Resumo
Este artigo busca compreender as implicações psicossociais da pobreza para a permanência de universitários a partir das políticas de assistência estudantil. Com abordagem de natureza qualitativa, investigou oito estudantes pobres de diversos cursos em duas universidades públicas brasileiras. Para a dimensão material, destacam-se: falta de recursos para a subsistência, moradia distante ou deslocamento do local de origem, necessidade de trabalhar, falta de acesso a livros e equipamentos. Nesses aspectos, há imprescindibilidade da assistência, embora insuficiência para os que demandam. Na dimensão subjetiva, emerge a integração social no meio acadêmico, com destaque para o fator socioeconômica como marcador de fronteiras entre grupos. Os aspectos pedagógicos perpassam a defasagem na educação básica e domínio da língua estrangeira, falta de tempo e ambiente para estudo. Conclui-se que a complexidade das questões apresentadas requer uma reestruturação intersetorial das universidades.
Palavras-chave: assistência estudantil; ensino superior; universitários; pobreza
Résumé
Cet article vise à comprendre les implications psychosociales de la pauvreté pour la permanence des étudiants universitaires pas rapport aux politiques d’aide sociale aux étudiants. Avec une approche qualitative, on a interviewé huit étudiants pauvres de différents cours dans deux universités publiques brésiliennes. Pour la dimension matérielle, nous soulignons : le manque de ressources pour la subsistance, logement éloigné ou déplacement du lieu d’origine, le besoin de travailler, le manque d’accès aux livres et aux équipements. Sur ces aspects, l’assistance est indispensable, bien qu’insuffisante pour ceux qui la demandent. Dans la dimension subjective, c’est l’intégration sociale dans l’environnement universitaire qui ressort, en mettant l’accent sur le facteur socio-économique comme marqueur des frontières entre les groupes. Les aspects pédagogiques concerne l’écart entre l’éducation de base et la maîtrise de la langue étrangère, le manque de temps et d’environnement pour les études. On conclut que la complexité des questions présentées nécessite une restructuration intersectorielle des universités.
Mots-clés: aide aux étudiants; enseignement supérieur; étudiants universitaires; pauvreté
Resumen
Este artículo busca entender las implicaciones psicosociales de la pobreza para la permanencia de los estudiantes universitarios a partir de las políticas de bienestar estudiantil. Con un enfoque cualitativo, se investigó a ocho estudiantes pobres de varios cursos en dos universidades públicas brasileñas. En cuanto a la dimensión material, destacamos: la falta de recursos para la subsistencia, la vivienda lejana o el desplazamiento del lugar de origen, la necesidad de trabajar, y la falta de acceso a libros y equipos. En estos aspectos, la asistencia es indispensable, aunque insuficiente para quienes la solicitan. En la dimensión subjetiva, surge la integración social en el entorno académico, con énfasis en el factor socioeconómico como marcador de fronteras. Los aspectos pedagógicos van a la zaga en cuanto a la educación básica y el dominio del idioma extranjero, la falta de tiempo y de ambiente para el estudio. Se llega a la conclusión de que la complejidad de las cuestiones presentadas requiere una reestructuración intersectorial de las universidades.
Palabras clave: asistencia al estudiante; educación superior; universitarios; pobreza
Abstract
This article seeks to understand the psychosocial implications of poverty for the permanence of university students regarding student welfare policies. With a qualitative approach, it investigated eight poor students from various courses at two public Brazilian universities. For the material dimension, we emphasize the lack of resources for subsistence, distant housing or displacement from the place of origin, need to work, and lack of access to books and equipment. In these aspects, assistance is indispensable, although insufficient for those who demand it. In the subjective dimension, social integration in the academic world emerges, with emphasis on the socioeconomic factor as a marker of boundaries between groups. The pedagogical aspects reveal the gap in basic education and mastery of the foreign language, lack of time and study setting. It can be concluded that the complexity of the issues presented requires an intersectoral restructuring of universities.
Keywords: student assistance; higher education; university students; poverty
A massificação do acesso de estudantes pobres nas universidades federais após a implementação da Lei nº 12.711/2012, sobre a política de cotas sociais e raciais (Brasil, 2012), evidencia desafios a partir do surgimento de novas demandas desse público, suscitando a necessidade de refletir sobre mecanismos para uma permanência sustentável, diminuindo o número da evasão e desistência dos alunos ingressantes. Essas questões também são alçadas nas universidades estaduais, especialmente nas que implementaram políticas afirmativas após a Lei de Cotas.
Assim, as políticas assistenciais vêm incorporando crescentemente estudantes pertencentes a famílias com renda mensal per capita média mais baixa. Dados do Fórum Nacional de Pró-Reitores e Assuntos Comunitários e Estudantis (2016) indicam que os graduandos ingressos em 2009 ou antes têm renda maior do que os que ingressaram nos anos subsequentes. Além disso, os que ingressaram na universidade depois de 2013 apresentam menor renda familiar mensal per capita média do que aqueles que ingressaram até 2013. Portanto os estudantes pobres se fazem cada vez mais presentes com a crescente implementação dos processos de democratização do ensino superior.
Para Costa (2015), as Políticas de Assistência Estudantil (PAE) têm o objetivo de assegurar condições e mecanismos para a permanência e conclusão dos estudos com êxito. As PAEs, segundo Kowalski (2012), se desenvolvem em três fases no cenário brasileiro. A primeira inicia desde a criação das primeiras universidades e vai até o período de redemocratização, no final da Ditadura Militar. A segunda fase se inicia a partir desse momento, em que os problemas sociais acirraram as dificuldades de acesso e permanência no ensino superior. Já a terceira fase começa em 2007, com a implementação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), e se estende até a atualidade. Kowalski (2012) destaca ainda que, nesse mesmo ano, o Plano Nacional de Assistência Estudantil - PNAES (Brasil, 2007) foi instituído e consolidou essa política por meio da Portaria Normativa nº 39, do Ministério da Educação (MEC), com o intuito de subsidiar estudantes pobres dos cursos de graduação presenciais nas instituições federais de ensino superior, dando prioridade aos egressos de instituições públicas da educação básica ou com renda familiar per capita de até um salário-mínimo (SM) e meio.
Neste artigo, a pobreza é investigada em uma perspectiva multidimensional (Sen, 2000), que se opõem à perspectiva unidimensional cuja linha de análise considera apenas um aspecto - monetário ou de renda. O fenômeno da pobreza passa a ser compreendido em múltiplas dimensões, não apenas pela falta de dinheiro, ao considerar desigualdades de oportunidades, possibilidades e capacidades, o que abrange acesso aos serviços de educação, saúde, lazer, cultura, moradia, entre outros. Entre esses aspectos, as questões subjetivas também são investigadas, já que, em acordo com Ximenes, Cidade, Nepomuceno e Leite (2014), a vida em contexto de pobreza produz aspectos subjetivos próprios ao imprimir marcas subjetivas nas formas de sentir, compreender e enfrentar os desafios imposto por essa condição.
Ademais, cabe destacar que a permanência na universidade tem diferenças e peculiaridades para os estudantes pertencentes às famílias pobres. Santos (2009) descreve a permanência como um processo com uma única direção e dois sentidos. A unidirecionalidade significa permanecer até o final para conclusão do curso de ensino superior, comum aos estudantes oriundos de famílias pobres ou não. E os dois sentidos configuram um âmbito individual para o estudante, pois este transformará sua vida, e outro, de caráter grupal, para a família e grupo social, podendo ser potencializadora de ascensão social para os que vivem em contexto de pobreza. Sob diversos prismas, educacionais e monetários, os jovens pobres são desafiados. Para Cavalcante (2014), a permanência impulsiona os estudantes à aquisição do capital cultural, social, econômico e informacional (Bourdieu, 2007) para construção de estratégias que auxiliarão na apropriação da vida acadêmica. Assim, este artigo objetiva compreender as implicações psicossociais da pobreza para a permanência de universitários a partir das políticas de assistência estudantil.
Percurso metodológico
A abordagem metodológica utilizada foi de natureza qualitativa, já que esta envolve a análise de significados, motivos, crenças, valores e atitudes, configurados na complexidade dos contextos sociais, considerando a relevância das determinações e transformações dadas pelos sujeitos nestes processos. Assim, essa perspectiva possibilitou alcançar os objetivos do estudo ao possibilitar a análise das singularidades da permanência dos participantes, em sua relação dialética com os determinantes acadêmicos e sociais.
Contexto e participantes da investigação
Neste artigo, foram pesquisados oito estudantes de duas universidades: Universidade Federal do Ceará (UFC) do campus Fortaleza, na qual o sistema de reserva de vagas (Brasil, 2012) já foi implantado desde 2013, e da Universidade Regional do Cariri (Urca), instituição estadual situada na região do Cariri, interior do estado do Ceará, cuja política de cotas foi ainda mais recentemente implantada, com o ingresso dos primeiros cotistas em 2018. Na política de cotas da Urca, metade das vagas é reservada aos estudantes advindos das escolas públicas, o que foi chamado de cotas sociais, sendo que 68% desse percentual é destinado às cotas raciais, o que inclui pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas, e 32% às cotas sociais, independentemente da etnia autodeclarada. Referente à outra metade das vagas, apenas 30% é destinada à ampla concorrência, o que difere da Lei de Cotas federal (BRASIL, 2012); 15% são destinadas às cotas raciais; 5% são reservadas às pessoas com deficiência.
No caso da UFC, a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae) consolida as políticas de apoio ao estudante de graduação, amparada pela PNAES e desenvolve as seguintes ações de permanência: Bolsa de Iniciação Acadêmica, Auxílio Creche, Programa Auxílio Emergencial, Programas de Auxílio Moradia e de Residência Universitária, Programa de Incentivo ao Desporto, Programa de Apoio Pedagógico e/ou Psicológico ao Estudante, Assistência Médica/Odontológica e Programa Restaurante Universitário. As políticas de assistência estudantil na Urca são mantidas com recursos próprios ou advindos de parcerias institucionais, sendo a principal o Fundo Estadual de Combate à Pobreza (Fecop), que tem financiado não somente as bolsas de assistência, mas as de iniciação científica e extensão, entre outras. Na Urca, a política de assistência estudantil é operacionalizada por meio da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Proae), que desenvolve ações de subsídio à permanência dos estudantes, buscando diminuir os índices de evasão e retenção. Desenvolve Programas como: Restaurante Universitário, Residência Universitária, Bolsa Assistência Estudantil e Bolsas de Estágio Extracurricular, ajudas de custo para participação em eventos, Núcleo Interdisciplinar de Apoio Psicopedagógico, este último em fase de implantação.
Como os cotistas da Urca não haviam ingressado à época da coleta de dados, os critérios de seleção dos participantes foram diferenciados nas duas instituições. Na UFC, os participantes satisfizeram os critérios: estar regularmente matriculados nos cursos de graduação presencial dos campi localizados em Fortaleza, ser aluno cotista e ter mais de 18 anos. Já na Urca, os critérios de participação foram: declarar renda familiar (até dois SM) e/ou ser egresso de escola pública e/ou participar ou ter participado dos Programas de Bolsas de Proae. Dessa forma, um desses três critérios pôde ser demonstrativo da condição de pobreza entre os estudantes. Os outros critérios foram: estar regularmente matriculados nos cursos presenciais de graduação dos campi da Urca e ter mais de 18 anos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram escolhidos oito cursos de graduação, um sujeito de cada curso de alta demanda. Historicamente ocupadas pela elite, nessas graduações se reproduz o caráter elitista dos códigos e condutas, o que acentua as implicações psicossociais da pobreza. O curso de Pedagogia da Urca foi incluído por ser o mais concorrido entre as licenciaturas, sendo importante representante dessa instituição, constituída majoritariamente por licenciaturas. Dessa forma, os cursos foram eleitos pela nota de corte do Exame Nacional do Ensino Médio e do Sistema de Seleção Unificada (Enem/Sisu) na UFC e pela alta concorrência no vestibular na Urca, de forma a buscar a representatividade e diversidade entre as unidades acadêmicas de cada uma das universidades.
Enfim, a amostra foi do tipo não probabilística, por conveniência, pois não teve rigor estatístico na escolha e quantificação dos participantes. A pesquisa foi divulgada nas redes sociais e espaços acadêmicos, por meio dos quais os participantes se voluntariavam. Em alguns cursos, foi realizada busca ativa ao solicitar indicação de possíveis participantes, cujo perfil era difícil de encontrar, como os cotistas de Medicina da UFC.
A amostra total foi composta por oito estudantes, distribuídos igualmente em cada universidade, sendo quatro cotistas da UFC e quatro ingressos por vestibular da Urca (Quadro 1). Em geral, os participantes das entrevistas, sendo cotistas ou não, podem ser considerados jovens que vivem em contexto de pobreza nos cursos de alta demanda. São, em sua maioria, bolsistas de várias modalidades, a maior parte percorreu mais da metade do curso e representam diversas áreas do saber.
Instrumento para construção de informações
A entrevista foi o instrumento utilizado devido a sua potencialidade para o alcance do objetivo ao possibilitar a compreensão da trajetória de vida do estudante na interseção com o impacto das políticas institucionais para sua permanência. O roteiro de entrevista incluiu os pontos-guia: universidade/curso; estratégias de permanência; suporte social; relacionamento interpessoal; preconceito e discriminação; vergonha e humilhação; sistema de cotas; meritocracia; desafios da permanência; e estratégias de enfrentamento.
Análise de dados
Utilizou-se a análise de conteúdo (Bardin, 2009) como técnica de análise das informações, já que se constitui a partir do sujeito produtor do discurso situado em um espaço social. O software Atlas.ti 5.2 foi utilizado para auxílio na codificação das informações. As macrocategorias de pesquisa analisadas e discutidas foram: dimensão material e dimensão subjetiva (aspectos socioculturais e aspectos pedagógicos) da permanência. Cabe informar que o projeto de pesquisa foi aprovado no comitê de ética competente, resguardando os princípios e diretrizes da Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados e discussão
As discussões referentes aos resultados analisados organizam-se em relação às principais categorias da pesquisa. Dessa forma, serão abordadas nas dimensões material e subjetiva da permanência.
Dimensão material da permanência: o aperto financeiro que compromete a formação
Para Santos (2009), a dimensão material da permanência está relacionada às condições de subsistência, que são afetadas pelas carências financeiras, implicando nas dificuldades em comprar refeições, despesas com transporte, material didático, participação em cursos e eventos acadêmicos. Essas questões são apontadas como dificultadoras pelos entrevistados:
E a questão financeira é um pouco apertada, né? . . . Mas a minha família sempre me ajuda, mas, assim, tudo dentro do limite, nunca dá pra gente, assim, fazer alguma coisa a mais, é realmente aquilo que é o necessário mesmo. (Vitória, PSI.UFC)
Vitória (PSI.UFC) coloca a questão financeira como uma dificuldade para a permanência, o que impacta a situação econômica da família, que a auxilia. Carol (ENF.Urca) também visualiza a questão socioeconômica como principal entrave:
Principalmente de início, financeira, né . . . agora a questão mais socioeconômica, como eu vim dizendo, melhorou muito com a bolsa! . . . Eu me sinto mais tranquila em saber que eu estou recebendo um apoio, que eu posso comprar livros, tirar xerox, me alimentar… melhor, é, ter até mesmo um dinheiro pra comprar algum remédio, se necessário, até mesmo porque eu estou em outra cidade, longe dos meus pais. (Carol, ENF.Urca)
A estudante da Urca necessita de suprimentos básicos, como moradia, remédios e alimentação. Lessa (2017) reconhece que os estudantes que migram de suas residências de origem para estudar necessitam de apoio para se manter, tendo a bolsa de assistência estudantil como principal mecanismo de sobrevivência.
Pra eu continuar me manter, comprando esse tipo de coisa, livros, ingresso de eventos, que eu gosto de participar, eu preciso de uma bolsa, vou precisar. . . . E se eu tivesse condição de comprar os livros técnicos seria melhor pra mim. A faculdade tem sim livros, mas muitas vezes alguns faltam, sempre falta, né . . . e alguns livros do meu curso muitas vezes são em inglês, como não é traduzido, não é nacional, aí é bem caro. (João, ENG.UFC)
A questão financeira é o principal fator, primeiro porque a biblioteca da Urca, ela é muito ruim! Livros é… atrasado! O Direito todo dia tá mudando alguma legislação, todo dia tá mudando a doutrina, e os livros são muito caros e não tem na biblioteca, então começa daí! Outro problema é a questão de logística. Eu tô estudando à noite e não tenho transporte, vou e volto a pé, aí às vezes eu tenho, às vezes não. Todo dia eu tenho que sair mais cedo, perco muita, muita aula, horas de aula, pra voltar para casa mais cedo pra me sentir mais segura. (Laura, DRT.Urca)
Consonante a João (ENG.UFC), para Laura (DRT.Urca) a falta de acesso aos livros é um fator dificultador dos estudos, pois a biblioteca não dispõe de livros atualizados. Já o estudante da UFC, apesar de ter acesso, tem dificuldades de deslocá-los até sua residência. Além disso, a hipossuficiência financeira traz dificuldades referentes às questões pedagógicas que também foram verificadas por Cavalcante (2014): falta de acesso e/ou de dinheiro para comprar livros, desenvolvimento de atividades acadêmicas que gerem custos, participação em eventos.
Com a finalidade de superar algumas dessas dificuldades, os alunos podem solicitar os benefícios e Programas da Assistência Estudantil (PAE). Estimativa realizada pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores e Assuntos Comunitários e Estudantis (2016) revela que o número de estudantes que se enquadra nos critérios dessas políticas ultrapassa os 76% do total de graduandos nas regiões Nordeste e Norte. Este número implica um grande desafio para a Assistência Estudantil (AE).
Eu acho que a bolsa, né, é o que tem me ajudado muito, porque, principalmente, que a minha mãe, por exemplo, ela não tem condição pra mandar dinheiro pra mim todos os meses. Então ela já, depois que eu comecei a ganhar a bolsa, ela já não me ajuda de forma nenhuma, porque até mesmo ela recebe uma quantia de dinheiro inferior do que a que eu recebo com a bolsa. (Carol, ENF.Urca)
Estudantes da Urca afirmam a importância destas políticas para sua permanência: “Sim, na universidade tenho uma bolsa de Assistência estudantil, ajuda. Principalmente a bolsa, né?” (Francisco, ENG.Urca). Deslocados de suas residências, para Francisco (ENG.Urca) e Carol (ENF.Urca), a bolsa se constitui a base do apoio material, já que a família não pode dar o suporte de que necessitam. A renda da mãe, inferior ao valor da bolsa, sugere que, para os padrões de vida familiar, o benefício tem um importante impacto financeiro. Segundo Marinho (2017), há o reconhecimento da imprescindibilidade e relevância dessas políticas, principalmente da permanência dos alunos mais pobres. No entanto alguns estudantes criticam o caráter focalizado e a ausência de benefícios que contemplem a diversidade das necessidades dos alunos.
Os desafios, eu acho que são coisas mais no que tangenciam mesmo a assistência da universidade. Porque, assim, a universidade ela tem, né, os auxílios e etc., e eles colocam muitos pré-requisitos, de fato, pra pessoas que precisam muito, muito mesmo. Só que, no fim das contas, todo aluno que é cotista, que vem de escola pública - escolas públicas, assim, que eu falo, mesmo, de bairro e tal -, é muito difícil. Todo mundo tá no mesmo barco, né? Todo mundo precisa. (Pedro, ADM.UFC).
É, bolsa, eu tentei uma bolsa na Prae de iniciação acadêmica, mas no tempo eu não consegui . . . Auxílio moradia é pra quem é de longe e tá morando aqui próximo, mas no meu caso eu não tô morando aqui, essa bolsa não me contempla, pra quem mora longe, não tem pra esse caso. (João, ENG.UFC)
Pedro (ADM.UFC) sente a necessidade de apoio da política, porém não tem acesso aos benefícios, excludentes quanto ao critério de renda. Da mesma forma, João (ENG.UFC) tem necessidade de apoio para moradia que não é contemplada com o Programa de Moradia. Nesse sentido, Marinho (2017) assevera que as políticas assistenciais na UFC são cada vez mais focalizadas, o que não atende à diversidade de demandas dos alunos pobres.
Vale ressaltar que as dificuldades materiais e financeiras, assim como a difícil acessibilidade a esses benefícios, se intensificam ainda mais nos cursos que exigem dedicação exclusiva, carga horária em tempo integral. Além disso, os cursos da área da saúde, entre outros, requerem compras de equipamentos de alto custo. O curso de Medicina exemplifica estes dois aspectos:
A gente precisa comprar esteto, comprar teciômetro, aí quem tem condições compra melhor, né? Compra um material melhor, aí isso faz diferença . . . a bolsa permanência da UFC não tá mais oferecendo. Aí eles dão o auxílio emergencial. Só que o auxílio emergencial é aquela coisa, vem num mês e no outro não vem, demora muito a vir. (Maria, MED.UFC)
A qualidade do material vai impactar diretamente a aprendizagem, pois, quanto melhor for o equipamento, mais funcional. Ainda referente à UFC, o auxílio emergencial é concedido para alguns alunos que não satisfazem os critérios para bolsas de assistência por não ter disponibilidade de doze horas devido ao curso integral. Maria (MED.UFC) enquadrada nessa situação, critica a instabilidade desse benefício. Outra crítica feita por Vitória (PSI.UFC) se refere ao valor da bolsa: “Porque as bolsas, elas não são do valor que realmente são necessários, os valores necessários pra gente se manter”. Para Leite (2012), a percepção dessa política como apoio social deve ser problematizada em relação a sua adequação ou não às necessidades do ingressante. Assim, cabe refletir sobre o valor monetário da bolsa nos dois contextos estudados. O custo de vida na Fortaleza é mais alto do que a Região do Cariri. Portanto o valor da bolsa na capital tende a ter uma menor percepção de suficiência.
Todavia, no contexto de PAE da Urca, para muitos estudantes, a bolsa de Assistência Estudantil, como no caso de Carol (ENF.Urca) e Francisco (ENG.Urca), tem sido a principal fonte de financiamento. No entanto, apesar do Programa Bolsa de Estágio Extracurricular buscar vincular aprendizagem à assistência, os bolsistas entrevistados apontam diferenças na relação entre bolsa e formação:
Bom, a bolsa é de estágio extracurricular, aí eu sou bolsista do núcleo . . . e a gente recebe uma remuneração, trabalha meio período. . . . Como eu estudo pela manhã, e algumas disciplinas são à tarde, dá pra conciliar, porque meu estágio é à noite. E, também, alguns professores, o coordenador do núcleo, quando tem o período de provas, eles não botam… não, pegam pesado com a gente no núcleo, que é pra gente estudar. . . . Então, tem muito tempo livre também pra gente estudar e serve até como um… é melhor pra gente estudar lá, porque tem computadores, internet, o lugar também é climatizado, então, de certa forma, é até bom. (Francisco, ENG.Urca)
Eu sou bolsista, então eu faço um estágio durante a noite, eu estudo manhã e tarde e, de certa forma, trabalho à noite . . . é uma atividade extracurricular. No meu caso, eu fico na biblioteca durante o período da noite, fazendo empréstimos de livros e tal . . . realmente é bem cansativo! Tem que se dedicar. (Carol, ENF.Urca)
Para Francisco (ENG.Urca), a bolsa está aliada aos aspectos formativos. No entanto, para Carol (ENF.Urca), a bolsa é percebida como um trabalho, sem relação com as atividades do curso, gerando um desafio na organização do calendário de estudos. Desse modo, reflete-se sobre a necessidade apontada por Leite (2012) em aliar as atividades da bolsa à formação do estudante. Ademais, os estudantes da Urca também apontam críticas quanto à política de assistência estudantil por não contemplar a diversidade das necessidades:
A Universidade de Cariri ela prevê assistência estudantil para… de auxílio creche, mas não tem, . . . e a realidade das mães da Urca é basicamente isso, de desistência, de trancamento, de atraso, uma dificuldade enorme de estar seguindo na trajetória acadêmica, né! E outros tipos de assistência também, assistência moradia, tem pessoas que vêm de outra cidade, de sítios, da zona rural, de assentamentos, de quilombos, e não têm como permanecer por questão tanto financeira como de logística, assim, tanto as questões tanto de cotas como de problema de assistência de permanência são fundamentais! (Laura, DRT.Urca)
Hoje, se você pergunta em uma universidade, seja regional, que é a Urca, seja federal, que é a UFC, eles beneficiam bolsas, aquelas bolsas são apenas pra aqueles que realmente se dedicam a estudar. (Cícera, PED.Urca)
Segundo as estudantes, as políticas assistenciais não contemplam questões como assistência às mães estudantes, às especificidades dos quilombolas e aos desafios dos estudantes trabalhadores, estes apontados por Almeida (2007) e Zago (2006). Dessa forma, percebe-se que a Urca apresenta seletividade e focalização das políticas assistenciais, conforme apontado por Duarte Júnior (2013) como uma das características das universidades estaduais nordestinas. Ademais, a moradia implica desafios também na UFC:
A principal que eu vejo é eu morar longe. No início, era até revoltante, gastar quatro horas por dia só em translado pra poder estudar. . . . Isso só as quatro horas calculadas, não dá pra estimar, quantificar o quanto isso me atrapalha, como já chego cansado em casa, a principal coisa que que vejo que atrapalha. . . . Por exemplo, se minha família tivesse mais condição financeira, como algumas outras, algumas pessoas fazem, e eu poder morar aqui perto da universidade, apartamento, se eu tivesse condição financeira pra isso, seria bem mais fácil. (João, ENG.UFC)
E, além disso, eu moro muito longe. Eu moro, tipo, na divisa de Fortaleza, . . . aí, nas aulas que são muito cedo, assim, aula prática muito cedo, eu não consigo chegar a tempo, e aula prática influencia na nota também. Às vezes acabava me prejudicando por conta disso. . . . A maior dificuldade mesmo é o fato de morar longe, ela [mãe] não ter condições de pagar um local aqui perto. (Maria, MED.UFC)
Observam-se diferentes situações em que a implicação de morar distante ou estar deslocado da cidade de origem impactam a permanência, de acordo com a realidade de cada universidade. No caso da UFC, há estudantes que moram na periferia, como Maria (MED.UFC), ou na região metropolitana, como João (ENG.UFC). Esses estudantes não satisfazem os critérios para as políticas assistenciais de moradia na UFC, dado o caráter focalizado e a insuficiência de recursos, como apontado por Marinho (2017).
E, na realidade da Urca, há deslocados de outras cidades, como na experiência de Carol (ENF.Urca). Há também estudantes advindos da zona rural, como Francisco (ENG.Urca), ou até mesmo de assentamentos, quilombos, como apontados por Laura (DRT.Urca), e nem todos os campi da Urca têm residência universitária. Segundo Duarte Júnior (2013), esta é uma tendência das universidades estaduais nordestinas de concentrarem esses dispositivos nos campi centrais, nas sedes das instituições.
Devido ao caráter focalizado, seletivo e à insuficiência de recursos adiante da demanda das universidades (Duarte Júnior, 2013; Marinho, 2017), para garantir a sobrevivência acadêmica, os estudantes de famílias pobres precisam recorrer a uma série de outros mecanismos.
E é, sou bolsista [iniciação científica], né, da Urca, e a bolsa é o que me sustenta, assim, na, na universidade, pra tirar xerox, para pagar passagem, essas coisas. (Laura, DRT.Urca)
É, eu tinha uma bolsa [extensão], e aí essa bolsa me ajudou bastante mesmo. (Pedro, ADM.UFC)
Agora eu sou bolsista de pesquisa, mas já fui bolsista de iniciação acadêmica, e já fui bolsista de extensão. (Vitória, PSI.UFC)
Uma das principais estratégias apontadas pelos entrevistados é participar de outras bolsas com remuneração e, ao mesmo tempo, empreender a formação. Esse mecanismo sugere que a participação em outros espaços formativos, como laboratórios, núcleos e projetos com bolsa remunerada, favorece a sobrevivência financeira, ao mesmo tempo em que agrega capital cultural aos estudantes, o que nem sempre é possível alçar por meio das bolsas de assistência, conforme reflexão de Leite (2012).
Ainda assim, há outro perfil de alunos que não são bolsistas, tais quais os estudantes sem remuneração e os estudantes trabalhadores: “Eu queria apenas estudar, queria um emprego que eu trabalhasse menos pra me dedicar mais, mas, de hoje, minha necessidade não permite, o meu desempenho no meu curso não esteja ruim, esteja bom, não ótimo, como eu queria” (Cícera, PED.Urca). Os estudantes trabalhadores precisam da remuneração para se manter na universidade, pois muitas vezes precisam manter a si mesmos e os membros da família. Os dilemas do estudante trabalhador (Zago, 2006) e do estudante parcial (Almeida, 2007) são evidenciados no desafio de obter uma formação de qualidade.
Alguns professores, eles contribuíam, também, financeiramente no início pra gente. Como a gente é da mesma cidade, quase todo mundo da mesma escola, ajudavam a gente dando uma quantia todo mês pra gente se manter aqui. . . . como eu vim depois, e todas as pessoas, sempre é assim, quando um… é, os mais antigos sempre ajudam os mais novatos, os calouros, digamos assim, em questão financeira. (Francisco, ENG.Urca)
Na experiência de Francisco (ENG.Urca), enquanto ainda não tinha bolsa, pôde contar com o apoio dos amigos e da comunidade, haja vista que sua família tem hipossuficiência de recursos. A comunidade rural não apenas incentivou, como também o apoiou e a outros jovens a ingressarem no ensino superior. Esses estudantes moram na cidade com o suporte financeiro dos professores do ensino médio até que possam se manter com os benefícios assistenciais. Por fim, para os estudantes que não recebem nenhum tipo de benefício assistencial nem outras bolsas e não são trabalhadores, as redes de solidariedade podem se constituir em uma fonte de apoio. A esse respeito, Silva et al. (2016) apontam que as fontes de apoio familiar, comunitária, entre outras, são fundamentais no enfrentamento das adversidades impostas pela condição de pobreza, especialmente quando não há apoio institucional.
Dimensão subjetiva da permanência na universidade: encaixar para pertencer
Considera-se que a efetiva inclusão e a democratização do ensino superior devem ultrapassar a questão do acesso e incluir a problemática da permanência, também no que se refere a sua dimensão subjetiva. Aliada dialeticamente com a dimensão material, foi analisada em separado para fins didáticos. A perspectiva da dimensão subjetiva da permanência envolve vários e complementares aspectos, tais como: sentimento de pertencimento, participação, inclusão e identificação com o meio acadêmico (Santos, 2009); necessidade de reforma curricular, investimento na formação docente, apoio pedagógico; promoção de uma cultura diversa e plural com atenção às questões étnico-raciais e de acessibilidade.
Considerar os aspectos psicossociais, culturais e pedagógicos da permanência do estudante pobre é compreender a pobreza a partir de uma perspectiva multidimensional (Sen, 2000). Assim, destacam-se dois elementos principais e complementares da dimensão simbólica da permanência (Cavalcante 2014; Santos, 2009), o que vai ser considerado como dimensão subjetiva: o aspecto sociocultural e o aspecto pedagógico. O fator sociocultural é imprescindível à afirmação da identidade social e étnica, o que evidencia o papel dos preconceitos e atitudes discriminatórias no abalo ao sentimento de pertencer. Já o aspecto pedagógico é atravessado pelos desafios relativos ao rendimento acadêmico, ao considerar que os currículos e as práticas pedagógicas podem estar distantes da realidade educacional dos estudantes pobres. No aspecto sociocultural, os jovens apresentam relevantes questões:
Teve um pouco de dificuldade, porque foi um choque, porque a gente veio da zona rural pra cidade. Então, teve, primeiro teve esse choque e também teve um choque na diferença do ensino médio pro ensino superior, a forma que ensinam, essas coisas. E, também, o… pelo fato da gente ter cursado escola pública, o ensino médio e o ensino fundamental também têm algumas coisas que não foram ensinadas, então a gente sentiu um pouco de dificuldade. (Francisco, ENG.Urca)
Para Francisco (ENG.Urca), a integração ao meio acadêmico foi impactada pelas mudanças: de cidade, de nível de ensino e de modos de vida da zona rural para a urbana. Devido à complexidade dos fatores relacionados à permanência e à diversidade de competências a serem desenvolvidas, conforme elucidadas por Pinto, Faria, Pinto e Taveira (2016), os desafios adaptativos se impõem mais severamente para os jovens pobres.
Mas o convívio com os meus colegas acabava sendo muito complicado por causa disso. Até que eu passei a fazer parte de outros grupos, de outras pessoas que vinham de uma condição social mais parecida com a minha, e isso tornou mais fácil o meu convívio com os colegas, porque eram pessoas que eu tinha assuntos em comum, eram pessoas que entendiam quando eu falava de cotas e tal, e já uma outra parte da sala, né? Que era uma parte, inclusive, de pessoas legais e tal, de pessoas boas, mas que não me encaixava. (Pedro, ADM.UFC)
Na experiência de Pedro (ADM.UFC), também advindo de zona rural, a entrada na universidade foi impactante devido às assimetrias culturais entre os colegas em um curso elitizado. Para se encaixar, o estudante passou a compor outros grupos, com uma realidade próxima à sua, buscou afiliar-se, pertencer, fontes de identificação em colegas com condições sociais similares. No entanto cabe lembrar que há um estranhamento recíproco de realidades entre cotistas e não cotistas:
Às vezes não é nem uma coisa intencional, mas os outros colegas que não são cotistas, eles não têm noção da realidade dos colegas cotistas e, quando os colegas cotistas colocam suas experiências em sala, os outros, os demais colegas, eles ficam, assim, espantados, como se aquela realidade fosse muito distante deles. (Vitória, PSI.UFC)
Esta questão foi percebida por Vitória (PSI.UFC), que enfatiza o estranhamento das experiências dos alunos cotistas por parte dos alunos não cotistas. Os estranhamentos geram tensões e as tensões geram fronteiras, demarcadores de territórios. No entanto, segundo Cavalcante (2014), nesse jogo de forças entre campos com códigos culturais diferentes, os grupos detentores das regras tentam garantir a perpetuação das suas normas e requisitos necessários ao credenciamento do ser universitário. Desse modo, pelas assimetrias entre os grupos, os territórios vão sendo demarcados entre cotistas e não cotistas, ricos e pobres, na experiência dos jovens da UFC:
Geralmente, são pessoas que moram na mesma regional, que moram em bairros próximos, têm mais essa aproximação, né? Assim como você vê que os alunos que vêm de determinada escola particular, eles já andam mais juntos, saem mais juntos, assim. Você vê, ali, os cotistas, geralmente< que fazem o mesmo programa, que eles que vão almoçar no RU, ou eles sempre racham alguma coisa, dividem o preço de algo. (Vitória, PSI.UFC)
Observam-se claramente os demarcadores de cotistas: moram em bairros próximos, almoçam no RU, segundo a percepção de Vitória (PSI.UFC). No entanto há outros elementos: “na minha turma, noto que tem alunos que estudavam na particular que só se associam com outros que estudavam na particular” (João, ENG.UFC). Na percepção de João (ENG.UFC), o que divide é a escola de origem e o consequente bom ou mau rendimento. “Tem, tipo, da divisão de turma, geralmente é quem tem mais condição fica junto… difícil ter amizade, assim, com quem tem condição melhor com quem não tem. Geralmente é bem dividido, assim, você percebe” (Maria, MED.UFC). Na especificidade da turma de Maria (MED.UFC), há outros limites, portanto não é o fator de ser ou não cotista que define fronteiras, pois muitos cotistas advindos das escolas federais têm condições financeiras satisfatórias, o marcador é a condição financeira.
Tem muitas pessoas da minha sala que têm… é de uma classe social diferente e, de certa forma, assim, isso muda o círculo de convivência. Por exemplo, quando tem as festas, tem festas com 50% do curso, festa com 70% do curso, esses tipos de coisas. Eu geralmente nunca sou chamada e, por conta dessas amizades, além dos muros da universidade, dentro também eu me sinto, de certa forma, excluída. (Laura, DRT.Urca)
Observa-se ainda que, mesmo onde não há política de cotas, a exclusão do convívio social por questões financeiras também promove exclusão nas relações acadêmicas, segundo a vivência de Laura (DRT.Urca). Essas questões são refletidas por Zago (2006), ao afirmar que a condição de estudante pobre impõe vários limites à vida acadêmica, tais como: participação em eventos dentro e fora da universidade, trabalhos coletivos, festas organizadas pela turma, encontros de formação, espaços culturais etc.
No que concerne ao aspecto pedagógico da dimensão subjetiva da permanência, a problemática da educação básica deficitária apontada por Bertolini, Amaral e Almeida (2019), sobressai como importante implicação psicossocial da pobreza para os estudantes entrevistados. A este respeito: “É, foi bem difícil, porque eu sempre estudei, a minha vida inteira, em escola pública, então o ensino era realmente muito raso” (Pedro, ADM.UFC).
Dada a complexidade e importância do desempenho acadêmico e das marcas da diferença (Nogueira, 2015) que ele simboliza para a permanência do estudante pobre, indagou-se aos participantes sobre sua percepção em relação à satisfação com o desempenho. Dessa forma, os fatores intrapessoais, como estudar em casa, ganham destaque na experiência de João (ENG.UFC):
Eu consigo absorver mais quando estou estudando em casa sozinho. Tem monitorias? Tem, e grupos de estudos também, mas o que mais me atrapalha é os meus horários não serem tão flexíveis aqui dentro da universidade. Por exemplo, eu não posso exceder tanto tempo aqui, porque moro longe, e aí tenho que calcular passar tantas horas. (João, ENG.UFC)
Assim, podemos pressupor a importância dos conteúdos aprendidos ou não aprendidos no ensino médio para obter uma boa percepção do rendimento, principalmente porque o sistema de ensino ainda é pautado na aprendizagem e avaliação individuais.
Pesquisadora: Teve alguma disciplina que foi mais difícil pra ti?
Pesquisado: Teve Cálculo I, uma disciplina muito difícil, porque era necessário muito conteúdo do ensino fundamental e médio que a gente não tinha visto ou, às vezes, não lembrava, e foi um impacto muito grande pra gente, e até uma porcentagem muito pouca da turma conseguiu passar.
Pesquisadora: Quantos passaram? A tua turma tem quantos alunos?
Pesquisado:[Pausa] 40.
Pesquisadora: Tem 40 alunos, passaram quantos?
Pesquisado: Tinha 40 e passaram 2. (Francisco, ENG.Urca)
Para Silva, Mainier e Passos (2006), as dificuldades no rendimento devido à defasagem na educação básica são evidenciadas em alguns cursos, como os de Engenharia, ilustradas na fala de Francisco (ENG.Urca), sendo ainda mais impactante para egressos de escola pública.
E muitas vezes até em casa, muitas vezes não é tão propício, a minha vizinhança é muito barulhenta, sempre tem um som tocando, principalmente final de semana, que é quando eu tenho mais tempo, e muitas vezes atrapalha. . . . Muita coisa do meu curso é inglês, e é muito conteúdo, vídeo na internet, é tudo inglês, e acaba dificultando. (João, ENG.UFC)
Assim, outros desafios para os estudantes pobres são somados à defasagem na educação básica, como a necessidade de um adequado ambiente de estudo e o conhecimento em língua estrangeira, especialmente o inglês, outro importante credencial da cultura acadêmica, que a educação pública básica não proporciona. As questões relatadas trazem reflexões sobre a relevância do apoio institucional para os alunos com dificuldades no rendimento: “também teve a questões de monitoria, que ajudou bastante” (Francisco, ENG.Urca). A monitoria, entre outros dispositivos pedagógicos, como grupos de estudo e a participação em projetos, núcleos e laboratórios, podem ser importantes mecanismos institucionais para a superação das dificuldades de desempenho acadêmico.
Considerações finais
Entre as principais implicações psicossociais da pobreza para a dimensão material da permanência, destacam-se: falta de recursos para a subsistência, moradia distante da universidade ou deslocamento do local de origem, necessidade de conciliar trabalho e estudo, falta de acesso a livros e equipamentos didáticos de qualidade. Dessa forma, visualiza-se a imprescindibilidade das políticas assistenciais no enlace entre democratização do ensino superior, dimensão material da permanência e qualidade nos estudos. No entanto atenta-se para o caráter focalizado e insuficiente dessas políticas, diante da grande demanda de alunos, o que é ainda mais agravado na esfera estadual, na qual essas políticas não são consolidadas.
Os principais aspectos socioculturais da dimensão subjetiva da permanência estão relacionados à integração social no meio acadêmico, atravessado pela qualidade das relações intrauniversitárias, o que os leva a se sentirem pertencentes e inclusos ou não no meio acadêmico. Entretanto as desigualdades socioeconômicas, a sensação de estrangeirismo, o estereótipo do cotista, entre outros mecanismos excludentes, levam à divisão de fronteiras entre alunos cotistas e não cotistas, ricos e pobres. Assim, essas assimetrias desenham a divisão de grupos a partir dos demarcadores cotas, escola de origem, situação socioeconômica e rendimento acadêmico. Quanto às implicações relacionadas ao aspecto pedagógico da dimensão subjetiva da permanência, foram consideradas: defasagem na educação básica, defasagem no domínio da língua estrangeira, falta de tempo para estudar (trabalho, maternidade ou bolsa acadêmica), falta de um ambiente adequado de estudo e falta de dinheiro para comprar livros e equipamentos.
Este artigo traz como principal contribuição elucidar os desafios da permanência na concretude psicossocial dos estudantes, ao considerar as especificidades da vida em contexto de pobreza, o que afirma a relevância dessa temática para o conhecimento da psicologia em sua interface com a educação. Metodologicamente, ao dar voz aos estudantes pobres, possibilitou analisar como as políticas de assistência se aproximam ou se distanciam de suas demandas, refletindo o compromisso social da pesquisa. Suas limitações se referem à não abrangência da temática nas universidades particulares, na pós-graduação e na modalidade de ensino superior à distância, dadas as peculiaridades dessas realidades, o que sugere a necessidade de futuras pesquisas.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Jul 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
28 Abr 2020 -
Revisado
16 Mar 2021 -
Aceito
01 Maio 2021