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Pele negra, jalecos brancos: racismo, cor(po) e (est)ética no trabalho de campo antropológico1 1 Versões anteriores das reflexões deste artigo foram apresentadas nos “Encontros Sextas na Quinta”, do NAnSi - Núcleo de Antropologia Simétrica, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 7 de junho de 2019 e na Mesa Redonda “Saúde, raça e racismo”, da 3a Reunião de Antropologia da Saúde, realizada entre 23 e 25 de setembro de 2019 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

RESUMO

Durante pesquisa de campo de doutorado, acompanhei o trabalho de algumas médicas brancas em suas atividades de condução de protocolos de pesquisa clínica. Minha presença nos consultórios foi condicionada ao uso de um jaleco branco, peça que, por vezes, colocou-me em posição de explicar aos pacientes que não era uma estagiária de medicina e, por outras, tornou explícitos os limites de confusões supostamente automáticas entre mim e uma profissional da medicina. Por meio de uma análise de situações de racismo genderificado que vivi durante o trabalho de campo enquanto vestia um jaleco, reflito sobre o campo da medicina como espaço marcado pela branquidade e, estendendo tal crítica à antropologia, argumento que a reflexão ética sobre a pesquisa de campo deve levar em conta, necessariamente, as hierarquizações raciais e de gênero que compõem as interações com interlocutores de pesquisa - em especial, as experimentadas por pesquisadoras negras em contextos nos quais a branquidade é normalizada.

PALAVRAS-CHAVE
Racismo; corpo; trabalho de campo; ética; medicina

ABSTRACT

During doctoral field research, I followed the work of a few White female doctors in their activities of conducting clinical research protocols. My presence in their offices was conditioned to the use of a white lab coat, which sometimes put me in a position to explain to patients that I was not a medical intern and, at other times, made explicit the limits of supposedly automatic confusions between me and a medical professional. By analyzing situations of gendered racism that I experienced during the fieldwork while wearing a white coat, I characterize medicine as a space marked by Whiteness and, extending this reflection to anthropology, I argue that ethical issues on anthropological fieldwork must necessarily take into account the racial and gender hierarchizations that make up interactions with research interlocutors - particular those experienced by Black female ethnographers in contexts where Whiteness is normalized.

KEYWORDS
Racism; body; fieldwork; ethics; medicine

INTRODUÇÃO

Em meados de 2016, já frequentava o centro de pesquisa farmacêutica em seres humanos no qual fiz parte do meu trabalho de campo de doutorado havia alguns meses. Segui meu percurso rotineiro ao chegar ao Cronicenter2 2 Nome fictício do centro de pesquisa onde realizei a pesquisa, em um grande centro urbano brasileiro. : cumprimentei os profissionais que já haviam chegado, deixei minha mochila em um dos armários e passei pela recepção para conversar com Maria.3 3 Este e os demais nomes mencionados são pseudônimos. Em seguida, iria acompanhar alguma atividade em um dos consultórios. Carmem, a outra recepcionista, estava de férias, o que fazia com que eu procurasse passar mais tempo com Maria, e me prontificar para ajudar com alguma tarefa. Nessas conversas, eu costumava aproveitar para aprender mais sobre o Cronicenter e o modo com que atividades da recepção participavam da condução dos experimentos farmacêuticos lá realizados. Naquele dia, perguntei à Maria sobre a nova médica que havia sido contratada e que, como parte de seu treinamento, vinha acompanhando as consultas de Dr. Miguel, médico e diretor do Cronicenter. Assim como as outras médicas que lá trabalhavam, Dra. Daniele era jovem, branca e magra, e usava sempre um jaleco alvo e comprido, sapatos de salto alto e tinha as unhas pintadas.

A chegada de mais uma médica com esse perfil chamou a atenção de Maria e, para minha sorte, ela compartilhou suas observações comigo. Sobre o balcão da recepção e em tom de cochicho, disse-me: “a gente quase não vê médico da nossa cor, né?”. Concordei prontamente, fazendo sinal afirmativo com a cabeça e lhe devolvendo uma pergunta: “quantos médicos negros você conhece?”. Maria não assumiu a pergunta como retórica, e tomou alguns segundos para consultar a memória, procurando por algum exemplo. Aparentemente sem sucesso em sua busca, respondeu-me: “é mesmo... é o sistema, né? O sistema já elimina”. Disse-lhe que concordava e que, por isso, eu via as cotas para ingresso no ensino superior público como fundamentais para contrapor essa inércia sistêmica, comentário ao qual, por fim, Maria respondeu dizendo: “eu também acho. O pessoal às vezes fala que o negro tá se diminuindo, mas não tá nada”.

Maria tinha aproximadamente quarenta anos, idade que nos distanciava em quase dez outonos naquela época. Nossa pele escura, entretanto, tinha tonalidades muito próximas. Nossa cor a permitiu referir-se comparativamente à nova médica na primeira pessoa do plural: um vínculo para uma conversa cujos temas centrais eram o racismo e a branquidade presentes no campo da medicina, no centro de pesquisa, em nossas diferentes rotinas naquele espaço. Sobre o balcão, nossa conversa demarcava a divisão racial e genderificada do trabalho no Cronicenter. As novas médicas, sempre de passagem pelo centro, sempre brancas e jovens, eram subinvestigadoras de pesquisa4 4 Ao longo do texto emprego o itálico para destacar categorias, formulações e expressões que organizam o universo de pesquisa e que me foram apresentados ao longo do trabalho de campo. , cargo hierarquicamente subordinado ao de Investigador Principal (PI),5 5 A sigla PI se refere à expressão original em inglês Principal Investigator. ocupado pelo médico branco e de aproximadamente setenta anos, Dr. Miguel. Junto de Maria, trabalhava Carmem, também negra, alguns anos mais jovem. Além da cor e do balcão, elas compartilhavam a jornada noturna de estudos: Maria cursava Direito em uma faculdade particular, Carmem recém voltara a estudar para concursos públicos em cargos de nível médio.

Tomo esse primeiro fragmento de minha experiência de campo para introduzir o tema central deste artigo. Em meu trabalho de campo, procurei identificar e compreender as práticas, dinâmicas e efeitos da produção de evidência farmacêutica organizadas sob o que denominei de “economias políticas da doença e da saúde” (Castro, 2020CASTRO, Rosana. 2020. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. São Paulo, Hucitec.). Por essa expressão, entendo os modos com que empresas farmacêuticas, instituições estatais, centros de pesquisa e profissionais de pesquisa clínica capitalizam sobre precariedades sistêmicas do sistema público de saúde e dos itinerários terapêuticos de sujeitos em busca de tratamento adequado como estratégia para realização de experimentos. Foi interagindo de modo rotineiro e intenso com os profissionais do Cronicenter, dentre outros esforços de pesquisa, que construí essas categorias analíticas e, nesse processo, procurei estar atenta para os modos com que o racismo, o sexismo, o classismo e outras formas de violência se atualizavam nas práticas de experimentação e, simultaneamente, eram parte constitutiva das condições de possibilidade da realização desses empreendimentos científicos.

Nesse cenário, em que os corpos de pessoas com diferentes doenças eram condição para a realização de pesquisas farmacêuticas, meu próprio corpo, de pele escura, cabelos crespos estilo black power, jovem, com diversos signos associados ao feminino, configurava também as condições de possibilidade para minha pesquisa. Estive envolvida em relações contingentes, provavelmente improváveis para pesquisadoras com outros perfis, outros corpos. Tratarei aqui justamente de algumas dessas situações, nas quais meu pertencimento racial e presunções sobre o gênero e a sexualidade que performo se pronunciaram como elementos fundamentais para entendimento das relações entre os profissionais e pacientes do Cronicenter e deles comigo. Busco, assim, delinear como atualizações particulares do racismo e do sexismo nos campos da prática médica e da pesquisa clínica foram salientes em determinados momentos da pesquisa, de modo a apontar para a centralidade do corpo e dos modos com que ele é racializado e genderificado nos processos de realização do trabalho de campo (Damaceno, 2013DAMACENO, Janaína. 2013. Os segredos de Virgínia: estudo das atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.; Albuquerque, 2017ALBUQUERQUE, Fabiane. 2017. “Meu corpo em campo: reflexões e desafios no trabalho etnográfico com imigrantes na Itália”. Cadernos de Campo, vol.26, n. 1: 309-326. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v26i1p309-326
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; Medeiros, 2017MEDEIROS, Flávia. 2017. Adversidades e lugares de fala na produção do conhecimento etnográfico com policiais civis. Cadernos de Campo, vol. 26, n.1: 327-347. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v26i1p327-347
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). Argumento, nesse sentido, que o escrutínio dos modos de atualização do racismo nas próprias experiências de pesquisa de campo enseja importantes reflexões críticas sobre as operações de hierarquias epidérmicas nos contextos em que trabalhamos e, mais do que isso, propiciam uma janela para a reflexão teórica e ética sobre o funcionamento de hierarquizações semelhantes no próprio campo da antropologia.

Alinhavo essa discussão a partir da costura de sobreposições de camadas de pele e roupa tensionadas em minha experiência de pesquisa. Para acompanhar os consultórios, espaços privilegiados nas interações entre médicas e pacientes do centro, Dr. Miguel exigiu que eu usasse um jaleco branco. Em princípio, preocupou-me a possibilidade de que os pacientes do Cronicenter me confundissem com uma das médicas e, assim, presumissem que suas contribuições para a minha pesquisa pudessem estar associadas à autoridade ou à prestação de atendimento médicos. O fato, entretanto, foi que a confusão entre mim e uma médica não foi imediata ou recorrente, diante a dissociação presumida entre a cor da minha pele, a cor do jaleco e a de quem costumava vesti-lo. As tensões de sobreposição cromática mostraram-se ainda mais intensas quando, mesmo com o uso do jaleco, tive minha presença no consultório sexualizada por médicas e pacientes, uma evidente situação de racismo genderificado (Gonzalez, 1983GONZALEZ, Lélia. 1983. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje - ANPOCS, vol. 2: 223-244.; Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. 2019. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Cobogó.; Pereira, 2018PEREIRA, Bruna. 2018. Amefricanas: branqueamento, gênero e raça. Cadernos Adenauer, vol. XIX, n.1: 177-188.) na qual procuraram me alocar em outra posição - nem de médica, nem de pesquisadora. Desse lugar de “outsider within” (Collins, 2016COLLINS, Patricia Hill. 2016. “Aprendendo com a outsider within: a significação do pensamento feminista negro”. Sociedade e Estado, vol. 31, n.1: 99-127. DOI 10.1590/S0102-69922016000100006.
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), de pesquisadora negra em contato direto com médicos brancos, refletirei sobre como essas experiências, em associação aos cochichos que troquei com Maria no balcão de recepção, denotam questões fundamentais sobre a organização e o funcionamento do campo da biomedicina.

Esticando o fio da meada até a antropologia, discuto tensões raciais e de gênero interpostas entre os atos de “vestir a capa de etnólogo” (DaMatta, 1978DAMATTA, Roberto. 1978. O ofício do etnólogo ou como ter anthropological blues. Boletim do Museu Nacional, vol. 27: 1-12.: 3) e “vestir o jaleco branco” (Chazán, 2005CHAZÁN, Lilian K. 2005. “Vestindo o jaleco: reflexões sobre a subjetividade e a posição do etnógrafo em ambiente médico”. Cadernos de Campo, v.13: 15-32. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v13i13p%25p
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), enfatizando a importância de considerar o estatuto analítico e ético dos atravessamentos corporais e (est)éticos que compõem as posições que nossos interlocutores assumem entre si e, por sua vez, as que assumimos (ou não) diante de nossos interlocutores. Interessam-me, de modo particular, as interseccionalidades (Krenshaw, 2002KRENSHAW, Kimberlé. 2002. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Estudos Feministas, (10): 171-188. DOI 10.1590/S0104-026X2002000100011.
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; Collins, 2019COLLINS, Patricia Hill. 2019. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo.) que constituem e configuram os diferentes contextos de pesquisa, considerando não apenas as relações entre etnógrafas e interlocutoras, mas o próprio corpus teórico que informa nossas investigações. Aproximando, assim, a branquidade compartilhada entre a medicina e a antropologia, reflito sobre os problemas da desracialização das reflexões sobre o trabalho etnográfico e suas implicações sobre dilemas éticos que podem emergir em campo nas experiências etnógrafas negras. Recuperando, por fim, a reflexão inicial de Maria a propósito das ações afirmativas, insisto na urgência de incorporação de referências e experiências de pesquisa de campo nas quais a corporalidade seja enunciada a partir das marcações diferenciais de pertencimento e identificação racial, em especial, aquelas registradas por antropólogas negras em contextos de pesquisa marcados pela branquidade.

PELE BRANCA, JALECOS BRANCOS: BRANQUIDADE E RACISMO NA MEDICINA

Em agosto de 2013, uma imagem marcante circulou por telejornais, portais de notícias e redes sociais do país. A chegada de médicos cubanos à Fortaleza para reforçar o Programa Mais Médicos (PMM)6 6 O PMM, lançado no ano de 2013 durante o governo de Dilma Rousseff, tinha como objetivo o suprimento da carência de médicos em certas regiões brasileiras, por meio de diversas ações como a contratação de profissionais e a ampliação de vagas em cursos de graduação em medicina (Gomes e Mehry, 2017). teve recepção hostil de médicos e médicas brasileiros, que protestaram na saída do prédio que abrigava curso de formação de profissionais. Vestidos com jalecos brancos, brasileiros vaiavam e gritavam contra seus colegas cubanos, chamando-os de “escravos”. Na foto que estampou a capa de um jornal de grande circulação, um médico negro passava constrangido por um corredor de médicas e médicos brancos, que bradavam estridentemente em sua direção.7 7 Imagem disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=19599&anchor=5 890629&origem=busca&origin URL=. Acesso em 13 dez 2020. Os protestos ganharam proporção nacional, com apoio de órgãos de classe como o Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira, e marcaram resistências e conflitos relativos a diferentes aspectos da implementação do programa voltado à ampliação da distribuição de médicos pelo país. Dentre os pontos de discórdia, estavam a pouca adesão de profissionais brasileiros à proposta de trabalhar fora de grandes centros urbanos e sua substituição por estrangeiros; a dispensa de revalidação do registro médico estrangeiro para praticar no Brasil e a acusação de órgãos de classe de que estrangeiros incorreriam em exercício ilegal da profissão; e denúncias de que médicos cubanos estariam submetidos a um regime de “semiescravidão” diante de seu precário vínculo de trabalho e da retenção de parte de seu pagamento pelo governo cubano (Gomes & Mehry, 2017GOMES, Luciano B.; MEHRY, Emerson. 2017. Uma análise da luta das entidades médicas brasileiras diante do Programa Mais Médicos. Interface (Botucatu), vol. 21, -Suplemento 1: 1103-14. DOI 10.1590/1807-57622016.0363.
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).

O recurso insidioso e reiterado à noção de escravidão explicita uma significativa tensão racial entre médicos brasileiros e cubanos. De um modo geral, o termo parece ter sido acionado de duas formas. Por um lado, como articulador de uma denúncia do regime de trabalho dos cubanos, como uma suposta medida de proteção de seus direitos trabalhistas (Jesus et. al., 2017JESUS, Rebecca Amorim et.al. 2017. Programa Mais Médicos: análise documental dos eventos críticos e posicionamentos dos atores sociais. Interface (Botucatu), vol. 21, Suplemento 1: 1241-55. DOI 10.1590/1807-57622016.0555.
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). Por outro, a palavra “escravidão” emergiu como uma categoria de acusação que, direcionada aos gritos para médicos recém-chegados, teria o potencial de denunciar sua desqualificação para o exercício do trabalho médico. Neste caso, “escravo” emergiu como uma tentativa de insulto, que aponta para a percepção daqueles médicos brasileiros de que o histórico de escravização de negros se configura como condição desses sujeitos, atualizada e identificável pela escureza da pele de médicos cubanos - um movimento que, de acordo com a escritora Toni Morrison, caracteriza o modo particular de atualização do racismo no contexto pós-escravista nas Américas.

O que é “peculiar” na escravidão do Novo Mundo não é sua existência, mas sua conversão à tenacidade do racismo. A desonra associada a ter sido escravizado não condena inevitavelmente os herdeiros de alguém à vilificação, à demonização ou ao suplício. O que sustenta isso é o racismo. [...] A passagem, portanto, da desonra associada ao corpo escravizado para o desprezo pelo corpo negro se deu quase que de forma harmoniosa, pois os anos intermediários do Iluminismo assistiram ao casamento entre estética e ciência, bem como uma movimentação em direção a uma brancura transcendente. Nesse racismo, o corpo escravizado desaparece, mas o corpo negro permanece, transmutando-se em sinônimo de gente pobre, sinônimo de criminalidade e um ponto de inflamação nas políticas públicas. (Morrison, 2020MORRISON, Toni. 2020. “Racismo e fascismo & O corpo escravizado e o corpo negro”. In: MORRISON, Toni. A fonte da autoestima. São Paulo, Companhia das Letras.: s/p).

As desqualificações aos médicos cubanos foram acompanhadas, ainda, de manifestações de semelhante teor na internet. Um dos casos com maior repercussão foi o comentário da jornalista Micheline Borges, que publicou o seguinte em seu perfil em uma rede social em agosto de 2013: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem uma cara de empregada doméstica. Será que são médicas mesmo??? Afe que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência... Coitada da nossa população” [sic]. Segundo apuração do portal G1, a publicação teve mais de cinco mil compartilhamentos e, diante da ampla exposição, a jornalista cancelou seu perfil (G1, 2013G1. 2013. “Jornalista diz que médicas cubanas parecem “empregadas domésticas”. Portal G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2013/08/jornalista-diz-que-medicascubanas-parecem-empregadas-domesticas.html>. Acesso em: 17 de junho de 2020.
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). A declaração foi amplamente criticada, pois expressava a suposição de uma dupla associação entre a cor da pele e a profissão de pessoas brancas e negras. Associou-se a pele negra e o gênero feminino ao trabalho doméstico, entendido como ocupação caracterizada pela subalternidade; enquanto, simultaneamente, afirmou-se que a pele branca diria respeito à postura e à aparência necessárias à autoridade característica ao profissional da medicina.

Nesse contexto de protestos e manifestações racistas, adensou-se entre profissionais brasileiros a percepção pública de que médicos e médicas cubanos estariam deslocados ao exercerem sua profissão no Brasil. Identificados como desviantes ou outsiders, no sentido proposto por Howard Becker (2008)BECKER, Howard. 2008. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar., diversos médicos brasileiros entenderam que colegas cubanos estavam fora de lugar, pois não caberia a negros uma profissão de tamanho prestígio técnico e social. Assim, a própria expressão da suposta inadequação de negros e negras à profissão médica tinha como contrapartida a afirmação da racialidade branca como condição para encarnação adequada da medicina.

Como Hughes mostra, na sociedade norte-americana presume-se também informalmente que um médico tenha vários traços auxiliares: a maioria das pessoas espera que ele seja da classe média alta, branco, do sexo masculino e protestante. Se não for assim, tem-se a impressão de que de certo modo não preencheu os requisitos. De maneira semelhante, embora a cor da pele seja o traço principal para determinar quem é negro e quem é branco, espera-se informalmente que os negros tenham certos traços de status, e não tenham outros; as pessoas ficam surpresas e vêem como anomalia o fato de um negro ser um médico ou professor universitário. (Becker, 2008BECKER, Howard. 2008. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.: 42-43)

O perfil racial branco e masculino como norma corporal, moral e simbólica para o exercício médico no Brasil é acompanhado, ainda, da manutenção do predomínio de profissionais autodeclarados brancos na área. De acordo com a Demografia Médica de 2018 (Scheffer et.al., 2018SCHEFFER, Mário et.al. 2018. Demografia Médica do Brasil 2018. São Paulo, FMUSP, CFM, Cremesp.), censo nacional da profissão, o campo vem se expandindo significativamente no país, em virtude de uma série de políticas de ampliação de vagas no curso de medicina - inclusive pela implementação do PMM. Entretanto, a prevalência racial branca mostra-se persistente, em contraste com as transformações de gênero na profissão. Em um recorte voltado para um estudo dos recém-formados, estimou-se que, embora a diferença proporcional entre homens e mulheres venha reduzindo de forma bastante expressiva, a distância racial permanece constante na formação médica no país. “Um total de 77,2% dos entrevistados se autodeclara da cor branca, porcentagem que sobre para 89,5% na região Sul, 80,9% no Sudeste e cai para cerca de 54% no Nordeste e no Norte. Apenas 1,8% se declararam negros e 16,2%, pardos” (Scheffer et. al., 2018SCHEFFER, Mário et.al. 2018. Demografia Médica do Brasil 2018. São Paulo, FMUSP, CFM, Cremesp.: 65).8 8 Levo aqui em conta o censo médico cujo estudo cobriu o período mais próximo ao da realização de minha pesquisa de campo. Dados da Demografia Médica publicados no final de 2020, por sua vez, apontam que, apesar da persistência de um perfil de formados brancos nos cursos de medicina (67,1%) no país, entre 2017 e 2019 foi possível identificar uma redução na desproporção entre estes o de estudantes negros (27,7%), sobretudo entre os que cursaram medicina em universidades públicas (Scheffer et. al, 2020). Segundo os autores do estudo, “a inclusão verificada na Medicina pode ser atribuída às medidas que foram adotadas desde o ano 2000 para reduzir as desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil” (ibid.:116)

Considerando tais elementos, em especial os avanços da “feminização da medicina” (ibid.) no Brasil, o campo médico pode ser caracterizado, em termos gerais, por sua dupla articulação do racismo e da branquidade. A participação negra é reduzida e o exercício da profissão é considerado inadequado ou impróprio para pessoas negras; ao mesmo tempo em que o ofício se estabelece como ocupação não só majoritariamente branca, como simbolicamente pré-destinada exclusivamente a esse grupo racial. Diante dessa configuração, tanto se denota a exclusão sistemática dos primeiros quanto “a interferência da branquidade como uma guardiã silenciosa de privilégios” (Bento, 2002BENTO, Maria Aparecida. 2002. “Branqueamento e branquitude no Brasil”. In CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida (org.). Psicologia Social do racismo. Petrópolis, Ed. Vozes, pp. 25-59.). Nesse cenário, no qual sujeitos negros são marcados por uma negatividade que dá suporte à positivação de pessoas brancas (Carneiro, 2005CARNEIRO, Aparecida Sueli. 2005. A construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.; Mbembe, 2014MBEMBE, Achille. 2014. Crítica da razão negra. Lisboa, Antígona.), é notável a contínua mobilização e atualização da medicina como espaço de exercício de autoridade e subalternização racialmente orientadas.

As observações que Maria e eu compartilhamos no balcão do Cronicenter, descritas no início do texto, ressoaram tal configuração da medicina no Brasil. A rotatividade de médicas no centro de pesquisa era relativamente alta, algo perceptível pela renovação dos quadros de subinvestigadoras com jovens brancas recém-formadas. Durante minha pesquisa de campo, em apenas uma situação vi uma jovem negra sob o jaleco branco. Dalila, tímida e de cabelos alisados, estava finalizando o curso de medicina em uma faculdade particular da cidade e frequentou o centro por algumas semanas para conhecer o local e verificar se gostava da experiência. Certa vez, ela contou que somente pôde fazer o curso por ter sido beneficiária do ReUni, programa federal que financiou integralmente as exorbitantes mensalidades da faculdade de medicina. A experiência no Cronicenter era também um treinamento, após o qual haveria a possibilidade de ser contratada - o que não ocorreu. A conformação feminina e branca do uso de jaleco no Cronicenter somente foi relativamente perturbada quando, excepcionalmente, eu mesma tive que usar jaleco para observar as consultas nas quais eram realizados os registros clínicos dos participantes dos experimentos. Na próxima seção, avançarei para uma descrição de situações vivenciadas por mim e Dalila no consultório, de modo a explicitar as maneiras com que nossas presenças foram absorvidas como “fora de lugar” e identificar os lugares aos quais fomos reposicionadas nesses momentos.

“VOCÊ VAI TRABALHAR AQUI?”: DILEMAS DAS (NÃO) CONFUSÕES DE IDENTIDADE

Já nos primeiros meses de pesquisa de campo no Cronicenter, notei a centralidade do consultório para compreensão das dinâmicas de interação entre médicas e pacientes durante os experimentos. Diante da importância desse espaço para meus objetivos de pesquisa, perguntei a Dr. Miguel se poderia passar a circular pelos consultórios das médicas, acompanhar os atendimentos, tomar notas dos diálogos que lá ocorriam e registrar os processos de produção de informações primárias sobre o desempenho das medicações testadas no centro. Pareceu-me mais interessante começar pelo consultório de Dra. Helena, médica mais experiente do Cronicenter e que, após alguns anos de trabalho ali, estava se preparando para mudar de cidade. Como sua partida estava prevista para dali poucas semanas, eu tinha pouco tempo para conhecer seu trabalho. Ela mesma havia sugerido que eu acompanhasse algumas de suas consultas durante uma entrevista que havia feito com ela, por isso eu já tinha sua autorização para estar junto de seu consultório.

No entanto, eu temia que sua palavra fosse insuficiente e, por isso, planejei uma conversa com Dr. Miguel para o dia seguinte à tal entrevista com Dra. Helena. Cheguei bem cedo ao Cronicenter naquele dia. Logo que ele chegou e antes que começasse a trabalhar, perguntei-lhe rapidamente sobre sua autorização para acompanhar o consultório de Dra. Helena. O diretor consentiu, sob a condição de que eu usasse um jaleco. Sua autorização foi de grande valia, pois sinalizava que ele seguia renovando sua confiança em minha presença no centro, bem como abria a possibilidade de me aprofundar na descrição de processos de experimentação. No entanto, recebi a exigência como um banho de água fria. Por mais que a leitura de algumas etnografias tivesse me alertado para essa possiblidade (Chazán, 2005CHAZÁN, Lilian K. 2005. “Vestindo o jaleco: reflexões sobre a subjetividade e a posição do etnógrafo em ambiente médico”. Cadernos de Campo, v.13: 15-32. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v13i13p%25p
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; Gomes; Menezes, 2008GOMES, Edlaine; MENEZES, Rachel. 2008. Etnografias possíveis: “estar” ou “ser” de dentro. Ponto Urbe n.3. DOI 10.4000/pontourbe.1748.
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), não estava preparada para lidar com aquela solicitação. Em princípio, não queria usar a peça de roupa por motivos éticos. Temia que o jaleco pudesse implicar no reforço de uma assimetria entre mim e os pacientes do centro de pesquisa, que poderiam me confundir com uma médica e, por isso, sentirem-se constrangidos em me conceder ou negar conversas, entrevistas e observações pela autoridade simbólica entremeada no tecido da peça.

O jaleco cujo uso era condição para entrada no consultório era de Fátima, “braço direito” de Dr. Miguel. Assim como Dalila, Fátima tinha a pele menos escura que a minha, e seus cabelos eram nitidamente alisados. No entanto, não era jovem ou tímida; pelo contrário, eram justamente seus aproximadamente cinquenta anos, sua experiência e facilidade para conversar que lhe faziam uma profissional que transitava com excelência entre atribuições técnico-logísticas e o contato direto com pacientes. O jaleco ficava pendurado no registro do banheiro dos funcionários e era usado por Fátima esporadicamente, quando se ocupava de ensinar pacientes como utilizar medicações experimentais injetáveis. Dr. Miguel solicitou que eu lhe pedisse o jaleco emprestado e fui até ela requisitá-lo. À medida que via Fátima se aproximar de mim com a peça nas mãos, passava eu a lidar não somente com meus antigos dilemas, mas com preocupações novas pelo uso daquele jaleco em particular. Ele era enorme, como que feito para uma pessoa muito mais alta e larga que eu ou Fátima - que era mais baixa e esbelta se comparada comigo. Além disso, não era tão somente branco; tinha listras finas e cinzas, e algumas manchas em todo o tecido.

Antes de vesti-lo, indaguei Dr. Miguel sobre a necessidade do jaleco uma última vez: “o jaleco é mesmo necessário?”. “Com certeza!” - respondeu-me em tom muito sério, assertivo, sem espaço aparente para tréplica. A situação em que me vi era de escolher aceitar a condição de uso do jaleco ou, em caso negativo, não conhecer o principal espaço de produção de evidências de medicamentos do Cronicenter. Tinha pouco tempo para lidar com a situação. Dra. Helena, que eu imaginava que ainda estava para chegar, veio caminhando de um dos corredores até a recepção, para buscar o prontuário de sua primeira consulta de protocolo do dia - voltada ao registro clínico de variáveis relativas ao desempenho das medicações experimentais. O tempo que eu tinha para decidir reduziu-se ainda mais. Para minha sorte, ela parou para conversar um pouco com Dr. Miguel na recepção, o que me deu mais alguns minutos. Respirei. Lembreime novamente das etnografias, que enfrentavam tais dilemas com diferentes estratégias de esclarecimento da posição de pesquisadora sob o jaleco. Pensei que talvez eventuais confusões pudessem ser desfeitas. Talvez pudessem mesmo ser evitadas. Ainda hesitante, decidi usar o jaleco, utilizando-me da própria peça como um modo de procurar ficar sob suspeita diante da possibilidade da confusão das identidades de pesquisadora e de médica.

Despedindo-me de Carmem, que seguia seu trabalho na recepção, segui para o consultório após vestir o jaleco tal qual ele estava: com as mangas frouxamente dobradas à altura dos cotovelos - provavelmente com as marcas do último uso feito por Fátima. Também não o abotoei, deixando minhas roupas aparentes, marcadamente distintas daquelas usadas pelas médicas do centro. Costumeiramente, eu usava calça jeans, camiseta sem estampas e um tênis. As médicas, por sua vez, tinham por hábito usar calças sociais ou vestidos, salto alto ou sapatilhas e blusas formais. Além disso, o próprio contraste entre o meu jaleco e os dos profissionais do centro era evidente. Seus jalecos eram muito alvos, bem passados, alinhados, com seus nomes bordados do lado esquerdo do peito e uma costura à altura dos ombros com o emblema da universidade onde haviam se formado. O que eu vestia não tinha nenhum identificador pessoal ou institucional. De alguma forma, essa inconformidade do meu jaleco me deixava menos desconfortável com aquela insígnia biomédica. Assim o vesti, não somente naquela manhã, mas nas 48 consultas de protocolo que acompanhei durante a pesquisa de campo.

Contrariando minhas preocupações iniciais, nas incursões pelos consultórios nunca cheguei a ser propriamente confundida com uma médica. Não fui chamada de “doutora”, não fui convidada a emitir opiniões sobre os casos clínicos ou instada a assinar documentos nenhuma vez. Levando em conta, ainda, algumas atribuições específicas das médicas do Cronicenter que poderiam fugir ao conjunto mais corriqueiro de tarefas de pesquisa clínica, tampouco fui solicitada pelos pacientes a renovar a validade de receitas médicas, distribuir amostras grátis ou redigir encaminhamentos ou relatórios médicos. No entanto, não creio que a não-confusão tenha ocorrido por conta do uso do jaleco dobrado, frouxo, desconjuntado - ao menos não isoladamente. Pelo contrário, a não associação imediata entre mim e uma médica deu-se por uma dissonância entre a brancura do jaleco e a escureza da minha pele, os quais concorreram para um afastamento da identidade médica plena e, em certos momentos, para uma sexualização de minha presença no consultório.

Em determinadas consultas, alguns pacientes me perguntaram se eu era uma médica em estágio ou se estava prestes a começar a trabalhar no centro. Ao me verem sentada ao lado da mesa da médica, por vezes me perguntaram: “você vai trabalhar aqui?”. Eu aproveitava a ocasião para me apresentar, dizer que era pesquisadora e que estava ali para acompanhar as consultas e demais procedimentos realizados para a condução dos experimentos. A conversa funcionava também para a proposição de um consentimento oral para observação das consultas, procedimento sempre recebido de maneira aberta ou indiferente pelos pacientes e seus eventuais acompanhantes.9 9 A única exceção a esse quadro geral de abertura ou indiferença à minha presença no consultório foi a de um senhor que, ao saber que eu fazia doutorado em uma universidade federal, criticou a educação superior pública brasileira e sua inclinação, em seus termos, “marxista”. Apesar das perguntas, considero que tais situações não configuraram uma confusão entre mim e uma médica. Ao contrário, mostraram-se um primeiro deslocamento com relação à minha expectativa inicial de confusão imediata de identidades. Diante da alta rotatividade dessas profissionais no Cronicenter, os pacientes já haviam visto muitas médicas começarem a trabalhar no centro em posição espacial similar a que eu me localizava no consultório em minhas observações: ficava eu sempre ao lado da médica, um pouco atrás de sua cadeira, de modo que pudesse acompanhar suas anotações e atividades e não ficasse no meio do caminho para quando precisasse se levantar. De algum modo, minha própria disposição no espaço contribuiu para que eu fosse absorvida como uma profissional em treinamento, em vias de assumir o cargo de médica, uma quase-médica.

Essas foram as situações nas quais mais me aproximei de uma confusão com a identidade médica durante a pesquisa. Assim, as questões éticas que me tomaram no início das incursões do jaleco mostraram-se bastante distintas das que eu esperava. Se, por um lado, minhas preocupações estavam associadas ao reforço de assimetrias entre pesquisadora e interlocutores mediante o uso do jaleco, uma insígnia de adicional autoridade no contexto da pesquisa; por outro, questões advindas tanto das posições que assumi em campo quanto as que não assumi diante de meus interlocutores merecem reflexão ética. Particularmente, interessa-me refletir como, a exemplo do ocorrido com Janaína Damaceno em sua pesquisa de campo de doutorado, “o problema não era ser confundida, mas não confundir” (2013: 15). Para a antropóloga, atentar para essa questão estava relacionado, por sua vez, ao reconhecimento de que “[o] problema ainda é o modo como te olham, te racializam, te ordenam” (idem). No meu caso, como detalharei a seguir, minha presença no consultório teve seu estatuto não-médico associado a emergência de outro, melhor precisado em momentos particularmente sensíveis das consultas, nos quais fui redescrita por médicas e pacientes em termos sexualizadores.

“ELE GOSTOU DE VOCÊ”: RACISMO GENDERIFICADO EM CAMPO

As consultas de protocolo seguiam um certo rito, no qual elementos roteirizados se associavam a uma conduta de relativa abertura das médicas diante de desafios específicos à condução dos experimentos. De um modo geral, era necessário guiar o encontro clínico pelo template, formulário elaborado pela coordenação do Cronicenter com todos os elementos que constavam nos protocolos dos estudos em andamento.10 10 Os protocolos eram documentos produzidos pelos laboratórios farmacêuticos patrocinadores dos estudos ou por Contract Research Organizations (CROs) por eles contratadas para a condução dos experimentos. Neles constavam as etapas e procedimentos a serem seguidos por todos os centros de pesquisa designados para a execução de um estudo. O template orientava as médicas no consultório, indicava aquilo que era de registro indispensável, deflagrava as informações cuja coleta justificava presença dos pacientes no centro naquele período específico. Essas consultas tinham também a finalidade de operacionalizar o manejo clínico de eventos adversos,11 11 No contexto da pesquisa clínica, os eventos adversos dizem respeito a quaisquer alterações clínicas detectadas em exames ou queixas levadas pelos pacientes, sejam elas presumidamente decorrentes das medicações experimentais ou não. bem como proporcionar às médicas informações necessárias ao que chamavam de acompanhamento dos pacientes. No Cronicenter, o acompanhamento tinha diversas funções, como o monitoramento de eventos adversos ao longo do tempo e o controle de indicadores relacionados às doenças crônicas, o que incluía a aferição de sinais vitais e orientações quanto à prática de exercícios físicos e dieta. Nesta seção, irei me deter sobre os momentos de aferição da pressão arterial, atividade rotineira de quaisquer tipos de consultas, sendo realizada em todos os pacientes independentemente de sua participação em uma pesquisa ou de seu protocolo requisitar tal procedimento.

No final da manhã de minha primeira incursão no consultório de Dra. Helena, eu acompanhava o atendimento de seu último paciente do dia. A médica, que era branca, tinha por volta de quarenta anos, luzes alouradas nos cabelos e sempre usava salto alto, atendeu seu Emerson, negro, alto, magro, com aproximadamente sessenta anos e cabelos crespos começando a ficar grisalhos. A consulta não parecia ter muitas diferenças com relação às duas que acompanhei naquele dia, exceto pela avaliação de Dra. Helena com relação à reação de Seu Emerson à minha presença. Disse-me ela em tom descontraído, ao fechar o expediente e sair do consultório: “Ele gostou de você”. Naquele momento, não entendi exatamente do que se tratava sua sugestão com relação ao gosto de Seu Emerson. Não me lembrava de qualquer interação entre mim e ele que pudesse permitir essa inferência. O caso se repetiu algumas vezes durante a pesquisa de campo, situações estas que, durante a revisão dos diários de campo para escrita da tese de doutorado, permitiram-me uma avalição dessas situações em conjunto como episódios de racismo genderizado (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. 2019. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Cobogó.), momentos nos quais racismo e sexismo operaram de forma articulada (Gonzalez, 1983GONZALEZ, Lélia. 1983. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje - ANPOCS, vol. 2: 223-244.; Pereira, 2018PEREIRA, Bruna. 2018. Amefricanas: branqueamento, gênero e raça. Cadernos Adenauer, vol. XIX, n.1: 177-188.). Retomarei dois desses momentos.

Já tendo acompanhado as consultas de Dra. Helena havia algumas semanas e aproximando-se o momento de sua partida, certo dia estávamos eu e Dra. Dalila observando os atendimentos da médica. Com a chegada de Dra. Dalila ao Cronicenter, minha disposição no consultório teve de ser reorganizada. Não havia espaço para duas cadeiras ao lado de Dra. Helena, por isso, Dra. Dalila passou a ocupar esse lugar e eu acompanhei as consultas sentada na maca, que não costumava ser utilizada. Em um dos atendimentos daquele dia, a médica sênior finalizava a consulta de Seu José - paciente branco, com aproximadamente setenta anos, magro. Dra. Helena pediu que Dra. Dalila lhe ajudasse, aferindo a pressão de Seu José. Ela assim o fez e, após verificar o resultado no visor, Dra. Helena exclamou: “Vixi, Seu José! Deu alta!”. Ele respondeu, em tom de certo estranhamento, que sua pressão não costumava ser alta e, justificou: “É essa morenaiada aí, fico nervoso!”. “É isso, isso mesmo” - respondeu Dra. Helena rindo, concordando. Dra. Dalila e eu nada fizemos, apenas seguimos nosso trabalho: ela tirando o manguito do braço do paciente, eu anotando tudo em meu pequeno caderno, com um certo desconforto. A consulta foi encerrada um pouco depois dessa passagem, tendo, naquele momento, ficado em mim apenas um incômodo difuso com o termo “morenaiada” dirigido a mim e à Dra. Dalila, que não cheguei a elaborar profundamente. Em todo caso, decidi, intuitivamente, registrar esse momento no diário de campo.

Somente dei-me conta do que ocorreu naquelas situações quando, ao revisar meus registros completos, conectei esse episódio a outro, que ocorreu quando Dra. Helena já havia se despedido do Cronicenter. Eu acompanhava, então, as consultas de Dra. Carolina, jovem, branca, recém-formada em medicina e que, após um período de treinamento, foi efetivada como subinvestigadora no Cronicenter. Em seu terceiro atendimento de uma certa manhã, o paciente era Seu Carlos, negro, magro, ligeiramente calvo e que aparentava ter por volta de cinquenta anos. Dra. Carolina o chamou na porta do consultório e o conduziu para dentro. Apresentou-se pelo nome e, em seguida, apresentou-me também a Seu Carlos, que assim reagiu ao meu ver sentada ao lado da mesa da médica: “Bonitona, hein, morena!”. “Obrigada, muito prazer” - disse-lhe, surpresa e sorrindo. Ele seguiu, ainda olhando para mim com olhos arregalados, aparentemente surpresos, apontando para sua própria pele com os dedos: “olha!”. Difícil saber com certeza a que ele se referia com aquele gesto e aquela exclamação; o que me pareceu minimamente certo era de que passava os dedos em seu antebraço sinalizando a similaridade da escureza de sua pele com a minha.

Ao final do atendimento, Dra. Carolina mediu a pressão arterial de Seu Carlos. Estranhando o resultado, preferiu repetir o procedimento: “Vamo medir de novo essa pressão? Tá muito alta!”. O resultado se repetiu, o que lhe fez administrar um medicamento para ele imediatamente. A médica então abriu a gaveta que ficava ao lado esquerdo da mesa e de lá tirou um blister meio amassado, com alguns comprimidos faltando. Em seguida, ausentou-se rapidamente, dizendo que iria pegar um copo d’água para lhe dar o medicamento. Nesse meio tempo, Seu Carlos comentou comigo, um tanto consternado, que tinha estranhado o resultado das aferições e que estava preocupado. Seu semblante, animado durante toda a consulta, estava agora apreensivo e levemente franzido. Na volta, Dra. Carolina deu o comprimido a Seu Carlos, que o tomou ali mesmo. A consulta foi finalizada dali pouco tempo, com a médica lhe fazendo diversas recomendações com relação à alimentação, prática de exercícios e tabagismo, e pedindo-lhe que retornasse dali alguns dias, para uma reavaliação.

Após mais um atendimento, as consultas daquele dia foram encerradas. No final da manhã, Dra. Carolina comentou a consulta de Seu Carlos. Disse, em tom jocoso, que eu era a responsável pelo aumento súbito de sua pressão arterial. Repetiu, para minha surpresa, a frase dita algumas semanas antes por Dra. Helena: “ele gostou de você”. Repliquei contando a ela que Dra. Helena já havia me dito que resultados inesperados na aferição da pressão arterial de certos pacientes homens tinham a mesma razão. Não associei quaisquer desses comentários com eventuais investidas dos pacientes - embora, de fato, a maneira de Seu Carlos se dirigir a mim no início da consulta tenha me causado certo constrangimento. Conforme registrei em meu diário, refleti naquele momento que era possível que o jaleco que usava estivesse trazendo à tona elementos inesperados para o encontro clínico. Estava disposta a avaliar em que medida minha pesquisa trazia riscos inesperados para os pacientes; não pela confusão de identidades per se, mas pelo possível nervosismo causado por mais uma suposta autoridade de jaleco no consultório, uma “pressão” adicional.12 12 Tal hipótese traria evidentes tensões para o debate ético da antropologia com a biomedicina, nos termos propostos por Cardoso de Oliveira (2004). Isso porque o autor pressupõe que na pesquisa antropológica, “com seres humanos”, os interlocutores são “sujeitos de interlocução”, diferentemente do contexto biomédico no qual os sujeitos são “objeto de intervenção”. Tal acepção parece pressupor que a pesquisa antropológica não traria riscos de repercussões fisiológicas para os interlocutores; ao passo que nos estudos “em seres humanos” os riscos advêm fundamentalmente de intervenções sobre o corpo.

O caso, no entanto, é que para compreender essas situações em seu conjunto, foi necessário algum tempo e um olhar retrospectivo para meus registros e para minhas próprias sensações. Ao me reaproximar de tais experiências, ficou evidente que o uso do jaleco, quando posto em teste nas interações cotidianas dos consultórios, nas mediações articuladas por procedimentos e equipamentos, nas rotinas e diagnósticos clínicos das médicas e nos modos com que pacientes interagiam com profissionais e comigo, redundou, em diversos momentos, em episódios racismo genderificado. Tais situações foram caracterizadas, sobretudo, pela releitura de minha frequência no consultório como pesquisadora como um fator sexualizador do encontro terapêutico, uma disrupção potencialmente silenciosa e imperceptível não fosse a delação do aparelho de aferição da pressão.

Grada Kilomba aciona o conceito de racismo genderificado para acentuar que nas experiências discriminatórias e desumanizadoras vivenciadas por mulheres negras é impossível explicar tais situações como atualizações do racismo ou do sexismo. Ao descrever uma consulta na qual ela própria foi perguntada por um médico branco se gostaria de trabalhar como empregada doméstica para a família dele durante as férias, a filósofa reflete que “‘raça’ não pode ser separada do gênero nem o gênero pode ser separado da ‘raça’. A experiência envolve ambos porque construções racistas baseiam-se em papeis de gênero e vice-versa, e o gênero tem um impacto na construção de ‘raça’ e na experiência do racismo” (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. 2019. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, Cobogó.: 94). Nesse cenário, certos atributos racial e sexualmente caracterizados se atualizam nos mais diversos contextos de maneiras também diversificadas, de modo que gênero e raça se constituem mutuamente na operacionalização de processos múltiplos de desumanização. Nesse sentido, de acordo com a socióloga Bruna Pereira:

[...] ambos estão sempre ativos nos contextos sociais de que participam, e que interagem de forma complexa: ora se interpelam, ora se reforçam; aqui se potencializam, ali um se fortalece em detrimento do outro; às vezes um parece invisível, mas constitui a base para a operação do outro, e assim por diante. (Pereira, 2018PEREIRA, Bruna. 2018. Amefricanas: branqueamento, gênero e raça. Cadernos Adenauer, vol. XIX, n.1: 177-188.: 186)

A frase “ele gostou de você”, comentário insidioso e irresistível repetido algumas vezes por diferentes médicas, não sintetizava especulações de afetos dos pacientes para as médicas, mas somente a mim. A enunciação desse diagnóstico pelas figuras de autoridade no consultório operacionalizava diferentes funções, no sentido de localizar as próprias médicas e os demais atores sociais vinculados no encontro terapêutico em diferentes posições. Ao emitirem a causa do aumento de pressão, as médicas performavam o ato máximo de produção de verdade, declarando haver um distúrbio de saúde nos pacientes. O caso, no entanto, é que seu diagnóstico era duplo: de um lado, alertava aos pacientes que um fato novo e potencialmente danoso sobre sua saúde fora descoberto; por outro, encontrava-se a causa de modo imediato, partindo para um suposto devassamento de sua intimidade, expondo-se um presumido sentimento de atração dos pacientes direcionado a mim. Nesse cenário, a mim caberia a posição de provocadora de desejos inconfessos, emissora de estímulos prontamente recebidos pelos pacientes que, de modo não intencional, experimentavam o aumento inesperado e silencioso do fluxo sanguíneo em suas veias.

O jaleco, tomado isoladamente, não compunha o elemento central na distribuição de posições hierarquicamente dispostas entre as médicas, os pacientes e eu. Ele sequer poderia ser isolado, posto que outros fatores o agenciavam e, por sua vez, implicavam diferentes constituições intersubjetivas naquele contexto terapêutico-experimental-etnográfico. Somente quando considerado em sua interação com as disposições espaciais dos atores no consultório, com os equipamentos médicos acionados na cena terapêutica, com as atualizações de percepções diferenciais de gênero das pessoas ali engajadas e, sobretudo, com as classificações raciais intersecionadas por tais fatores, é que se torna possível compreender seu lugar no complexo arranjo de conjugação de autoridades e subordinações. Enquanto médicas brancas com jalecos brancos emitiam enunciados que diagnosticavam pressões, impressões e suposições, pacientes e eu assumimos posições sexualizadas e racializadas. Pacientes homens foram instados a responder por suas pressões aumentadas como decorrentes de supostas respostas aos apelos sexuais de minha presença. Meu corpo negro e erroneamente entendido como heterossexual e disponível, agenciado como fator de risco por suposto efeito sexualizador, expunha-se figurativamente sob um jaleco, virtualmente tornado invisível.

PELE NEGRA, JALECOS BRANCOS: ENTRE BRANQUIDADES MÉDICAS E ANTROPOLÓGICAS

O médico, filósofo e ativista Frantz Fanon tematiza a medicina em diversas passagens de sua obra, enquadrando-a como campo fundamental para compreensão das relações de exploração no contexto colonial (Bernardino-Costa, 2016BERNARDINO-COSTA, Joaze. 2016. A prece de Frantz Fanon: “Oh, meu corpo, faça de mim um homem que questiona!”. Civitas, vol. 16, n. 3: 504-521. DOI 10.15448/1984-7289.2016.3.22915.
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2016....
). Em um capítulo do livro “A Dying Colonialism” (1965: 121), Fanon reflete que “com a medicina nós chegamos a uma das facetas mais trágicas da situação colonial”, entendendo que, no contexto da colonização e da luta de libertação argelina, as atitudes ambivalentes dos argelinos com relação aos médicos franceses tinham relação direta com a participação da medicina no violento processo de dominação do território. No livro “Pele Negra, máscaras brancas” (2008), Fanon teoriza sobre o racismo como elemento fixador de posições hierárquicas, nas quais sujeitos negros se constituem na sua condição de não-ser, enquanto brancos são reconhecidos como a própria forma do ser para a humanidade. Nesse raciocínio, as tensões raciais, de gênero e classe que constituem a medicina são, para o autor, exemplos e partícipes da produção e atualização de fronteiras raciais não somente profissionais, mas ontológicas.

Tratando da questão da linguagem, Fanon (2008)FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA. alude a duas situações nas quais um médico branco, para falar com um paciente negro, usa o “petit-nègre”, forma flexionada do francês que adiciona marcas da presunção de um uso errôneo da língua pelo interlocutor negro. Esse ato de fala, assumido pelo médico branco como boa ação de aproximação, é identificado por Fanon como fundamentalmente depreciativo, pois “é justamente essa ausência de intenção, esta desenvoltura, esta descontração, esta facilidade em enquadrá-lo, em aprisioná-lo, em primitivizá-lo, que é humilhante” (2008: 45). Fanon descreve a figura do médico como sujeito que se constitui pelo ato de autoridade instituído em cada atendimento, sendo tanto mais autorizado quanto mais subjuga um paciente, tanto mais se este for um sujeito ao qual se adjudica defasagens físicas e intelectuais como atributos naturais, num reflexo inverso daquele que o atende. Nesse sentido, Fanon argumenta que “um branco dirigindo-se a um negro, comporta-se exatamente como um adulto com um menino, usa a mímica, fala sussurrando, cheio de gentilezas e amabilidades artificiosas” (ibid.).

“- Bom dia, meu querido! Dói aqui? Hem? Deixe ver um pouco? A barriguinha? O coração... Com aquele sotaque que os espertinhos dos consultórios conhecem bem. Fica-se de consciência tranquila quando a resposta vem no mesmo tom. ‘Está vendo, não é pilhéria. Eles são assim mesmo.’ No caso contrário, é necessário lembrar dos próprios pseudópodos e se comportar como um homem. Aí toda a construção desaba. Um negro que diz: ‘Senhor, não sou de modo algum seu querido’ - é incomum” (Fanon, 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA.: 46)

A identificação da tensão intersubjetiva que marca a atualização contínua do racismo na medicina é mais explícita no pensamento de Fanon se levada em conta sua reflexão sobre uma situação na qual o médico é negro. Diante da reação de pessoas brancas à suposta incoerência entre sua cor e sua profissão, suspeitas emergiam sobre sua competência. Sendo médico, presumiam os brancos que o preto seria naturalmente desajustado para o exercício médico.

Era o professor negro, o médico negro; eu, que começava a fraquejar, tremia ao menor alarme. Sabia, por exemplo, que se um médico negro cometesse um erro, era o seu fim e o dos outros que o seguiriam. Na verdade, o que é que se pode esperar de um médico preto? Desde que tudo corresse bem, punham-no nas nuvens, mas atenção, nada de bobagens, por preço nenhum! O médico negro não saberá jamais a que ponto sua posição está próxima do descrédito. Repito, eu estava murado: nem minhas atitudes polidas, nem meus conhecimentos literários, nem meu domínio da teoria dos quanta obtinham indulto. (2008: 109)

Em contextos como o acima descrito, articula-se a percepção negativa de que a medicina é um campo cujos profissionais não deveriam ser negros à associação positiva entre medicina e branquidade (Gonçalves, 2017GONÇALVES, Mônica Mendes. 2017. Raça e saúde: concepções, antítese e antinomia na Atenção Básica. São Paulo, Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo.). Nesses cenários, negros de jaleco branco são sujeitos outsiders (Becker, 2008BECKER, Howard. 2008. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.) e, se dentro do campo da medicina, devem estar prontos a serem colocados em seu suposto devido lugar. Do ponto de vista histórico, esse lugar pode encontrado, em diversos contextos, nas posições de pacientes, sujeitos de pesquisas e treinamento médico, por exemplo (Fanon, 1965FANON, Frantz. 1965. A Dying Colonialism. New York, Grove Press.; Washington, 2006WASHINGTON, Harriet. 2006. Medical Apartheid: The dark history of medical experimentation on black Americans from colonial times to the present. New York, Harlem Moon e Broadway Books.; Lima, 2011LIMA, Silvio Cezar de Sousa. 2011. O corpo escravo como objeto das práticas médicas no Rio de Janeiro (1830-1850). Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Fundação Oswaldo Cruz.; Castro, 2020CASTRO, Rosana. 2020. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. São Paulo, Hucitec.) - posições nas quais pessoas negras são agenciadas como objetos da ação médica e não seus sujeitos de conhecimento e atuação profissional e respeito público associado a tais posições. A experiência do racismo, nesse sentido, pode ser entendida como o elemento fixador de posições hierarquizadas, nas quais sujeitos negros constituem seu acondicionamento segundo os atributos particulares que agenciam sua desumanização, num movimento que, simultaneamente, associa aos brancos os distintivos positivados da medicalidade ocidental.

O racismo e a branquidade do campo da medicina se atualizaram de modo particular em meu trabalho de campo. Primeiramente, era notável o fato de que, em contraste com a composição branca da equipe médica de pesquisadoras do Cronicenter, a maior parte dos pacientes lá atendidos era negra. Em busca de tratamentos de saúde para diferentes doenças crônicas, tais pacientes encontravam no centro soluções parciais e frágeis para as precariedades de suas trajetórias terapêuticas nos sistemas público e privado de saúde locais (Castro, 2020CASTRO, Rosana. 2020. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. São Paulo, Hucitec.). Por outro lado, meu próprio corpo foi assimilado em diversas situações como fator sexualizador da cena terapêutica, em aproximação com processos comuns de atribuição de estereótipos racistas e sexistas direcionados a mulheres negras no contexto brasileiro (Gonzalez, 1983GONZALEZ, Lélia. 1983. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje - ANPOCS, vol. 2: 223-244.) e de afastamento com o estatuto de autoridade associados às profissionais da medicina. O jaleco somente permitiu o delineamento de hipóteses sobre uma suposta fase de treinamento, momento no qual o exercício médico era restrito ao auxílio das médicas na realização de procedimentos simples durante a consulta. O direcionamento das consultas mantinha-se objeto de autoridade exclusiva das médicas, formadas, brancas, contratadas.

Retomar os modos com que fui redescrita em termos sexualizantes aponta, ainda, para o quanto os pressupostos das reflexões éticas que carreguei para minhas incursões no Cronicenter tinham também como marca fundamental a branquidade antropológica. As reflexões que me orientavam, oriundas do campo da antropologia da saúde, levavam em conta uma relação entre etnógrafas e interlocutoras médicas que supunha, de um lado, uma tensão hierarquizada entre os campos de conhecimento da medicina e a antropologia e, de outro, uma potencial simetrização entre médicas e antropólogas durante o trabalho de campo por meio do uso do jaleco. Com relação ao primeiro aspecto, ressalto o reconhecimento da biomedicina como campo hegemônico na produção de discursos, valores e práticas sobre o corpo e as emoções. Diante de seus pendores fisicalistas, racionalistas e intervencionistas, caberia à antropologia localizar conhecimentos, saberes e práticas diversos e adversos aos biomédicos e, reconhecendo sua complexidade, estabelecer um diálogo crítico e uma gramática teórica alternativa para compreensão dos processos de adoecimento e sofrimento (Duarte, 1998DUARTE, Luiz Fernando Dias. 1998. “Investigação antropológica sobre doença, sofrimento e perturbação: uma introdução”. In DUARTE, Luiz Fernando Dias; LEAL, Ondina Fachel. (org.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro, Fiocruz, pp. 9-27.; Sarti, 2010SARTI, Cynthia. 2010. “Saúde e Sofrimento”. In: MARTINS, Carlos B.; DUARTE, Luiz Fernando Dias. (Orgs.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Antropologia. São Paulo, ANPOCS, pp. 197-223.).13 13 Essa tensão é, ainda, acompanhada por uma segunda e mais profunda, caracterizada pela crítica do pensamento ocidental moderno que referencia não só a medicina, mas a própria antropologia. Nesse sentido, Sarti (2010: 88) reflete: “É assim, na tensão constitutiva desse estar dentro e simultaneamente enfrentar-se com o estar fora da racionalidade ocidental - na qual a biomedicina se fundamenta e se sustenta -, numa relação de alteridade, que a antropologia se move no campo científico que estuda o corpo, a saúde e a doença. Tensão que é tributária do fato de que, se a antropologia nasceu sob a égide do pensamento universalista ocidental, é ela a crítica do etnocentrismo e do racionalismo implícitos neste pensamento.”

Por outro lado, reflexões éticas sobre o trabalho de campo com médicas e médicos denotam, em diversos momentos, o uso do jaleco como um momento no qual tais campos de conhecimento e de prática tão diversos poderiam se confundir, mesmo que temporariamente.14 14 Reflexões éticas em torno de uma possível confusão entre campos do conhecimento são também importantes na antropologia da saúde, alertando-se, sobretudo, para os riscos de a lógica biomédica encapsular a reflexão antropológica. “A força avassaladora do discurso biomédico sobre as concepções e práticas que envolvem o corpo, a saúde e a doença em nossa sociedade não pode eludir a responsabilidade do antropólogo da saúde diante do fato de que ele faz, acima de tudo, antropologia e se pauta por suas referencias epistemológicas e pelos debates que a animam, o que o situa, dentro do campo da saúde, por definição, num lugar de resistência” (Sarti, 2010: 88). Elaborações nesse sentido são particularmente sensíveis nos trabalhos de etnógrafas que, de fato, têm formação em medicina. Lílian Chazán (2005)CHAZÁN, Lilian K. 2005. “Vestindo o jaleco: reflexões sobre a subjetividade e a posição do etnógrafo em ambiente médico”. Cadernos de Campo, v.13: 15-32. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v13i13p%25p
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, por exemplo, refletiu sobre como, mesmo sendo médica, sentiu-se como que encoberta no consultório por ter sido solicitada a usar um jaleco durante sua pesquisa de campo em uma clínica de ultrassom na periferia do Rio de Janeiro: “O desconforto experimentado apontou para o questionamento sobre a explicitação da minha posição em campo, em termos éticos. Estando de jaleco, estava ‘disfarçada’ de médica, e a observação etnográfica ficava impregnada por uma inverdade [...]” (2005: 26). Após algum tempo sem respostas para lidar com o mal-estar, Chazán decidiu abordar as mulheres atendidas na clínica na sala de espera, antes de sua entrada no consultório, para se apresentar e lhes perguntar se permitiriam que acompanhasse seu exame.

Rachel Menezes (2004)MENEZES, Rachel. 2004. Em busca da “boa morte”: uma investigação sócio-antropológica sobre cuidados paliativos. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro., na mesma direção, relata como a realização de sua etnografia em um hospital oncológico seria impossível, não fosse sua graduação em medicina. Ao submeter documentação para o Comitê de Ética do hospital, sua frequência foi acomodada sob a denominação de “visita de observação”, tipo de trânsito somente permitido a profissionais de saúde. Adicionalmente, sua pesquisa foi condicionada ao uso de um jaleco branco e crachá com foto, identificação nominal e número de registro no Conselho Regional de Medicina (Menezes, 2008: 10). Segundo a autora, tais elementos fizeram com que fosse confundida com uma profissional da instituição diversas vezes por pacientes e profissionais, sendo, inclusive, solicitada a realizar certos procedimentos, prestar informações e assinar documentos.

Em diversas ocasiões, técnicos de enfermagem ou enfermeiros solicitaram que assinasse e carimbasse receitas de medicamentos controlados, o que não era possível, pela condição de observadora. Até que ficasse claro o motivo da presença no hospital, a recusa suscitou reações, como: ‘mas você não é médica? Então qual o problema?” (Menezes, 2008: 10)

Para ambas as etnógrafas, os fatos de serem médicas e fazerem pesquisa em ambientes médicos lhes mobilizaram reflexões sobre os dilemas de sua dupla formação e a necessidade de manterem um certo afastamento para assumirem as identidades de antropólogas - e não de médicas - em campo. Chazán (2005)CHAZÁN, Lilian K. 2005. “Vestindo o jaleco: reflexões sobre a subjetividade e a posição do etnógrafo em ambiente médico”. Cadernos de Campo, v.13: 15-32. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v13i13p%25p
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e Menezes (2004)MENEZES, Rachel. 2004. Em busca da “boa morte”: uma investigação sócio-antropológica sobre cuidados paliativos. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. argumentam também que o jaleco e outros acessórios utilizados durante a pesquisa poderiam ou de fato conduziram seus interlocutores a lhes identificarem como médicas - fato esse não necessariamente errado, pois elas o eram. O que me parece fundamental, entretanto, para compreender as dinâmicas de tais confusões e profusões de identidades durante a pesquisa etnográfica é reconhecer que, sobrepondo-se ao uso do uso do jaleco, ambas eram brancas. Assim, o fato de terem sido absorvidas pelos profissionais médicos como “colegas” passa não somente por suas formações e registros profissionais, mas também por aproximações que seus corpos permitem entre as branquidades médica e antropológica. O trânsito, instrumental ou involuntário, entre as identidades de médica e antropóloga supõe um terreno compartilhado, reconhecível justamente na branquidade de ambos os campos de conhecimento.

Confusões de identidade com figuras de autoridade durante a pesquisa de campo, portanto, passam necessariamente pela corporalidade e, mais precisamente, pela racialidade. Stella Paterniani (2016)PATERNIANI, Stella Zagatto. 2016. A branquidade do Estado na ocupação da cidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 31, n. 91: e319109. DOI 10.17666/319109/2016.
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, nesse sentido, reflete sobre como o fato de uma participante de um movimento de luta por moradia de São Paulo ter lhe entregue certos documentos, tomando-a por uma agente do Estado durante sua pesquisa de campo, como situação que articula sua brancura à branquidade do Estado: “ao reconhecer-me enquanto branca, equiparar-me ao Estado e me entregar os documentos, há aí também o reconhecimento de que o Estado opera, também, racialmente” (2016: 5). De modo similar, ser confundida com uma médica denotaria a branquidade da medicina - e, adicionalmente, presumir ou efetivar trânsitos por tais lugares de autoridade como possíveis identidades no trabalho de campo, a despeito das corporalidades racializadas das etnógrafas, aponta a branquidade da própria antropologia. Assim localizando o campo antropológico e as eventuais confusões de identidade em campo relacionadas a figuras de autoridade, procuro explicitar a insuficiência do acionamento de um acessório indumentário para que etnógrafas negras assumam seus atributos relativos correspondentes. Nesse sentido, é de fundamental pertinência analisar como as confusões e não-confusões de identidade na pesquisa de campo se explicitam mediante relações racializadas e genderificadas, articuladas em cada contexto etnográfico de maneiras diversas e com participação de elementos variados e mesmo inusitados, como os objetos. Nossas identificações possíveis e impossíveis em campo, diante de nossos interlocutores, são agenciadas mediante atualizações diversas dos modos de ordenação racializada de corpos e sujeitos em distintas posições.

UM ARREMATE: “NÓS” QUEM? “ELES” QUEM?

A conversa em tom de cochicho de Maria comigo sobre o balcão da recepção, relatado no início do artigo, terminou com uma menção às ações afirmativas para o ingresso no ensino superior. De fato, não vemos muitos médicos da nossa cor, fato este que, infelizmente, pouco se transformou ao longo dos anos de vigência das políticas de cotas raciais em universidades federais e diversas estaduais (Scheffer et.al., 2020SCHEFFER, Mário et. al. 2020. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, FMUSP, CFM.). Historicamente atacadas com virulência e postas sob ameaça pelo atual governo, as cotas tiveram impactos limitados sobre o campo da medicina. A Demografia Médica de 2018, com um braço de pesquisa dedicado especificamente para o delineamento do perfil de recém-formados em medicina no Brasil no ano de 2017, identificou a persistência da formação de jovens médicos e médicas majoritariamente brancos e brancas.15 15 Na Demografia Médica de 2020, afirma-se novamente que, “[a]pesar das mudanças, que revelam maior inclusão social na graduação médica, os cursos de Medicina ainda são frequentados majoritariamente por alunos brancos, de renda familiar elevada e que frequentaram escolas particulares no ensino médio” (Scheffer et.al., 2020: 115).

O ingresso na Medicina no Brasil ainda privilegia indivíduos brancos e de melhor situação socioeconômica. As políticas educacionais de inclusão, cotas e ações afirmativas que objetivam promover equidade de acesso ao ensino superior tiveram até agora tímida repercussão na Medicina. Assim, a formação médica mantém-se elitizada e inacessível para estratos da população, revelando o desafio de compatibilizar a expansão das vagas de graduação com a democratização do acesso ao ensino médico. (Scheffer et.al., 2018SCHEFFER, Mário et.al. 2018. Demografia Médica do Brasil 2018. São Paulo, FMUSP, CFM, Cremesp.: 140)

Na antropologia, por outro lado, nota-se uma mudança importante no perfil dos estudantes de graduação após o advento das cotas raciais. Com o avanço de ações afirmativas nos programas de pós-graduação, pessoas negras e indígenas passaram também a compor, aos poucos, os corpos de pesquisadores e pesquisadoras na área (Nascimento; Cruz, 2017NASCIMENTO, Aline Maia; CRUZ, Bárbara Pimentel da Silva. 2017. “Apresentação - reflexões a partir da experiência do Museu Nacional”. Revista de Antropologia, vol. 60, n.1: 9-15. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2017.132057.
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). A ocupação negra e indígena ainda recente, do ponto de vista histórico, desses espaços de profissionalização e produção de conhecimento apresenta também desafios para a disciplina. Nos últimos anos, temos acompanhado demandas de estudantes de graduação e pós-graduação pela inclusão de referencias teóricas negras nos programas das disciplinas que cursam, bem como a organização de eventos por antropólogos e antropólogas negras e indígenas e, mesmo, a criação de um Comitê de Antropólogas/os Negras/os na Associação Brasileira de Antropologia. As iniciativas nesse sentido resultaram, ainda, em programas de curso integralmente compostas por autores e autoras negras, evidenciando-se não só a existência de uma pujante produção antropológica negra, mas sua amplitude e diversidade.

Ações como estas repercutem na qualificação das análises sobre a branquidade que marca o campo antropológico, questionando os modos com que se mantém pretensa “uma ‘neutralidade racial’ no interior da academia” (Pereira, 2020PEREIRA, Luena. 2020. Alteridade e raça entre África e Brasil - branquidade e descentramentos nas ciências sociais brasileiras. Revista de Antropologia, vol.63, n.2: e170727. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2020.170727.
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: 11); bem como no refinamento das reflexões que localizam as pesquisas e as contribuições teóricas de negras e negros ao campo. Tratam-se, portanto, de contribuições teórico-analíticas de teor ético, pois ao tensionarem posicionamentos naturalizados entre antropólogos e interlocutores, simultaneamente questionam os caminhos desenhados e projetados para a antropologia e lançam propostas transformadoras de futuro. A partir das reflexões presentes neste artigo, procurei contribuir para o adensamento de produções nesse sentido.

Durante minha pesquisa de campo, as antecipações a respeito das possibilidades de estabelecer relações com minhas interlocutoras mostraram-se equivocadas, pois descoporificadas e desracializadas, tenderam a universalizar o que era, na verdade, absolutamente particular. Obrigada a desviar desse lugar e me localizando, pois, a partir dos cruzamentos de gênero e raça corporificados nas relações com médicas, pacientes, recepcionistas e aparelhos, fui irremediável e duplamente posicionada como uma outsider within (Collins, 2016COLLINS, Patricia Hill. 2016. “Aprendendo com a outsider within: a significação do pensamento feminista negro”. Sociedade e Estado, vol. 31, n.1: 99-127. DOI 10.1590/S0102-69922016000100006.
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), na medicina e na antropologia. Compreender as identidades que tive e deixei de ter em campo passou, necessariamente, por refletir sobre como o racismo genderificado compunha meu trabalho de campo, a pesquisa farmacêutica, a medicina e a antropologia.

Por outro lado, sobre o balcão da recepção e na leitura de experiências semelhantes à minha na literatura antropológica (Albuquerque, 2017ALBUQUERQUE, Fabiane. 2017. “Meu corpo em campo: reflexões e desafios no trabalho etnográfico com imigrantes na Itália”. Cadernos de Campo, vol.26, n. 1: 309-326. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v26i1p309-326
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; Damaceno, 2013DAMACENO, Janaína. 2013. Os segredos de Virgínia: estudo das atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.; Medeiros, 2017MEDEIROS, Flávia. 2017. Adversidades e lugares de fala na produção do conhecimento etnográfico com policiais civis. Cadernos de Campo, vol. 26, n.1: 327-347. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v26i1p327-347
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), fui pacientemente ensinada a compreender como tal deslocamento não impossibilitava a composição de um certo “nós”. Ainda vemos poucas antropólogas da nossa cor nos programas de pós-graduação e nos corpos docentes de universidades, bem como seguem poucas as que são lidas nas cadeiras teóricas formativas de nossa disciplina. Nesse sentido, dentre os desafios para o futuro, estão, ainda, o registro e o estudo dos modos com que nossos corpos experimentam e produzem antropologias, da graduação à docência, dos bancos de sala de aula à pesquisa de campo. Aos poucos, assim adensamos também a compreensão dos meandros da tarefa ética de fazer, a partir desses vários “nós”, também nossa a antropologia.

  • 1
    Versões anteriores das reflexões deste artigo foram apresentadas nos “Encontros Sextas na Quinta”, do NAnSi - Núcleo de Antropologia Simétrica, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 7 de junho de 2019 e na Mesa Redonda “Saúde, raça e racismo”, da 3a Reunião de Antropologia da Saúde, realizada entre 23 e 25 de setembro de 2019 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
  • 2
    Nome fictício do centro de pesquisa onde realizei a pesquisa, em um grande centro urbano brasileiro.
  • 3
    Este e os demais nomes mencionados são pseudônimos.
  • 4
    Ao longo do texto emprego o itálico para destacar categorias, formulações e expressões que organizam o universo de pesquisa e que me foram apresentados ao longo do trabalho de campo.
  • 5
    A sigla PI se refere à expressão original em inglês Principal Investigator.
  • 6
    O PMM, lançado no ano de 2013 durante o governo de Dilma Rousseff, tinha como objetivo o suprimento da carência de médicos em certas regiões brasileiras, por meio de diversas ações como a contratação de profissionais e a ampliação de vagas em cursos de graduação em medicina (Gomes e Mehry, 2017GOMES, Luciano B.; MEHRY, Emerson. 2017. Uma análise da luta das entidades médicas brasileiras diante do Programa Mais Médicos. Interface (Botucatu), vol. 21, -Suplemento 1: 1103-14. DOI 10.1590/1807-57622016.0363.
    https://doi.org/10.1590/1807-57622016.03...
    ).
  • 7
  • 8
    Levo aqui em conta o censo médico cujo estudo cobriu o período mais próximo ao da realização de minha pesquisa de campo. Dados da Demografia Médica publicados no final de 2020, por sua vez, apontam que, apesar da persistência de um perfil de formados brancos nos cursos de medicina (67,1%) no país, entre 2017 e 2019 foi possível identificar uma redução na desproporção entre estes o de estudantes negros (27,7%), sobretudo entre os que cursaram medicina em universidades públicas (Scheffer et. al, 2020SCHEFFER, Mário et. al. 2020. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, FMUSP, CFM.). Segundo os autores do estudo, “a inclusão verificada na Medicina pode ser atribuída às medidas que foram adotadas desde o ano 2000 para reduzir as desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil” (ibid.:116)
  • 9
    A única exceção a esse quadro geral de abertura ou indiferença à minha presença no consultório foi a de um senhor que, ao saber que eu fazia doutorado em uma universidade federal, criticou a educação superior pública brasileira e sua inclinação, em seus termos, “marxista”.
  • 10
    Os protocolos eram documentos produzidos pelos laboratórios farmacêuticos patrocinadores dos estudos ou por Contract Research Organizations (CROs) por eles contratadas para a condução dos experimentos. Neles constavam as etapas e procedimentos a serem seguidos por todos os centros de pesquisa designados para a execução de um estudo.
  • 11
    No contexto da pesquisa clínica, os eventos adversos dizem respeito a quaisquer alterações clínicas detectadas em exames ou queixas levadas pelos pacientes, sejam elas presumidamente decorrentes das medicações experimentais ou não.
  • 12
    Tal hipótese traria evidentes tensões para o debate ético da antropologia com a biomedicina, nos termos propostos por Cardoso de Oliveira (2004)CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. 2004. “Pesquisa em versus pesquisa com seres humanos”. In VÍCTORA, Ceres et.al. (Org.). Antropologia e Ética: o debate atual no Brasil. Niterói, EdUFF, pp. 33-44.. Isso porque o autor pressupõe que na pesquisa antropológica, “com seres humanos”, os interlocutores são “sujeitos de interlocução”, diferentemente do contexto biomédico no qual os sujeitos são “objeto de intervenção”. Tal acepção parece pressupor que a pesquisa antropológica não traria riscos de repercussões fisiológicas para os interlocutores; ao passo que nos estudos “em seres humanos” os riscos advêm fundamentalmente de intervenções sobre o corpo.
  • 13
    Essa tensão é, ainda, acompanhada por uma segunda e mais profunda, caracterizada pela crítica do pensamento ocidental moderno que referencia não só a medicina, mas a própria antropologia. Nesse sentido, Sarti (2010: 88)SARTI, Cynthia. 2010. “Saúde e Sofrimento”. In: MARTINS, Carlos B.; DUARTE, Luiz Fernando Dias. (Orgs.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Antropologia. São Paulo, ANPOCS, pp. 197-223. reflete: “É assim, na tensão constitutiva desse estar dentro e simultaneamente enfrentar-se com o estar fora da racionalidade ocidental - na qual a biomedicina se fundamenta e se sustenta -, numa relação de alteridade, que a antropologia se move no campo científico que estuda o corpo, a saúde e a doença. Tensão que é tributária do fato de que, se a antropologia nasceu sob a égide do pensamento universalista ocidental, é ela a crítica do etnocentrismo e do racionalismo implícitos neste pensamento.”
  • 14
    Reflexões éticas em torno de uma possível confusão entre campos do conhecimento são também importantes na antropologia da saúde, alertando-se, sobretudo, para os riscos de a lógica biomédica encapsular a reflexão antropológica. “A força avassaladora do discurso biomédico sobre as concepções e práticas que envolvem o corpo, a saúde e a doença em nossa sociedade não pode eludir a responsabilidade do antropólogo da saúde diante do fato de que ele faz, acima de tudo, antropologia e se pauta por suas referencias epistemológicas e pelos debates que a animam, o que o situa, dentro do campo da saúde, por definição, num lugar de resistência” (Sarti, 2010SARTI, Cynthia. 2010. “Saúde e Sofrimento”. In: MARTINS, Carlos B.; DUARTE, Luiz Fernando Dias. (Orgs.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Antropologia. São Paulo, ANPOCS, pp. 197-223.: 88).
  • 15
    Na Demografia Médica de 2020, afirma-se novamente que, “[a]pesar das mudanças, que revelam maior inclusão social na graduação médica, os cursos de Medicina ainda são frequentados majoritariamente por alunos brancos, de renda familiar elevada e que frequentaram escolas particulares no ensino médio” (Scheffer et.al., 2020SCHEFFER, Mário et. al. 2020. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, FMUSP, CFM.: 115).
  • FINANCIAMENTO: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos colegas com quem dialoguei profícua e afetuosamente durante a elaboração deste trabalho, em especial, Lucas Coelho Pereira, Ranna Mirthes Sousa Correa, Maria José Villares Barral Villas-Boas, Vinícius Venancio, Ana Carolina Costa e Bruna Pereira. Agradeço também às/aos pareceristas anônimas/os pelos comentários atentos e cuidadosos ao artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2020
  • Aceito
    27 Maio 2021
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