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Os fenômenos transicionais de Winnicott como conceito operador metodológico para a pesquisa psicanalítica

Winnicott’s transitional phenomena as a methodological concept tool for psychoanalytic research

Les phénomènes transitionnels de Winnicott comme concept-opérateur méthodologique pour la recherche psychanalytique

Los fenómenos transicionales de Winnicott como operador metodológico para la investigación psicoanalítica

Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir metodologicamente no campo da pesquisa psicanalítica o lugar do pesquisador na relação com seu objeto de pesquisa. O conceito de fenômenos transicionais de Donald Woods Winnicott foi proposto como operador metodológico para um olhar sobre o pesquisar, sustentando a dimensão do encontro singular entre pesquisador e objeto como produção de conhecimento que se faz justamente entre posições. Entendemos a importância de se debruçar sobre o método na pesquisa psicanalítica e de discutir uma relação entre pesquisador e objeto, reconhecendo a potência da pesquisa como uma produção conjunta que, ao mesmo tempo em que se constrói no encontro, resguarda as diferenças de ambas as posições e materialidades envolvidas.

Palavras-chave:
pesquisa psicanalítica; metodologia; fenômenos transicionais; Winnicott

Abstract

This article aims to discuss, from a methodological perspective, the place of the researcher in relation to his research object in the field of psychoanalytic research. Donald Woods’s concept of transitional phenomena is proposed as a methodological tool to analyze the research process, supporting the dimension of the singular encounter between researcher and object as knowledge production that happens precisely in this space between positions. We understand the importance of studying the method in psychoanalytic research and discussing the relations between researcher and object, recognizing the strength of research as a joint production that, at the same time, is built in the encounter and preserves the differences of both positions and materialities involved.

Keywords:
psychoanalytic research; methodology; transitional phenomena; Winnicott

Résumé

Cet article a l’objectif de discuter méthodologiquement, dans le champ de la recherche psychanalytique, le lieu du chercheur dans la relation avec son object de recherche. Le concept de phénomènes transitionnels de Donald Woods a été proposé comme un opérateur méthodologique pour analyser la recherche, en soutenant la dimension du rencontre singulier entre chercheur et object en tant que production de la connaissance que se fait, précisément, dans une place entre des positions. Nous comprenons l’importance de se concentrer sur la méthode dans la recherche psychanalytique et de discuter une relation entre chercheur et object, tout en reconnaissant la puissance de la recherche comme une production partagée qui garde les différences des ces deux positions et des ces deux materialités impliquées en même temps qu’elle est construite dans leur rencontre.

Mots-clés :
recherché psychanalytique; méthodologie; phénomènes transitionnels; Winnicott

Resumen

Este artículo realiza una discusión metodológica sobre el lugar del investigador y su objeto de investigación en el campo de la investigación psicoanalítica. Se propone el concepto de fenómenos transicionales de Donald Woods Winnicott como un operador metodológico para establecer una mirada sobre la investigación, sosteniendo la dimensión del encuentro singular entre el investigador y el objeto como producción de conocimiento, que se pone en un entre posiciones. Es importante centrarse sobre el método en la investigación psicoanalítica y discutir una relación entre el investigador y el objeto, reconociendo la potencia de la investigación como una producción conjunta que, al mismo tiempo que se construye en el encuentro, asegura las diferencias de las posiciones y materialidades involucradas.

Palabras clave:
investigación psicoanalítica; metodología; fenómenos transicionales; Winnicott

Introdução

A falta de entendimento acerca das múltiplas possibilidades de metodologias de pesquisa em psicanálise pode ter impedido, por certo tempo, um avanço criativo das contribuições nesse campo (Dunker, Voltolini, & Jerusalinsky, 2008Dunker, C. I. L.; Voltolini, R., & Jerusalinsky, A. N. (2008). Metodologia de pesquisa e psicanálise. In R. Lerner e M. C. M. Kupfer. (Orgs.), Psicanálise com Crianças: Clínica e pesquisa (Vol. 1, pp. 63-92). São Paulo, SP: Escuta.). Dunker et al. (2008)Dunker, C. I. L.; Voltolini, R., & Jerusalinsky, A. N. (2008). Metodologia de pesquisa e psicanálise. In R. Lerner e M. C. M. Kupfer. (Orgs.), Psicanálise com Crianças: Clínica e pesquisa (Vol. 1, pp. 63-92). São Paulo, SP: Escuta. pontuam a crença que circula no campo psicanalítico de que haveria uma única metodologia de pesquisa em psicanálise, o que demonstra uma confusão entre o método de pesquisa e o método de tratamento. Os autores salientam que há uma relação inclusiva entre eles, visto que “trata-se de pesquisa onde se trata da psicanálise” (Dunker et al., p. 64), além dos dois se sustentarem na transferência. No entanto, quando colocamos pesquisa e clínica em uma lógica de equivalência, pode-se cair em uma trivialização da noção da pesquisa. O método que a psicanálise põe em curso no tratamento não é inteiramente diverso ao da pesquisa, no entanto ambos resguardam suas diferenças. Nesse sentido, tem-se que o método de pesquisa em psicanálise faz parte da clínica, mas se estende para além dela (Dunker et al, 2008Dunker, C. I. L.; Voltolini, R., & Jerusalinsky, A. N. (2008). Metodologia de pesquisa e psicanálise. In R. Lerner e M. C. M. Kupfer. (Orgs.), Psicanálise com Crianças: Clínica e pesquisa (Vol. 1, pp. 63-92). São Paulo, SP: Escuta.).

Recentemente se percebe um maior interesse em produção de embasamentos metodológicos na pesquisa psicanalítica (Da Rosa, & Ferrari, 2020Da Rosa, D. J., & Ferrari, A. G. (2020). A metodologia do entre, o educador e a assessoria na prevenção do autismo. Educação, 43(3), e32459. doi: 10.15448/1981-2582.20 20.3.32459
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; Dunker, & Ravanello, 2019Dunker, C. I. L., & Ravanello, T. (2019). A Garrafa de Klein como Método para Construção de Casos Clínicos em Psicanálise. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 22(1), 99-110. doi: 10.1590/s1516-14982019001010
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; Gurski, & Strzykalski, 2018Gurski, R., & Strzykalski, S. (2018). A pesquisa em psicanálise e o catador de restos: Enlaces metodológicos. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica , 21(3), 406-415. doi: 10.1590/s1516-14982018003012
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; Macedo, & Dockhorn, 2015Macedo, M. M. K., & Dockhorn, C. N. B. F. (2015). Psicanálise, Pesquisa e Universidade: labor da especificidade e do rigor. Perspectivas en Psicología), 12(2), 82-90. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=483547667010
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; Queiroz, & Zanotti, 2020Queiroz, E. F., & Zanotti, S. V. (Orgs.). (2020). Metodologia de pesquisa em psicanálise. Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS. Recuperado de https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/216892/001120941.pdf? sequence=1
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; Voltolini, & Gurski, 2020Voltolini, R., & Gurski, R. (Orgs.). (2020). Retratos da pesquisa em Psicanálise e Educação .São Paulo, SP: Contracorrente.; Wieczorek, Kessler, & Dunker, 2020Wieczorek, R. T., Kessler, C. H., & Dunker, C. I. L. (2020). O (f)ato clínico como ferramenta metodológica para a pesquisa clínica em psicanálise. Tempo Psicanalítico, 52(2), 185-213. Recuperado de https://www.tempopsicanalitico.com.br/index.php/tempo psicanalitico/article/view/467
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). Ainda que há décadas existam teorizações que buscam trabalhar a psicanálise enquanto um método de produção de conhecimento válido dentro da academia (Caon, 1997Caon, J. L. (1997). Serendipidade e situação psicanalítica de pesquisa no contexto da apresentação psicanalítica de pacientes. Psicologia: Reflexão e Crítica, 10(1), 105-123. doi: 10.1590/S0102-79721997000100008
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; Mezan, 1998Mezan, R. (1998). Sobre a pesquisa em psicanálise. Psyché, 2(2), 87-97., Safra, 2001Safra, G. (2001). Investigação em psicanálise na Universidade. Psicologia USP, 12(2), 171-175. doi: 10.1590/S0103-65642001000200014
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), aponta-se a necessidade de novas investigações a fim de sustentar as pesquisas e a produção de conhecimento nesse campo. Nessa via, Fonteles, Coutinho e Hofmann (2018Fonteles, C. S. L., Coutinho, D. M. B., & Hoffmann, C. (2018). A pesquisa psicanalítica e suas relações com a universidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica , 21(1),138-148. doi: 10.1590/1809-44142018001013
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) realizaram uma investigação em teses disponíveis dos anos de 1987 a 2012 no Banco de Teses da Capes, analisando 1075 pesquisas psicanalíticas brasileiras. Os autores, após lerem os resumos das teses, compilaram os dados em uma análise descritiva e estatística, além de analisar tema, método e autores de referência. Como resultado dessa pesquisa, apontam que poucos trabalhos explicitam o método utilizado, com 560 não mencionando a metodologia em seus resumos. Com isso, sugerem que o método tem sido deixado em segundo plano pela psicanálise, como se por ser uma pesquisa psicanalítica, estivesse naturalmente implícito. Segundo os autores, a falta de menção ao método pode estar associada à insuficiência de um entendimento sobre a pesquisa psicanalítica e seus fundamentos, o que acarreta pouca dedicação ao rigor metodológico necessário ao processo. Portanto, a ideia não seria propor uma rigidez metodológica excessiva, por vezes situada nas ciências positivistas, mas o cuidado com o rigor ético que sustenta o modo de produção de conhecimento em uma pesquisa psicanalítica.

Embora a pesquisa psicanalítica não se sustente na utilização de um método tradicional, calcado na oposição sujeito-objeto e no controle de variáveis, isso não a torna menos rigorosa. Seu rigor é dado, principalmente, pela fidelidade aos princípios que norteiam a prática da investigação psicanalítica (Safra, 2001Safra, G. (2001). Investigação em psicanálise na Universidade. Psicologia USP, 12(2), 171-175. doi: 10.1590/S0103-65642001000200014
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), incluindo seu saber incompleto (à medida que reconhece o não saber) e o acolhimento do que surge do processo de investigação, possibilitando novos caminhos no pesquisar e rompendo com uma lógica de causa e efeito (Macedo, & Dockhorn, 2015Macedo, M. M. K., & Dockhorn, C. N. B. F. (2015). Psicanálise, Pesquisa e Universidade: labor da especificidade e do rigor. Perspectivas en Psicología), 12(2), 82-90. Recuperado de https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=483547667010
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).

Dedicar atenção ao rigor metodológico na pesquisa psicanalítica, mesmo que possa ser associado comumente a conotações superegóicas, proporciona algo importante para a produção universitária no que diz respeito à fundamentação, justificativa e contextualização dos argumentos (Mezan, 2002Mezan, R. (2002). Psicanálise e pós-graduação: Notas, exemplos, reflexões. In R. Mezan, Interfaces da psicanálise (pp. 395-435). São Paulo, SP: Companhia das Letras.). Ou seja, a proposição de reflexões metodológicas próprias à psicanálise, que considerem sua inserção no meio acadêmico e as implicações que isso acarreta, torna-se fundamental.

Na tentativa de encontrar pontos em comum sobre as pesquisas psicanalíticas, encontramos diversos autores que sugerem alguns conceitos fundamentais a levarmos em conta nesse contexto como: a singularidade, a transferência, a concepção de sujeito e a noção de inconsciente (Caon, 1997Caon, J. L. (1997). Serendipidade e situação psicanalítica de pesquisa no contexto da apresentação psicanalítica de pacientes. Psicologia: Reflexão e Crítica, 10(1), 105-123. doi: 10.1590/S0102-79721997000100008
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; Diniz, 2011Diniz, M. (2011). O método clínico e sua utilização na pesquisa. Revista Espaço Acadêmico, 10(120), 9-21. Recuperado de https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13029
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; Iribarry, 2003Iribarry, I. N. (2003). O que é pesquisa psicanalítica?. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica , 6(1), 115-138. doi: 10.1590/S1516-14982003000100007
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). Outro ponto frequentemente discutido pelos estudos é sobre a posição tanto do pesquisador quanto do objeto de pesquisa e de suas intersecções. Diniz (2011)Diniz, M. (2011). O método clínico e sua utilização na pesquisa. Revista Espaço Acadêmico, 10(120), 9-21. Recuperado de https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13029
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aponta que existem diferentes possibilidades de olhar o que tange à relação entre pesquisador e objeto no campo da pesquisa clínica, também nomeada como implicação. A autora aponta a consideração da interação pesquisador-objeto e da subjetividade como ponto a ser trabalhado, e não um obstáculo na produção de conhecimento. No entanto, Diniz (2011)Diniz, M. (2011). O método clínico e sua utilização na pesquisa. Revista Espaço Acadêmico, 10(120), 9-21. Recuperado de https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13029
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aponta que “[. . .] outro conjunto de estudos coloca em primeiro lugar a pesquisa de si: o sujeito, no processo de pesquisa, está sempre em busca de si mesmo, e seu objeto é um espelho” (p. 16).

Com isso, podemos discutir que uma das possibilidades de entender o processo de pesquisa seria tomá-lo quase como uma autoanálise do pesquisador, que assim faz do objeto praticamente uma mera projeção de suas questões. Em relação a isso cabe ressaltar que, embora a psicanálise produza um contraponto à tradição de ciência mais positivista que legitima uma neutralidade por parte do pesquisador, por outro lado ela pode tomá-lo como centro da produção, esvaziando a noção de alteridade. No entanto, entendemos que, da mesma forma que há uma implicação do pesquisador com seu objeto, o objeto também produz o pesquisador em um movimento recíproco. Assim, podemos discutir a importância do cuidado no entendimento das diferentes posições incluídas na produção de uma pesquisa psicanalítica, pois caso contrário, correr-se-ia o risco de criar outro enrijecimento de posições de maneira análoga ao que a psicanálise critica sobre as ciências mais positivistas. Dar destaque excessivamente ao pesquisador como sujeito pode produzir um apagamento da alteridade do objeto. A partir disso, torna-se relevante a produção de novas perspectivas que forneçam reflexões metodológicas úteis para o trabalho de pesquisa em psicanálise, incluindo a potência e os impasses da relação pesquisador-objeto. É nesse ínterim que surge a escrita deste artigo.

Cabe ressaltar que essa escrita parte de reflexões metodológicas que foram disparadas pela experiência das autoras em um grupo de pesquisa situado no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Trata-se do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicanálise e Infâncias (NEPIs), cujo escopo de trabalho abrange a sustentação de projetos de pesquisa e extensão na interface da psicanálise com a infância em distintos contextos, incluindo a educação infantil, e que atua na cidade de Porto Alegre (RS). Um dos projetos de pesquisa-extensão realizados pelo NEPIs ocorre dentro de escolas de educação infantil, nas quais é realizado um acompanhamento junto das coordenações, educadoras, bebês e suas famílias (Ferrari, Fernandes, Silva, & Scapinello, 2017Ferrari, A. G., Fernandes, P. P., Silva, M. da R., & Scapinello, M. (2017). A experiência com a Metodologia IRDI em creches: Pré-venir um sujeito. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 17-33. doi: 10.1590/1415-4714.2017v20n1p17.2
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; Silva, & Ferrari, 2022Silva, M., & Ferrari, A. (2022). A experiência de acompanhamento de bebês em escolas de educação infantil através da Metodologia IRDI. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 73(3). doi: 10.36482/1809-5267.ARBP2021v73i3p.172-188
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; Silva, Medeiros, Arrosi, & Ferrari, 2021Silva, M. R., Medeiros, C. B., Arrosi, K. E., & Ferrari, A. G. (2021). “Que bom que ele havia estranhado”: considerações sobre a Metodologia. Psicologia Escolar E Educacional, 25, e226338. doi: 10.1590/2175-3539 2021226338
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; Wiles, & Ferrari, 2020Wiles, J. M., & Ferrari, A. G. (2020). Do cuidado com o bebê ao cuidado com o educador. Psicologia Escolar E Educacional , 24, e213976. doi: 10.1590/2175-35392020213976
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). Junto a isso, as pesquisadoras buscaram registrar suas experiências por meio de diários clínicos, que são lidos por outros membros do grupo e discutidos nas reuniões, servindo também como material para possíveis pesquisas (Silva, Oliveira, & Ferrari, 2022Silva, M. R., Oliveira, B. C., & Ferrari, A. G. (2022). Da experiência ao relato clínico: Desafios do registro em uma pesquisa psicanalítica. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica , 25(2), 31-38. doi: 10.1590/1809-44142022-02-04
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). Também refletimos conjuntamente sobre os bebês, as educadoras, as instituições e as turmas, eventualmente realizando encaminhamentos para alguns serviços. A experiência das pesquisadoras no cotidiano dos berçários tem suscitado questionamentos sobre a produção de pesquisas dentro da psicanálise fora do contexto clássico de análise. Uma das principais questões feitas pelo grupo tange, justamente, à posição e ao lugar de pesquisadoras no contexto de uma produção de conhecimento em psicanálise.

A partir da experiência das autoras em campo, surgiu o interesse em investigar alguns conceitos para operar metodologicamente dentro de uma pesquisa psicanalítica. Em uma busca nas bases de dados, percebemos muitos artigos utilizando aportes conceituais de Winnicott para análise e interpretação de materiais de pesquisas, mas apenas um associando-o à metodologia de pesquisa em psicologia clínica. Trata-se de um artigo de Avellar (2009Avellar, L. Z. (2009). A pesquisa em psicologia clínica: Reflexões a partir da leitura da obra de Winnicott. Contextos Clínicos, 2(1), 11-17. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-34822009000100002
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), que discute algumas particularidades no campo da pesquisa em psicologia clínica e retoma o procedimento utilizado por Winnicott do jogo de rabiscos. Sublinha-se que nesse jogo há uma proposição de participação do analista livremente na dinâmica a partir da criação de traços junto de seu paciente, alternadamente, formando um desenho conjunto. O jogo é tomado como elemento terapêutico, já que além de se surpreender, a criança pode se comunicar com seu analista a partir dele, participando ativamente. Assim, a autora destaca a ciência positivista como algo que não comporta esse livre jogar na medida em que há uma dissociação entre sujeito-objeto. Diferente disso, a autora pontua a implicação do pesquisador em sua produção e a possibilidade de se surpreender, que é condição para o campo da clínica e da pesquisa já que lidam com ineditismo a todo tempo pelo trabalho com o singular. Dessa forma, tal procedimento construído por Winnicott traria para o campo da pesquisa a contribuição de sustentar a capacidade do pesquisador em sua participação livre no jogo para a construção do conhecimento, transformando sua atividade em um ato criativo. Malgrado traga uma discussão interessante, o artigo encontrado não esgota as possibilidades de articulação entre conceitos winnicottianos e metodologia de pesquisa psicanalítica. Em nosso entendimento, Winnicott contribui além de possíveis interpretações na análise de dados a partir de seus pressupostos para uma discussão metodológica potente. Compreendemos que para analisar o lugar de pesquisador, implicado em sua subjetividade mas que ainda assim não abra mão do reconhecimento da alteridade e da materialidade do objeto de pesquisa, os conceitos de fenômenos transicionais e espaço transicional apresentam elementos importantes.

Método

Tendo em vista a escassez de produções que utilizem uma perspectiva winnicottiana para construir reflexões sobre a pesquisa psicanalítica e o entendimento das autoras da potência desse enlace, este artigo objetivou articular discussões metodológicas a partir dela. Foi realizada uma leitura livre do livro O brincar e a realidade, de Winnicott (1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago.), recolhendo o conceito de fenômenos transicionais para abordar a metodologia na pesquisa psicanalítica. Mais especificamente, objetivamos fazer uso dele para articular reflexões sobre o lugar do pesquisador na sua relação com o objeto. Trata-se, portanto, de uma pesquisa bibliográfica nessa obra winnicottiana, tomando os fenômenos transicionais como fios condutores para uma discussão metodológica e tensionando pressupostos epistemológicos no campo da pesquisa, particularmente da pesquisa psicanalítica. No lugar de polos fronteiriços opositivos, os lugares do pesquisador e do objeto serão tomados em sua dimensão de encontro, de diferença, de uma zona de entre. Cabe ressaltar que, para os fins deste artigo, não se tem a pretensão da proposição de uma metodologia estruturada para a análise de dados, mas a proposição de uma operação conceitual metodológica1 1 Essa proposição teórico-metodológica foi utilizada por Silva (2021), como uma discussão possível, em uma pesquisa com viés psicanalítico no campo das infâncias e contação de histórias. .

O conceito de fenômenos transicionais como conceito operador metodológico

O conceito de fenômenos transicionais da obra winnicottiana está no cerne de suas contribuições acerca do desenvolvimento emocional do bebê. Os fenômenos transicionais designam a área intermediária da experiência “. . . entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já foi introjetado, entre o desconhecimento primário de dívida e o reconhecimento desta” (Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 12). Eles podem ser encontrados, em sua ampla variação, desde as primeiras explorações do bebê com sua boca, o que acaba por conduzir a ligação com um brinquedo. No entanto, mesmo que a exploração e a satisfação autoerótica sejam suas bases, há algo para além delas.

Esses fenômenos são constituídos no desdobramento entre o subjetivo e o objetivo pertencentes ao domínio da ilusão, que é base para dar sustentação ao senso de unidade de si mesmo. “Os fenômenos transicionais representam os primeiros estádios do uso da ilusão, sem os quais não existe, para o ser humano, significado na ideia de uma relação com um objeto que é por outros percebido como externo a esse ser” (Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 26). Segundo Winnicott (1975)Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago., são uma área intermediária de experimentação, em que contribuem tanto a realidade interna quanto a externa, “entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste da realidade” (p. 26). Quando o bebê nasce, ele passa a contar com seus cuidadores para o processo do reconhecimento de si e do mundo. Os adultos não determinam seu desenvolvimento e processo de subjetivação, mas sustentam um ambiente facilitador para que a possibilidade de amadurecimento e integração do bebê ocorra a partir da adaptação às suas necessidades. Rodulfo (2009a)Rodulfo, R. (2009a). Omnipotencia. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp. 37-55). Buenos Aires: Paidós. aponta que o ambiente facilitador não tem uma função de causa e efeito, visto que, em alguns casos, o ambiente pode ajudar em alguns aspectos e não em outros, marcando sua variedade e também limitação no que diz respeito à constituição psíquica de uma criança. O ambiente é facilitador se inclui a falha, se um adulto pode se identificar com o bebê e se o bebê pode introjetar isso. No movimento de adaptação, a partir de um cuidado suficientemente bom, o cuidador vai permitindo ao bebê acreditar que o que ele cria está lá para ser encontrado, com base em seu controle onipotente. Sublinha-se a transformação do conceito tradicional de onipotência por Winnicott, que passa de um mecanismo de controle mágico e de fins essencialmente defensivos a ser pensado como condição mesma da dimensão criadora do psiquismo do bebê (Rodulfo, 2009aRodulfo, R. (2009a). Omnipotencia. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp. 37-55). Buenos Aires: Paidós.).

O cuidador, inicialmente, adapta-se quase que completamente às necessidades do bebê, fazendo com que, a partir da ilusão, ele acredite que cria a realidade externa que o sacia. O que o cuidador supre e o que a criança pode conceber a partir de sua criação são sobrepostos. Aos poucos, a desilusão começa a ser colocada em cena pelo cuidador, iniciando as primeiras frustrações do bebê, o que pode ser associado ao desmame, já que vai para além do término da alimentação, referindo-se às operações psíquicas envolvidas nesse processo. É importante aqui apontar que Winnicott (1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago.) faz menção mais especificamente à mãe e ao seio, mas, em uma nota de rodapé, acrescenta que quando se refere ao seio da mãe, inclui toda a técnica da maternagem. Ou seja, um adulto que se ocupe da criança, facilitando ou não seu processo de subjetivação e que crie a ilusão de que o bebê dá conta de suas necessidades por meio de sua criação. Entre a realidade externa e a realidade subjetiva, que de início não tem comunicação, um espaço intermediário de ilusão é criado, em que não está em jogo a questão de pertencer ao mundo subjetivo ou à realidade compartilhada. A ilusão do bebê, permitida por seu cuidador, passa a mediar seu psiquismo e o ambiente. Faz-se necessário que um adulto possa se identificar com a criança e que a criança possa introjetar essa capacidade.

Ao introjetar, a criança se capitaliza com um respaldo mnêmico, um arquivo que sustenta suas experiências, e construindo um arcabouço para suas experiências criativas. Não se trata da introjeção de objetos, mas da incorporação de processos entre. Se introjeta, diríamos, a operação de facilitar (Rodulfo, 2009aRodulfo, R. (2009a). Omnipotencia. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp. 37-55). Buenos Aires: Paidós., pp. 48-49, tradução nossa).

Winnicott (1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago.) aponta que o objeto transicional não tem sua função atrelada somente ao objeto propriamente dito, como o pano e o ursinho que o bebê escolhe, mas é seu uso transicional que está em jogo. Sendo assim, alerta para o cuidado de não fixar o objeto transicional a exemplos preestabelecidos, tomando-o de forma arbitrária. Rodulfo (2009b)Rodulfo, R. (2009b). Transicíon. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp 73-86). Buenos Aires: Paidós aponta que a dedução de um feito de observação não atribui o caráter transicional, já que um mesmo ato pode ser transicional em um caso e em outro não. Os fenômenos transicionais são singulares e, logo, sua repetição não se faz possível. São marcados por seu traço diferencial e pelo inédito que surge, como exemplificado no trecho a seguir: “. . . enquanto chupa o polegar, com os demais dedos acaricia o resto do rosto e de repente, já não se chupa o polegar e segue acariciando o resto do rosto, isso é o fenômeno” (p. 85, tradução nossa). Há um paradoxo envolvido no uso do objeto e fenômeno transicional, que se sustenta e não é resolvido. Esse paradoxo tem grande valor para todo vivente que seja capaz de ser enriquecido pelo vínculo com a cultura (Rodulfo, 2009bRodulfo, R. (2009b). Transicíon. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp 73-86). Buenos Aires: Paidós). Incluídos no campo do brincar, esses fenômenos marcam a possibilidade de estarmos vivos, no percurso do existir, e evidenciam que o objeto é importante em si mesmo pela experiência que ele possibilita (Stanchi, 2014Stanchi, D. F. (2014). A materialidade como evento poético: um estudo hermenêutico a partir do caso piggle de D. W. Winnicott (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo. Recuperado de https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-11122014-112723/pt-br.php
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). Poderíamos falar de uma lógica dos fenômenos e do objeto transicional, em que a ambiguidade e a não resolução em pares opositivos é assegurada.

Santos (1999Santos, M. A. (1999). A constituição do mundo psíquico na concepção winnicottiana: uma contribuição à clínica das psicoses. Psicologia: Reflexão e Crítica , 12(3). doi: 10.1590/S0102-79721999000300005
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) aponta que o espaço transicional obedece a um pensamento paradoxal, que escapa da dicotomia que opõe ser e não ser sob o princípio da realidade: do ponto de vista da criança, esses objetos, ao mesmo tempo em que são criados, também não são o que representam. É a partir de um intervalo, de uma zona de entre lugares, entre o não ser e o ser, que a existência do sujeito irá se desdobrar na construção de sua subjetividade: “A tarefa de aceitação da realidade nunca é completada, que nenhum ser humano está livre da tensão relacionada à realidade interna e externa, e que o alívio dessa tensão é proporcionado por uma área intermediária da experiência que não é contestada” (Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago., pp. 28-29). Winnicott salienta que os fenômenos transicionais não têm uma resolução, eles constituem a maior parte da vida do bebê e seguem conservados na “experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador” (Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 30, ênfase adicionada). Ou seja, os fenômenos transicionais não são relegados à infância ou aos primórdios da constituição do sujeito, mas consistem na área intermediária que é condição de possibilidade para o viver criativo durante toda a vida.

Assim, tomando esse trecho, propomos para o campo da pesquisa psicanalítica o conceito de fenômenos transicionais como ferramenta possível para uma discussão metodológica. Tomando essa posição não demarcada de um lugar ou outro, mas que fica numa zona de entre da relação entre a criança e o mundo, podemos discutir sobre a relação entre pesquisador e objeto. Em uma zona porosa e híbrida, não estaria em jogo a demarcação do que é de um ou de outro, visando a uma separação, mas o interesse se situa no que é produzido nessa zona intermediária da experiência a partir de um encontro. Acredita-se que, assim como o pesquisador produz seu objeto de pesquisa e campo, o objeto também o produz. As teorizações winnicottianas sobre uso e relação de objeto também ajudam a seguir nessa discussão. Na relação de objeto, existem alterações no self por meio de mecanismos de projeção e identificação. Ela é uma experiência do sujeito. Já quando falamos do uso do objeto, podemos entender que há algo da realidade compartilhada que se coloca em cena, visto que mais do que um feixe de projeções, há quase uma interpelação do objeto em sua dimensão real de dar algo de si nesse jogo. Assim, mais que uma projeção, mas tomando a ideia do uso de objeto no campo da pesquisa, pressupomos um acréscimo/criação por parte do sujeito ao objeto e, logo, do pesquisador no seu campo/objeto de pesquisa: “. . .o objeto, se é que tem de ser usado, deve ser necessariamente real, no sentido de fazer parte da realidade compartilhada, e não um feixe de projeções” (Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 123). O movimento de pesquisa, assim como o uso do objeto na constituição subjetiva, pressupõe um movimento de destruição tomada em sua dimensão de criação, singularidade e da autoria do pesquisador. A destruição permite, a partir da perspectiva winnicottiana, um movimento criativo e coloca o objeto para além do eu, situando-o para “. . .fora da área de objetos criados pelos mecanismos psíquicos projetivos do sujeito. Dessa maneira, cria-se um mundo de realidade compartilhada que o sujeito pode usar e que pode retroalimentar a substância diferente-de-mim dentro do sujeito” (Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 131).

Com isso, propomos sustentar que a produção de conhecimento no campo da psicanálise também pode reconhecer o encontro como produtor de pesquisa. Porém quando falamos de tal produção conjunta, não entendemos que há uma mistura indiferenciada, mas apostamos na coexistência de diferentes posições em que estão; Nesse encontro podemos situar a produção de um saber, que é compartilhado. O movimento criativo está justamente na sustentação desse paradoxo, de tomá-lo enquanto paradigma de pensamento.

Winnicott ajuda-nos a avançar na pesquisa psicanalítica ao demonstrar a importância da corporeidade no encontro com o outro e com o mundo. Grande parte da produção em psicanálise dá ênfase demasiada ao discurso e ao verbal da experiência humana. No entanto, com Winnicott, há a aposta no cuidado do ambiente e de sua materialidade para prover ao bebê um lugar possível para si no mundo. O psicanalista acredita em uma “materialidade do corpo humano que é viva e transpira presenças que presentificam paradoxalmente o estilo de ser de alguém” (Stanchi, 2014Stanchi, D. F. (2014). A materialidade como evento poético: um estudo hermenêutico a partir do caso piggle de D. W. Winnicott (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo. Recuperado de https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-11122014-112723/pt-br.php
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, p. 40). O cuidado é marcado pelos ritmos, sons, cheiros, do corpo a corpo. Do processo de construção de subjetividade de um bebê, Winnicott estende para a presença no setting analítico. Ele põe em relevo a presença viva do terapeuta, que acolhe e destina as questões do paciente, na convivência analítica. Um terapeuta vivo, presente na cena, que sente e está disponível na escuta do paciente. Há uma presença corporal do analista e do analisante e de um ritmo próprio que vai sendo instaurado, em que, para além do diálogo verbal, são incluídas as sutilezas da comunicação humana que estão no campo do não verbal (Stanchi, 2014Stanchi, D. F. (2014). A materialidade como evento poético: um estudo hermenêutico a partir do caso piggle de D. W. Winnicott (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo. Recuperado de https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-11122014-112723/pt-br.php
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).

Articulando essas contribuições para a pesquisa psicanalítica, podemos reconhecer a presença do pesquisador no encontro com seu objeto, assim como a presença do objeto para o pesquisador. Há o reconhecimento de um e de outro, enquanto alteridade, que se encontram e podem compor em conjunto: a partir desse encontro, ambos são afetados e produzem o conhecimento que, ao mesmo tempo em que é marcado pela experiência partilhada, resguarda suas singularidades e diferenças. Outro ponto importante a discutir é sobre os conceitos “objeto subjetivo” e “objeto objetivo” ou “objeto percebido objetivamente”. Rodulfo (2009a)Rodulfo, R. (2009a). Omnipotencia. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp. 37-55). Buenos Aires: Paidós. aponta que essa noção do objetivo é, por vezes, associada com a ideia tradicional, no sentido da razão depurada de subjetividade, o que destoa da proposição winnicottiana. Ao falar de objetividade, Winnicott estaria falando de alteridade, sobre um objeto ser percebido objetivamente como um outro diferente do self. O objeto objetivo está profundamente subjetivado e representa um ganho da subjetividade a possibilidade do reconhecimento da alteridade, do “diferente-de-mim”. Rodulfo (2009a)Rodulfo, R. (2009a). Omnipotencia. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp. 37-55). Buenos Aires: Paidós. ainda sugere que Winnicott se refere ao outro quando utiliza termos como “objeto percebido objetivamente” e “verdadeiro objeto externo”. O que está em jogo é o contínuo movimento de reconhecer o outro como outro: não-eu, estranho, não familiar. Tais termos podem trazer à tona a confusão e a carga metafísica contida na noção de objeto/outro. A implicação sobre essa questão no campo da pesquisa psicanalítica revela a presença de diferentes materialidades e de diferentes posições que estão em jogo.

Os fenômenos transicionais quebram a ênfase nas discussões, que se centram no registro psíquico interno ou no registro externo do ambiente. A área transicional é justamente a área intermediária dessas dimensões, que não reivindica pertencimento a uma ou outra. Seu aparecimento está relacionado com a provisão de uma experiência de cuidado e hospitalidade que darão ao bebê um repertório, incluindo diferentes ritmos, sons e formas de se comunicar. Tudo isso evoca a corporeidade dos viventes, o que inspira a relançar as posições pesquisador-objeto como diferentes e, ao mesmo tempo, como enlaçadas na produção de uma pesquisa. Estamos no campo da relação com a alteridade, o que, segundo Rodulfo (2009a)Rodulfo, R. (2009a). Omnipotencia. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp. 37-55). Buenos Aires: Paidós., opera em uma coexistência e uma permanente oscilação entre as dimensões eu e outro, escapando de premissas dicotômicas. Rodulfo (2009a)Rodulfo, R. (2009a). Omnipotencia. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp. 37-55). Buenos Aires: Paidós. aponta que, desde a tradição filosófica e o estabelecimento da noção de objeto, tal caracterização foi atribuída por um sujeito transcendental, conferindo a essa ideia uma falta de autonomia. Esse processo estaria associado ao projeto de colonização da natureza, do universo e das culturas, que acaba por reiterar uma lógica reducionista de objetificação do mundo. Assim, propõe que a dimensão do outro e do objeto não pode ser lida como interno ou externo. Nessa perspectiva, estaria sempre em questão o contínuo movimento de reconhecer algo como outro e como alteridade. Winnicott então propõe o seguinte paradoxo: é no jogo de fusão com o outro que vai se constituindo a noção de alteridade. É por meio da onipotência e não contra ela que se estabelece uma relação com a realidade (Rodulfo, 2009aRodulfo, R. (2009a). Omnipotencia. In R. Rodulfo, Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: Lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott (pp. 37-55). Buenos Aires: Paidós.). Com isso, propomos que é no encontro com o objeto que as pesquisas são criadas, pressupondo a implicação do pesquisador no pesquisar, mas não negando a alteridade do objeto de pesquisa. A tentativa de se colocar em uma zona neutra, livre da produção de seu campo e de seus dados de pesquisa, parece mais uma organização defensiva de uma aplicação de teoria do que o movimento que o processo do pesquisar pressupõe. No entanto, a pesquisa excessivamente centrada na subjetividade do pesquisador dá pouca ênfase à materialidade do objeto, o que também não considera a dimensão de encontro na produção de uma pesquisa pois, de certa forma, esvazia o lugar da alteridade.

Nesse sentido, assim como Winnicott (1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago.) coloca, em relação ao processo analítico, que a interpretação fora do campo do brincar e da transferência seria uma forma de doutrinação, podemos pensar, no campo da pesquisa, que a aplicação da teoria sobre um objeto sem considerar a dimensão do encontro age de forma análoga. A replicação teórica de um dado a priori não deve se sobrepor à produção de conhecimento, que surge do motor do pesquisar apoiada na singularidade e no movimento criativo do encontro. Por outro lado, ressaltamos a necessidade de se atentar ao método nas pesquisas psicanalíticas a partir de recursos próprios ao campo. Ou seja, propomos que a alternativa à rigidez metodológica encontrada em campos mais positivistas não seja a fuga de se debruçar sobre a metodologia, mas a produção de caminhos metodológicos que considerem as especificidades do encontro entre psicanálise e academia.

Considerações finais

Este artigo partiu da inquietação das pesquisadoras na experiência de pesquisa psicanalítica na educação infantil, o que suscitou o desejo de investigar proposições metodológicas que fizessem sentido para a produção que temos realizado enquanto grupo. No encontro com a leitura do livro O brincar e a realidade de Winnicott (1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago.), localizamos fundamentações que nos fizeram refletir sobre algumas questões referentes à metodologia de pesquisa psicanalítica, e mais especificamente sobre a relação entre pesquisador e objeto e seu enlaçamento para uma produção de conhecimento em psicanálise.

Entre as diversas possibilidades de intersecção para essa discussão, nos aproximamos especialmente do conceito de fenômenos transicionais, tomando-o enquanto fio norteador conceitual. O encontro com tal conceito oportunizou um olhar sobre o pesquisar que leva em conta essa área intermediária proposta por Winnicott e apontou uma saída diante das noções mais tradicionais de oposição sujeito/objeto. Entendemos, assim, que Winnicott (1975)Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago. apresenta algumas pistas para uma discussão metodológica, sustentada em uma quebra de lógicas que privilegiam uma ênfase demasiada no sujeito ou no objeto e apostando, justamente, na produção que se dá entre subjetividade e alteridade.

Ressaltamos, então, a potência de lançar um olhar sobre a pesquisa em sua dimensão de encontro, na qual há espaço para a construção criativa sem que ela se torne um empreendimento meramente projetivo que não leva em conta o objeto enquanto alteridade. A partir das contribuições winnicottianas, pode-se tomar a pesquisa psicanalítica como uma produção singular, em que o que mais importa não é a reivindicação quanto à realidade factual ou a projeção do pesquisador, mas a possibilidade de uma realização criativa que possa ser compartilhada.

Além disso, entendemos que o pesquisador no reconhecimento da alteridade se transforma tanto quanto transforma sua realidade. O ato criativo pode ser transformador tanto para o pesquisador quanto para o objeto de pesquisa, na medida em que há uma implicação mútua de criação que nos marca enquanto viventes no contato com o mundo e com o outro. Sendo assim, sublinha-se a indissociabilidade da produção de conhecimento entre pesquisador e objeto, entre pesquisador e seu campo, que se sustenta justamente em uma zona de aproximações e encontros. Acreditamos que é justamente nesse trânsito e nesse espaço potencial criativo, produzido no entre, que se faz possível uma construção de conhecimento implicada e ética, uma vez que se reconheça sendo não neutra, parcial e localizável, questionando lógicas de poder universalizantes, a partir da aposta no conhecimento mútuo e produzido no encontro singular.

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  • 1
    Essa proposição teórico-metodológica foi utilizada por Silva (2021)Silva, E. X. L. (2021). Quem conta um conto, acrescenta um conto: Contação de histórias e suplementaridade no processo de subjetivação de crianças (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, =Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Recuperado de https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/236146
    https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/2...
    , como uma discussão possível, em uma pesquisa com viés psicanalítico no campo das infâncias e contação de histórias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    27 Maio 2023
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