Acessibilidade / Reportar erro

Um mensageiro entre duas áreas: educação e antropologia

OLIVEIRA, Amurabi. Etnografia para educadores. . São Paulo: Editora da Unesp, 2023. 1. 120

Há várias iniciativas curtas, eficientes e prazerosas para apresentar a Antropologia a um público mais amplo. Em solo nacional, Debora Diniz ( 2012DINIZ, Debora. 2012. Carta de uma orientadora: o primeiro projeto de pesquisa. Brasília, Letras Livres. ) e Miriam Goldenberg ( 2008GOLDENBERG, Miriam. 2008. Noites de insônia: Cartas de uma antropóloga a um jovem pesquisador. Rio de Janeiro, Record. e 2004GOLDENBERG, Miriam. 2004. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Record. ) explicaram como fazer pesquisa na forma de uma carta dirigida a uma orientanda imaginada, enquanto Oscar Calavia Saez ( 2013CALAVIA SAEZ, Oscar. 2013. Esse obscuro objeto de pesquisa: um manual de método, técnicas e teses em Antropologia. Ilha de Santa Catarina, Edição do Autor. ) optou pela autobiografia e a (auto)pilhéria. Rosana Guber ( 2011GUBER, Rosana. 2011. La etnografia: Método, campo y reflexividad. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores. ), no cenário argentino, seguiu uma estrutura capitular muito semelhante à do livro que resenharei abaixo, e François Laplantine ( 2004LAPLANTINE, François. 2004. A descrição etnográfica. Tradução João Manuel Ribeiro Coelho e Sérgio Coelho. São Paulo: Terceira Margem. ), no cenário francês, elencou passos para a escrita da etnografia. E um exemplo criativo, da terra dos manuais, é da estadunidense Sally Galman ( 2007GALMAN, Sally Campbell. 2007. Shane, the lone ethnographer: A beginner’s guide to ethnography. Lanham, Altamira Press. ), que falou das nossas formas de fazer pesquisa por meio da história em quadrinhos. São todos livros que se aventuram a ensinar e traduzir a Antropologia.

Amurabi Oliveira, sociólogo, antropólogo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, segue passos semelhantes em seu novo livro, Etnografia para educadores . O seu livro é enxuto (120 páginas), prima pela linguagem acessível e envolvente, traz exemplos de suas pesquisas e de colegas que também atuam na área da Antropologia da Educação. Como as autoras citadas acima, ele se equilibra muito bem entre descrever a área sem ser superficial nem anedótico; entre apresentar um leque significativo da literatura clássica e contemporânea sem assoberbar nem afastar a leitora iniciante; entre transpor realidades do trabalho de campo antropológico para realidades escolares e vice-versa. A todo tempo, ele lembra que o livro reúne possibilidades, não receitas. São “premissas básicas no fazer etnográfico que só podem ser compreendidas de forma relacional com a própria teoria antropológica construída a partir do trabalho de campo” (39). Ele nos apresenta, então, um “guia reflexivo” (106).

O objetivo de Oliveira é pensar sobre os modos de pesquisar como um exercício contínuo, reflexivo e coletivo (19). E este é o tom do livro, do começo ao fim. Ele pontua como, em todas as etapas de uma pesquisa, até mesmo antes de ser iniciada e bem depois de ter sido concluída, é preciso ponderar sobre a sua realização e a sua “não linearidade” (21). Ele questiona passos que deu em seus próprios projetos, revela os limites de seu exercício como professor e como pesquisador da Educação, traz ainda outros desafios enfrentados pelas colegas da área. E ele mantém o tom coletivo no livro ao citar longos (mas sempre agradáveis) trechos de autoras da Antropologia. Ao longo de cinco capítulos, há a companhia de muita gente, sentimo-nos em um ambiente realmente “polifônico”, como ele chama.

Conhecemos as ideias de Margaret Mead, Ruth Landes, Howard Becker, Paul Willis, Tim Ingold e, num cenário nacional, Claudia Fonseca, Mariza Peirano, Carlos Rodrigues Brandão, Silvia Caiuby Novaes, Tania Dauster e Boris Maia, por exemplo. Mais gente especificamente da área embala o livro: é prefaciado por Neusa Gusmão, uma das pioneiras da Antropologia da Educação no país; tem a orelha escrita por Rodrigo Rosistolato, que investe em entender as escolas, famílias e classe social; e fecha com a contracapa assinada por Antonella Tassinari, que há muito pesquisa a educação indígena.

Além do tom, há também uma proposta teórica vigorosa no livro. Acompanhado por outras colegas, Oliveira resiste que, na Educação, só se possa ou só se queira fazer “pesquisa tipo etnográfica”. Ele defende integralmente “a pesquisa etnográfica em Educação” (22). Este é um argumento que ele já vinha desenvolvendo em textos anteriores: “a pesquisa ‘do tipo’, ‘de cunho’, ‘de inspiração’ etnográfica parece sugerir certa imprecisão metodológica” (40) e, por isso, de modo contrastivo, ele assume um papel afirmativo sobre a pesquisa etnográfica realizada em contexto escolar. Segundo ele, esse foco contribui para “acumularmos mais conhecimento acerca da realidade educacional”, para “pensarmos a possibilidade de construção de novas posturas cognitivas por parte dos profissionais da educação”, para “questionar[mos] nossas próprias práticas […], compreendendo os contextos culturais nos quais se inserem” (41). E reforça: “não é preciso ser um antropólogo no sentido estrito do termo para produzir boas etnografias, mas para isso o diálogo com a antropologia será fundamental” (106). Mais do que tudo, Oliveira afirma que a “etnografia nos possibilita uma desconstrução da falsa evidência de que conhecemos a realidade escolar por ‘sermos nativos’, termos frequentado bancos escolares, ou mesmo por sermos ‘especialistas’ no campo da educação” (105).

A tarefa de alinhavar duas áreas – Antropologia e Educação – não é fácil, o autor nos lembra a todo momento. Perceber isto é um dos efeitos da reflexividade e do estranhamento em sua prática. De um lado, aprendo com o livro sobre o desafio enfrentado por educadoras para desnaturalizarem o espaço onde passam tanto do seu tempo de trabalho. E, de outro lado, a partir de minha própria experiência profissional, percebo que antropólogas que atuam em universidades simplesmente não se percebem como educadoras ou, ao menos, a docência não é a faceta mais prazerosa ou aquela com a qual se apresentam para o mundo. E talvez isso aconteça porque muitas foram formadas por ideias como uma de Clifford Geertz. Em Uma nova luz sobre a Antropologia , ele disse que “A Antropologia impõe uma vida seriamente dividida. […] As habilidades necessárias na sala de aula e as exigências em campo são muito diferentes” (2001, p. 26 apud Oliveira, 2023: 26). O livro de Oliveira me faz pensar: são mesmo espaços tão divididos assim? Estas habilidades e exigências não se aproximam, não podem se influenciar mútua e positivamente? Separar docência de pesquisa seria manter uma “divisão falsa e artificial” como lembram Amurabi Oliveira e Neusa Gusmão, entre, respectivamente, a prática e a teoria, a Educação e a Antropologia? Sou definitivamente mais otimista e mais criativa do que Geertz, afino-me com os alinhavos e diálogos que Oliveira propõe entre as duas disciplinas, entre a professora e a pesquisadora que me habitam a todo tempo.

Notei duas minúsculas limitações do livro. As autoras já falecidas receberam, entre parênteses, data de nascimento e morte. Porém, além disso, para ajudar as leitoras nem sempre familiarizadas com a Antropologia, mas interessadas em localizar historicamente as vidas e obras, teria sido bom, entre colchetes, incluir a data de publicação original das obras, não apenas a data de suas traduções para o português. E há uma certa redução referencial à “escola” como o espaço primordial e prioritário para se realizarem etnografias em Educação. Teria sido oportuno diversificar as alusões a mais espaços em que práticas educacionais acontecem, como museus, hospitais, prisões, associações comunitárias, terreiros e fábricas, por exemplo; nas práticas cotidianas de formação, supervisão, orientação, participação em bancas de teses e de concursos; nas esferas do planejamento, gestão e avaliação das políticas públicas. Os tantos “contextuais educativos não escolares” (95) ajudariam a entender a Educação como um campo incrivelmente amplo, com uma “multiplicidade de agentes” (75) e de fato freiriano.

Então, de modo convidativo, didático e leve, o livro Etnografia para educadores cumpre a incumbência de acolher educadoras e profissionais do campo da Educação no diálogo com a Antropologia. E, como o autor reforça em vários momentos, também sugere o “caminho reverso”, orientando as antropólogas a conhecerem mais o campo da escola, não apenas como local de realização de pesquisa, mas como área de produção de conhecimento e como um fórum privilegiado de “debates sobre o sistema de ensino” (98). Realmente, Oliveira se firma como, em suas próprias palavras, um “mensageiro entre duas áreas”.

Vislumbro ainda quatro usos mais imediatos da obra. Primeiro, o livro sistematiza o que o autor tem ensinado nos cursos que frequentemente oferece a turmas de educadoras na graduação e pós-graduação. Servirá, portanto, como o principal material didático para estes cursos. Segundo, embora destinado explicitamente para educadoras, a forma como o livro foi organizado, a indicação de referências certeiras e a escrita fluida são todos aspectos que contribuem para que sirva a neófitas também das Ciências Sociais, em particular da Antropologia. Tanto aquela estudante que está chegando na área, em seu curso de “Introdução à Antropologia”, quanto aqueloutra que está começando a planejar a pesquisa para a sua monografia de final de curso. Terceiro, atentar para a Educação e os contextos escolares pode contribuir para a Antropologia reconhecer os seus próprios processos de aprendizagem, sobretudo reconhecer “a etnografia como um processo de aprendizagem” (97), de formação e de ensino. Por fim, é bom lembrar que muitas antropólogas trabalham em universidades, institutos federais e em todos os níveis escolares. Como eu mesma tenho insistido ( 2023FLEISCHER, Soraya. 2023. Na cozinha da Antropologia. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens. ), olhar para este espaço de trabalho com mais cuidado e curiosidade antropológicos e como oportunidade de produção de conhecimento poderá favorecer diretamente a prática docente. Afinal, como diz a contracapista, Antonella Tassinari, “Etnografia é feita com calma. Exige olhar atento, mente aberta, prontidão em acolher o inesperado. Educação também não é assim?”.

Referências bibliográficas

  • CALAVIA SAEZ, Oscar. 2013. Esse obscuro objeto de pesquisa: um manual de método, técnicas e teses em Antropologia. Ilha de Santa Catarina, Edição do Autor.
  • DINIZ, Debora. 2012. Carta de uma orientadora: o primeiro projeto de pesquisa. Brasília, Letras Livres.
  • FLEISCHER, Soraya. 2023. Na cozinha da Antropologia. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens.
  • GALMAN, Sally Campbell. 2007. Shane, the lone ethnographer: A beginner’s guide to ethnography. Lanham, Altamira Press.
  • GOLDENBERG, Miriam. 2008. Noites de insônia: Cartas de uma antropóloga a um jovem pesquisador. Rio de Janeiro, Record.
  • GOLDENBERG, Miriam. 2004. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Record.
  • GUBER, Rosana. 2011. La etnografia: Método, campo y reflexividad. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores.
  • LAPLANTINE, François. 2004. A descrição etnográfica. Tradução João Manuel Ribeiro Coelho e Sérgio Coelho. São Paulo: Terceira Margem.
  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com