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O antirracismo como valor: das cotas étnicoraciais às cotas epistêmicas – entrevista com José Jorge de Carvalho

Introdução

Neste ano, em que se comemoram vinte anos do início da implementação de políticas de cotas étnico-raciais no ensino superior brasileiro, é uma grande satisfação publicizar esta entrevista, realizada com um dos expoentes de envergadura nacional dessa luta: José Jorge de Carvalho.

Antropólogo, professor titular no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), nosso entrevistado esteve engajado desde o início no debate de cotas na UnB, em 1999, atuando na elaboração da proposta (pioneira) de cotas para negros e indígenas nessa instituição, em 2003, e, posteriormente, na projeção e qualificação do movimento de ações afirmativas em outras instituições do ensino superior público brasileiro (Carvalho, 2022 CARVALHO, José Jorge de. 2022. “Cotas étnico-raciais e cotas epistêmicas: bases para uma antropologia antirracista e descolonizadora”. Mana, 28(3): 1-36. https://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n3a0402 .
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). Personagem incansável e sempre criativa do antirracismo no espaço acadêmico, continuou e continua a estudar perspectivas e modelos para a expansão e o aprofundamento das cotas e ações afirmativas. Foi o idealizador de outro modelo de inclusão, o Encontro de Saberes, orientado para a inclusão de mestras e mestres de saberes tradicionais, sobretudo, das matrizes indígenas e afro-diaspóricas, na qualidade de docentes e pesquisadores (Albernaz Carvalho, 2022 ALBERNAZ, Pablo de Castro, CARVALHO, José Jorge de. 2022. “Encontro de Saberes: por uma universidade antirracista e pluriepistêmica”. Horizonte Antropológico, 28(63): 333-358. https://doi.org/10.1590/S0104-71832022000200012 .
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). Esse movimento, iniciado na UnB, em 2010, pelo Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCT), difundiu-se por outras instituições na década seguinte, desenvolvendo-se na perspectiva de um processo articulado às cotas étnico-raciais: as cotas epistêmicas. Nessa perspectiva ampla, o Encontro de Saberes, atualmente presente em vinte instituições do ensino superior público no Brasil, tornou-se um importante movimento na descolonização do espaço acadêmico, incidindo, de maneira particular, em um de seus nós: o modelo monoepistêmico eurocêntrico e branco que domina os currículos e a pesquisa.

A entrevista foi realizada em 10 de novembro de 2022, no dia seguinte ao evento “Racismo epistêmico na saúde e refundação pluriétnica e pluriepistêmica da saúde coletiva” 1 1 O evento fazia parte do ciclo “Saúde (Roda Viva) Coletiva: Não vamos ficar gerindo a extinção”, realizado ao longo do segundo semestre de 2022. A gravação do evento está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yWJqbIYYRJ0. , realizado na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, com apoio do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva dessa instituição. Conduzida por Rafael Afonso da Silva e Nelson Filice de Barros, a entrevista versa sobre temas inter-relacionados dentro do que, nela, é denominado como “horizonte do antirracismo”: as cotas étnico-raciais; as cotas epistêmicas; o sentido do antirracismo em diversos contextos ou “níveis” do espaço acadêmico; a revolução epistêmica, corpo-relacional e cosmológica provocada pela presença viva de mestras e mestres dos saberes do “cosmos vivo”; interculturalidade e transculturalidade etc.

A ideia de “horizonte” é significativa aqui. Como qualquer horizonte, o da entrevista se deslocou continuamente, conforme o movimento dos interlocutores presentes. José Jorge deslocava o horizonte sempre mais para a frente e de maneira tal que os entrevistadores eram arrastados, na mesma direção, por sua inteligência, sua alegria, sua esperança. Essa sensação de ser alegremente arrastado por José Jorge fez com que Nelson o chamasse, em certo momento, de “ciborgue do cosmos vivo”. De fato, José Jorge é um organismo animado e também animista que mobiliza (e, assim, reanima) elementos do organismo desanimado da academia (em crise) na articulação de possibilidades que se movem na direção do horizonte da descolonização e do antirracismo. O diálogo com esse traficante acadêmico do “cosmos vivo” – totalmente contaminado pelas mestras e pelos mestres – plantou em nós, os entrevistadores, o desejo de ver o mundo acadêmico tomado pela “vida abundante” e pelos “saberes abundantes” que esse mundo deixou do lado de lá de seus muros.

O antirracismo como valor: das cotas étnico-raciais às cotas epistêmicas

Rafael: Você disse em 2006 que as cotas rompem radicalmente com a lógica de funcionamento do mundo acadêmico brasileiro (Carvalho, 2006 CARVALHO, José Jorge de. 2006. “O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro”. Revista USP, 68: 88-103. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i68p88-103 .
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). Hoje, quase vinte anos depois, como você avalia essa ruptura?

José Jorge: As cotas representaram a maior ruptura até agora no interior das universidades brasileiras. Há vinte anos, várias vezes, eu dei aula na UnB em salas de aulas em que todos os meus alunos eram brancos. O perfil do corpo discente era basicamente de uma classe média burguesa, branca. Isso não existe mais. Isso não é possível mais em uma universidade federal brasileira.

A reação às cotas, muito forte no início, diminuiu. Argumentos manejados na resistência às cotas foram descartados pela experiência. Por exemplo, a realidade mostrou que estudantes cotistas têm rendimento médio equivalente ou mesmo superior ao da média do corpo discente. Para além disso, podemos dizer que chegamos a uma situação em que se tornou inconcebível voltar a uma universidade de alunos brancos e professores brancos. Não podemos imaginar que isso vai acontecer outra vez. Nesse sentido, a política de cotas se instalou como realidade. O principal ganho é este: agora sabemos que uma universidade tem de ter estudantes negros e indígenas junto com estudantes brancos. Não se negocia mais a possibilidade de voltar atrás. Foi um resultado extraordinário, em relativamente pouco tempo, comparado a um século inteiro anterior.

Há uma resistência maior na luta por cotas na pós-graduação. Temos cerca de 35 federais (metade das universidades federais) que têm cotas para todos os programas de pós-graduação. Na docência, avançamos pouco. Mas, mesmo em relação a cotas na docência, em que a resistência tem sido maior, esta pode continuar somente por meio de artifícios, de expedientes racistas velados, quer dizer, ela não pode ser publicizada. “Não vai ter docentes negros? Não vai ter docentes indígenas? Você defende isso?” Qual colega nosso vai defender isso publicamente? Então, sou otimista.

Rafael: Você fala, em um texto (Carvalho, 2019bCARVALHO, José Jorge de. 2019. “Encontro de Saberes e cotas epistêmicas: um movimento de descolonização do mundo acadêmico brasileiro”. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson GROSFOGUEL, Ramón (orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 2. ed. Belo Horizonte, Autêntica. ), da importância, na luta descolonizadora e antirracista, de intervir em diversos contextos da vida acadêmica. Um deles é o “formato institucional”. Gostaria de ouvi-lo sobre experiências de intervenção nessa dimensão.

José Jorge: Na disciplina de estudos afro-brasileiros no semestre passado, instiguei os alunos a fazerem o que chamei de “organograma racial” da UnB. Investigamos o organograma inteiro da UnB: reitor, vice-reitor, pró-reitorias, diretorias de cada pró-reitoria, faculdades, centros, os cargos que estão ali dentro. Procuramos fotografias das pessoas que ocupam todos esses cargos. Vinte anos depois da implementação das cotas na UnB, o resultado é estarrecedor: 95% dessas pessoas são brancas!

Os alunos estão fazendo lambes para colar por toda a UnB. Eles esperam que isso possa causar uma grande reação, inclusive por parte da administração. É um choque perceber que as cotas não alcançaram a direção da universidade. Deveria ter cotas para cargos das pró-reitorias. Se são oito, deveria ter quatro negros, mas tem apenas um. Em termos de gênero, há equivalência, mas não há mulheres negras. A mesma coisa nas diretorias das pró-reitorias. A ideia da igualdade racial não afetou os cargos de direção.

Ao escrever recentemente artigo sobre cotas étnico-raciais e cotas epistêmicas (Carvalho, 2022 CARVALHO, José Jorge de. 2022. “Cotas étnico-raciais e cotas epistêmicas: bases para uma antropologia antirracista e descolonizadora”. Mana, 28(3): 1-36. https://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n3a0402 .
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), constatei que nenhuma universidade brasileira assumiu o antirracismo como valor. Nunca vi nenhuma universidade que declare o antirracismo como sua missão institucional. A lei das cotas é aplicada porque o Ministério da Educação (MEC) manda aplicar, mas não é um valor institucional.

Nelson: Elas também não se declaram supremacistas. Há invisibilidade, um limbo estrutural, que permite essa reprodução do status quo e autoriza a não falar sobre isso.

José Jorge: Não há chances de que se declarem supremacistas. Cairia a pessoa que fizesse isso. Até os hipócritas se posicionariam a favor do afastamento de uma pessoa que fizesse isso. Mas há conivência com a desigualdade racial. Eu não sei como é o organograma racial da Unicamp. Provavelmente é muito parecido com o da UnB.

Nelson: Essa é uma boa provocação.

José Jorge: Diante desses organogramas raciais, certamente ninguém vai assumir a preferência por colegas brancos na política de designação. Por isso, será necessário politizar o mecanismo subliminar. Eles podem dizer: “Não é só uma coincidência? Eu não escolhi os meus assessores porque são brancos, e sim porque são competentes e tal”. Ora, se há uma escolha de 95% de brancos, existe algo subliminar que produz esse resultado. Podemos perguntar: “Não tinha nenhuma pessoa negra competente que você pudesse ter escolhido?”. “Ah! Não passou pela minha cabeça…” “Se não passou pela cabeça, é porque é subliminar essa preferência.” O objetivo desse tipo de diálogo não é acusar as pessoas de racistas, mas as convocar a assumirem o antirracismo como valor, trazê-las para o campo antirracista.

Rafael: A lei 12.711 (Brasil, 2012BRASIL. 2012. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília, DF, Diário Oficial da União. ), sem dúvida, mudou a situação que, em artigo de 2006 (Carvalho, 2006 CARVALHO, José Jorge de. 2006. “O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro”. Revista USP, 68: 88-103. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i68p88-103 .
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), você descreveu como de “impunidade de segregação”. Penso, contudo, que essa impunidade e a relação entre “dentro” e “fora” que ela pressupõe são reiteradas na forma do que Sirin Sibai ( 2016SIBAI, Sirin A. 2016. La cárcel del feminismo: hacía un pensamiento islámico decolonial. Madri, Akal. ) analisa como uma “clausura epistêmica”, que silencia sujeitos subalternos mesmo quando autorizados a falar, um confinamento que opera pelo controle sobre “o que se pode falar” e sobre “os termos em que se pode falar”. Você propõe uma política de cotas epistêmicas contra esse tipo de clausura. Mas nada obriga as instituições superiores de ensino e pesquisa a implementarem ações de inclusão epistêmica. Não estamos diante de outro tipo de “impunidade de segregação”?

José Jorge: Essa impunidade existe porque não chegou ao MEC toda a discussão das cotas epistêmicas, da descolonização, da transformação do caráter eurocêntrico e do padrão de universidade ocidental moderna no Brasil. Enquanto essa discussão não alcançar o MEC, haverá impunidade.

De fato, a lei 12.711 torna obrigatória as cotas, mas não elimina o racismo no plano da convivência acadêmica. Muitos professores, muitos colegas negros de várias universidades, às vezes, se retraem e não se colocam plenamente porque o ambiente não ajuda, não é favorável. Nesse sentido, podemos falar de impunidade.

As cotas são antirracistas na inclusão, mas na convivência o problema se coloca de outro modo. Não temos cotas de convivência. Como é que você vai fazer isso? Precisamos de um trabalho constante, de luta, de afirmação, com estudantes e professores colaborando entre si.

No que se refere à dimensão epistêmica do confinamento, a questão tem outras complexidades. Para refletir a respeito, façamos uma retrospectiva.

Na UnB, lutamos por três anos até conseguir aprovar as cotas em 2003. Depois disso, a luta se estendeu para outras federais, que aprovaram mecanismos de cotas. As três universidades paulistas não aderiram, nem a UFRJ. O que acho absurdo é o seguinte: as universidades que aprovaram as cotas não tiveram um bônus institucional por terem feito esse movimento gigantesco de romperem com o racismo na graduação, e as universidades que não aprovaram não tiveram ônus nenhum. Isso significa que, para o MEC, o antirracismo não é um valor. Se fosse um valor, a coisa seria diferente: “Tá bom, a USP não quer ter cotas, então terá um ônus, não terá prioridade em alguns tipos de financiamento do MEC. A Unicamp não tem cotas, tudo bem, mas estará no final da fila de certos benefícios. A UnB, a UFBA, vocês que apresentaram cotas, terão prioridade”.

Depois de dez anos, sem bônus e ônus, foi instituída a lei de cotas. Mas ainda há passos a serem dados. Precisamos discutir quando a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) assumirá as cotas na pós-graduação como valor, enquadrando os programas sem cotas, que serão convocados a explicar-se: “Vocês têm algum problema com negros? Vocês têm algum problema com indígenas? Expliquem-se!”. O mesmo vale para a Secretaria de Educação Superior (Sesu). Se ela assumir o antirracismo como valor, encontrará uma solução para a baixa presença de docentes negros e indígenas.

A questão é diferente quando se trata do racismo epistêmico e de cotas epistêmicas. As cotas étnico-raciais são uma luta aberta, uma luta antirracista de posições. É preciso enfrentar com toda a energia e toda a transparência o racismo acadêmico e lutar para que haja cotas. Um docente da UnB ou da Unicamp que não gosta das cotas terá de dar aula para estudantes negros. Se ele maltratar estudantes negros ou indígenas, pode responder a processo administrativo.

No caso das cotas epistêmicas, como no movimento do Encontro de Saberes, a estratégia não pode ser a mesma. Eu não sei se faria sentido, se seria eficaz, pedagogicamente, até mesmo academicamente, você obrigar um professor que não queira ser parceiro de um mestre ou uma mestra de tradições epistêmicas não ocidentais a participar de um curso do Encontro de Saberes. Qual seria o resultado de uma relação como essa? Suponha que você vai trazer um pajé para dar um curso, e o professor parceiro está completamente convencido da superioridade absoluta da medicina ocidental. Que tipo de relação de troca de saberes ocorrerá? Não sei se seria possível impor cotas epistêmicas. Penso que a descolonização epistêmica é um movimento que se difunde por irradiação.

As cotas epistêmicas não são iguais às cotas étnico-raciais: são cotas no sentido de que você tem cota-parte, uma parte dos saberes ensinados são ocidentais eurocêntricos, uma parte, indígenas, outra parte, afro-diaspóricos, mas essas partes não representam porcentagens, como acontece com as cotas étnico-raciais. Deve haver uma diversidade na sua implementação, de acordo com as especificidades de cada área de saber. Como será o sistema de cotas epistêmicas na saúde? Como será na música? Em cada lugar, será de um jeito.

Nelson: Nos caminhos que o senhor já fez, conseguiu ver a diferença deixar de ser um passivo problemático para ser um ativo social, a diferença como um ativo social? Esse poderia ser o bônus das universidades que incorporaram as cotas. A diferença é um ativo dentro das universidades hoje?

José Jorge: Olha, eu sou otimista. Nas universidades que já têm o Encontro dos Saberes, haveria desconforto se esse movimento fosse interrompido. Os estudantes têm uma expectativa em relação a esse movimento. Começa lentamente a reconhecer-se que esse deveria ser o modo de funcionar sempre. Passa a ser um ativo.

Não se trata de impor uma sala multicultural na base da burocracia. Eu concordo, não acho que isso tenha muito resultado. Inclusive porque a ideia do saber seria reificada. No lugar de processos de transmissão, poderíamos ter algo como uma cartilha: “Os saberes indígenas são assim. Eles constroem as casas desse jeito. Eles dançam dessa maneira”. Tudo pode virar um manual básico, o que não é o caso com a inclusão de mestras e mestres, proposta pelo Encontro de Saberes.

Pensando na diferença como ativo, talvez o exemplo mais espetacular até agora seja o notório saber. A Universidade Estadual do Ceará (Uece) foi a pioneira, concedendo o título a 58 mestres e mestras da cultura popular em 2016. Isso foi um passo extraordinário. Foi a primeira vez no Brasil, e talvez no mundo, em que a universidade reconhece pessoas que não tiveram nenhum letramento como doutores. Como o Ceará tem a Lei de Mestres, todo ano titulam um determinado número de mestres, que recebem uma bolsa vitalícia pela Secretaria de Cultura.

Há um mês, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), houve a titulação de doze mestres. A UFMG criou uma formação transversal em Encontro de Saberes. Os alunos fazem um número de créditos ao longo dos anos e recebem título de graduação em Encontro de Saberes. Penso que se trata do primeiro modelo de uma formação intercultural no ensino superior brasileiro. Podemos levar isso para o novo MEC.

Isso tudo está dentro do horizonte do antirracismo. Se não for antirracista, não tem como falar de cotas epistêmicas.

A esperança como valor: o perigo do “idioma do perigo” e a coragem do ciborgue do cosmos vivo

Rafael: Estou completamente convencido de que as cotas epistêmicas são uma aposta necessária. Mas a gente sabe que aquilo que você chama de “confinamento racial” (Carvalho, 2006 CARVALHO, José Jorge de. 2006. “O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro”. Revista USP, 68: 88-103. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i68p88-103 .
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) na universidade tem muitos anticorpos. Se a universidade não consegue impedir a presença de corpos negros e indígenas, de corpos das periferias brasileiras, vai tentar pasteurizá-los, excluindo seus saberes e cosmopolíticas. Se não consegue evitar a presença dos saberes e das cosmopolíticas, vai querer contê-los, do mesmo modo que experimentos em laboratório. O multiculturalismo tem uma versão liberal que opera celebrando e, simultaneamente, pasteurizando as diferenças. A universidade pode operar o confinamento racial no contexto epistêmico ao estilo do multiculturalismo liberal, reduzindo as cotas epistêmicas a vitrines simbólicas, quer dizer, conduzindo um experimento de “galerização”, análogo ao que ocorre com as artes, quando são confinadas a galerias. As cotas epistêmicas podem ser confinadas a espaços fora dos currículos e das disciplinas regulares, fora da vida acadêmica regular. Você imagina que algo assim, uma “galerização” das cotas epistêmicas, possa ocorrer?

José Jorge: Bom, acho que esses riscos são inevitáveis em qualquer processo de inovação. Você sai de um ambiente controlado e aparecem novas variáveis. Uma parte pode tentar reagir e encontrar uma maneira de imobilizar, neutralizar a potência inovadora dessa nova experiência.

Mas há estratégias para evitar que isso ocorra e que já compõem a perspectiva do Encontro de Saberes. Primeiro, nós estamos chamando nossas mestras e nossos mestres para atuar como docentes, para ensinar em sala de aula. Eles vão ocupar lugar análogo ao nosso, o lugar que Lacan chama de Sujeito Suposto Saber. Os mestres estarão em posição de autoridade análoga à nossa. Não é muito fácil conter isso, ao menos nesse ambiente que se cria, nesse processo de transmissão na qual os mestres e mestras são autônomos para fazer do jeito deles.

O que imagino que você está chamando de galeria é aquela disciplina convertida em vitrine – “Ah, temos uma disciplina dada por mestres e mestras de saberes tradicionais” –, enquanto o resto continua com o mesmo padrão de antes. Mas é por isso que o central no Encontro de Saberes é que sejam disciplinas regulares. E o processo segue adiante. Vamos colocar os mestres e as mestras como docentes, logo, como pesquisadores, depois como membros de banca em exames de qualificação e defesa, como coorientadores, como avaliadores de processos seletivos, como coautores ou como autores (sem nós). Um processo como esse vai estilhaçar qualquer vitrine. Claro, isso tudo é um processo. Pode começar com uma disciplina eletiva. Mas o processo deve seguir adiante, subindo na escala organizacional do sistema acadêmico, promovendo rearranjos institucionais. Com o tempo, na mesma medida em que se expande a presença de epistemes não ocidentais, em que os currículos se abrem para acolher um universo pluriepistêmico, vai ficando mais difícil recuar e se torna impossível exercer controle sobre os desfechos.

Por outro lado, é importante reconhecer que será muito difícil começar esse diálogo em algumas áreas, como bioquímica, física, matemática. Nessas áreas, o diálogo ocorrerá com alguns professores engajados em campos de investigação mais pioneiros. Penso, por exemplo, em figuras como o psicofisiologista Jacobo Grinberg-Zylberbaum, um grande gênio mexicano, considerado por muitos como “o Einstein da consciência”. Grinberg cruzou os limites da ciência tradicional ao levar a sério experiências do xamanismo mexicano, como as visões e as comunicações telepáticas. É difícil imaginar a emergência de muitos Grinbergs, mas talvez algum professor da física quântica resolva se interessar pelo diálogo com algum mestre.

Por muito tempo, o que teremos é um modelo de três troncos, um tronco eurocêntrico, a ciência ocidental moderna, o tronco das ciências indígenas e o afrodiaspórico, com algumas regiões de intersecção entre eles. Estabelecer a possibilidade da coexistência desses três troncos é o primeiro passo da revolução pluriepistêmica

(Carvalho, 2023 CARVALHO, José Jorge de. 2023. “Universidade aberta para novos saberes, sujeitos e epistemologias. Um modelo para a refundação das universidades brasileiras”. Ciência Cultura, 75(1): 1-12. http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230002 .
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).

Figura 1
Modelo dos três Troncos.

Nelson: A presença dos corpos…

José Jorge: Presença dos corpos, presença dos saberes, presença dos métodos de transmissão, a presença das pedagogias, dos sistemas de avaliação. Porque os mestres não estão interessados em avaliar os estudantes dando notas como nós fazemos, podem nem sequer acreditar na avaliação como tal. A presença dos corpos é o primeiro fundamento.

Nelson: Como fica essa experiência no contexto dessa estrutura neoliberal que se instalou na universidade? Como a gente evita a precificação dessa experiência? Como a gente evita que essa experiência seja convertida em uma commodity, já que é um ativo?

José Jorge: Você está usando uma gramática que é um pouco remota em relação àquilo de que estou falando. Há uma coisa muito importante a considerar nesta conversa: o Encontro de Saberes ocorre nas universidades públicas. Ocorreu na Pontifícia Universidade Javeriana, que é uma universidade privada. Mas não estou seguro de que funciona em uma universidade privada. Em uma universidade privada, os professores são um ativo financeiro, e os mestres, que entram na qualidade de professores, serão submetidos à mesma condição. Mas estamos falando de um espaço público, e devemos garantir que as suas portas estejam abertas, que possa assistir a uma aula quem quiser, mesmo não matriculado. Por que não? Na UnB, em minhas aulas, entra quem quiser. Desde que não insulte ninguém e se comporte com civilidade, qualquer um pode assistir às minhas aulas, porque é um espaço público e, como docente, devo garantir essa possibilidade.

Rafael: A discência livre ou a assistência livre é uma reivindicação antiga, já presente no movimento estudantil de Córdoba pela reforma da universidade, no início do século XX.

José Jorge: Então! Basta a gente querer! Eu sei que nem todo colega trabalha com essa perspectiva da assistência livre. Mas, ainda assim, não sei como os mestres podem se transformar em um ativo financeiro em uma universidade pública. Não, não, não, não! Os mestres vão estimular a criação, a ebulição de novas ideias e novos procedimentos. A ebulição não pode ser reificada, precificada.

Nelson: Vou tentar tornar mais clara a questão. Hoje, se a gente quiser produzir fitoterápico, esse medicamento sai mais caro do que os medicamentos convencionais. No entanto, como li recentemente em uma tese, para cada real gasto com a compra de um medicamento pelo Ministério da Saúde, são gastos outros cinco para lidar com seus efeitos secundários. Nós não conseguimos precificar a favor do fitoterápico, que é mais caro na sua produção inicial, mas é mais barato no médio prazo, na comparação dos efeitos produzidos. Voltando ao Encontro de Saberes, o que pensei foi que, quando se evidencia a potência da diferença, seu estímulo à produção de outros saberes, outros sentidos, outros corpos, vão querer pôr preço nisso. Parece estranho?

José Jorge: Quem vai querer pôr preço? A Universidade não. A indústria?

Nelson: Eu acho que a própria estrutura neoliberal na qual a universidade pública está inserida. Nós somos todo o tempo pressionados a publicar. A publicação é um negócio. Pagamos às revistas para publicar. A estrutura de pesquisa é uma estrutura de mercado hoje. Estando na universidade, os mestres estarão imersos nessa estrutura neoliberal e podem ser precificados.

José Jorge: Entendo que você está colocando a questão em um idioma que podemos chamar de “idioma do perigo”. Você está falando numa chave que eu chamo de “chave do perigo”. “Quais são os perigos de trazer os mestres?” “O perigo disso e daquilo.” Em relação às cotas se dizia também que havia “o perigo disso, daquilo e daquilo”. Eu não estou dirigindo a minha abordagem para o idioma do perigo. Para mim, o perigo é inerente.

Além disso, os mestres e as mestras das comunidades tradicionais estão trazendo um universo que não é capitalista. A maioria deles é de agricultura familiar, de sistemas de troca não monetarizados, como os indígenas ou quilombolas. A precificação não faz parte sequer da economia das raizeiras, que vendem ervas a um real, dois reais. São sistemas de troca que não estão dentro da estrutura neoliberal.

Tem um termo meio antigo, meio “anarco”: “zona autônoma temporária”, que foi revitalizado recentemente pela grande intelectual queniana Micere Githae Mugo. Talvez o Encontro dos Saberes seja uma zona autônoma, espero que não seja temporária, dentro de um universo que tem esses perigos de que você falou. Mas, na zona, nesse nicho criado pelo Encontro de Saberes, não tem nada disso. Os professores que se aproximam do Encontro de Saberes o fazem porque querem voltar para um lugar onde há troca, busca de conhecimento pleno, sem que as inibições do modelo que a gente estava discutindo de manhã ocorram. Os mestres não estão ali para fazer carreira. Então, quem se aproxima do Encontro de Saberes não quer esse modelo de universidade que adoece as pessoas, esse mundo adoecido pelo Lattes e pelo Qualis e não sei mais o quê. Quem está atrás disso não sente afinidade com o Encontro de Saberes, porque não vai encontrar isso lá. O Encontro de Saberes inaugura no universo acadêmico um mundo que desacelera, enquanto o outro é um mundo que acelera. O tempo dos mestres é o tempo da natureza, o tempo interno. Quem está atrás desses resultados imediatos não será atraído. Eu vejo o contrário do espaço acadêmico neoliberalizado emergindo no Encontro de Saberes: um espaço seguro, garantido pela estrutura universitária, e que mostra que ela tem uma parte sadia dentro dela, apesar de estar adoecida. Estamos expandindo a parte sadia para vários lugares. Então esse mundo da universidade neoliberal não deve inibi-los de modo algum.

Em relação ao que você falou dos fitoterápicos, posso contrapor uma espécie de utopia: as farmacinhas. A Mestra Lucely Pio tem um sistema de farmacinhas na região do Distrito Federal com as plantas mais básicas. Faz os cursos com as raizeiras. Com um, dois, três reais, você leva para casa os remédios das farmacinhas. E lá tem todos os protocolos para manter tudo seco, não dar fungo. Você pode imaginar as universidades como lugares para irradiar as farmacinhas. E tem outra coisa: não é apenas o remédio que se difunde, mas o saber. As farmacinhas vão qualificar pessoas e multiplicar as mestras e os mestres, dentro da linguagem da botânica fitoenergética ou espiritual. A maior resistência poderia ser o conhecimento mesmo, o conhecimento do cosmos vivo, e as pessoas que irão embarcar para absorver a epistemologia do cosmos vivo e replicá-la

(Carvalho 2020CARVALHO, José Jorge de. 2020 “O Encontro de Saberes nas artes e as epistemologias do cosmos vivo”. In: TUGNY, Rosângela Pereira de GONÇALVES, Gustavo (orgs.). Universidade popular e Encontro de Saberes. Brasília, INCT de Inclusão/Salvador, EDUFBA. ).

Rafael: Ouvindo-o, penso naquele corpo de que fala Eliane Brum ( 2021BRUM, Eliane. 2021. Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. São Paulo, Companhia das Letras. ), aquele corpo que se expande na floresta, aquele corpo “dez por cento”, reprimido, que entra na floresta e se encharca de vida e se dilata. Quando esse corpo volta para a cidade, para um apartamento, já não cabe mais nos espaços medidos a régua e compasso. Eu fico imaginando que o Encontro de Saberes talvez forneça experiências que expandirão os corpos. Você se lembra, Nelson, do Ubiraci Pataxó, quando veio ao Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas? “Vocês esperam que eu fique aqui sentado, eu não vou”, ele disse. É um corpo que não cabe em cadeiras. A gente está aqui bem disciplinado nas cadeiras. O Encontro de Saberes pode encharcar nossos corpos com experiências que irão vazar desses dispositivos, das cadeiras acadêmicas que inventamos para conter os corpos e os pensamentos. Hoje de manhã, José Jorge, você falou da vida abundante. A vida abundante, a alegria abundante, se isso entrar na universidade, não será precificado, não será contido.

Nelson: José Jorge é um ciborgue do cosmos vivo. Ao te ouvir e ver falar, algo acontece. Eu não sei se você é contaminado e, por isso, contamina. Ao te ouvir, eu só vejo esse lugar que flui, esse cosmos vivo…

José Jorge: Eu já estou há doze anos em contato com os mestres, nas disciplinas, em vários lugares. Acho que o mundo abundante, essa vida abundante, esse saber abundante, ele está no Brasil. Nós arrumamos mecanismos de nos confinar e repelir a vida abundante. Eu lembro de que falamos ontem do Encontro de Saberes da Caatinga. Aquilo é uma coisa espetacular. Ali tem raizeiros (diferente do Centro-Oeste, que tem mais raizeiras), benzedeiras, um universo muito grande de mestres e mestras. Estamos apenas começando a mapear o tamanho disso. Só aquele pedacinho do mapa brasileiro é uma abundância! Como nossas universidades estão relacionadas com isso? Esse é o passivo de riqueza epistêmica que não incluímos. Você tem razão: o mundo da Big Pharma é um dos mundos que temos que enfrentar. É possível garantirmos espaços, oásis epistêmicos. Primeiro garantimos esses oásis, e depois isso vai expandir. Se nós somos uma rede, ela cresce.

Os três nascimentos do ciborgue do cosmos vivo

Nelson: Eu queria te fazer uma pergunta, Jorge. Como é que foi o processo da formação desse intelectual que, de repente, visualiza a possibilidade de expandir a presença dos corpos, dos saberes, das pedagogias, através do Encontro de Saberes?

José Jorge: Acho que começa muito cedo, com minha relação com o pensamento oriental. Em 1971, em Brasília, houve um congresso internacional de lógica, a que veio um grande professor da USP, Ricardo Mário Gonçalves, que faleceu há pouco tempo. Eu fiz uma semana inteira de curso sobre a lógica budista com Ricardo. Naquele congresso, Jacob Zimbarg Sobrinho, matemático e lógico da USP, me deu de presente uma tradução em inglês da edição do I Ching de Richard Wilhelm, que contém aquele prefácio extraordinário de Carl Jung, em que ele interroga o próprio livro (Anônimo, 1955ANÔNIMO. 1955. I Ching: or Book of changes. Nova York, Pantheon Books. ). Para mim, a sincronicidade, a ideia que estava nesse prefácio, a ideia de outro tipo de pensamento, não ocidental, a diferença entre o pensamento causal ocidental e as conexões acausais da sincronicidade, tudo isso já estava estabelecido para mim, aos vinte e poucos anos, como uma realidade. Eu já estava transitando entre esses dois mundos.

Mas, claro, o mundo oriental não está no Brasil. Foi muito depois, na Venezuela, que eu conheci uma bruja e, por ela, o sistema da Brujería , que é um culto muito próprio do mundo venezuelano, que lembra um pouco a Umbanda. Na Venezuela, conheci essa bruja , uma grande sacerdotisa, com quem estabeleci uma conversa, uma relação. Ela evidentemente acionava canais não racionais, fora desses cinco sentidos que reconhecemos. Para mim, foi um outro passo. E também não tive muita dificuldade em admitir a existência desse outro campo de experiência.

Mas acho que a ideia do Encontro de Saberes surge quando, no doutorado, pesquisei o Xangô do Recife, uma religião afro-brasileira. Eu vou, encontro esse mundo, esse mundo maravilhoso das culturas populares, e, quando volto, percebo que ele está fora do mundo universitário. Eu percebia uma continuidade entre o mundo oriental e o mundo das brujas , dos curandeiros, dos xamãs, dos pais e mães de santo, enquanto havia uma descontinuidade entre todos esses mundos face ao mundo universitário. É esquizofrênico. Você pode estudar I Ching , sermões budistas, na universidade, mas o mundo das grandes cosmovisões não está ali dentro.

Esse problema ficou ainda mais evidente a partir das discussões em torno da instituição das cotas. Para dar um exemplo, posso mencionar um evento, por volta do final de 2004. Já tínhamos aprovado as cotas na UnB em 2003. O movimento das cotas estava enorme. Em 2004, fui convidado para uma reunião no Centro de Folclore e Cultura Popular, no Rio de Janeiro. Mãe Beata de Iemanjá estava nesse evento e contou o seguinte. Quando ela chegou, ao atravessar o jardim do Palácio do Catete, ela abraçou uma árvore grande e começou a cantar para aquela árvore. As pessoas comentaram ao vê-la: “Olha uma pirada total ali!”. E riram dela. Diante desse relato, tive o insight de que as universidades precisam ter os mestres e as mestras para ensinar.

Em 2005, houve o Encontro das Culturas Populares, um evento maravilhoso, com seiscentos mestres e mestras do Brasil inteiro reunidos em Brasília, algo sem paralelo, totalmente inédito na história do Brasil. Foram seiscentos em 2005 e mil em 2006. Nesses dois encontros, os mestres já mandavam entrar nas escolas para ensinar. Veio a ideia de fazer uma parceria com o Ministério da Cultura. Então, criei o Encontro de Saberes.

Agora, quando vou a um lugar totalmente eurocêntrico, sinto que está faltando alguma coisa. Esse lugar pode ser muito bom, mas é incompleto. O mundo é maior que o pensamento ocidental moderno.

A interculturalidade e a transculturalidade como valor: o encontro entre a darruana e o ciborgue do cosmos vivo

Nelson: Eu pesquiso as assim chamadas práticas integrativas em saúde. No nome, isso é possível, mas, na prática, pedagogicamente pensando, como eu pego alunos que estão chegando para aprender métodos e raciocínios clínicos e construo um lugar transcultural, fora da polaridade “medicina ocidental e medicina integrativa”, e que opere nesse lugar de trânsito entre os conjuntos de práticas? Como fazer esse exercício trans?

José Jorge: Vejo esse exercício, ainda em pequena escala, sempre como uma inovação, cheia de riscos e dificuldades. É como uma pequena árvore que está ainda crescendo ao lado de outras muito grandes, porque a dinâmica monocultural vai continuar por muito tempo. No imediato, trata-se de produzir o espaço transcultural como espaço possível. Porque vai existir quem não queira entrar nesse campo.

A transculturalidade é sempre uma fronteira. Um exemplo para imaginar. Na época em que havia a “cortina de ferro”, um amigo, alemão, visitou a Tchecoslováquia, vindo de Viena. Ele dizia o seguinte. Você chegava à fronteira da Áustria e entregava o passaporte diante de homens armados. Você atravessava um corredor em que não havia ninguém. Batia na porta. Chegava a uma escrivaninha diante de homens armados e entregava seu passaporte. Atravessava o portal e estava na Tchecoslováquia. O espaço desse pequeno percurso entre os dois países era cheio de perigos. Era um percurso em que nem as regras da Áustria, nem da Tchecoslováquia valiam. Você estava desprotegido. Era uma no man’s land de 100 ou 200 metros que você percorria vigiado por metralhadoras dos dois lados. Isso é a fronteira.

A fronteira é um espaço de perigo, mas pode ser também um espaço de manobra. O transcultural é esse espaço de manobra. Esse espaço de manobra vai ser experimentado por algumas pessoas. O que você está dizendo, Nelson, é que a gente pode estender esse espaço. Você mesmo falou dessa experiência da fronteira. Você pode ter um dia uma surpresa. De repente, alguém da medicina tradicional aceita conviver um pouquinho com a homeopatia, com o pajé, com a raizeira. Você constrói o espaço de manobra aqui. Você vai desenvolvendo talvez um protocolo de caminhar nessa fronteira. Nós não temos esse protocolo ainda.

Nelson: A imagem que eu tenho é a da terceira margem do rio. Não é nem a margem de lá nem a margem de cá, mas uma terceira margem, uma fronteira. E o conhecimento de fronteira continua sendo um absurdo, mas é um absurdo lógico, porque não está lá nem cá, está “entre”, é um conhecimento de trânsito.

José Jorge: Não sei se ele é um absurdo lógico, talvez na lógica aristotélica, mas não na lógica do terceiro incluído, na lógica da complexidade. Antônio Bispo fala muito da diferença entre limite e fronteira. O pensamento eurocêntrico, o pensamento linear, só trabalha com limites: ou está aqui ou está ali. Já os povos tradicionais são povos da fronteira, porque você dialoga, você chama a pessoa e, ali dentro, você dialoga, você troca e depois separa.

O modelo transcultural refere-se à possibilidade de um pensamento fronteiriço. Em um modelo monoepistêmico, existe apenas um mundo: o das epistemologias do cosmos inerte. O Encontro de Saberes, trazendo pajés, trazendo pais de santo, introduz um segundo mundo: o das epistemologias do cosmos vivo. Teremos, assim, dois mundos. A transculturalidade é a possibilidade de um terceiro mundo: o das epistemologias fronteiriças. Não se trata de migrar para a fronteira. O que emerge é um mundo plural, em que teremos, além dos dois polos, um terceiro, de passagem. Nem todos os mestres estarão interessados em ficar na fronteira o tempo todo. Eles vão apresentar seu modelo de conhecimento, que já é muito sofisticado e complexo. Na relação com o mundo ocidental, haverá, por vezes, compatibilidade e, por vezes, incompatibilidade. O mundo fronteiriço é o espaço para tentar resolver a incompatibilidade.

Rafael: Queria recordar um texto seu que considero o mais bonito, aquele do triálogo entre a Escola de Kyoto, a filosofia ocidental e as artes indígenas (Carvalho, 2019aCARVALHO, José Jorge de. 2019. “A Escola de Kyoto, a filosofia ocidental e as artes indígenas amazônicas: triálogo para a construção de um encontro de saberes filosóficos”. Modernos Contemporâneos, 3(5): 173-196. ). Nesse texto, você fala da darruana, a bolsa de palma de buriti confeccionada por artesãos Wapixana e Makuxi do Roraima. Você explora a darruana como o resultado de uma agência internatural, uma agência distribuída entre planta e artesão, em uma dobra, em uma captura recíproca entre a ciência e a imaginação estética do artesão e a ciência e a imaginação estética do buriti. Penso que o que você chama de “trançado internatural” da darruana fornece inspiração para refletirmos sobre o significado de interculturalidade. Eu queria te ouvir um pouco sobre isso.

José Jorge: Eu lembro que falávamos de manhã da irrupção instantânea e irrepetível de um significante do conhecimento. Quando eu vi esse objeto, a darruana, não ficou muito claro o que ele era, mas eu intuí algo muito fora do comum. Nessa intuição, penso, já estava contido tudo que fui pensar depois.

Esse objeto é bastante único. A folha do buriti já tem uma tendência a parecer que pode se trançar, está a meio caminho de ser trançada. Basta outra imaginação para completar a trança dela e fazer uma bolsa. É como se fossem duas metades que conseguiram se totalizar. Você não alterou a ordem do buriti, você não exerceu uma violência sobre ele, uma violência epistêmica. Você manteve a forma. Esse tipo de criação não é um artifício, não é artificial. Também não é totalmente natural, a não ser que humano e árvore sejam assumidos como partes da natureza. Nesse caso, é a própria natureza que se combina em um produto novo. Neste sentido, podemos falar de “internaturalidade”.

Figura 2
Darruana.

Este efeito internatural ou de dupla autoria que circula nas duas direções, do artesão para a planta e da planta para o artesão, acredito que está presente em pouquíssimos objetos artesanais no mundo. Dou apenas dois exemplos. Aquelas lindas esculturas coloridas de várias mulheres coladas umas nas outras na galeria do Mestre Noza em Juazeiro do Norte são um exemplo de trabalho artesanal que pode ser encontrado em muitos lugares. O artista encontra um pedaço de madeira, um tronco de árvore quebrado, por exemplo, e nele divisa uma forma que pode ser esculpida e pintada, em geral desbastando o mínimo necessário para que a sua escultura apareça. Também o artista Louco Filho, de Cachoeira na Bahia, utiliza essa mesma técnica, trabalhando exclusivamente com pedaços de madeira abandonados. Há nesses casos uma acomodação à forma dita natural, porém sempre ocorre uma alteração e uma mutilação no objeto original, e não apenas um rearranjo que o preserve na sua integralidade, como é o caso, para mim totalmente singular, da darruana.

Outro exemplo, extremamente famoso, é o dos Cativos de Michelangelo, em que as figuras foram esculpidas segundo a forma bruta das pedras, porém deixando-as parcialmente inacabadas. Como nos casos das madeiras, os objetos fonte da arte são inertes, submetidos a intempéries aleatórias, o que os coloca em um polo passivo diante do artesão/artista, que os molda segundo sua intuição específica, criando uma forma que rigorosamente não transparecia nos objetos originais. A condição única da darruana é que ela é uma representante completa do cosmos vivo, da consciência vegetal ativada e à qual o artesão indígena se adapta integralmente, não antevendo uma forma oculta ou indivisa, mas a forma explícita que a árvore do buriti já desenhou e teceu parcialmente. Repito: o extraordinário na darruana é que a folha de buriti permaneceu inteira na bolsa, sem ser retirado um centímetro nem acrescentado um único fio de linha; a folha simplesmente terminou de ser trançada, de modo extremamente complexo e elegante, pelo artesão.

A interculturalidade é um espaço “entre” ou talvez “trans”. Não sei se interculturalidade e transculturalidade são palavras tão diferentes. A darruana é um exemplo de que a consciência está dentro e fora de nós. Nós a habitamos e ela nos habita. Quando estamos abertos à consciência de outros seres, essa consciência também nos interpela. Nós podemos estar abertos a essa interpelação e completar nossa consciência, que expressa os limites da nossa capacidade.

Eu retomo esse tema, posteriormente, de outro modo, a partir da ideia do pampsiquismo, da ideia de que todas as formas de vida no cosmos têm consciência, das partículas aos seres humanos. No campo da noção de pampsiquismo, fica mais fácil entender que a interculturalidade seria uma espécie de translação de um campo mais difuso, de múltiplas consciências já em contato entre si, para um campo expressivo estável. A interculturalidade seria a concretização de um espaço em que a interação de várias formas de consciência se organiza em formas estáveis, tornando possível o diálogo entre elas. Enfim, uma realidade de interpsiquismo, ou de intersubjetividade interespecífica, ou de interconsciência.

Então, a darruana é isso. É um objeto complexo que exige quase que essa intuição para você mergulhar e perceber que tem algo de muito extraordinário ali. Talvez nem todo mundo esteja em condição de reconhecer com frequência o extraordinário. O extraordinário demanda exercício. O que a gente ganha com a presença dos mestres? É um exercício de diálogo, de comunicação, de escuta, de trocas corporais que nós normalmente não temos. Quanto mais a gente vai exercitando, mais a gente vai aguçando os sentidos. Aquela frase maravilhosa do Goethe: “Um objeto bem observado abre um novo sentido em nós”. A presença de mestres e mestras é a presença de pessoas que estão fora do nosso horizonte comunicativo. Não são letrados tal como somos, não falam do jeito que falamos, não são da nossa mesma classe social, não têm essa cultura burguesa ocidental cosmopolita que supostamente os professores universitários devem ter, que os alunos devem ter, não viram filmes que nós vimos, não escutaram as músicas que supostamente escutamos. Então o exercício de diálogo vai abrindo. Eu não considero possível que a transformação ocorra sem a presença dos mestres, sem o encontro concreto.

Rafael: A darruana me faz pensar na relação de continuação entre seres, imaginações, saberes. A gente pensa o saber, comumente, como algo retrospectivo, como registro, inventário, etnografia. A gente não pensa o saber e a aprendizagem como algo para frente. A darruana é saber, aprendizagem para frente. A aprendizagem para frente é quando você continua, segue adiante, no lugar de tentar simplesmente resgatar os passos do encontro realizado. Você vai produzir algo novo, continuando o processo do encontro que foi feito, como o artesão que continua o sonho do buriti. Então, a gente pode pensar interculturalidade ou transculturalidade como esse processo em que uma cultura, um saber ou um sonho continua outro, um processo para frente.

Jorge: Muito bom, isso combina com o que eu vejo. Isso me sugere outra coisa.

Na academia, nossa fala é muito censurada. Em geral, a fala acadêmica é uma fala discursiva, linear. A aula começa, tem introdução, meio e fim. Trata-se de um discurso racional. Em alguns cursos, como, por exemplo, teatro e literatura, a fala poética é permitida e mesmo um pouco de fluxo da consciência, de associação livre. Mas, de modo dominante, a fala é mais controlada na universidade, porque você tem ementa, objetivo, meta.

Quando chegam os mestres, esses limites são vazados por todos os lados. Você tem a fala discursiva quando vão ensinar uma técnica precisa, mas você tem os momentos de fala poética, em que se fala da natureza como uma coisa mágica, maravilhosa. Imagina um pajé. Ele vai falar de um mundo encantado. Ele vai contar que dormiu na rede e que tinha um tatuzinho, um tatuzinho mágico que ficava em volta. A gente vai ouvir e vai ficar imaginando aquele pequeno tatu, colorido, caminhando na rede. É uma coisa poética, um tatuzinho mágico, um tatu de outro plano. Entre os Guarani, você tem a fala visionária, que a universidade não aceita. O Encontro de Saberes vai reintroduzir dentro da universidade a fala visionária que ela repele, as belas palavras da fala visionária. Temos o nheengatu, a língua composta a partir das línguas Tupi e Guarani, e nheengatu quer dizer justamente “as belas palavras”. Nheen é fala, e gatu (ou ikatu ) é bonito. As belas palavras são palavras inspiradas, que conduzem adiante a intuição, sem censura. O nosso mundo universitário censura a intuição, não permite que a gente exercite isso. Nós não falamos o nheengatu.

O Encontro de Saberes vai recriando espaços para o exercício da consciência, não só o espaço da consciência racional como espaço único e discriminativo, mas o espaço do estado poético de consciência, que está nas artes, mas ainda mais entre os mestres. Nesses espaços, aconteceria essa continuidade de que você falou. Numa sala, alguns estudantes estão conectados e aceitam isso que os mestres estão propondo. Você tem aulas espetaculares. Não precisa ser só com os mestres, não, conosco também. Os mestres nos influenciam a não nos censurarmos. Se nós não estamos censurados, se nós não estamos bloqueados, se nós não nos sentimos inibidos e exercitamos ser plenamente o que queremos ser agora, a gente também poetiza a fala e dá lugar a conexões imprevistas. Nesse encontro de pessoas desbloqueadas, o universo de possibilidades se amplia, o conhecimento se amplia. Como você disse, Rafael, é um conhecimento de prospecção, para frente.

Temos uma chance muito grande no Brasil com o Encontro de Saberes. É meio milagroso, para usar uma palavra menos científica, muito extraordinário, que isso ocorra e não pare. Se ele não para, é porque ele é um espírito do tempo.

Karin Amos, a vice-reitora da Universidade de Tübingen, na Alemanha, instada por Johannes Kretschmer, professor de literatura alemã da Universidade Federal Fluminense, veio ao Brasil conhecer o Encontro de Saberes em outubro passado. Imagine o que é uma universidade alemã, imersa na episteme ocidental. Mas há uma crise: a universidade não dá conta mais da diversidade do país. Quase 50% dos estudantes das escolas não são alemães, são turcos, são gregos, são portugueses, são indianos, são paquistaneses, são africanos, são sírios. Essa diversidade está neutralizada e você imagina o efeito disso, que a vice-reitora venha escutar a gente falar de mestres e mestras. Ela ouve e vem contar um segredinho. Ela tem um amigo que é guarda florestal, não um professor, um guarda florestal. Esse amigo contou para ela que está convencido de que as árvores conversam entre si. Ela veio me contar isso. É uma abertura, não é? Isso não está na universidade e ela não está dizendo que ele seja um mestre, ele é um guarda florestal, que, após anos e anos vivendo na floresta, diz para ela: “Olha, as árvores conversam entre elas, eu já percebi isso”. Esse é o mundo do cosmos vivo. Ele está pedindo para entrar na universidade e a gente está abrindo espaço para ele.

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  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
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    O evento fazia parte do ciclo “Saúde (Roda Viva) Coletiva: Não vamos ficar gerindo a extinção”, realizado ao longo do segundo semestre de 2022. A gravação do evento está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yWJqbIYYRJ0.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2023
  • Aceito
    03 Out 2023
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