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Fetichismo e regressão em Freud e Adorno: da psicanálise à teoria social

Fetishism and regression in Freud and Adorno: from psychoanalysis to social theory

Fétichisme et régression chez Freud et Adorno : de la psychanalyse à la théorie sociale

Fetichismo y regresión en Freud y Adorno: del psicoanálisis a la teoría social

Resumo:

Nas “Conferências introdutórias à psicanálise” (1916-1917), Freud argumenta pela participação fundamental da regressão na etiologia tanto da neurose, quanto da perversão. Em “O fetichismo” ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) ), o autor formula uma nova versão desse conceito, de modo que as características do fetichismo passam a representar a estrutura geral de todas as perversões. Em 1938, Adorno, filósofo e sociólogo da Escola de Frankfurt, publica o ensaio “O fetichismo na música e a regressão da audição”, no qual ele aborda ambos os conceitos em uma perspectiva sociológica. Nosso objetivo aqui é analisar comparativamente como os conceitos de fetichismo e regressão são definidos e empregados pelos dois autores, assim como examinar a influência da teoria freudiana sobre Adorno, a partir dos textos mencionados. Esse é um tema muito pouco explorado na literatura da área, de modo que sua discussão pode contribuir para uma melhor compreensão dos conceitos e do impacto de suas diferentes interpretações.

Palavras-chave:
fetichismo; regressão; Freud; Adorno

Abstract:

In the “Introductory Lectures on Psychoanalysis” (1916-1917), Freud argues for the fundamental participation of regression in the etiology of both neurosis and perversion. In “Fetishism” ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) ), the author formulates a new version of this concept, so that the characteristics of fetishism came to represent the general structure of all perversions. In 1938, Adorno, a philosopher and sociologist from the Frankfurt school, published his essay “On the Fetish-Character in Music and the Regression of Listening,” in which he approaches both concepts from a sociological perspective. Our objective here is to comparatively analyze how the concepts of fetishism and regression are defined and employed by the two authors and to discuss the influence of Freud’s theory on Adorno, based on the texts mentioned above. This subject is rarely explored in the literature of the field, thus its discussion can contribute to a better understanding of the concepts and the impact of their different interpretations.

Keywords:
fetishism; regression; Freud; Adorno

Résumé :

Dans les « Conférences d’introduction à la psychanalyse » (1916-1917), Freud soutient la participation fondamentale de la régression dans l’étiologie de la névrose et de la perversion. Dans « Le fétichisme » ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) ), l’auteur formule une nouvelle version de ce concept, de sorte que les caractéristiques du fétichisme en viennent à représenter la structure générale de toutes les perversions. En 1938, Adorno, philosophe et sociologue de l’école de Francfort, publie l’essai « Le caractère fétiche dans la musique et la régression de l’écoute », dans lequel il aborde les deux concepts d’un point de vue sociologique. Notre objectif ici est d’analyser comparativement comment les concepts de fétichisme et de régression sont définis et employés par les deux auteurs, ainsi que d’examiner l’influence de la théorie freudienne sur Adorno à partir des textes mentionnés. Il s’agit d’un thème très peu exploré dans la littérature du domaine, de sorte que sa discussion peut contribuer à une meilleure compréhension des concepts et de l’impact de leurs différentes interprétations.

Mots-clés :
fétichisme; régression; Freud; Adorno

Resumen:

En las Conferencias de introducción al psicoanálisis (1916-1917), Freud sostiene la participación fundamental de la regresión en la etiología tanto de la neurosis como de la perversión. En “Fetichismo” ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) ), el autor formula una nueva versión de este concepto, de modo que las características del fetichismo pasan a representar la estructura general de todas las perversiones. En 1938, Adorno, filósofo y sociólogo de la Escuela de Fráncfort, publicó el ensayo “Sobre el carácter fetichista en la música y la regresión de la escucha” en el que aborda ambos conceptos desde una perspectiva sociológica. El objetivo de este artículo es analizar comparativamente cómo los conceptos de fetichismo y regresión son definidos y empleados por los dos autores, así como examinar la influencia de la teoría freudiana en Adorno a partir de los textos mencionados. Este es un tema muy poco explorado en la literatura del área, por lo que su discusión puede contribuir a una mejor comprensión de los conceptos y del impacto de sus diferentes interpretaciones.

Palabras clave:
fetichismo; regresión; Freud; Adorno

A psicanálise surge no final do século XIX como o projeto de uma nova ciência do psiquismo humano. Em parceria com Josef Breuer (1842-1925), de 1893 a 1895, Freud (1895/2016) escreve seus Estudos sobre a histeria , material em que elabora suas primeiras formulações sobre os mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos. Em 1900, com a publicação de A interpretação dos sonhos ( 1900Freud, S. (2019). A interpretação dos sonhos. In Obras Completas (Vol. 4, pp. 13-682). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1900) /2019), a ciência freudiana ganha maior escopo e lança as bases para sua teorização da estrutura psíquica, para além de sua concepção psicogenética dos distúrbios neuróticos. A hipótese central da psicanálise é a existência de um inconsciente dinâmico, em que conflitos ideacionais são os responsáveis por grande parte do sofrimento humano e do adoecimento psicológico. Esse inconsciente, por sua vez, constitui-se progressivamente por meio do desenvolvimento psicossexual do indivíduo, como resultado do confronto entre sua estrutura pulsional e suas experiências vividas. Entre os conceitos fundamentais desenvolvidos por Freud, a partir de seu método de investigação psíquica, estão o de fetichismo e o de regressão , cujos pressupostos se assentam em sua prática clínica e na elaboração metapsicológica de seus resultados.

Por outro lado, em 1938, o filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno (1903-1969) emprega os mesmos termos em seu ensaio “O fetichismo na música e a regressão da audição”. Adorno esteve envolvido em discussões estéticas desde o início de sua vida intelectual. Ao menos desde 1932, com a redação do ensaio “Sobre a situação social da música”, ele passa a elaborar sua reflexão musical a partir de um referencial sociológico. Desse modo, o filósofo ( 1932Adorno, T. W. (2011). Sobre la situación social de la música. In T. W. Adorno, Escritos musicales V, Obra completa (Vol. 18, pp. 762-809). Madri: Akal. (Trabalho original publicado em 1932) /2011) estabelece uma importante relação entre música e sociedade, considerando os problemas identificados nos campos da produção, reprodução e consumo musicais como um desdobramento dos problemas inerentes às relações sociais, decorrentes, fundamentalmente, do avanço do capitalismo. Partindo desse argumento, em “O fetichismo na música e a regressão da audição”, Adorno ( 1938Adorno, T. W. (1999). O fetichismo na música e a regressão da audição. In T. W. Adorno, Os pensadores (pp. 65-108). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1938). /1999) descreve uma música cada vez mais absorvida pelos mecanismos da indústria, de modo que seu valor estético passa a dar lugar ao valor mercadológico. Os conceitos de fetichismo e regressão são utilizados de uma maneira peculiar, demonstrando como as relações autênticas, tanto dos homens com os produtos de seu trabalho como entre eles mesmos, são substituídas por relações inautênticas ou ilusórias.

Adorno conhecia o trabalho de Freud ao menos desde a década de 1920. Em 1927, havia escrito uma proposta de tese de habilitação, sob a orientação do neokantiano Hans Cornelius, intitulada O conceito do inconsciente na doutrina transcendental da alma (Adorno, 1927Adorno, T. W. (2018). O conceito de inconsciente na doutrina transcendental da alma. In T. W. Adorno, Primeiros escritos filosóficos (pp. 125-427). São Paulo, SP: Unesp (Trabalho original publicado em 1927) /2018), cujo tema tangenciou a filosofia transcendental de Kant, ao mesmo tempo em que inseriu a psicanálise na discussão (Duarte, 2011Duarte, R. (2011). Adorno/Horkheimer & a Dialética do esclarecimento (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ). Tendo isso em vista, propomo-nos a analisar aqui como os conceitos de fetichismo e de regressão são definidos e empregados por Freud e Adorno. Mais precisamente, pretendemos examinar como a teorização freudiana em torno dessas questões é compreendida e incorporada por Adorno. Embora a relação entre Adorno e a psicanálise freudiana já tenha sido objeto de numerosos estudos, a questão específica do fetichismo e da regressão nos dois autores praticamente não foi abordada na literatura 1 1 Uma das poucas exceções é Miyasaki ( 2002 ). . Analisá-la contribui, assim, para completar o quadro dessa relação.

Para esse fim, nossa discussão se baseia, sobretudo, em três obras: a “Conferência 22” das “Conferências introdutórias à psicanálise”, em que Freud ( 1916Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 22: Considerações sobre desenvolvimento e regressão: Etiologia. In Obras completas (Vol. 13, pp. 450-475). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-7) -7/2014) define seu conceito de regressão; o artigo “O fetichismo”, no qual Freud ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) /2014) se dedica exclusivamente a caracterizar o mecanismo desse quadro clínico; e o ensaio “O fetichismo na música e a regressão da audição”, em que Adorno ( 1938Adorno, T. W. (1999). O fetichismo na música e a regressão da audição. In T. W. Adorno, Os pensadores (pp. 65-108). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1938). /1999) aborda os dois conceitos. Referências complementares a outras obras dos dois autores serão feitas quando necessário.

As origens do conceito de fetichismo: Marx e Freud

O termo fetichismo é oriundo da antropologia do século XVIII, aparecendo pela primeira vez por volta de 1750, e é derivado da palavra portuguesa “feitiço” (Roudinesco & Plon, 1998Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ). Do contexto do estudo da religião dos povos primitivos, o conceito passou para a psicopatologia da sexualidade (Simião & Simanke, 2021Simião, A. R. M., & Simanke, R. T. (2021). Extrato de estudo em história da psiquiatria: o fetichismo na ‘Psychopathia Sexualis’ de Richard von Krafft-Ebing. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 24(1), 164-187. doi: 10.1590/1415-4714.2021v24n1p164.9
https://doi.org/10.1590/1415-4714.2021v2...
), sendo depois absorvido e utilizado pelas mais diversas áreas do saber, cada qual com a atribuição de um sentido peculiar. Entre elas, estão a sociologia e a psicanálise.

Marx ( 1867Marx, K. (1996). O capital: crítica da economia política. Volume 1: O processo de produção do capital (versão digital). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1867) /1996) analisa o fetichismo da mercadoria no Capítulo I do primeiro livro de O Capital , mais precisamente em seu quarto tópico, intitulado “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”. Inicialmente, Marx observa que, em relação ao valor de uso da mercadoria, não há nada que se apresente como misterioso, quer consideremos desde o ponto de vista da satisfação das necessidades humanas pelas suas propriedades, quer levando em conta o fato de que ela somente recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. Entretanto, o grande mistério da mercadoria decorre justamente de sua “forma mercadoria”. Essa, para além do “valor de uso”, adquire uma substância ou grandeza de valor – o “valor de troca” –, segundo a qual produtos de espécies diferentes são equiparados qualitativamente por abstração, restando-lhes diferenças apenas quantitativas. Marx ( 1867Marx, K. (1996). O capital: crítica da economia política. Volume 1: O processo de produção do capital (versão digital). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1867) /1996) escreve:

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. (p. 198)

A relação entre os homens assume, assim, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Buscando uma analogia para o fenômeno social da mercadoria, Marx ( 1867Marx, K. (1996). O capital: crítica da economia política. Volume 1: O processo de produção do capital (versão digital). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1867) /1996) se desloca para o “nebuloso mundo da religião”. Nesse contexto, ele afirma, os produtos do cérebro humano – isto é, as criações de nossa espécie – parecem dotados de vida própria, de modo que figuras autônomas mantêm relações entre si e com os homens. Marx considera que o mesmo acontece no mundo das mercadorias. Ele chama de fetichismo, então, exatamente esse aspecto extrínseco aos produtos do trabalho, mas que adere a eles tão logo são produzidos como mercadorias, tornando-se, por isso, inseparável de sua própria produção. Desse modo, o caráter fetichista seria proveniente do aspecto social peculiar do trabalho que produz mercadorias. Marx ( 1867Marx, K. (1996). O capital: crítica da economia política. Volume 1: O processo de produção do capital (versão digital). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1867) /1996) explica:

Se as mercadorias pudessem falar, diriam: É possível que nosso valor de uso interesse ao homem. Ele não nos compete enquanto coisas. Mas o que nos compete enquanto coisas é nosso valor [de troca]. Nossa própria circulação como coisas mercantis demonstra isso. Nós nos relacionamos umas com as outras somente como valores de troca. (p. 207)

Portanto, o encanto fetichista advindo das relações sociais sobre as quais repousa a produção mercadológica se manifesta por uma inversão de prioridade, de modo que o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso e, consequentemente, a relação entre os produtores perde sua autonomia, passando a se subjugar a um suposto protagonismo de seus próprios produtos: o fetiche da mercadoria.

Segundo Vandenberghe ( 2012Vandenberghe, F. (2012). Uma história da sociologia alemã: Alienação e reificação. Volume 1: Marx, Simmel, Weber e Lukács. São Paulo, SP: Annablume. ), uma análise semântica da noção de fetichismo em Marx revela ao menos cinco significados diferentes: (1) o valor de troca suplanta o valor de uso, a ponto de o valor de troca parecer inerente à natureza dos objetos, enquanto, na realidade, ele resulta do trabalho que é incorporado ao produto e se exprime como uma relação de grandeza entre coisas trocadas; (2) a relação social entre as pessoas é mediada pela relação econômica entre as coisas, a ponto de se confundir com ela; (3) as mercadorias passam a ser tratadas como se tivessem vida própria, como se fossem pseudopessoas; (4) as coisas, as mercadorias e o seu movimento conduzem os homens, dominam-nos e dirigem-nos – e não o contrário; e, por fim, (5) essas formas de fetichismo especificamente burguesas – e, portanto, passageiras – são interpretadas pela economia burguesa como naturais e eternas, como uma necessidade trans-histórica. O ponto mais relevante dessa diversidade semântica do fetichismo da mercadoria é que essas definições não são incompatíveis. Há, ao contrário, uma continuidade entre elas.

Não coube à psicanálise o pioneirismo na aplicação do termo fetichismo ao campo da sexualidade. Assim como no terreno sociológico, o termo lhe veio de empréstimo da antropologia, na tentativa de estabelecer certa analogia com a ilusão de vida independente dos objetos adorados. Nesse sentido, o fetichismo foi incorporado primeiramente à psiquiatria e à psicologia, com destaque para o psicólogo Alfred Binet, que o retomou em 1887 (Roudinesco & Plon, 1998Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ). A recepção do termo por Freud ocorre por meio de Krafft-Ebing e surge em 1905, em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” ( 1905Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras completas (Vol. 6, pp. 13-172). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905) /2016). Posteriormente, Freud desenvolve o tema em “Delírios e sonhos na Gradiva” ( 1907Freud, S. (2015). O delírio e os sonhos na Gradiva de W. Jensen. In Obras completa (Vol. 8, pp. 13-122). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1907) /2015), “Uma recordação de infância de Leonardo Da Vinci” ( 1910Freud, S. (2013). Uma recordação de infância de Leonardo Da Vinci. In Obras completas (Vol. 9, pp. 113-219). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1910) /2013), “Introdução ao narcisismo” ( 1914Freud, S. (2021). Introdução ao narcisismo. In Obras Completas (Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914) /2021) e, por fim, “O fetichismo” ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) /2014), que será nossa principal referência.

Desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, o fetichismo já apresenta, para Freud, duas características essenciais que jamais foram abandonadas ao longo de sua obra: insere-se no campo das perversões e se configura como substituto de algo. Perversão, em psicanálise, mantém seu sentido restrito ao âmbito da sexualidade, não abarcando, portanto, sentido moral (Laplanche & Pontalis, 1982Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1982) /2001). Assim, o conceito designa, simplesmente, um funcionamento sexual específico, que não corresponde ao orgasmo obtido pelo coito por penetração genital com uma pessoa do sexo oposto. Com base nisso, Freud distingue dois tipos de perversões: os desvios em relação ao objeto e os desvios em relação ao alvo ou meta sexual (Roudinesco & Plon, 1998Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ). Nas perversões do objeto, estão incluídas as relações sexuais com parceiros humanos distintas da relação heterossexual adulta (incesto, homossexualidade, pedofilia, autoerotismo) e as relações sexuais com objetos não humanos (fetichismo, zoofilia, travestismo). Nas perversões do alvo, Freud distinguiu três espécies de práticas: o prazer visual (exibicionismo, voyeurismo); o prazer de sofrer ou fazer sofrer (masoquismo, sadismo); e o prazer pela “superestimação exclusiva” de uma zona erógena ou de um estágio do desenvolvimento da libido, por exemplo, da boca ou do aparelho genital (felação, cunilíngua e masturbação, ativa ou passivamente).

Apesar do conteúdo aparentemente normativo, já em 1905 se pode notar uma descrição da perversão que tenta se desprender de conotações pejorativas, tão marcantes na psiquiatria e sexologia da época. Freud ( 1905Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras completas (Vol. 6, pp. 13-172). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905) /2016) concebe a sexualidade infantil fundamentalmente como uma “disposição perversa polimorfa”, na medida em que está submetida ao funcionamento das pulsões parciais, estreitamente ligadas à diversidade das zonas erógenas e que se desenvolvem antes do predomínio das funções genitais propriamente ditas (Laplanche & Pontalis, 1982Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1982) /2001). Nessa perspectiva, a perversão adulta surgiria como a persistência ou o reaparecimento de um componente parcial da sexualidade e a disposição para a perversão integraria uma parte da constituição normal: a perversão seria uma regressão a uma fixação anterior da libido.

De 1905 a 1927, Freud passou da mera descrição das perversões sexuais para uma teorização do mecanismo geral das perversões, em que elas deixam de ser simples resultado da predisposição polimorfa da sexualidade infantil e passam a configurar uma atitude do sujeito perante o confronto com a diferença sexual e, assim, com a castração. As características do fetichismo passam a representar, estruturalmente, todas as perversões: elas manifestam a renegação ou o desmentido da castração, com uma fixação na sexualidade infantil (Roudinesco & Plon, 1998Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ).

Essa transformação substancial do conceito aparece em “O fetichismo” ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) /2014), sobretudo em decorrência do desenvolvimento das noções de “castração” e de “clivagem do eu”. Ainda que esses conceitos fossem anteriores ao referido ensaio, a partir dele se tornaram centrais. Toda a concepção de perversão desenvolvida na psicanálise até então – e que prossegue nessa obra – se baseia na ideia de “substituição”. Entretanto, a novidade apresentada por Freud ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) /2014) está em sua concepção sobre o que é substituído, pois o fetiche não ocupa mais o lugar do “ato sexual”, mas sim o do “falo” imaginário da mulher:

Se eu afirmar agora que o fetiche é um substituto para o pênis, certamente causarei decepção. Apresso-me então a acrescentar que não é o substituto de um pênis qualquer, mas de um especial, bem determinado, que nos primeiros anos infantis tem grande importância, porém é perdido depois. Isto é: normalmente seria abandonado, mas o fetiche se destina exatamente a preservá-lo. Colocando isso de maneira mais clara, o fetiche é o substituto para o falo da mulher (da mãe), no qual o menino acreditou e ao qual – sabemos por que – não deseja renunciar 2 2 O substantivo “falo” é raramente utilizado por Freud, diferentemente do adjetivo “fálico”, empregado na teoria dos estágios do desenvolvimento da libido, assim como na explicação da sexualidade feminina e da diferença sexual (Roudinesco & Plon, 1998 ). Segundo Laplanche e Pontalis ( 1982 /2001), o termo “falo” designaria especialmente a função simbólica desempenhada pelo pênis na dialética intra e intersubjetiva, isto é, no processo de assunção pelo sujeito de sua própria sexualidade, ao passo que o termo “pênis” define o órgão em sua realidade anatômica. (pp. 303-304).

Segundo essa nova concepção, o menino se recusa a tomar conhecimento da percepção da ausência do pênis na mulher. Sua atitude se fundamenta no fato de que o reconhecimento da “castração” da mulher é angustiante, pois, com isso, ele se depara também com a possibilidade da própria castração: se a mulher não tem pênis, implica que o seu também corre perigo. Porém, o registro da percepção permaneceu e, paralelamente, uma ação bastante enérgica foi realizada para sustentar a recusa. Tal situação se explica a partir da noção, definida por Freud ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) /2014), do que veio a ser denominado de “clivagem do eu”: um fenômeno por meio do qual se torna possível a coexistência, no seio do eu, de duas atitudes psíquicas em relação à realidade exterior, momento em que contraria uma exigência pulsional, sem que tais atitudes se influenciem. Segundo Laplanche e Pontalis ( 1982Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1982) /2001), a clivagem não é propriamente uma defesa, mas a maneira de fazer coexistir dois processos de defesa: um voltado para a realidade (recusa) e outro para a pulsão (recalque). Evidencia-se, com isso, um novo processo psíquico: uma cisão intrassistêmica, e não uma cisão entre instâncias. Esse processo tem como característica principal não levar à formação de compromisso, mantendo as duas partes sem que elas interajam ou se modifiquem.

A substituição executada pelo fetichista visa, dessa forma, destruir a prova da castração, ao passo que a coexistência da recusa da percepção da ausência de pênis na mulher, com o seu reconhecimento, permite ao fetichista encontrar prazer no fato de a mulher ser ao mesmo tempo castrada e não castrada, assim como na possibilidade de o homem também ser castrado. Freud ( 1927Freud, S. (2014). O fetichismo. In Obras Completas (Vol. 17, pp. 302-310). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927) /2014) diz:

Sim, na psique a mulher continua a ter um pênis, mas este pênis já não é o mesmo de antes. Outra coisa ocupou seu lugar, foi como que nomeada seu substituto e veio a herdar o interesse que antes se dirigia a ele. (pp. 305-306)

O fetiche subsiste, concomitantemente, como signo do triunfo sobre a ameaça de castração e como proteção contra ela.

Sobre o conceito freudiano de regressão

Em relação ao termo regressão, ainda que seja uma palavra de uso corriqueiro, sua principal utilização no campo das ciências sociais parece ocorrer mesmo nas áreas de investigação do psiquismo. Apesar de já delineada em Estudos sobre a histeria ( 1893Freud, S. (2016). Estudos sobre a histeria. In Obras Completas (Vol. 2, pp. 13-427). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado entre 1893-95) -5/2016), a noção de regressão foi formalmente introduzida por Freud somente em A interpretação dos sonhos ( 1900Freud, S. (2019). A interpretação dos sonhos. In Obras Completas (Vol. 4, pp. 13-682). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1900) /2019), com o intuito de exprimir uma característica essencial do sonho: seus pensamentos se apresentam principalmente sob a forma de imagens sensoriais que se impõem ao sujeito de forma quase alucinatória (Laplanche & Pontalis, 1982Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1982) /2001). A explicação dessa característica do sonho apela para o sentido tópico dado por Freud à regressão, que se refere à sucessão de sistemas psíquicos e ao modo como, durante o sono, a excitação passa a percorrê-los na direção contrária àquela que predomina na vida de vigília.

Porém, após a teorização sobre as fases do desenvolvimento psicossexual infantil, Freud acrescenta uma nota de rodapé em A interpretação dos sonhos , em 1914, distinguindo, para além do sentido tópico, mais duas espécies de regressão: a regressão temporal , em que são retomadas formações psíquicas mais antigas, e a formal , quando modos de expressão e de figuração habituais são substituídos por modos primitivos (Laplanche & Pontalis, 1982Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1982) /2001). Ele observa, no entanto, que as três formas de regressão seriam, ao fim e ao cabo, apenas uma, pois o que é mais antigo no tempo o é também na forma, ao passo que, na tópica, situa-se mais perto da extremidade perceptiva. A regressão tópica é particularmente manifesta no sonho, apesar de ser ainda encontrada em outros processos psíquicos, como a rememoração e a alucinação patológica. A noção de regressão formal foi menos utilizada por Freud, embora numerosos fenômenos em que há o retorno do processo secundário ao processo primário possam ser classificados sob essa denominação. A regressão temporal, entretanto, foi recorrentemente empregada nos textos psicanalíticos e é especificamente a ela que Freud se remete na Conferência 22 de suas “Conferências introdutórias à psicanálise” ( 1916Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 22: Considerações sobre desenvolvimento e regressão: Etiologia. In Obras completas (Vol. 13, pp. 450-475). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-7) -7), texto que abordaremos agora.

Freud ( 1916Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 22: Considerações sobre desenvolvimento e regressão: Etiologia. In Obras completas (Vol. 13, pp. 450-475). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-7) -7/2014) inicia a conferência retomando o fato estabelecido pela psicanálise de que a função da libido percorre um extenso desenvolvimento até poder se pôr a serviço da reprodução, do modo tido como “normal”. Nesse processo, contudo, existiriam dois perigos: o da inibição e o da regressão , que evidenciam a experiência concreta de que nem todas as fases anteriores são superadas completamente, deixando partes de sua função retidas de forma duradoura nesses estágios iniciais. Quanto à inibição, ele julga possível que “certas porções de toda e qualquer tendência sexual tenham ficado pelo caminho, permanecendo em estágios anteriores de desenvolvimento, ainda que outras porções possam ter alcançado sua meta final” (Freud, 1916Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 22: Considerações sobre desenvolvimento e regressão: Etiologia. In Obras completas (Vol. 13, pp. 450-475). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-7) -7/2014, p. 452). Essa permanência de uma tendência parcial em um estágio anterior é o que ele chama de fixação da libido e, portanto, a inibição remete à fixação. Em relação à regressão, Freud ( 1916Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 22: Considerações sobre desenvolvimento e regressão: Etiologia. In Obras completas (Vol. 13, pp. 450-475). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-7) -7/2014) escreve:

O segundo perigo de um desenvolvimento por estágios está no fato de também as porções que lograram avançar poderem facilmente, em um movimento retrógrado, retornar a um dos estágios anteriores, o que chamamos de regressão . A tendência se verá levada a essa regressão quando o exercício de sua função – ou seja, o alcance de sua meta de satisfação – se depara com fortes impedimentos externos, na sua forma posterior ou mais desenvolvida. (p. 453).

Representando, então, fatores combinados, a regressão retorna exatamente para algum ponto de fixação anterior, ao passo que quanto mais forte a fixação, mais a libido estará propensa a regredir e, assim, menos capaz será de resistir aos impedimentos externos.

Dois tipos de regressão podem ser observados: o retorno aos primeiros objetos, isto é, aqueles investidos de libido de natureza incestuosa, e o retorno de toda a organização sexual a estágios anteriores. Com o intuito de elucidar as distintas formas de regressão, Freud ( 1916Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 22: Considerações sobre desenvolvimento e regressão: Etiologia. In Obras completas (Vol. 13, pp. 450-475). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-7) -7/2014) utiliza como exemplo a histeria e a neurose obsessiva. Na primeira neurose, há uma regressão da libido aos objetos sexuais primários e incestuosos, não havendo, contudo, uma regressão a um estágio anterior da organização sexual. Ocorreria certa unificação das pulsões parciais sob o primado da genitalidade, mas seus resultados se deparariam com uma grande resistência do sistema pré-consciente/consciente 3 3 A essa altura, Freud ainda não havia desenvolvido sua segunda tópica do aparelho psíquico, composta pelas instâncias Isso , Eu e Supereu , de modo que restringe a descrição da dinâmica psíquica em torno dos sistemas inconsciente , pré-consciente e consciente . . Já na neurose obsessiva, ao contrário, há, de fato, uma regressão da libido ao estágio preliminar da organização sádico-anal e a pulsão amorosa, consequentemente, vê-se obrigada a se mascarar como pulsão sádica – um componente das pulsões parciais da libido. O que ambos os casos têm em comum é que, independentemente do tipo de regressão, é flagrante a participação do mecanismo de recalque. Isso se justifica pela seguinte lógica psicanalítica: se há recalque, é porque há conflito, o qual constitui a base de qualquer neurose; e se a regressão se dá sem recalque e, por isso, sem conflito, o resultado é a perversão. Nas palavras de Freud ( 1916Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 22: Considerações sobre desenvolvimento e regressão: Etiologia. In Obras completas (Vol. 13, pp. 450-475). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-7) -7/2014):

Uma importante consideração para nós seria, então, examinar como se comporta o eu quando sua libido deixa para trás, em algum ponto de seu desenvolvimento, uma forte fixação. Ele pode admiti-la e se tornar, assim, em medida correspondente, perverso ou – o que significa a mesma coisa – infantil. Mas ele pode também se comportar de forma contrária a essa fixação libidinal, caso em que o eu sofre um recalque onde a libido experimentou uma fixação. (p. 467) 4 4 Tradução modificada.

A dualidade inaugurada por Freud em Além do princípio do prazer ( 1920Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In Obras completas (Vol. 14, pp. 161-239). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920) /2010) entre pulsão de morte e pulsão de vida não é contemplada na referida conferência, a qual se fundamenta na dualidade entre pulsões do eu e pulsões sexuais. Por outro lado, observamos nessa conferência a tentativa freudiana de equiparar fases de desenvolvimento do eu com fases de desenvolvimento da libido. Além do mais, os efeitos práticos dessa divisão se apresentavam corretos: o eu como a sede dos conflitos; e a neurose e a perversão como consequência, respectivamente, da presença ou ausência de tais conflitos, ocorrendo, então, o fenômeno regressivo.

Por fim, outros aspectos se apresentam pertinentes ao tema: a fixação libidinal, que representaria o fator interno predisponente, e a frustração, o fator acidental, externo, na etiologia das neuroses. Essa consideração se mostra essencial devido às disputas teóricas sobre causalidade endógena ou exógena, sempre presentes nas discussões referentes às psicopatologias. Segundo Freud ( 1916Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise. Conferência 22: Considerações sobre desenvolvimento e regressão: Etiologia. In Obras completas (Vol. 13, pp. 450-475). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916-7) -7/2014), as duas condições são igualmente imprescindíveis:

Tratando-se do exame de suas causas, os casos de adoecimento neurótico dispõem-se numa série, no interior da qual os dois fatores – constituição sexual e vivências, ou, se quiserem, fixação libidinal e frustração – encontram-se representados de maneira que, crescendo a participação de um deles, a do outro diminui. (p. 461)

Posto isso, podemos afirmar que frustração e fixação libidinal sempre estão presentes tanto na neurose quanto na perversão, representando o jogo entre disposições subjetivas e o mundo objetivo – o mundo das necessidades que dominam a vida, o reino de Ananke . Entre esses fatores se situa a regressão, que se move da frustração para a fixação, isto é, de uma realidade insatisfatória para um ponto de satisfação que a libido encontrara no passado. Independentemente do tipo ou da causa específica de uma regressão, ela designa, enfim, um processo psíquico de retorno de um determinado ponto alcançado a outro situado antes desse.

O emprego dos conceitos por Adorno

Inicialmente, é preciso considerar como a abordagem marxiana e a freudiana do conceito de fetichismo podem ser confrontadas entre si, para então, posteriormente, analisar a assimilação realizada por Adorno. Do mesmo modo, com relação à regressão, é necessário pensar qual aspecto da teoria freudiana foi incorporado à noção de regressão auditiva, ou mesmo se há algo de psicanalítico nessa noção.

A chave analítica para a compreensão do uso do termo fetichismo por Adorno está exatamente naquilo que as concepções de Marx e Freud compartilham: a ideia de “substituto”. Ou seja, o que é considerado como algo fetichizado somente pode assim ser concebido porque se coloca no lugar de outra coisa. Daí a necessidade de um “feitiço”, de algo que gere uma fascinação no indivíduo, pois o objeto exibe uma característica que não tem; ele representa algo que não lhe é intrínseco. Para Marx, o fetiche da mercadoria é representado pela ilusão de sua autonomia que, assumindo um caráter de necessidade externa ou lei independente, parece estar fora do âmbito do controle humano. Contempla-se o advento de uma grandeza quantitativa do produto – o valor de troca – que se manifesta como inerente à sua natureza mesma, relegando a um plano inferior as propriedades qualitativas que, de fato, revelam o que deveria significar o verdadeiro propósito de sua fabricação: seu valor de uso. Em Freud, o fetichismo é o recurso que viabiliza a recusa do reconhecimento da ausência do falo da mãe, pois aceitar a diferença sexual – isto é, a castração feminina – é lidar com a possibilidade da sua própria castração. O fetiche passa a ocupar, então, o lugar do pênis imaginário da mulher e, especialmente, da mãe. Desse modo, o sujeito pode, ao menos fantasiosamente, proteger-se da angústia da castração. Tanto em um caso como no outro, o fetichismo é um substituto: o valor de troca substitui o valor de uso, e o fetiche sexual substitui o “falo” materno.

A similitude na análise da situação social objetiva do fetichismo fica clara: falsas relações substituem as autênticas. Entretanto, no fetichismo marxiano, a substituição enfatiza a alienação, isto é, a perda da relação social com os objetos e com os outros – a autonomia da mercadoria. Já no fetichismo freudiano, ao contrário, o substituto aparentemente previne a perda de uma relação social e evita a alienação do gênero oposto. Como argumenta Miyasaki ( 2002Miyasaki, D. (2002). The confusion of Marxian and Freudian fetishism in Adorno and Benjamin. Philosophy today, 46(4), 429-443. doi: 10.5840/philtoday200246429
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), a diferença entre as duas teorias repousa em condições subjetivas, isto é, na percepção que os próprios sujeitos do fetichismo têm de sua situação. Assim, em Marx, os indivíduos se deparam com o fato de o produto de seu trabalho estar alienado deles, de modo que enxergam nele sua perda de satisfação social 5 5 Miyasaki ( 2002 ) pontua que, como sua preocupação maior é com a atitude defensiva tomada pelo sujeito em relação à sua situação de privação social, ele não se preocupa em distinguir “fetichismo” de “alienação”, no que se refere à teorização marxiana. . Mas o verdadeiro perigo não está aí, pois isso, na verdade, acaba por revelar seu estado de privação social. A consequência mais trágica do fetichismo é a ilusão de independência da mercadoria, a qual convence os sujeitos de que a perda é irremediável, de que as relações mercantis são as únicas relações possíveis entre os homens. No que concerne à Freud, ao contrário, o sujeito não teria consciência de sua alienação ou perda, visto que transferiu seu desejo pela mãe fálica para o fetiche. Sua privação, longe de ser reconhecida, passa a ser ignorada, já que o objeto lhe assegura, por substituição, a satisfação do desejo. O perigo aí se mostra intensificado, pois o sujeito nem mesmo se questiona sobre a necessidade de alguma transformação de sua situação. Enfim, por um lado, o fetichismo destaca o divórcio entre sujeito e objeto, enquanto, por outro, ele reforça a crença do sujeito na superação desse divórcio.

Em “O fetichismo na música e a regressão da audição”, Adorno ( 1938Adorno, T. W. (1999). O fetichismo na música e a regressão da audição. In T. W. Adorno, Os pensadores (pp. 65-108). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1938). /1999) se refere explicitamente ao conceito de fetiche da mercadoria como descrito por Marx em O Capital . Ele fala do fetichismo, dessa forma, como a veneração do que é autofabricado e como a supremacia do valor de troca sobre valor de uso de uma mercadoria, a qual, assim fetichizada, passa a ser o mero reflexo do que se pagou no mercado. Porém, é preciso atentar, também, para a descrição que Adorno faz da especificidade da imposição do valor de troca no setor dos “bens da cultura”. Esses produtos seriam apresentados como desprovidos de poder de troca, de maneira a fornecer aos consumidores a simples possibilidade de seu usufruto. Ele observa que, no entanto, toda sua produção, reprodução e consumo obedeceriam perfeitamente aos critérios de mercado. Todo produto transformado em mercadoria é composto, necessariamente, pela soma de seu valor de uso e seu valor de troca, de modo que a supervalorização midiática do caráter imediato dos produtos artísticos apenas serve para encobrir sua verdadeira função social, como se a relação entre eles e seus consumidores consistisse em uma experiência puramente estética e como se os bens culturais se diferenciassem dos outros bens de consumo.

Adorno ( 1938Adorno, T. W. (1999). O fetichismo na música e a regressão da audição. In T. W. Adorno, Os pensadores (pp. 65-108). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1938). /1999) nos adverte, ainda, sobre a impossibilidade de dedução do conceito de fetichismo por meios puramente psicológicos, pois, se o produto do trabalho humano passa a ser comercializado sob a forma de mercadoria, é porque sua função social se alterou. No entanto, mesmo observando a necessidade de um foco ampliado para dar conta do processo, ele não desconsidera, de maneira alguma, as alterações psicológicas nos sujeitos “enfeitiçados”. Mais especificamente, já que sua análise do conceito de fetichismo centra-se aqui no âmbito estético, se a arte musical vem a exercer um papel diferente na relação entre os homens (elemento sociológico), essa transformação não deixou de ser acompanhada por uma peculiar mobilização de afetos (elemento psicológico). Adorno exprime esse estado de coisas com a afirmação de que “valores” são consumidos e atraem afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor. Em última instância, o fetichismo, como descrito por Adorno, propicia uma satisfação substituta ao indivíduo, de modo que o valor de troca dos produtos – isto é, a grandeza quantitativa que passa a representá-los: o dinheiro – assume o lugar de objeto de prazer. Nos exemplos dados por Adorno ( 1938Adorno, T. W. (1999). O fetichismo na música e a regressão da audição. In T. W. Adorno, Os pensadores (pp. 65-108). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1938). /1999), a mulher se delicia mais no próprio ato de fazer compras ou no tempo que passa no salão de beleza do que na utilização dos produtos comprados ou no convívio social portando as novas características de maquiagem ou cabelo.

Esse aspecto psicológico abarcado pela concepção de fetichismo em Adorno sugere uma compatibilidade também com o conceito freudiano. A acepção marxiana do conceito, que enfatiza a ilusão de autonomia do produto, de modo complementar ao conceito de alienação, é acrescida, pois, de um aspecto de satisfação substitutiva que se ampara no modelo do fetichismo psicanalítico. Assim, ainda que de forma inautêntica e enganosa, o sujeito encontra alguma realização de seus desejos na mercadoria fetichizada. Miyasaki ( 2002Miyasaki, D. (2002). The confusion of Marxian and Freudian fetishism in Adorno and Benjamin. Philosophy today, 46(4), 429-443. doi: 10.5840/philtoday200246429
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) sugere, aliás, uma confusão no emprego do conceito no modo como foi apropriado por Adorno. Segundo ele, na acepção marxiana, o sujeito reconhece na mercadoria uma inadequação real de sua condição social: as relações aparecem como elas realmente são, ou seja, relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas. Em Adorno, ao contrário, esse elemento “verdadeiro” é obscurecido: o substituto é a ilusão de uma utilidade presente e imediata. Dessa forma, Miyasaki é categórico ao observar que a análise do fetichismo dos bens culturais em Adorno tem mais em comum com o fetichismo freudiano do que com o marxiano. Segundo o modelo do fetichismo sexual, o objeto de fetiche substitui o objetivo sexual (“os meios substituem os fins”), o que corresponderia a dizer que a mercadoria é desejada pelo seu valor de troca (meio), ao invés de seu valor de uso (fim).

Prosseguindo em sua leitura do que, aparentemente, consiste em um equívoco interpretativo, Miyasaki ( 2002Miyasaki, D. (2002). The confusion of Marxian and Freudian fetishism in Adorno and Benjamin. Philosophy today, 46(4), 429-443. doi: 10.5840/philtoday200246429
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) afirma que o fetichista adorniano não tem consciência da distinção entre produtos apreciados como mercadoria ou apreciados a partir de seu valor de uso. Devido ao desconhecimento dessa distinção, qualquer prazer incidentalmente ocasionado pelo seu valor de uso não se distinguirá do prazer substituto encontrado no valor de troca. Mais uma vez, o autor tenta demonstrar como a fundamentação do fetichismo em Adorno, ainda que não de forma intencional, converge mais com a substituição fetichista freudiana, na qual o sujeito goza sem se dar conta de que sua relação com o objeto é uma ilusão. Pode-se argumentar, entretanto, que, em vez de uma influência soberana, como afirma Miyasaki, há, na verdade, uma combinação das duas abordagens no texto de Adorno. Há sim, claramente, uma satisfação substitutiva em sua acepção do termo (tal como em Freud), porém o sujeito não se satisfaz por completo, como supostamente aconteceria em uma relação com o objeto do verdadeiro fim, o que tornaria possível ao ouvinte regressivo reconhecer seu quadro de alienação (tal como em Marx), embora isso seja improvável, devido justamente à sua condição de fetichista.

No polo oposto ao do fetichismo musical, diz Adorno ( 1938Adorno, T. W. (1999). O fetichismo na música e a regressão da audição. In T. W. Adorno, Os pensadores (pp. 65-108). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1938). /1999), existe uma regressão da audição. Não se trata de uma regressão no sentido psicológico, em que o ouvinte individual retornaria a uma fase anterior do próprio desenvolvimento; nem mesmo, de forma análoga, a um retrocesso do nível coletivo geral. Ao contrário, o que regrediu e permaneceu em estado infantil foi a própria audição moderna. Ainda que sempre permanecesse como uma prerrogativa de pequenos grupos, o conhecimento consciente da música era uma possibilidade manifesta em momentos históricos anteriores e, no presente – isto é, na época em que Adorno escreve –, estaria em processo de “extinção”. O reinado da heteronomia e da audição desconcentrada e atomística, no lugar de um comportamento autônomo e de uma audição concentrada e integrada, atestaria a debilidade interpretativa, compreensiva e emocional do sujeito e, assim, seu comprometimento cognitivo e afetivo. A identificação com os produtos fetichizados, ao suscitar um sentimento de impotência em se libertar, acaba por aprisioná-lo ainda mais à situação de infante.

Mais uma vez, Adorno ressalta a diferença entre o modo como concebe a regressão e a acepção psicológica do termo, mas é inegável também que há algumas similitudes relevantes, sobretudo quando nos remetemos às “Conferências introdutórias à psicanálise”. Pode-se argumentar que há, por um lado, uma “regressão auditiva” enquanto um fenômeno social amplo, no sentido de que representa o estado cultural dos dias de Adorno. Por outro lado, haveria também um “ouvinte regressivo” – ou seja, o sujeito corporificado do fenômeno regressivo –, contanto que estivesse claro que um aspecto não pode existir sem o outro. No primeiro caso, o fenômeno regressivo comporta um sentido semelhante ao da regressão em Freud: um retorno, um caminhar em sentido inverso pela mesma estrada, de um ponto já atingido até outro ponto situado antes desse. Assim, considerando a audição em sua vertente abstrata – como um fenômeno qualitativo-perceptivo com continuidade temporal na cultura, mas sem perder de vista, contudo, seu caráter histórico –, podemos afirmar que, após atingir certo ponto de seu desenvolvimento, ela retrocedeu a outro ponto anterior. Não é possível, e nem integra os objetivos de Adorno, equiparar toda e qualquer característica dessa audição que ele chama de regressiva às qualidades da audição de outrora. O essencial em seu argumento é que o desenvolvimento cultural permitiu a emergência de recursos cognitivos e, consequentemente, de maturidade afetiva até então inéditos, mas, posteriormente, com o avanço do capitalismo e da massificação dos indivíduos, esse processo regrediu, isto é, equiparou-se a momentos históricos anteriores a tais conquistas. Essa acepção do termo coincide com o sentido freudiano de regressão. Ou seja, a libido, após passar por diversas organizações sexuais ao longo de seu desenvolvimento, atinge o primado da genitalidade, ainda que sem abandonar por completo as fases anteriores, que marcam definitivamente o indivíduo. Porém, ao se deparar com uma situação de frustração, ela retorna às organizações ou aos objetos primitivos.

Quando analisamos, todavia, o outro aspecto da regressão, a coincidência de sentido não mais se verifica. O ouvinte regressivo, tal como exposto por Adorno ( 1938Adorno, T. W. (1999). O fetichismo na música e a regressão da audição. In T. W. Adorno, Os pensadores (pp. 65-108). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1938). /1999), não corresponde a um indivíduo que desenvolveu plenamente sua competência auditiva e, por alguma razão, regrediu posteriormente a um ponto anterior desse percurso. Aos sujeitos da audição, às pessoas que compõem a cultura, não pode ser atribuída a experiência pessoal da regressão, já que, de fato, nem mesmo teriam chegado a se desenvolver. O ouvinte regressivo não teria vivido e nem viveria a experiência auditiva em seu estatuto de autonomia e de apreciação concentrada e integrada, visto que os recursos simbólicos para tanto já estariam escassos na cultura. Por isso, nesse caso, a restrição adorniana quanto à concepção psicológica de regressão não apenas procede, como também é fundamental para a compreensão de sua teoria. A analogia psicanalítica do homem de seu tempo – infantilizado, limitado cognitiva e afetivamente – repousaria sobre o conceito de “inibição” tal como teorizado por Freud nas “Conferências introdutórias à psicanálise”. Dessa forma, esse homem não haveria regredido, mas estaria fixado em um estágio primitivo de seu desenvolvimento potencial, vivenciando uma inibição logo no início da jornada para a maturidade. Portanto, caberia falar de regressão apenas se, como no caso anterior, a comparação se desse com relação a ouvintes de outro momento histórico, e não com relação ao desenvolvimento de cada indivíduo.

Considerações finais

Antes de finalizar, cabem alguns comentários a respeito da interação entre os conceitos de fetichismo e de regressão auditiva. Quando Adorno ( 1938Adorno, T. W. (1999). O fetichismo na música e a regressão da audição. In T. W. Adorno, Os pensadores (pp. 65-108). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1938). /1999) afirma que no “polo oposto ao fetichismo na música opera-se uma regressão da audição” (p. 89), ele não se refere a uma oposição no sentido de incompatibilidade, mas sim, de complementaridade. A consciência da grande massa – isto é, dos ouvintes regressivos – está em sintonia com a música fetichizada: a degradação musical só é possível porque não encontra resistência por parte de suas vítimas infantilizadas. Quando Adorno fala dos fetichismos da voz, dos instrumentos e do perfeccionismo da execução musical, ele exemplifica como os ouvintes regressivos se satisfazem com aquilo que substitui a música propriamente dita, respectivamente, o mero timbre da voz, o renome das marcas de violinos e pianos e o virtuosismo do intérprete. O mesmo acontece com a prática dos arranjos, um recurso fetichista que corrompe as características originais das músicas para torná-las acessíveis ao ouvinte regressivo. O caráter fetichista da música e a regressão da audição constituem, para Adorno, portanto, duas dimensões complementares de um mesmo sistema.

Segundo Miyasaki ( 2002Miyasaki, D. (2002). The confusion of Marxian and Freudian fetishism in Adorno and Benjamin. Philosophy today, 46(4), 429-443. doi: 10.5840/philtoday200246429
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), apesar das considerações explícitas de Adorno nesse sentido, a regressão auditiva não está no polo oposto do fetichismo, mas em desacordo com ele. A seu ver, é necessário um grande esforço propagandístico para atingir o ouvinte regressivo, ao mesmo tempo em que sua atenção precisa ser dirigida e desconcentrada, tal como transparece na própria descrição de Adorno. Isso significa que o ouvinte é capaz de realizar a distinção entre o que é fetichizado e o que não é, porque os produtos em si não exercem o encanto do fetiche. Se a diferença é por ele desconsiderada, é somente para que viva em paz e elimine a possibilidade do incômodo. Assim, a relação do ouvinte regressivo com a mercadoria não é da ordem de um prazer substitutivo, mas de uma resignação diante da privação reconhecida, o que é característico da análise marxiana e contrário ao fetichismo descrito por Freud e Adorno. A confusão conceitual que o autor vê em Adorno poderia ser resumida, então, em duas dimensões: (1) o fetichismo de Adorno se coaduna mais com o de Freud que com o de Marx; e (2) a regressão auditiva é incompatível com a acepção de fetichismo do próprio Adorno, pois ela parece absorver mais as características fetichistas, reificadas e alienantes de Marx.

Por fim, é importante considerar que a preocupação de Adorno parece ser mais a busca de uma descrição pormenorizada do estado de coisas que presenciava do que a tentativa de uma precisão conceitual, de modo que é possível, de fato, identificar certa amplitude semântica no emprego dos termos, que acaba por levar a uma fluidez dos conceitos. Apesar da pertinência das críticas de Miyasaki ( 2002Miyasaki, D. (2002). The confusion of Marxian and Freudian fetishism in Adorno and Benjamin. Philosophy today, 46(4), 429-443. doi: 10.5840/philtoday200246429
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), uma opção mais profícua seria ressaltar a complementaridade dos conceitos. Pode-se reconhecer, dessa forma, que há uma música que obedece aos critérios fetichistas de substituição, de modo a tornar possível a satisfação a partir de elementos musicais degradados ou, mesmo, de fatores extramusicais. Porém, isso só ocorre porque há uma regressão auditiva que assim o permite. Por outro lado, se há um ouvinte regressivo, restrito cognitiva e afetivamente, aprisionado ao medo infantil de lidar com sua angústia, é porque existe uma condição social objetiva, governada pelo fetichismo, que lhe fornece o arcabouço simbólico para tal comportamento. Concebendo a satisfação fetichista como sempre incompleta – o que nos parece ser uma solução para todo esse impasse –, torna-se coerente conceber também um ouvinte regressivo que, inquieto por sua insatisfação, percebe-se, em algum nível, em uma situação de engano, em uma posição de enganado, em uma experiência subjetiva de “mal-estar”.

Referências

  • Adorno, T. W. (1999). O fetichismo na música e a regressão da audição. In T. W. Adorno, Os pensadores (pp. 65-108). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1938).
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  • 1
    Uma das poucas exceções é Miyasaki ( 2002Miyasaki, D. (2002). The confusion of Marxian and Freudian fetishism in Adorno and Benjamin. Philosophy today, 46(4), 429-443. doi: 10.5840/philtoday200246429
    https://doi.org/10.5840/philtoday2002464...
    ).
  • 2
    O substantivo “falo” é raramente utilizado por Freud, diferentemente do adjetivo “fálico”, empregado na teoria dos estágios do desenvolvimento da libido, assim como na explicação da sexualidade feminina e da diferença sexual (Roudinesco & Plon, 1998Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ). Segundo Laplanche e Pontalis ( 1982Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1982) /2001), o termo “falo” designaria especialmente a função simbólica desempenhada pelo pênis na dialética intra e intersubjetiva, isto é, no processo de assunção pelo sujeito de sua própria sexualidade, ao passo que o termo “pênis” define o órgão em sua realidade anatômica.
  • 3
    A essa altura, Freud ainda não havia desenvolvido sua segunda tópica do aparelho psíquico, composta pelas instâncias Isso , Eu e Supereu , de modo que restringe a descrição da dinâmica psíquica em torno dos sistemas inconsciente , pré-consciente e consciente .
  • 4
    Tradução modificada.
  • 5
    Miyasaki ( 2002Miyasaki, D. (2002). The confusion of Marxian and Freudian fetishism in Adorno and Benjamin. Philosophy today, 46(4), 429-443. doi: 10.5840/philtoday200246429
    https://doi.org/10.5840/philtoday2002464...
    ) pontua que, como sua preocupação maior é com a atitude defensiva tomada pelo sujeito em relação à sua situação de privação social, ele não se preocupa em distinguir “fetichismo” de “alienação”, no que se refere à teorização marxiana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2023
  • Aceito
    02 Abr 2023
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