujeito se encontra particularmente permeável às novas referências que lhe são oferecidas pelo universo extra-familiar, a escuta do discurso de sujeitos que se encontram neste percurso mostrou-se um recurso valioso para se pensar a cultura da qual fazem parte. Por ocuparem um lugar outro, hiato entre o submetimento infantil e o lugar estabelecido do adulto, os jovens têm a possibilidade de expressar algo que nas outras gerações fica menos evidente.

Quem escuta o adolescente, porém, não é neutro. Está tomado por suas próprias questões, sobretudo em função do lugar que o adolescente representa para si. Aquele que escuta, sendo membro de uma geração precedente, tende a perceber o "novo" jovem a partir de sua própria história adolescente.

Numa cultura em que predominam a inconstância e a competitividade, o adolescente aparece ora como (novo) adversário, ora como aquele que representa a possibilidade de mudança, de reformulação de uma realidade cruel e viciada. A imagem do adolescente construída pelo adulto tende a se polarizar entre a idealização e a marginalidade, dois caminhos que de alguma forma tentam controlar o lugar a ser ocupado pelo novo membro, extraindo dele aquilo que lhe é essencial, a saber, sua condição de sujeito, necessária à participação ativa no corpo social (Matheus, 2000a).

Ao invés de responsabilizar o adolescente pelo futuro da sociedade, estigmatizando-o como aquele a quem caberá reformular o que está (quase) perdido, ou como carrasco de um (trágico) fim anunciado, vale escutá-lo, para pensar nos laços sociais estabelecidos em nossa sociedade e em seus impasses, que envolvem todos os sujeitos que dela fazem parte.

A escuta analítica exige a alteridade para se perceber o outro não somente na figura daquele que (no caso, o adolescente) surge como diferente, mas também o outro do próprio sujeito, que cada um de nós luta para, ao mesmo tempo, esquecer e expressar.

Recebido em 12.06.2002

Aceito em 20.08.2002

  • Abramo, H. (1994). Cenas juvenis: Punks e darks no espetáculo urbano São Paulo: Scritta.
  • Escritório de Pesquisa e Planejamento Wilma Rocca. (1999). Dossiê MTV: Universo Jovem São Paulo. Trabalho especialmente encomendado pela MTV.
  • Freud, S. (1993). El malestar en la cultura (J. L. Etcheverry, trad.). In S. Freud, Obras completas (Vol. 21). Buenos Aires, Argentina: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1930)
  • Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados. (1998). Vinte anos no ano 2000: Estudos sociodemográficos sobre a juventude paulista São Paulo: Autor.
  • McCann-Erickson Brasil. (1989). Juventude: Um reencontro Estudo especial.
  • Matheus, T. C. (2000a). Adolescência: Idealização e marginalidade. Pulsional: Revista de Psicanálise, 23(139), 69-75.
  • Matheus, T. C. (2000b). Ideais na adolescência: Falta e perspectivas na virada do século. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Matheus, T. C. (2002). Ideais na adolescência: Falta (d)e perspectivas na virada do século São Paulo: Annablume/FAPESP.
  • 1
    Este trabalho retoma algumas reflexões desenvolvidas no artigo "Sobre os Ideais na Adolescência na Virada do Século" (Nesme, 2001), que se encontram mais desenvolvidas na dissertação de mestrado Ideais na Adolescência: Falta e Perspectivas na Virada do Século (Matheus, 2000b).
  • 2
    Tiago Corbisier Matheus é psicanalista, mestre em Psicologia Social pela USP, membro do Núcleo Sociedade e Psicanálise da PUC-SP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professor da UNIP. Endereço eletrônico:
  • 3
    Utilizam-se aqui adolescência e juventude como noções distintas e articuladas; considera-se o primeiro como processo psíquico, singular, de passagem do mundo infantil ao adulto; o segundo privilegia o âmbito social do problema. Distinção proposta a partir do comentário de Lapassade, que assinala o uso do termo adolescência na psicologia e de juventude na sociologia (Lapassade, citado por Abramo, 1994, p. 14).
  • 4
    A noção de ideais de geração pode ser formulada a partir da noção de ideais de massa formulado por Freud (1930/1993). Ver também Matheus (2002).
  • 5
    Pesquisa realizada pelo CENPEC (Centro de Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária), a partir da qual foi possível fazer a leitura do material sob a ótica aqui enfocada. Para um maior detalhamento do trabalho ver Matheus (2002).
  • 6
    Respectivamente: pesquisa qualitativa e quantitativa realizada com jovens de classe A, B e C entre 15 a 24 anos, em São Paulo e Rio de Janeiro (McCann-Erickson Brasil, 1998); pesquisa qualitativa e quantitativa realizada com pessoas entre 12 e 30 anos, nos centros urbanos do País (Escritório de Pesquisa e Planejamento Wilma Rocca, 1999).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Nov 2003
    • Data do Fascículo
      2003

    Histórico

    • Aceito
      20 Ago 2002
    • Recebido
      12 Jun 2002
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