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Autismo em causa: historicidade diagnóstica, prática clínica e narrativas dos pais

Autisme en question : historicité diagnostique, pratique clinique et récits des parents

Autismo en causa: historial diagnóstico, práctica clínica y narrativas de los padres

Resumo

Apresentaremos alguns desafios enfrentados no trabalho psicanalítico institucional com crianças diagnosticadas autistas. As narrativas recorrentes dos pais sobre o diagnóstico médico e sobre a relação estabelecida com seus filhos ilustrarão nossas discussões. Ressaltaremos a importância de uma posição crítica dos profissionais diante dos rumos de uma diagnóstica totalitária e atemporal incidindo na compreensão do sofrimento humano e das psicopatologias em nossa época. O mal-estar gerado diante de indivíduos à margem do laço social produzem, como efeito, a busca de sua reabilitação funcional e de sua adequação comportamental. A Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Autismo, reivindicada a partir do mal-estar e da luta de seus familiares, sofre a incidência do discurso cientificista contemporâneo na direção de sua pretensa universalidade. Tal política garante não somente conquistas legítimas na condição da cidadania da pessoa com autismo, mas fomenta, por outro lado, sua tutela jurídica e anônima, objetalizando-a.

Palavras-chave:
autismo; família; diagnóstico; psicopatologia; psicanálise

Résumé

Nous présentons certains défis du travail psychanalytique institutionnel avec des enfants porteurs du diagnostic d’autisme. Les récits des parents concernant le diagnostic médical et sur le rapport établit avec leurs enfants illustrent nos discussions. Nous soulignons l’importance d’une position critique et atemporelle pour la compréhension de la souffrance humaine et des psychopathologies de notre époque. Le malaise provoqué face à des individus éloignés du lien social produit la quête de leur réhabilitation fonctionnelle et de leur adéquation comportementale. La Politique Nationale de Protection des Droits de la Personne Porteuse d’Autisme, revendiquée à partir du malaise et de la lute de leurs familiers, s’allie au discours scientiste contemporain dans la direction de son universalité prétendue, tout en étant sous son influence. Telle politique assure non seulement les conquêtes légitimes vers la citoyenneté de l’autiste, mais favorise, d’autre part, sa tutelle juridique et anonyme, l’objetalisant.

Mots-clés:
autisme; famille; diagnostic; psychopathologie; psychanalyse

Resumen

Presentaremos algunos desafíos enfrentados en el trabajo psicoanalítico institucional con niños diagnosticados autistas. Las narrativas recurrentes de los padres sobre el diagnóstico médico y sobre la relación establecida con sus hijos ilustrarán nuestras discusiones. Resaltaremos la importancia de una posición crítica de los profesionales frente a los rumbos de un diagnóstico totalitario y atemporal que incide en la comprensión del sufrimiento humano y de las psicopatologías en nuestra época. El malestar generado frente a individuos al margen del lazo social produce, como efecto, la búsqueda de su rehabilitación funcional y de su adecuación comportamental. La Política Nacional de Protección de los Derechos de la Persona con Autismo, reivindicada a partir del malestar y de la lucha de sus familiares, sufre la incidencia del discurso cientificista contemporáneo en la dirección de su pretensa universalidad. Tal política garantiza, no solo logros legítimos en la condición de la ciudadanía de la persona con autismo, sino que fomenta, por otro lado, su tutela jurídica y anónima, convirtiéndola en objeto.

Palabras clave:
autismo; familia; diagnóstico; psicopatología; psicoanálisis

Abstract

We will present some challenges faced in institutional psychoanalytic work with children diagnosed with autism. The parents’ recurrent accounts of the medical diagnosis and the relationship established with their children will illustrate our discussions. We will emphasize the importance of a critical position on the professional’s part in relation to the directions of a totalitarian and timeless diagnosis, focusing on the understanding of human suffering and psychopathologies in our time. The discontent facing individuals at society’s margins results in the search for remedies, such as functional rehabilitation and behavioral adequacy. The National Policy for the Protection of the Rights of Autistics, which has been demanded due to the discontent and the struggle of family members, suffers from the incidence of contemporary scientific discourse in the direction of its alleged universality. Such a policy guarantees not only legitimate achievements in the condition of the citizenship of autistics, but also promotes their legal and anonymous protection, through codification.

Keywords:
autism; family; diagnosis; psychopathology; psychoanalysis

Introdução

A experiência de longos anos no atendimento psicanalítico institucional de crianças que recebem atualmente o diagnóstico médico de TEA (Transtorno do Espectro do Autismo) trouxe-nos alguns ensinamentos, ao mesmo tempo acompanhados de outro tanto de dúvidas e de impasses teóricos e interventivos. O primeiro dos ensinamentos foi que a própria clínica psicanalítica, tendo avançando sobremaneira com os estudos da psicose, teria ainda muito o que percorrer na clínica com os sujeitos em estados autísticos precoces, especialmente na primeira infância, confrontando-nos continuamente com a ética, a técnica da psicanálise e suas necessárias invenções táticas para acolher e tratar a condição de sofrimento dos seres humanos em um dado contexto e em sua época. O segundo ensinamento diz respeito à prova a que este profissional é submetido por esta clínica o seu desejo em sua radicalidade na medida em que o sujeito em estado autístico não atribui a ele um lugar de suposto saber, não demanda subjetivamente a sua ajuda.

Esse “não-lugar” coloca em xeque toda a construção transferencial necessária em uma relação terapêutica, tornando necessária uma torção na direção do tratamento. Menès (2013Menès, M. (2013). O autista, um sujeito a supor. Caderno de Stylus, 2, 83-91.) destacará que “O autista, no Discurso do Analista, estaria no lugar histórico da histérica, não como sujeito barrado de um saber inconsciente a ser decifrado, mas como objeto a, que causa o desejo do analista e seu trabalho de elaboração” (p. 84).

O terceiro ensinamento refere-se à especificidade do manejo transferencial com os pais de crianças autistas. Nesse manejo, o analista sustenta a construção ou a restituição de um desejo, de uma aposta e de um reinvestimento parental subjetivante sobre um sujeito que se aparta do outro, acolhendo de partida o sofrimento dos próprios pais. Proporcionar a sua recuperação narcísica torna-se necessário para o início do trabalho propriamente dito com a criança - cuidar de quem prosseguirá cuidando e educando esses sujeitos que se colocam na soleira do laço social.

O diagnóstico no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais e a diagnóstica dos discursos sociais

O discurso técnico-científico, aliado aos ideários contemporâneos sobre a infância, tende a tomar a criança como objeto descritível, previsível, adaptável e controlável, desconsiderando o que a tornaria singular - sua história originalmente tecida no desejo de seus pais. Referimo-nos aqui a um fenômeno que denominamos objetalização da criança como efeito desse discurso social atual. Os profissionais da infância, por sua vez, tendem a aderir a esses mandatos sociais sobre a criança classificando-as e normatizando-as. A criança é, dessa maneira, colocada em uma posição de puro objeto, o que nos faz pensar na aproximação de um determinado lugar a que se referiu Soler (2003Soler, C. (2003). La querella de los diagnósticos: curso en el Colegio Clinico de París 2003-2004. Buenos Aires: Letra Viva.) em relação às crianças autistas e psicóticas, denominando-as crianças-objeto, posição a partir da qual a função do sujeito e do laço com o outro encontram dificuldades para operar.

Assim, podemos supor que os ideais e o discurso contemporâneo sobre a infância carregam em si o poder e o risco de uma incidência similar sobre as crianças de um modo geral, obstaculizando sua singularização no desejo do outro, fixando-as em determinados lugares discursivos e dificultando sua empreitada subjetiva, seja na relação com seus pais, no campo escolar ou na concepção de desenvolvimento e de saúde mental. O profissional que atende a infância não pode, desse modo, estar desavisado dessas discursividades sociais que aprisionam a criança em determinados lugares e que também o enredam. Assumir diante dos pais uma posição que não encarne um saber obturador, com o peso de uma “verdade” única sobre a infância, é tarefa trabalhosa, pois, com frequência, o primeiro pedido que nos endereçam é o de ensiná-los e orientá-los sobre como melhor cuidar, tratar e educar “A criança”, desconsiderando o que representaria “Uma criança” para cada pai e para cada mãe, particularmente. A mesma lógica incide sobre o diagnóstico e o tratamento dos chamados Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) no Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (American Psychiatric Association, 2013American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5 (5a ed.). Washington, DC: American Psychiatric Association. Recuperado de https://goo.gl/qQPk8c
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), na medida em que o que se produz é criação de “O Autismo”, distinto apenas por seu grau de gravidade sintomática em “leve, moderado e grave”. Perde-se de vista, desse modo, o que poderíamos localizar singularmente como sofrimento de um sujeito, com sua história, sua forma de estar no mundo e de se deixar ou não se enlaçar pelo outro.

Dunker (2011Dunker, C. I. L. (2011). Mal-estar, sofrimento e sintoma: releitura da diagnóstica lacaniana a partir do perspectivismo animista. Tempo Social, 23(1), 115-136. doi: 10.1590/S0103-20702011000100006
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) destaca as noções de formação, constituição e construção para pensarmos que há formas hegemônicas de subjetivação e reconhecimento de sintomas - “não é qualquer forma de mal-estar (Unbehagen) que pode ser elevada à condição de sofrimento socialmente relevante. E não é qualquer forma de sofrimento que precisa ou pode ser enquadrada ao modo de um sintoma” (p. 135). No caso do diagnóstico de TEA, verificamos um crescente uso dessa nomenclatura (assim como o desaparecimento do termo psicose) e o que se descreve desse quadro não apenas nos campos médico e clínico, mas no discursivo escolar, bem como nas narrativas cotidianas das famílias. Compartilhamos, nesse sentido, a afirmação de Dunker de que, para além de uma diagnóstica da estrutura, uma da fantasia e uma da sexuação, faz-se necessária uma “diagnóstica dos discursos (como paradigma do laço social)”. Apontaremos em seguida como a nomeação d’O Autista confere ao sujeito um estatuto de reconhecimento social com seus devidos direitos em prol da inclusão, bem como causa efeitos nefastos para a sua subjetivação.

O saber simbólico e a função educativa dos pais

O ato de educar representaria uma das primordiais funções dos pais junto ao pequeno sujeito. Lembremos, no entanto, que a função educativa, no aforismo de Freud (1937/1976Freud, S. (1976). Análise terminável e interminável. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 23, pp. 239-287). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1937).) - segundo o qual educar é impossível -, engendra de partida tudo o que escapa ou o que vem a mais com o conteúdo do que se deseja “ensinar”, compondo a sua dimensão subjetiva e inconsciente. Essa concepção da função educativa dos pais sobre o infans é totalmente diversa do que lhes é atribuído com frequência em nosso contexto social atual - o mandato da reeducação cognitiva e comportamental, essencialmente anônima. A função educativa à qual nos referimos, por outro lado, opera como transmissora de marcas simbólicas de humanização do pequeno ser, sustentadas por um desejo, pela filiação e pelo pertencimento a uma dada cultura.

Reendereçar aos pais o lugar de um saber sobre a criança implica, então, em manejos transferenciais que sustentem a castração e a falta de saber no próprio profissional que é demandado, de modo que não tampone as dúvidas e as formulações enigmáticas que os pais possam elaborar em relação aos filhos. Essa tarefa, sabemos, não é nada fácil, pois a emergência da angústia torna-se inevitável. Nesse sentido, o trabalho psicanalítico com a criança autista e sua família exigirá dos profissionais um desafio ainda maior na direção de sua subjetivação em detrimento da tendência à sua objetalização, na medida em que o próprio estado autístico implica, em sua radicalidade, na não demanda direta da criança dirigida ao outro, bem como a configuração de um enigma que se apresenta, para muitos pais, como indecifrável ou inacessível e, por isso, paralisante e destruidor. Por isso, no trabalho psicanalítico com crianças, em especial com aquelas que demonstram uma maneira particularmente radical de laço com o outro - as denominadas autistas -, a acolhida e a restituição narcísica de seus pais representam elementos fundamentais do tratamento. A sustentação dessa posição nas entrevistas preliminares e em dispositivos grupais de atendimento aos pais em instituição configurou pontos de partida para sua acolhida e para a sustentação de suas narrativas, de suas histórias e da localização de seus temores e desejos a respeito da criança.

A construção do caso em psicanálise: ética, teoria e práxis

Com relação à abordagem e à ética da psicanálise, lembremos que a teoria nunca se desenvolve ou é independente de uma práxis. Kupfer problematiza o fato de que muitas crianças autistas em tratamento apresentam desenvolvimento, em detrimento do surgimento de um sujeito. Ela afirma que a criança autista tem um querer, mas trata-se de um querer que não se exerce no campo do Outro, marcado pelo desejo do Outro: sua lógica liga-se a uma certa conservação do eu.

Então, desse funcionamento pode-se dizer que permite uma apropriação dos objetos do mundo, permite desenvolver funções, permite a apreensão de um código que é, porém, puro código. Ele pode dar conta das chamadas leis de funcionamento da linguagem e isso permite um certo desenvolvimento intelectual, uma certa apreensão do conhecimento. (Kupfer, 2002Kupfer, M. C. M. (2002). O eu real do autista. In L. M. F. Bernardino & C. M. F. Rohenkohl (Orgs.), O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas (pp. 221-226). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 225)

Alertará, no entanto, a partir dessa constatação em sua prática clínica, que justamente nos casos de autismo o desenvolvimento e a aprendizagem de códigos podem estar muito bem e isso pode despistar pediatras e demais profissionais, na medida em que não garantem que sua constituição subjetiva esteja operando. Assim, quando pensa na possibilidade de escolarização para crianças autistas, parte da função humanizadora e promotora de laços sociais que o campo escolar oferece, muito além de sua função transmissora de conhecimentos e de conteúdos formais.

Todos os métodos que vão nessa direção - da inteligência pura, de trabalho com um puro código, em que não há mensagem ou ela é quase autônoma - só estarão excluindo ainda mais o autista. Não se trata absolutamente de fazê-los desenvolver essas possibilidades de conhecimento, isso só reforçaria seu alheamento. A ideia é prosseguir na direção de enodar, instalar essa criança no campo do Outro. (Kupfer, 2002Kupfer, M. C. M. (2002). O eu real do autista. In L. M. F. Bernardino & C. M. F. Rohenkohl (Orgs.), O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas (pp. 221-226). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 226)

Soler (2003Soler, C. (2003). La querella de los diagnósticos: curso en el Colegio Clinico de París 2003-2004. Buenos Aires: Letra Viva.) propõe uma análise epistemológica da teoria e da clínica lacaniana a partir do esquema borromeu, articulando as proposições sobre as estruturas da linguagem e do discurso com as categorias do imaginário, do simbólico e do real. Destaca que essas três dimensões podem se enodar, mas não necessariamente, e as formas de enodamento podem ter diferentes modalidades. Outro aspecto apresentado é de que cada registro (Real-Simbólico-Imaginário) poderia operar com sua autonomia, sem a dominância de um sobre o outro. Soler cita Lacan em uma definição sobre o real: “el campo de lo real no puede ser colonizado sino por las ciencias de la vida . . . lo real es la muerte” (p. 42), apontando a realidade de um ser vivente, assim como a inerência da morte na vida, a um impossível de pensar, a um impossível de representar. Os sujeitos em estados autísticos nos defrontam com a radicalidade de um ser humano vivente, no qual vida e morte aparecem sempre de mãos dadas. Atender sujeitos autistas coloca-nos em uma busca de enodamentos possíveis entre o real do corpo, o imaginário da alteridade e o simbólico em jogo na linguagem.

O impacto do diagnóstico de autismo sofrido pelos pais

Em nossa prática clínica com crianças autistas e psicóticas, os pais devem fazer parte do tratamento. Não buscamos incidir sobre a sua fantasia inconsciente, mas no discurso que eles desenvolvem sobre seus filhos. Kupfer e Lajonquière (2015Kupfer, M. C. M., & Lajonquière, L. (2015). A escuta de pais no dispositivo da educação terapêutica: uma intervenção entre a psicanálise e a educação. In M. L. S. Ornellas (Org.), Psicanálise e educação: (im)passes subjetivos contemporâneos (Vol. 3, pp. 35-54). Belo Horizonte, MG: Fino Traço.) apontam que no início do atendimento torna-se necessário buscar a recuperação narcísica dos pais, os quais, diante da problemática de seu filho, chegam carregados de extrema angústia e desamparo. A autora afirma que ao legitimar e recuperar o saber dos pais sobre a criança, acolhe seu mal-estar enquanto pais, buscando apoiá-los em seus papéis educativos, pois as manifestações do autismo comprometem justamente o diálogo transicional entre eles e a criança.

O relato de uma mãe após a recente notícia do diagnóstico médico de autismo de seu filho de três anos ilustra seus efeitos na relação com a criança, assim como o sofrimento de inúmeras mães que temos escutado em nossa prática clínica:

Eu percebia que algo não ia bem com meu filho desde bebê, pois era muito inquieto, chorava sem parar e não se acalmava no colo, isso me causava muita angústia e desespero. Nessa época, porém, o pediatra dizia que ele estava bem, estava ganhando peso, dentro da curva de crescimento e não tinha doenças repetitivas. Ele sugeriu que eu estaria muito estressada e ansiosa com o meu primeiro filho, que era superprotetora e tinha uma preocupação excessiva com ele. Com dois anos e meio o P. tinha melhorado, mas o pediatra encaminhou para fazer consulta com neurologista. Estranhei esta indicação e perguntei o motivo, ele me disse: “ainda é cedo para falarmos em autismo, mas comecem uma investigação neurológica e façam estes exames (neuropsicológicos globais, auditivos, tomografia e ressonância magnética cerebral), voltem daqui a seis meses”. Ainda que todos os exames pedidos pelo neurologista tenham sido normais, quando voltei ao pediatra, em consulta de no máximo 30 minutos, ele apoiou o diagnóstico do neuro, afirmando que o meu filho, então com três anos completos, tinha de fato o TEA, mas que felizmente era de grau leve e que ainda deveríamos realizar um exame genético. A partir deste dia senti que perdi o meu filho, uma vida de três anos em 30 minutos! Ressoava em mim apenas a informação de que o autismo era genético e não tinha cura, pois eu tinha escutado em um programa da TV. A partir daí me tornei uma especialista em autismo, passei a pesquisar sozinha tudo sobre TEA na internet. Acho que me esqueci de como o P. era antes de eu saber o diagnóstico de autismo, não conheço mais o P., meu filho, não me lembro mais das coisas que ele fazia antes, das suas brincadeiras, do seu jeitinho, mas conheço muito bem o que é o autismo e as suas características . . .

Os direitos da pessoa com autismo e seus efeitos nas famílias e no âmbito escolar

Antes de a Lei de Inclusão vigorar no Brasil, em 1994, acompanhamos um caso cujo laudo médico da criança indicava não somente o CID (classificação internacional de doenças) ligado aos TGD (Transtornos Globais do Desenvolvimento) associado à epilepsia, mas também uma prescrição medicamentosa e educacional: “criança sem condições de frequentar escolar regular”. Essa mãe dizia não saber mais o que fazer, pois de um lado sofria pressões e cobranças da assistente social para que a criança fosse matriculada imediatamente e frequentasse a escola e, de outro, a recusa das próprias escolas da rede pública diante do laudo médico, sugerindo a procura por uma escolar especial.

Curiosamente, nos tempos atuais, após a implementação da Lei de Inclusão e da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (Brasil, 2012Brasil. Lei n. 12.764, de 27 de dezembro de 2012. (2012, 28 de dezembro). Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e altera o § 3º do art. 98 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Diário Oficial da União, seção 1, 2. Recuperado de https://goo.gl/NJjqLx
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), considerada “pessoa com deficiência” (Art. 1º) para todos os efeitos legais, o laudo médico passou a ter outra função no campo escolar e assistencial. A criança que tiver um laudo diagnosticando o autismo terá sua vaga garantida na escola (Art. 7º) por lei (Lei nº 12.764/2012), assim como as demais exigências contidas em seu Estatuto de Direitos. Vários pais recorrem à emissão desse laudo não somente para garantir esta inserção escolar, mas também para o custeio de tratamentos e obtenção de alguns benefícios extensivos à família (isenção de diversos impostos, como o de compra de automóvel, redução da jornada de trabalho etc.). Ainda que muitos desses benefícios sejam legítimos e necessários para muitas famílias, como apontaram Merletti e Leão (2014Merletti, C. K. I. M., & Leão, S. C. S. (2014). A Política de Proteção dos Direitos da Pessoa com Autismo: uma análise sobre os seus efeitos nas relações entre a família, a criança e os profissionais da saúde e educação. In 10º Colóquio Internacional do LEPSI (pp. 1-9). São Paulo, SP: Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância. Recuperado de https://goo.gl/bY7Qt8
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), verificamos que a obtenção do laudo médico para tal causa também efeitos nefastos e perversos, seja para os pais que recebem o diagnóstico de autismo de seu filho, seja para o lugar incapacitante atribuído à criança, assim como na expectativa dos educadores que receberão o aluno já diagnosticado clinicamente em sua sala de aula.

A escola e os educadores deixam de refletir sobre as estratégias de ensino para o aluno com dificuldades e passam a submeter-se ao laudo médico, acreditando que a única saída para lidar com crianças autistas, minimizando suas condutas indesejadas em sala de aula, é por meio de medicação, reabilitação funcional e treinamento comportamental sistemático. A perspectiva médica organicista geralmente sustenta a incurabilidade e a causalidade genética do autismo. Muitos educadores acreditam, então, que eles não têm muito o que fazer por esses alunos e que os incluir em sala de aula, por força de seus direitos e com um laudo médico que o ateste, torna-se uma obrigação imposta pelo Estado e sob pressão das famílias, sentindo-se impotentes e sem os aportes educacionais que sustentem e legitimem sua prática e seu saber docente.

A maior parte das famílias, no entanto, denota certo alívio, e mesmo uma preferência, em pensar o autismo de seus filhos no campo das deficiências, com déficits cognitivos e deficiências no funcionamento neurocerebral, do que como um distúrbio psíquico ou uma doença mental. Para Martins (2008Martins, A. L. B. (2008). Biopsiquiatria e bioidentidade: política da subjetividade contemporânea. Psicologia & Sociedade, 20(3), 331-339. doi: 10.1590/S0102-71822008000300003
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), os termos bioidentidade e biopsiquiatria apontam a relação existente entre os discursos e práticas da psiquiatria biológica, sustentada no DSM, e seus efeitos no processo de produção da subjetividade no campo social. O autor toma como referência teórica a tese foucaultiana de que a medicina é uma estratégia biopolítica, procurando mostrar o processo de gestão do corpo e a medicalização da saúde como formas de controle que encarnam o biopoder na contemporaneidade.

Narrar, historicizar, subjetivar… a criança autista encontra um lugar no desejo de seus pais. Considerar os discursos das próprias famílias de crianças diagnosticadas com TEA nos permitiu situar o profissional que trabalha em instituição em uma posição fundamental, seja em escolas ou em centros de saúde, de promoção social e de direitos voltadas à infância. Trata-se de posição inicial de escuta e de ética que possibilite a acolhida da criança e da família a partir de seu sofrimento, legitimado por suas próprias falas e histórias, e não apenas por sua legalidade pública, instituída convencionalmente a partir de diagnósticos classificadores ou com a pretensão de um direito universal e inequívoco. Buscamos, nessa medida, parceria e corresponsabilização social da família na construção dos cuidados, na transmissão simbólica e na sustentação de uma posição crítica sobre os possíveis lugares e destinos da criança na contemporaneidade (Merletti, 2012Merletti, C. K. I. M. (2012). Escuta grupal de pais de crianças com problemas de desenvolvimento: uma proposta metodológica baseada na psicanálise. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.). A produção das chamadas “bioidentidades” - sou autista, sou hiperativo, sou disléxico etc. - poderá, assim, ser questionada.

Daremos a palavra final a uma mãe de criança autista, eis sua narrativa:

Meu filho não consegue falar, mas em alguns momentos ele olha furtivamente e sorri. Tento brincar e compartilhar o que poderia ter sido engraçado para ele, mas seu sorriso logo se apaga. Às vezes ele chora, mas não consegue apontar ou mostrar onde dói. Fico desesperada, pergunto se é na cabeça, se é na barriga, no ouvido, tento ajudar, acudir, mas ele não consegue me mostrar e fica tão difícil eu descobrir, às vezes parece que ele não conhece o próprio corpo e o que o aflige! Às vezes as pessoas na rua perguntam aflitas por que ele está chorando ou gritando, eu também fico desesperada e o que respondo a elas é que de fato não sei! Deve parecer estranho para os outros uma mãe não saber responder o que o filho tem, mas é o que realmente me ocorre. Eu fico angustiadíssima, sem saber se ele está bem na escola e o que conseguiu fazer lá. Por isso eu senti a necessidade de chamar uma auxiliar (acompanhante terapêutica) e a escola aceitou, ainda que com reservas. Ela o acompanha durante uma parte do período escolar, faz um registro num diário sobre as atividades dele, sobre o que ele se interessou ou se aproximou na escola, e me entrega todo dia no final da aula. Quando eu vou buscá-lo, corro ansiosa atrás da auxiliar para conversar com ela, saber do meu filho, pegar e ler o diário em seguida. Com o tempo me dei conta de que, ao buscá-lo na escola, eu estava mais ansiosa em ver a auxiliar e o diário do que em encontrar e ver o meu próprio filho! Já fui criticada por ter incluído essa profissional na escola e ter inventado esse esquema do diário, como se eu fosse intrusiva ou controladora, por estar invadindo demais a vida escolar do meu filho e dos demais profissionais da escola. Mas o que ninguém sabe é sobre a dor que eu sentia, do vazio que encontrava quando ia abraçá-lo e perguntava a ele como tinha sido seu dia na escola. Nem abraço eu recebia, nem um olhar! Vocês sabem o que é uma mãe sentir o vazio de um abraço e do olhar de seu próprio filho? Ou ver seu filho chorando, gritando ou se machucando, com uma dor que você não consegue saber qual é e onde é, sem poder fazer nada para saná-la? Essa dor na gente, também não tem palavras suficientes para explicar. O diário foi apenas uma forma que encontrei para preencher um pouco desse vazio e tentar, de alguma maneira, me comunicar e me reaproximar dele. Acho que a auxiliar e a agendinha funcionaram mais para mim do que para meu filho, para me ajudar a continuar tentando alguma comunicação com ele. A disponibilidade e aposta da profissional e da escola no meu filho, assim como o respeito e a acolhida do meu sofrimento por vocês, nesta instituição, neste grupo de pais, me deram forças para não desistir, para continuar falando e desejando me comunicar com ele.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2017
  • Aceito
    08 Ago 2017
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