Open-access HAVERÁ ESPAÇO PARA O HUMANO NA ERA DA QUÍMICA IN SILICO?

WILL THERE BE SPACE FOR THE HUMAN IN THE AGE OF IN SILICO CHEMISTRY?

Resumo

The mobilization of this article/essay is to problematize the impact that new technologies (Artificial Intelligence and Automation) have on the subjects of science, especially in the field of chemistry. In a theoretical analysis, we discuss the potential that smart technologies emerge in our daily lives, in our studies, in our professional activities and in the construction of scientific knowledge itself. In a first analysis, there are three inflections that need to be considered when such technologies fold subjects, spaces, society and that is most innate to human beings: thinking and the construction of knowledge. Thus, the movements that chemistry and its subjects have - and will have - in this emerging (4th) Industrial Revolution are problematized.


INTRODUÇÃO E TRAJETO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Este artigo faz uma revisão da publicação sobre as tecnologias atuais na Química e em assuntos que transitam pela temática do movimento de inteligência artificial em sua relação com o humano, bem como as possibilidades de uma vida in silico. A mobilização teve como ponto de dispersão a publicação produzida pela União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC): “Top 10 Tecnologias Emergentes na Química”. O trajeto de pesquisa leva em consideração os pontos de inflexão que a inteligência artificial produz na educação, na ciência e na educação em ciências.

A produção acadêmica sobre a temática da inteligência artificial e sua entrada na ciência e tecnologia, bem como nas formas de educar científica e tecnologicamente, são temas que perpassam diferentes espaços do saber. Nesse sentido, encontramos alguns textos que enfatizam a entrada em cena dos estudos de inteligência artificial (IA) na química, na medicina, na educação e na própria subjetividade.

Alguns movimentos de pesquisa foram realizados seguindo as buscas na plataforma digital da SciELO, com palavras chaves específicas do objetivo desta pesquisa, em inglês para ter um maior alcance, quais sejam, Artificial Intelligence e Chemistry, inicialmente. Essa é uma fase da pesquisa que se pode chamar de exploratória, “a qual possibilita a aproximação com o tema de investigação, identifica os contornos, as especificidades e suas singularidades, além de promover o entendimento do modo como outros pesquisadores vêm problematizando as condições do presente.”1

O resultado deixa claro que não há uma pesquisa estabelecida no que concerne aos efeitos das tecnologias, seus produtos e usos na química e/ou educação química, pois a pesquisa dos dois termos em conjunto, resultou em apenas um (1) artigo de 2007,2 que trata da elucidação de estruturas com auxílio de softwares, mais especificamente, apresentando os avanços e potencialidades em utilizar softwares para prever estruturas. Os autores citam que “dificilmente o software irá substituir a inteligência do especialista”,2 percepção de uma época e que no decorrer deste artigo, fica entendida uma inversão desse pensamento.

Quando pesquisado apenas o termo Artificial Intelligence, obtivemos 934 resultados que filtramos por revistas que tratavam de engenharia de modo geral, inovação, química, tecnologia e ciência, resultando um total de 139 artigos. Os excluídos tratavam das áreas agronômica, jurídica, antropo-sociológica, publicitária, urbanística, econômica e da saúde, por exemplo.

Os resumos dos artigos das áreas afins de ciência e tecnologia, os 139 artigos, em sua maioria, seguem uma lógica de apresentação das possibilidades da IA e suas benesses. Desses 139, apenas 4 artigos apresentam uma potencialidade crítica, sendo três (3) pertencentes ao ensaísta, filósofo e pesquisador Alexandre Quaresma3 e tratam de críticas à tecnologia, no que tange à consciência e à intencionalidade. O quarto artigo, pertencente aos pesquisadores em design, Sandor Banyai Pereira e Róber Dias Botelho,4 trata de uma crítica à falta do fator humano nos planejamentos das interações humanos/máquinas-autônomas, no caso específico dos autores, os veículos/carros autônomos.

A difícil localização das tecnologias robotizadas e inteligentes na química, no nosso entender, se dá pelo modo como ocorrem seus usos, são tratados diretamente pelos nomes dos softwares, ou como um instrumento utilizado, não apresentado como um processo computer-assisted. Entendemos que o uso de inteligência artificial está disperso nos laboratórios e não é localizado facilmente, uma vez que as tecnologias estão naturalizadas dentro da química.

O segundo movimento de pesquisa alargou os locais de busca, desde sites específicos de tecnologia que vendiam produtos tecnológicos, passando por sites de notícias sobre tecnologias recentes até chegar em análises acadêmicas e artigos dispersos por diferentes áreas.

Passamos a usar uma metodologia de busca referenciada nos textos de Michel Foucault5 em que os ditos não fazem discriminação de onde estão localizados, pois o discurso é aquilo que pode ser dito e as formas de dizer. Na constituição do discurso, o enunciado é apresentado como uma “função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que [os discursos] apareçam, como conteúdos concretos, no tempo e no espaço”.5 Nesse sentido, o enunciado deve ser entendido como acontecimento temporal e descontínuo, que não existe sozinho, mas em uma relação entre diversas unidades. O próprio Foucault, no seu livro A Arqueologia do Saber, utiliza da metáfora de que enunciado é para a teoria discursiva como o átomo é para a química, mais uma função do que uma partícula. “O enunciado é um átomo do discurso e só possível de ser entendido quando associado em um campo enunciativo em que apareça como elemento singular”.6

Essa coletânea de ditos sobre tecnologia que podem constituir enunciados, forma um corpus de pesquisa, que justaposto, nos indicam o traçado dos discursos atuais sobre inteligência artificial. O marco teórico-analítico evidencia os trabalhos sobre a subjetividade e o lugar do humano, perspectivado por Paula Sibilia7 e pelas analíticas de Michel Foucault8 e de Gilles Deleuze9 sobre os modos de existência nas sociedades de controle.

Esses dados obtidos nos diferentes sites de busca da SciELO e na página da IUPAC, compõem um “arquivo”. Essa pesquisa passa por um processo metodológico de “problematização” e “arquivização”, isto é, a identificação - nos arquivos áudio/visuais/digitais - de processos de familiaridade constante e contínua das robotizações na vida, uma certa formação epistêmica que de tão cotidiana se dilui sem análise e sem problematização.

A historiografia das tecnologias, os editais dos programas de fomento e investimento que são lançados pela União e pelos Estados, os planejamentos da administração institucional, as publicações em periódicos, as notícias de jornais e muitos outros elementos, bem como a facilidade de acesso ou não à informações e interlocuções, em conjunto, formam nosso “arquivo”.

O “arquivamento” corresponde, portanto, à tarefa de reordenação de fontes, e dos documentos, por meio das (re)montagens das lacunas dispersivas em torno de determinados problemas concretos abrigados no e pelo “arquivo”. Como um quebra-cabeça, o “arquivamento” promove o encontro improvável entre elementos heterogêneos, assimétricos e, no limite, incomunicáveis, formando uma rede. A “arquivização” é a montagem de um thriller, remove (ou reduz) as saturações de visibilidade, traz em relevo os jogos de veridicção/subjetivação, remonta as tensões, os conflitos e paradigmas. A “arquivização” oscila entre a investigação “serial” (somatória de documentos dispostos em um estrato específico, cujo recorte temporal permite dar conta do tema, que falam, singularizam); e “acontecimental” (no sentido dos marcos, das revoluções, dos eventos, tratados e das disputas). A série constitui a superfície documental, sobre a qual a investigação incide, ao passo que o acontecimento fundamenta os cortes e os desvios necessários ao tratamento dos documentos, a intersecção entre esses.10

Para alguns cientistas e engenheiros, a Indústria 4.0 já é um acontecimento, realidade em laboratórios como do Instituto Tecnológico de Massachusetts (EUA) e da Universidade de Liverpool (RU). As revisões bibliográficas de Gasteiger11 e Álvarez Borroto et al.12 já marcam que se trata de um novo paradigma na indústria, na engenharia e na ciência como um todo, pois muito além de uma (re)visitação e atualização dos processos, as novas tecnologias da era 4.0, que empregam sistemas de inteligência artificial, podem produzir novos materiais, novas tecnologias e novos campos profissionais e de conhecimento.

Em contrapartida ao ufanismo das tecnologias, outros autores, como o economista e consultor da UNESCO, Luiz Antônio Cruz Caruzo, apresentam alguns questionamentos - e receios - sobre os efeitos que esse novo modo de fazer ciência e de atuar na indústria trazem para a sociedade. A antropóloga Sibilia9 também contribui com uma análise que põe de manifesto questões éticas e econômicas advindas da cena tecnológica atual.

Os modos de ser e estar em sociedade, na era da inteligência artificial, não estão alheios aos mecanismos de disciplinamento8 e de controle,9 são parte do mecanismo produtivo, com mais tecnologia, mais ciência, mais conhecimento/informação e mais sujeitos/subjetividades, atendendo ao viés econômico do sistema neoliberal. Este trabalho busca problematizar e convida a questionar sobre quais os efeitos que essa nova era - a Indústria 4.0 - tem sobre nossa sociedade.

ALVORECER DA INDÚSTRIA 4.0: A QUÍMICA IN SILICO

Em 2019, a IUPAC (União Internacional de Química Pura e Aplicada), em comemoração ao seu 100º ano de fundação, apresentou as “Top 10 Tecnologias Emergentes na Química”, entendendo como “tecnologias emergentes” aquelas que estão entre as novas invenções científicas e as totalmente comercializáveis, entre o que é desenvolvido em laboratório e o que é possível de aplicar industrialmente, bem como o que apresentava maior capacidade de ampliar a atuação da Química, isto é, “ envolver um conhecimento sólido da tecnologia, algum tipo de protótipo ou, melhor ainda, algumas start-ups trabalhando para comercializar a tecnologia”.13 A proposta foi uma iniciativa do professor Javier Garcia-Martinez, da Universidade de Alicante (Espanha) e membro do Conselho da IUPAC. Dessarte, Fernando Gomollón-Bel apresentou um detalhamento de tais tecnologias, destacando como elas, por intermédio da química, possuem potencial para mudar o mundo.14 Em 2020, a proposta foi “mostrar o valor da química e informar o público em geral sobre como as ciências químicas contribuem para o bem-estar da sociedade e a sustentabilidade do Planeta Terra”.15 Abaixo, são apresentadas as “Top 10 Tecnologias Emergentes na Química” eleitas em 2019, a primeira seleção da IUPAC, e as finalistas para 2020 (Quadro 1), na qual uma delas chama nossa atenção: “Aplicação da Inteligência Artificial na Química”.

Quadro 1
Top 10 tecnologias emergentes15

Tal publicação vem ao encontro da Portaria nº 5109 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), de 16 de agosto de 2021, na qual define as prioridades de incentivo aos projetos de pesquisa para os anos seguintes (2021-2023). Esta portaria estabelece como prioritário os projetos que envolvam as tecnologias estratégicas, as habilitadoras, de produção, de qualidade de vida, de desenvolvimento sustentável e de promoção, popularização e divulgação da Ciência, Tecnologia e Inovação. O objetivo das “tecnologias habilitadoras” apresentado na referida portaria é “contribuir para a base de inovação em produtos intensivos em conhecimento científico e tecnológico”, no qual engloba os seguintes setores: (i) Inteligência Artificial; (ii) Internet das Coisas; (iii) Materiais Avançados; (iv) Biotecnologia; e (v) Nanotecnologia.16 Essas e outras áreas que não foram citadas na portaria, são tidas como “tecnologias habilitadoras” por se tratar de elementos prévios para a formação da Indústria 4.0, em que acelerem o processo de digitalização e promovem a transformação das indústrias. Desse modo, percebe-se uma consonância entre as duas publicações pela chamada da química a participar, por meio da inteligência artificial, por exemplo, para o desenvolvimento de processos que promovam a Indústria 4.0.

A pioneira aplicação de inteligência artificial, no campo da química, foi o projeto DENDRAL, desenvolvido em 1965, pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos da América, tendo por objetivo elucidar estruturas de moléculas orgânicas a partir de espectrometria de massa. O uso de inteligência artificial não é tão recente, mas, como proposto por Thomas Pierce e Bruce Hohne, esta tecnologia desceu das “torres de marfim” para transformar nossas práticas científicas.17

Para elucidar estruturas moleculares, um químico precisaria de um arsenal de equipamentos, técnicas e métodos (físicos, químicos, espectroscópicos e via úmida), enquanto o DENDRAL - programa para auxiliar os químicos orgânicos a determinar a estruturas desconhecidas - parte de dados obtidos por um só equipamento.18

De acordo com o químico Johann Gasteiger,11 esse projeto foi encerrado, contudo surgiram diversos programas derivados dele, bem como para diversas outras finalidades, mesmo com a queda da visibilidade da IA nos anos que se seguiram. As possibilidades de aplicação da IA, naquela época, eram (i) criar um microuniverso de dados que pudessem ser processados por softwares de aprendizagem, podendo assim, por exemplo, que tal software encontre o conceito ou processo que se adeque aos dados; e a partir disso, (ii) dar suporte aos químicos nas resoluções de problemas práticos.19 Nesse entendimento, o DENDRAL se encaixa como um dos suportes para os químicos resolverem os problemas de identificação das estruturas moleculares desconhecidas e pode ser considerado como inteligência artificial.

O termo inteligência artificial (IA), entendido como o cruzamento de todas as áreas que estavam presentes no simpósio na Dartmouth College,20 foi apresentado pelo matemático John McCarthy, em 1956, na cidade de Hanover. A proposta era que os estudos e a investigação poderiam ser reduzidos e descritos a algo que máquinas poderiam simular, não se tratando apenas de criar algoritmos para leitura, mas também para identificar padrões e extrair conhecimentos.21,22 O escritor e especialista em IA, Lasse Rouhiainen,23 define a IA como “a habilidade dos computadores realizarem atividades que normalmente requerem inteligência humana” e, de acordo com esse autor, o termo inteligência artificial tem causado incômodo em muitas pessoas e uma proposta, feita por Sebastian Thrun, seria chamar a IA como “Ciência dos Dados”.

A ciência dos dados pode ser entendida como a integração da ciência da computação, com a matemática/estatística e o campo de interesse específico, como as ciências da natureza, por exemplo (Figura 1). Em outro entendimento, a IA trata de técnicas computacionais que mimetizam a inteligência humana.24

Figura 1
Ciência dos dados como disciplina24

Apesar da IA ter nascido em 1956, seu entendimento pode ser identificado na questão proposta pelo matemático britânico Alan Turing, em sua publicação (1950): As Máquinas Podem Pensar? Nessa publicação, foi apresentada a capacidade de aprendizagem das máquinas por imitação e a possibilidade de atuação destas em campos puramente intelectuais. Hoje, a IA ultrapassou as suas propostas iniciais e, inclusive, já pode ser dividida em dois níveis: machine learning e deep learning.

Machine learning foi traduzido para o português como “aprendizado de máquinas”, enquanto no espanhol e no francês a tradução seria “aprendizagem automática”, ou autoaprendizado, pois, neste nível, a IA reconhece padrões, aprendendo com esses dados e propondo resultados como saída, um exemplo seria os sistemas de busca e de filtros em sites e e-mails. Neste sistema, as máquinas podem aprender (i) com a intervenção humana, que organiza os dados na máquina e essa, posteriormente, reconhece esses dados, como a identificação prévia de um gato em um foto faz com que em uma nova foto, por exemplo, a IA reconheça aquele padrão de imagem e assim a classifique na categoria gato - “aprendizagem supervisionada”; ou (ii) sem a intervenção humana, a máquina reconhece padrões, como exemplo a imagem do gato, e as agrupa em categorias - “aprendizagem não supervisionada”.23,25

Existe ainda um terceiro modo de aprendizagem, (iii) em que as máquinas aprendem pela experiência, quando suas operações estão corretas, ela tem o reforço positivo, como ocorre no adestramento de cães, que quando um comando está correto ele ganha uma recompensa - “aprendizagem por reforço”.23

O segundo nível é derivado do primeiro, a deep learning é conhecida como “aprendizagem profunda” e estão cada vez mais crescentes as produções neste nível, pois esse modo, também chamado de “redes neurais”, utiliza um sistema que simula o processo das sinapses entre os neurônios, criando uma arquitetura com as conexões, partindo de x entradas (input) e resultando em y saídas (output), ou até em uma única. Assim, a deep learning consegue produzir respostas sem a intervenção humana, como o reconhecimento de voz, a identificação de veículos, a visão artificial e os programas de assistência remota. Tal tecnologia requer um volumoso conjunto de dados e uma potente capacidade de processamento, o que vem ao encontro de outros avanços na área da computação, como a “internet das coisas” (internet of things - IoT)26 e o big data,27 pois a internet tem conectado todos os aparelhos, ditos inteligentes, que capturam dados e que através do big data, processa esse grande volume de dados para que a IA transforme em informações que tenham uma utilidade, ou que sejam a resposta a que se pretende. Segundo Rouhiainen, o Facebook já realiza 4,5 bilhões de traduções diárias, “sem a deep learning, seria muito custoso e iria requerer uma grande equipe de pessoas para oferecer o mesmo serviço”.23 A Figura 2 mostra a estruturação de tais tecnologias compondo a ciência dos dados.

Figura 2
Estrutura organizacional das tecnologias da ciência dos dados28

De acordo com Rouhiainen, os avanços atuais da IA se direcionam no aperfeiçoamento de capacidades que, até então, eram exclusivas dos seres humanos,29 como ver - visão artificial, ouvir - reconhecimento de voz - e entender - processamento. Dando essas habilidades às máquinas e aos robôs através da IA, isso tudo produz um grande impacto na indústria: a automação. Entretanto, a longo prazo, é difícil prever quais seriam os alcances da IA, pois, segundo o autor, enquanto o ser humano lineariza as informações, a IA desenvolve/produz dados de forma exponencial.

Apesar da IA ter tido um começo tímido na química, nos últimos anos, ela tem ressurgido tanto na química, quanto nos mais diversos campos, devido ao dinamismo e a intrusão que tais tecnologias e dispositivos tiveram em nosso cotidiano escolar, profissional, doméstico, midiático e comunicacional. A “disponibilidade de uma grande quantidade de dados, o crescimento do poder computacional e os novos métodos de processamento desses dados” (tradução nossa),11 são algumas razões para o desenvolvimento da IA na química.

O emblemático ano de 2019

Durante a pandemia que se iniciou no ano de 2019, pelo novo coronavírus (COVID-19), podemos identificar um dos exemplos mais significativos da atuação da IA. Dentre os diversos efeitos que o COVID-19 produz nos seres humanos, o mais grave é a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV), pois dependendo dos recursos para o tratamento e da progressão da infecção, essa doença pode ser (e é) mortal, o que levou a marca de mais de 3 milhões de mortes no mundo.30 A comunidade científica mundial mobilizou-se numa corrida pela mitigação da doença, ou no combate incisivo ao vírus e, para isso, requereu o compartilhamento de estudos, de resultados, de códigos genéticos, de modelagem de proteínas, dentre outros que só foram possíveis pela possibilidade de compartilhamento de um volume significativo de dados pela/na internet. Muito além de compartilhar os dados e as ferramentas disponíveis nos grandes centros de pesquisa em biotecnologia e biologia molecular, por exemplo, tivemos outro fator que marcaria o combate ao vírus: a própria produção de dados com estudos, ensaios e análises in silico. A IA foi indicada pelos grandes pesquisadores e pelo Chefe de Estado dos EUA para auxiliar na prevenção, no diagnóstico, no tratamento terapêutico e nos trabalhos médico-operacionais. As tecnologias da Vacinologia (área de estudos de desenvolvimento de vacinas e seu impacto na saúde pública) e a ciência de dados voltada para a COVID-19, produziram o desenvolvimento de diversas vacinas para a mesma finalidade.31-33

O termo in silico se refere aos estudos desenvolvidos em softwares computacionais, usando a matemática, a estatística, a engenharia e a computação em si, na qual a biologia, por exemplo, encontraria a possibilidade de realizar ensaios de simulação e de modelagem de estruturas biológicas, formando o campo da bioinformática. In silico surge como uma expressão para designar tais processos e simulações que ocorrem no virtual/computacional, ao mesmo passo que outrora, os processos eram estudados in vitro - fora do corpo humano - ou in vivo - propriamente dentro do corpo humano.

Do mesmo modo que a bioinformática e o exemplo de produção de vacinas na pandemia, a química em interface com a computação e com a estatística, também produz um novo campo interdisciplinar, a quimioinformática, onde um grande volume de dados e informações a respeito das propriedades químicas, junto aos softwares de modelagem matemática-estatística, e de simulação computacional de análise e síntese química, dariam informações mais elaboradas, além de processos e resultados de maior eficácia, ou seja, estudos e ensaios realizados in silico.11

Os cursos acadêmicos de química, no Brasil, se aproximam dessas modalidades quando tratam de disciplinas como quimiometria e química computacional, bem como alguns grupos de pesquisa, (geralmente pós-graduação) quando trabalham com dinâmica molecular, ou com análise espectroscópica em química orgânica e, nos casos mais específicos, quando trabalham especificamente com os estudos de QSAR (quantitative structure-activity relationship).34 Dentre outras possibilidades de simulação, já podemos encontrar sistemas inteligentes planejando rotas sintéticas baseados em retrossíntese, que, até o momento, é uma das práticas intelectuais mais recorrentes dentro dos laboratórios de química orgânica, em que o químico precisa mobilizar todo seu conhecimento e expertise para planejar uma rota sintética. Contudo, isso está muito aquém quando comparamos com o que está em fase de desenvolvimento na Universidade de Liverpool (RU), que já realiza pilotos de um robô-químico, uma plataforma comercial de robô móvel que foi desenvolvida para atuar em um laboratório. Este seria um dos alcances que a IA pode promover: a automatização no fazer do químico.35

Este robô-químico pode operar por aproximadamente 21 horas por dia, podendo operar também no escuro. Em uma reação química, ele pesa, adiciona líquidos, purga o sistema reacional com atmosfera inerte e transporta o sistema reacional às estações para sonificação, e/ou para reação fotocatalítica, onde conduz o sistema à ação de radiações luminosas como ultravioleta (UV). Após a reação, ele também leva o sistema reacional para a plataforma cromatográfica, onde retira as alíquotas para a análise. Estas não são apenas possibilidades, são ações que o referido robô-químico já pode realizar em estações adaptadas para ele. A vantagem de poder operar no escuro, garante trabalhos envolvendo os sistemas fotoquímicos que em geral demandam ação de luz ultravioleta. Esses são procedimentos que um químico humano poderia realizar, entretanto, se tornam incomparáveis quando se leva em conta a quantidade de experimentos. Um robô-químico pode realizar 100 experimentos do mesmo perfil, por dia, mesmo com pequenas variações, como testar diferentes concentrações, ou outras variáveis, que conduziriam à otimização do processo. Parte do dia do robô está envolvida com a sua programação, considerando assim ele um sistema semi-automotizado, em que o químico-humano se torna um programador de sistema.35

O robô-químico, nesse contexto, ademais de operar os experimentos cotidianos de um químico, pode explorar algumas hipóteses para otimizar uma reação, como efeito iônico, efeito de pH, efeito fotocatalítico, dentre outras variáveis,36 e, como apresentado em uma reação piloto, nos primeiros 22 experimentos,37 o robô-químico já obteve algumas condições ideais, o que identifica a capacidade de aprendizagem do mesmo.35 As hipóteses baseiam-se nos dados já disponíveis em rede, e podem ser simuladas in silico, o que confere uma maior autonomização ao robô-químico, diminuindo a intervenção humana nos processos reacionais. Essa realidade não é exclusiva da Universidade de Liverpool, pois há diversos trabalhos sendo desenvolvidos com IA e com sistemas robotizados no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), nos Estado Unidos, como uma plataforma de um braço robotizado, realizando procedimentos de laboratório.38

Assim como a IA foi chamada para trabalhar em conjunto com os cientistas no combate à pandemia da COVID-19, é frequente vermos propostas de seu uso quando se fala em desenvolvimento sustentável, em busca de (novas) tecnologias em processos “mais” limpos, além do apelo por uma indústria verde e sustentável. Porém, isso já ocorre intrinsecamente com a IA, desde quando se busca novas rotas sintéticas, ou por novas substâncias com maior potencial, pois tais investigações, na maioria dos casos, levam em conta a redução de resíduos. Sendo assim, indiretamente, a IA já está contribuindo para processos sustentáveis. Contudo, ainda é um desafio para os químicos, engenheiros e demais cientistas integrarem a IA em seus processos, tornando-os sustentáveis.39

De acordo com os estudos de Inês Russo,40 a IA pode ser considerada uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento da agricultura sustentável, uma vez que estamos numa corrida para contornar as mudanças irreversíveis em nosso planeta, buscando otimizar os processos de modo a garantir a disponibilidade de água e a redução da poluição. Nesse ínterim, Russo apresenta a IA como uma ferramenta para auxiliar na mitigação dos problemas da agricultura moderna, que ocorrem em um “eixo ambiental” - pelo uso excessivo de pesticidas, herbicidas, fertilizantes, e outros; em um “eixo social” - quando os agricultores não compreendem como suas práticas atuais ocorrem devido à falta de conhecimento e que algumas podem ser danosas ou ineficazes, uma vez que já foram modificações de problemas anteriores em nome de uma evolução na produção; e um “eixo econômico” - que coloca em jogo as burocracias sobre o produtor e o lucro em sua produção/venda. Dentre as diversas formas de aceitação e adoção da IA pelos agricultores, que a autora entrevistou, ganha destaque a aquisição e o tratamento de grande quantidade de dados a respeito da agricultura, plantio e outros.

A aquisição e o processamento de dados não são interesses apenas para o desenvolvimento de uma agricultura sustentável, mas também como uma saída para resolver um dos problemas mais recorrentes na medicina pública do Brasil. Segundo o professor e consultor sênior da Fiocruz, Luiz Lobo,41 um dos problemas em consultas médicas é o tempo que o médico despende em explicar ao paciente sobre a medicação, os exames, a doença e o tratamento, pois na maioria dos casos o paciente já chega na consulta com informações advindas da internet, colocando o profissional em segunda opinião. Então, uma consulta se torna um momento para esclarecimento e desmistificação de diversas informações conflituosas. No trabalho de Lobo, é apresentada uma relação do tempo de consulta com sucesso e erros em diagnóstico, devido ao desvio de atenção do médico ao trabalho. Na visão de Lobo,41 há uma vasta possibilidade do uso da IA para dinamizar uma consulta médica, desde a interface médico-paciente, teleatendimento - consulta virtual, avaliação de imagens de exames e em práticas cirúrgicas através de robôs, por exemplo. Da Vinci é um robô-cirurgião que está atuando no Brasil desde 2008, e, em 10 anos de cirurgias, realizou mais de 5 mil procedimentos, que se comparado a média de um profissional humano (200 cirurgias por ano), o desempenho do robô-cirurgião é muito maior e menos invasivo. Da Vinci é uma tecnologia que está ampliando as potencialidades dos humanos na área da medicina e cada vez ganhando mais espaços em hospitais e centros de pesquisa na área da saúde.

Lobo41 ressalta que o uso de tais tecnologias na prática médica demanda que os currículos estejam ajustados para esse novo paradigma, capacitando os alunos ao uso de big data. A IA na educação médica, de acordo com o autor, implicará numa formação que prepare para atendimento em unidades de atenção primária, junto às ciências básicas, clínicas, sociais e científicas, onde os estudantes possam ter outros modos de aprendizados, inclusive os especializados, devido ao volume de dados que a IA consegue processar.

Químicos sempre realizaram experimentos para obter dados sobre propriedades químicas e físicas, sobre reações químicas, ou sobre atividades biológicas. Assim, a química tem, desde seu começo, acumulado uma quantidade enorme de dados sobre estruturas químicas e suas propriedades, produzindo o seu conhecimento derivado de dados de seus experimentos, ou seja, um aprendizado indutivo, do mesmo modo que a IA, que também parte de dados para produção de conhecimento.13 Desse modo, a IA, em conjunto com os robôs, seria um modo de potencializar essa produção de conhecimento, haja vista a possibilidade de realizar tanto os planejamentos, quanto as próprias práticas nos modos in silico e in vitro, de forma a garantir uma produção rápida e otimizada, isto é, uma maior produtividade.

A ciência evolui por paradigmas, que podem ser identificados por 04 momentos: (i) o 1º paradigma seria da ciência enquanto empírica-experimental; (ii) o 2º seria a ciência teórica - desenvolveu-se a partir de 1600 (as leis da física, a mecânica, a termodinâmica, ...); (iii) o 3º seria a ciência computacional - a partir de 1950 (simulações, modelagem, dinâmica molecular, ...); e (iv) o 4º vem a ser a ciência dos dados - a partir de 2000 (e-science, AI, aprendizagem estatística, mineração de dados, ...).12

A engenharia química apresenta 03 momentos na história, destacando dois marcos históricos para seu desenvolvimento. O primeiro momento é o pré-científico,42 onde se desenvolveu as técnicas de laboratório químico e equipamentos de máquinas industriais. O segundo momento são marcos paradigmáticos onde (i) seria o desenvolvimento das operações unitárias43 e (ii) da ciência de engenharia química. Os dois principais marcos de crescimento da engenharia foram (a) os combustíveis, devido às indústrias automobilísticas e petroquímicas; e (b) os biomateriais, da urgência de fusão da engenharia-química-biologia com a questão ambiental. Na contemporeneidade, de acordo com os autores, desenvolve-se a Indústria 4.0 - “Ciberindústria”, que tem por objetivo a automação e otimização dos processos, marcando um novo desenvolvimento para as indústrias, adjetivadas como inteligentes e sustentáveis.

Uma das problematizações feitas pelos autores é sobre quais seriam os paradigmas atuais da engenharia química, pois há um entendimento de novas fronteiras da profissão de engenheiro químico, com as aplicações das novas técnicas e dos novos métodos de ensino e aprendizagem, como a inteligência espacial, em que o estudo de processos ocorre por meio de ferramentas computacionais. Os autores destacam a emergência de que o processo de ensino da engenharia química deva incluir,

“com maior peso, o manejo das linguagens de programação e instrumentação para o entendimento do controle de processos, preparando para o advento da Inteligência Artificial. Esta aceleração transformará a indústria dos produtos químicos criando [novas] metodologias, e, estas, novas gerações de uma nova cultura tecnológica”. (tradução nossa)12

Há uma máxima na computação: a “machine learning não vai deslocar os cientistas, mas os cientistas que usam machine learning irão deslocar aqueles que não a usam”. (tradução nossa).44 O autor, quanto às ciências dos materiais, deixa claro que a machine learning é mais eficaz, mais interessante, mais impactante, acelerando ou simplificando as análises de caracterização de materiais.

MARCO ÉTICO E O LUGAR DO HUMANO

O movimento, discursos e divulgações sobre a IA e sua presença “facilitando” os seres humanos pode direcionar tão positivamente a nossa perspectiva que parece difícil pensar no impacto sócio/epistêmico/econômico e cultural na constituição do sujeito cientista e sua práxis. Uma preocupação ética/econômica/moral já incide como um ponto de inflexão para UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), quando na fala de Marlova Noleto (Diretora e Representante da UNESCO no Brasil), dentre os atuais desafios da UNESCO, é colocada a urgência de pensar a IA dentro de um marco de ética, com uma abordagem centrada no sujeito, pensando nos efeitos das desigualdades que a própria pandemia (da COVID-19) visibilizou e potencializou, no que tange ao acesso e uso de meios digitais.45 Isso é entendido como “divisão digital”, que vai desde a falta de equipamentos ou acesso à internet, até o próprio uso e domínio dos aplicativos e plataformas - (an)alfabetização digital. A UNESCO, entendendo todas as potencialidades da IA, propõe pensar os meios pelo quais a educação possa ir ao encontro das novas tecnologias, preocupando-se tanto com a formação (inicial ou continuada) quanto com a reciclagem para cursos (que demandam atividades manuais, em geral, técnicos e profissionalizantes) e seus reingressos, a fim de “aumentar a produtividade”, integrando o uso e o ensino destas tais tecnologias, através de uma cooperação que reduza as desigualdades sociais e prime pela sustentabilidade e por uma globalização. Isso decorre da prospecção de Caruso,45 de que algumas profissões estão perdendo relevância, outras entrando em descarte e outras sendo incentivadas.

Independente da lente com que se pensa os paradigmas, todos convergem para que as novas tecnologias constituam mais uma virada científica e industrial. Ainda que a ciência dos dados promova os benefícios apontados até aqui, é possível perceber ruídos e estes não são inaudíveis. Em nossa história, as viradas tecnológicas já se repetiram outras vezes, quando as máquinas à vapor mudaram expressivamente os modos de trabalho e produção, afetando a sociedade, a economia, o ensino/escolarização e a urbanização. Essa foi a primeira revolução industrial, que daria subsídios para o surgimento de outros ramos de indústria, como a química e a elétrica. O desenvolvimento em torno da eletricidade, seria o ponto de maior impacto, pois enquanto na primeira houve uma maquinização, a segunda foi de industrialização, e a eletricidade foi a mola propulsora para que indústrias, nesse segundo momento, se desenvolvessem. Após o surgimento do primeiro computador, a sociedade entrou na era que passou a ser chamada de “era da informação” e tais máquinas passam a ser manipuladas por outras, a computadorização dos processos fornecia uma automação graças aos robôs e plataformas robóticas, porém ainda os humanos sempre estiveram no controle, na manutenção e na produção de tais máquinas. O que se percebe nesse momento é a redução acelerada da intervenção humana, pois as máquinas podem, em sua potencialidade, serem autônomas.

As revoluções industriais tiveram como cenário o capitalismo, a necessidade de otimizar a produção, a redução de custos e o incentivo de novas tecnologias ou de explorar novas matérias-primas. Contudo, sempre houve um custo - a produção desenfreada fez aumentar, em larga escala, a intoxicação ambiental e o empobrecimento/adoecimento populacional. Pelo menos esses dois fatores, se combinados, podem desestabilizar os tão aclamados benefícios da industrialização.

O efeito da produção industrial não só afeta a atmosfera, poluindo-a, também afeta os sistemas hídricos e terrestres devido ao descarte de resíduos. É nesse cenário que as novas tecnologias emergem com a possibilidade de redução de danos: realização de trabalhos perigosos, otimização em processos inteligentes e sustentáveis, captura e uso de gases como o CO2, reaproveitamento/reciclagem de resíduos, insumos e efluentes, tratamento e economia de água, produção de materiais biodegradáveis e na economia energética e atômica.

No entanto, fica evidente, como efeito, a descartabilidade de processos e profissões, que marginalizam os sujeitos e mantém um ciclo produtivo de tecnologias remediadoras/paliativas que deslocam (e autoexcluem) os humanos. As revoluções anteriores alargaram as divisões econômicas/profissionais/culturais/cognitivas/tecnológicas, colocaram cada vez mais alguns grupos às margens da sociedade, aumentaram o desemprego e a desigualdade de formação, produzindo - como efeitos - a precarização das condições de subsistência e o adoecimento social. A problematização se estende sobre essas tecnologias e ao que as ciências podem produzir enquanto bônus e ônus à sociedade e aos sujeitos em suas singularidades.

O referido marco ético, com seu lugar para o humano, é autoexplicativo, mesmo assim cabe destacar o quanto a tecnologia, ainda entendida a serviço do humano, se tornou sua senhoria. Com traçados autônomos e com produções de algoritmos, as chamadas máquinas inteligentes ou a inteligência artificial, deslocaram o humano para a marginalidade e ainda contribuíram para os modos de existência, em que cada vez mais se identificam como pensamentos encontrados nas “prateleiras” de um mundo pós-humano.

TRÊS PONTOS DE INFLEXÃO

A história da ciência moderna e a promessa de uma salvação, purificação, organização, otimização etc, etc, etc, do mundo e da sociedade em que vivemos, está longe de ser uma novidade. A cada Revolução Científica e/ou Industrial se repetem as máximas promessas de um “admirável mundo novo’”, parafraseando Aldous Huxley, e certamente não será diferente na Revolução 4.0.

“A grande promessa para uma melhor gestão de problemas sociais, tais como a desigualdade, a falta de acesso à alimentação e recursos de saneamento, o acesso ao emprego, entre outros, estaria justamente no uso dessas ferramentas tecnológicas, e entre elas, a inteligência artificial. A evolução das tecnologias nos posicionou em uma conjuntura em que o não uso delas nos torna obsoletos, ao mesmo tempo em que seu uso indiscriminado gera uma série de impactos negativos a grande parte das pessoas inseridas nas mais diversas sociedades. Assim, apesar das benesses trazidas pelas tecnologias, dos inúmeros avanços ocasionados por elas, da rapidez com que se processam informações, algumas questões, como a preocupação com o humano e as relações intersubjetivas, parecem estar ficando em segundo plano”.46

Contra a perspectiva de uma ciência salvacionista, queremos destacar três pontos que interpelam a educação em ciências: (a) os sujeitos e suas subjetividades, (b) a sociedade e as sociedades e (c) o conhecimento e a informação.

(a) Subjetividades

Diversos antropólogos e filósofos da ciência, como Paula Sibilia,7 Bruno Latour47,48 Isabelle Stengers48,50 e Michel Serres51 apontaram para a economia capitalista e o modelo do neoliberalismo como promotores de uma série de tecnologias que moldam corpos e subjetividades, principalmente na trama de uma sociedade da informação e da comunicação, em que há uma fusão entre homem/técnica/instrumento/comunicação. Com o desenvolvimento (acelerado) e aperfeiçoamento de tais tecnologias, o corpo humano fica obsoleto e requer uma constante modificação/atualização - upgrade, isto é, uma “atualização tecnológica permanente”,7 de modo que essa maquinaria de produção de subjetividades se retroalimenta: financiamento de novas tecnologias - necessidade de ajustar o corpo ao tecnossomo52 como estética/ética/desejo - produção e movimentação de capital/mercado.

Ainda que Sibilia9 tenha percebido a construção de subjetividade que advém das nossas atuais mídias sociais e smartphones, com WhatsApp, câmeras e apps, a autora jamais teria imaginado o quão atingida está a nossa subjetividade: nosso tempo/espaço mediado e controlado e o nosso desejo submetido ao império dos algoritmos construídos no mundo da IA.

A inteligência artificial tem sido usada para obtenção e manipulação de dados, a fim de exercer influência sobre as escolhas dos indivíduos, significa dizer que, trata-se de um novo meio pelo qual alguns indivíduos podem exercer certas influências sobre outros, de modo a estabelecer uma relação de poder. Essa orientação pode ser percebida por meio das diversas formas de interação entre as pessoas e os dispositivos de IA, sendo uma delas o mercado e as novas formas de transação, que são ofertadas por intermédio de plataformas digitais, na virtualização dos negócios.46

O humano capturado em seu desejo - e em seu físico - é um dos efeitos da IA e da possibilidade criadora de um mundo. Nesse sentido, conhecer se torna fundamental, afinal de que estamos falando quando colocamos o humano frente à máquina: subserviência, sobrevivência, potência? Estas são questões que demandam análise e que impactam o nosso entendimento de educação, de ciências e de educação em ciências.

(b) Sociedades

As tecnologias são acompanhadas das mudanças na sociedade, ou melhor, estão imbricadas com as mudanças nas formas de pensamento, criam novos lugares para os sujeitos sociais e as estratégias para conhecê-los. Michel Foucault8 explicita as mudanças nas epistemes em diferentes tempos históricos através de novas ferramentas de análise, como a arqueologia e a genealogia, cria uma metodologia de investigação dos sistemas de pensamento e nos proporciona diferentes formas de entender as mudanças sociais e suas relações com as técnicas, com as éticas e com as discursividades que nos constituem.

A sociedade disciplinar, “inventada” no final do século XVIII, refinada no século XIX, agoniza no século XX do pós-segunda Guerra Mundial, segundo a avaliação de Gilles Deleuze,9 por estarmos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. As sociedades de controle funcionam mais pelo controle contínuo e comunicação instantânea do que por confinamento como era a sociedade disciplinar.9 Como forma de expressar a mudança, usa a transformação dos hospitais em hospitais abertos, das universidades em universidades abertas, das indústrias em empresas. Mudanças que esmaecem as fronteiras, limitando os espaços para enfrentamento e para insurgências; na sociedade de controle não há uma instituição física, palpável, mas uma alma, um gás que preenche todos os espaços. Não se trata de esta ser uma sociedade mais problemática que a que lhe sucedeu, nem tampouco há como barrar essa mudança ou decidi-la ruim, a priori. “Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições”.9

Segundo Deleuze,9 a cada tipo de sociedade pode-se evidentemente associar um tipo de máquina: as máquinas simples ou dinâmicas para a sociedade de soberania; as máquinas energéticas para as sociedades de disciplina; as cibernéticas e os computadores na sociedade de controle. Mas as máquinas não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas são apenas uma parte.

(c) Conhecimentos e (des)informações

Assim como a nossa sociedade contemporânea está estruturada numa racionalidade neoliberal, a educação e a produção de conhecimento também são atravessadas por diferentes elementos que participam no desenho dessas sociedades e na constituição de subjetividades, como as políticas públicas e curriculares, as produções da mídia, as relações interpessoais inerentes à profissão docente e as relações de poder que estruturam tanto as sociedades de controle, como internamente nas instituições de ensino.

Esse viés econômico com o qual se fixa o conhecimento, promove uma desestruturação sistemática das escolas públicas de Educação Básica, perceptível nas práticas cotidianas e administrativas, nos ditos e não ditos sobre o professor, na produção de verdades sobre padrões de acesso social, de justiça e de oportunidade que, em nossa forma de entender a docência e o processo de escolarização, vai deslocando a posição de sujeito que o professor ocupa na sociedade. Uma vez que a própria intrusão das IAs promove a robotização do ensino, ao invés de acontecerem como suporte mediador, acabam por tomar a posição do professor ou das relações intersubjetivas da educação e do conhecimento, pois o efeito da ação de tais máquinas - a administração escolar, os processos educacionais, as políticas públicas - corta/fragmenta os sujeitos num eixo econômico.

Assim, a discussão das IAs na educação precisa ser (re)pensada junto às políticas de captura dos sujeitos e a exclusão do mesmo como produtor do conhecimento cada vez mais autonomizado e algorítmizado, produzindo uma sociedade e uma educação em sociedade sistematicamente focada na (des)informação. A meritocracia, demanda por desempenho e autorresponsabilização dos sujeitos já são marcas que trazem à tona um conflito (e a precarização) entre educação, professor, estudante e governo, há um deslocamento do professor como produtor de conhecimento para as margens da sociedade. Instaura-se assim, segundo Josiele Silva e Rochele Loguercio,53 uma política de “necrodocência”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A inteligência artificial e os robôs que nos pareciam tão distantes e relegadas às grandes empresas, aos países ditos de primeiro mundo e aos filmes de ficção científica, nos interpelam cotidianamente e constituem grande parte dos modos de existência que temos construídos nesta sociedade contemporânea. Iniciamos este artigo buscando identificar do que estamos falando quando nos referimos a IA, tanto em como ela está se constituindo um campo próprio, como “Ciência de Dados”, bem como na rede que ela está sendo tramada.

Continuamos no texto entendendo o quão percebida foi a IA durante os anos de pandemia, tanto como tecnologia de auxílio quanto como potência de pesquisa. Dentre todas as possibilidades, a química se mostrou (e se mostra) um campo profícuo para o desenvolvimento de tais tecnologias, garantindo sua presença na aclamada Indústria 4.0, de modo que é legitimada pela constante demanda que a ciência tem em criar processos de maior produtividade/rendimento e que atendam a demanda planetária pela sustentabilidade.

E enfim, entendemos junto às perspectivas éticas o quão o humano necessita rever e analisar a formação de sua subjetividade no espaço in silico. Pois, paulatinamente, somos preparados/programados/aliciados ao uso e, compulsivamente, à dependência dos novos modos de se fazer, de agir e de produzir que passa dos modos manuais, artesanais, instrumentais - in vitro, para outro modo que diminui a intervenção humana, chegando em alguns casos, a expropriação do ser humano de tais atividades, como ocorre nos ambientes virtuais, nas ditas nuvens, nas plataformas automatizadas e nos modos in silico de estudo e de construção.

Ao identificarmos três eixos de impacto que interpelam a educação em ciências neste trajeto de pesquisa, enfatizamos o quanto ainda é preciso discutir os processos tecnológicos e sua relação com as redes de educação e de educação em ciências. Dada a iminência de produção e adesão de tais tecnologias inteligentes e da Indústria 4.0, se torna urgente que se pense qual será o lugar do humano nessa indústria, nos espaços acadêmicos, na ciência (que ciência será essa?) e na construção do conhecimento.

As problematizações e arquivos neste texto se pautam pela análise de discurso e os efeitos que tais discursos e práticas produzem neste momento da discussão sobre a IA, que não se esgota e que até mesmo as grandes corporações se sentem, de certa forma, compelidas às respostas rápidas no tempo rápido da tecnologia. Há também respostas possíveis e, todas as áreas, particularmente nas áreas de comunicação e educação, no entanto todas nos apontam uma maior necessidade de amplificação dos debates e das possíveis respostas temporais. A teoria crítica tem, conforme Antunes,54 se posicionado fortemente que precisamos pensar em novos projetos político-econômicos que contornem o adoecimento social que o capitalismo contemporâneo produziu (que ainda produz e continuará a produzir), mas neste ensaio pretende-se enfatizar o quanto ainda há para falar e discutir nesse universo, antes de se criar projetos político-econômicos. Podemos, nesse sentido, fazer como empresário Elon Musk,55 que mesmo sendo grande incentivador da tecnologia, pede um tempo para o pensamento, para a criação de legislação/regulamentação da IA e uma reavaliação de suas ações e potencialidades.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao diretor de arte L. Kroth, pela imagem produzida para o Graphical Abstract.

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  • 25 Basta lembrarmos em nossa contemporaneidade, das redes sociais como Facebook, que em um certo momento nos reconhecia em fotos e que, ao nos marcarmos ou marcarmos alguém, dissemos a ela quem seria aquela categoria. A partir desse momento, a cada nova foto colocada nessas plataformas, já surgia a opção de marcar-se, ou de marcar as pessoas presentes na foto, pois ela já reconhecia os rostos.
  • 26 É uma tecnologia de conexão - comunicação - de e entre objetos inteligentes - smart - com a rede global de internet, via wi-fi (com ou sem bluetooth). Tais objetos, para serem considerados inteligentes e integrantes da IoT, devem gerar dados sobre o ambiente ou o usuário, como, por exemplo, os relógios inteligentes que o usuário conecta ao celular e este a internet, podendo realizar exercícios e fazer monitoramento cardíaco, dentre outras funções.
  • 27 Ferramentas computacionais que lidam com grande volume de dados não estruturados. Estes dados requereriam mais tempo para análise que dados estruturados/organizados. Assim a big data dá conta de dados variados e em uma rápida velocidade de processamento, como quando se busca algo em sites de compras, por exemplo. Além de velocidade e volume, o sistema big data deve operar com a veracidade, o valor e a variedade.
  • 28 Fonte própria.
  • 29 Rouhiainen informa que o Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT) desenvolveu um sistema de IA que opera com ondas de radiofrequência, permitindo que se possa “ver” através de paredes, enquanto o Google tem sido o maior desenvolvedor no que diz respeito a ferramentas de reconhecimento de voz.
  • 30 Segundo a página Johns Hopkins University, o dashboard da COVID-19 até a data de 03 de junho de 2020, haviam sido registradas 3.694.050 milhões de mortes no mundo. Disponível na página https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/dashboards/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6, acessada em junho 2023.
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  • 36 Aqui, cabe chamar a atenção à análise multivariada, como uma programação estatística que permite variar mais de um componente ao mesmo tempo, a fim de obter a otimização de resultados, em contrapartida ao método univariado, que apenas uma variável é considerada por vez. A análise multivariada tem sido amplamente utilizada em análises químicas que precisam buscar os melhores parâmetros para obter a maior eficiência dos equipamentos e do método analítico.
  • 37 O suporte reacional possui 16 frascos para trabalho, sendo assim, cada corrida reacional pode realizar 16 ensaios por vez.
  • 38 https://www.chemistryworld.com/news/are-synthetic-chemists-out-of-a-job-as-ai-meets-automation/3010812.article, acessada em junho 2023.
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  • 42 Nessa etapa, é apresentado pelos autores como a parte do próprio desenvolvimento da Química como ciência.
  • 43 Com o desenvolvimento das operações unitárias, houve a purificação do campo: a engenharia mecânica se ocupou da maquinaria, química industrial dos produtos, a química aplicada das reações individuais e a engenharia química das operações unitárias comuns a todos os processos químicos. Como consequência, surge a preocupação do ensino e do desenvolvimento dos processos sustentáveis e de uma engenharia verde e de uma química verde/sustentável.14
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  • 52 O corpo pode ser modificado ao ponto que não mais faz sentido falar em cromossomo, pois este guarda as informações biológicas que podem ser adulteradas para outros propósitos, logo, o que é interno e constitutivo ao ser humano tecnológico é o tecnossomo.
  • 53 Silva, J. O.; Loguercio, R. Q.; Anais do XIII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, Campina Grande, Paraíba, 2021. [Link] acessado em junho 2023
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  • 54 Antunes, R.; O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital, 1ª ed.; Boitempo: São Paulo, 2018.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2023
  • Aceito
    03 Maio 2023
  • Publicado
    20 Jul 2023
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Sociedade Brasileira de Química Instituto de Química, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), CP6154, 13083-0970 - Campinas - SP - Brazil
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