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A Retomada dos Guaiamuns: pesca artesanal, infraestrutura neoextrativista e renascimento ecológico quilombola na Baía de Todos os Santos

The Retaking of the Blue Land Crabs: artisanal fishing, neoextractivist infrastructure and quilombola ecological renaissance in Baía de Todos os Santos

resumo

O artigo é um exercício etnográfico da pesca do guaiamum ( Cardisoma ganhumi ) nos manguezais da Baía de Todos os Santos. Tomando como referência os modos de viver e habitar deste crustáceo e dos gaiamunzeiros quilombolas que os capturam como atividade pesqueira, pretendo descrever os efeitos do neoextrativismo nas paisagens pesqueiras da região. A intenção é, por um lado, mostrar práticas, habitabilidades e paisagens associadas à pesca do guaiamum e, por outro, oferecer descrição sobre conflitos e impactos oriundos das infraestruturas agropastoris e petrolíferas nos seus territórios e modos de vida. Objetiva-se, com isso, contribuir para o debate público acerca do marco regulatório da pesca do guaiamum, reforçando a importância da participação dos gaiamunzeiros e pescadores artesanais quilombolas nas tomadas de decisão sobre a preservação da espécie e proteção dos seus ambientes de vida.

palavras-chave
Guaiamum (Cardisoma guanhumi); pesca artesanal quilombola; infraestrutura; paisagem costeira; neoextrativismo

Abstract

The article is an ethnographic exercise of fishing for blue land crab ( Cardisoma ganhumi ) in the mangroves of Baía de Todos os Santos. Taking as a reference the ways of living and inhabiting this crustacean and the gaiamunzeiros that capture them as a fishing activity, it aims to describe the effects of neoextractivism in the fishing landscapes of the region. The intention is, on the one hand, to show practices, habitability and landscapes associated with blue land crab fishing and, on the other hand, to offer a description of conflicts and impacts arising from agropastoral and oil infrastructures in their territories and ways of life. Thus, the article also aims to contribute to the public debate on the regulatory framework for blue land crab fisheries, reinforcing the importance of the participation of gaiamunzeiros and quilombola artisanal fishermen in decision-making on the preservation of the species and protection of their living environments.

keywords
Blue land crab (Cardisoma ganhumi); quilombola artisanal fishing; infrastructure; coastal landscape; neoextrativism

Roteiro de leitura 1 1 Agradeço aos gaiamunzeiros, pescadores e pescadoras artesanais de São Francisco do Conde e região por receber-me em suas casas e lugares de trabalho, permitindo-me aprender e conhecer um pouco sobre o modo de vida de quem vive da pesca nos manguezais. Agradeço também ao Conselho Pastoral dos Pescadores da Bahia (CPP) pelas atividades conjuntas realizadas ao longo dos últimos cinco anos. Espero que este texto possa contribuir para os direitos dos pescadores e pescadoras artesanais da Baía de Todos os Santos. Agradeço aos/às pareceristas da Revista de Antropologia, que foram fundamentais para seu aprimoramento.

Este é um artigo sobre os efeitos dos projetos petrolíferos e agropastoris nas paisagens da pesca artesanal do guaiamum ( Cordisoma ganhumi ) na porção norte da Baía de Todos os Santos. A intenção é não somente oferecer descrição etnográfica sobre formas de habitar e precarizar o manguezal, mas caminhos analíticos aos estudos antropológicos sobre as implicações do neoextrativismo na vida de pessoas, seres e lugares. 2 2 Faço uso do termo neoextrativismo amparado em Santos e Milanez ( 2013 ), que o define como “um modelo de desenvolvimento focado no crescimento econômico e baseado na apropriação de recursos naturais em redes produtivas pouco diversificadas” e associadas não só a extração de recursos minerais e do petróleo, mas às atividades agrárias e florestais (Idem: 121).

De viés etnográfico, o texto se guia por duas proposições conceituais de fundo. Nas duas primeiras seções descrevo a territorialidade da pesca artesanal nos manguezais inspirado na noção de “malha” de Tim Ingold ( 2015 INGOLD, Tim. 2015. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição . São Paulo: Vozes ). Com ênfase no guaiamum, nelas apresento a vitalidade dos modos de habitar o manguezal, minuciando práticas, percepções e paisagens associadas à pesca artesanal neste ecossistema. Na terceira à quinta seções insiro uma nova camada descritiva sobre este mesmo território, introduzindo o que estou chamando de “infraestruturas neoextrativistas”. Para isso, recupero aspectos metodológicos propostos por Anna Tsing ( 2019 TSING, Anna L; MATHEWS, Andrew S.; BUBANDT Nils. 2019 Patchy Anthropocene: Landscape Structure, Multispecies History, and the Retooling of Anthropology. Current Anthropology , Vol. 60, Supp. 20: S186-S197. DOI 10.1086/703391
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et al ., 2021 TSING, Anna. 2021. O Antropoceno mais que humano. Ilha – Revista de Antropologia , Vol. 23, n. 1: 176-191. DOI https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75732
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) para os estudos sobre “infraestrutura” e “estrutura de paisagem” na intenção de mostrar que petróleo, gado e plantations modelam de forma injusta e desigual os territórios da pesca artesanal da região, com impactos sobre guaiamuns e gaiamunzeiros.

A inclusão dessa nova camada descritiva evidencia o viés também experimental do artigo: não somente porque conjugo à escrita diferentes linguagens descritivas (como mapas, fotografias, imagens aéreas e desenhos), mas porque repito e altero algumas figuras, fazendo com que o leitor e a leitora retornem informações já vistas sob novas intencionalidades e olhares. Isso se dá em benefício do argumento principal do texto: que é mostrar, aos poucos, a conformação do petróleo, do gado e da plantation nas territorialidades já descritas, ou seja, o emaranhamento das infraestruturas neoextrativistas no que antes parecia apenas natureza.

Com o intuito de evidenciar essa dimensão crônica do desastre ecológico incrustrado na vitalidade da pesca artesanal nos manguezais, proponho, a partir da sexta sessão, uma reescrita etnográfica da pesca do guaiamum. Por isso, a sétima seção repete o título da primeira, incorporando, na descrição, as dimensões das infraestruturas petrolíferas e agropastoris ausentes naquela. Encerro o texto contextualizando a participação dos pescadores e pescadoras artesanais quilombolas da Baía de Todos os Santos na discussão sobre a extinção da espécie guaiamum e proibição da pesca disposta nas portarias 445/2014 e 38/2018 do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Como veremos, gaiamunzeiros e pescadoras artesanais ensinam que a retomada dos guaiamuns aos seus lugares de ocorrência só será possível se cessarem as forças de destruição do manguezal operadas por agentes do petróleo e das fazendas, e se estiver aliada ao modo de vida gaiamunzeiro, e não o contrário.

Pescar no costeiro

Um gaiamunzeiro 3 3 Ao longo do texto o itálico será empregado para destacar categorias constituintes do universo de pesquisa. Trechos de entrevistas e conversas serão registrados entre aspas. que vive em São Francisco do Conde exclusivamente da venda de gaiamum tende a acordar antes de o sol despontar no horizonte. 4 4 Inserido na Região Metropolitana de Salvador, o município de São Francisco do Conde situa-se na porção norte da Baía de Todos os Santos, a 70 quilômetros da capital do estado da Bahia. De acordo com o censo do IBGE de 2010, 91,1% de seus aproximadamente 33 mil habitantes se autodeclararam negros. Ver: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/sao-francisco-do-conde/pesquisa/23/22107 . Acesso em 12 jul. 2023. Ele prepara um café simples com aipim ou pão, veste sua indumentária de trabalho (calça, bota, camisa de manga comprida, boné), pega seu facão e um saco de ráfia com garrafas de água gelada dentro, e ruma em direção a um dos costeiros da cidade, como são conhecidas as encostas de manguezal em algumas localidades da Baía de Todos os Santos. São nesses tipos de feições de terra firme de manguezal que vivem os guaiamuns, crustáceos de valor alimentar importante e de ocorrência em áreas de transição entre o manguezal e as florestas em muitas partes do Brasil, sobretudo no litoral das regiões Nordeste e Sudeste do país (Oliveira Neto et al ., 2014 OLIVEIRA NETO, J. F.; BATISTA, E.; METRI, R.; METRI, C. B. 2014. “Local distribution and abundance of Cardisoma guanhumi in Southern Brazil”. Brazilian Journal of Biology, Vol. 74, n. 1: 1-7. DOI https://doi.org/10.1590/1519-6984.02912
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). 5 5 O guaiamum é popularmente conhecido no Brasil por goiamu ou gaiamum, esta, a designação comum na Baía de Todos os Santos. Gaiamunzeiro é como são conhecidos os pescadores de guaiamum na região. Costeiro é uma designação local sobre lugares de manguezal, não estando presente nas feições de manguezal tipificadas no Atlas dos Manguezais do Brasil (Schaeffer-Novelli 2018 ). Os lugares de ocorrência deste crustáceo estão geralmente associados à feição de manguezal classificada por pesquisadores deste ecossistema como apicuns, caracterizadas por alta salinidade, menor influência da maré, além de normalmente desprovidas de vegetação arbórea (Santos e Ribeiro 2019 ; Schimidt et al., 2013 ).

O gaiamunzeiro poderá chegar ao costeiro de dois modos: andando de sua casa ao lugar destinado (próximo ou distante, a pé ou de bicicleta), ou remando embarcado em uma canoa ao longo dos rios e riachos que compõem as áreas de manguezal na Baía de Todos os Santos. Caso saia de sua casa andando, deverá atravessar os lugares de mato em direção aos costeiros. Por isso, pescar guaiamum implica também ir para o mato . Caso o acesso ao costeiro se dê pelos rios e riachos, o gaiamunzeiro deverá atravessar os lugares localmente conhecidos por mangue, ambientes úmidos e lamacentos deste ecossistema que recebem as águas das subidas da maré e onde vicejam majoritariamente as espécies de árvores de mangue vermelho ( Rhizophora mangle ) e mangue branco ( Laguncularia racemosa ). 6 6 A designação local mangue corresponde a feição do manguezal tipificada por “bosque de mangue” no Atlas dos Manguezais do Brasil (Schaeffer-Novelli, 2018 ). Além dos bosques de mangues e apicuns, os “lavabos” constituem outra das três feições dos manguezais tipificadas no Atlas.

Geralmente o barco deve atracar nas margens dos rios em lugares próximos à terra firme, pois isso permite um trajeto mais fácil aos ambientes de ocorrência do guaiamum. É melhor que o barco atraque quando a maré estiver alta, para que o gaiamunzeiro não precise caminhar em demasia pelas partes do mangue mais úmidas de beira de rio, que tendem a dificultar a caminhada. A depender das condições do lugar e da maré, quando um pescador sai da canoa e pisa no mangue, a lama pode atingir sua cintura. Quanto mais alta a maré, maior a possibilidade de as águas levarem o barco ao encontro das árvores de mangue. Estas árvores possuem raízes que servem de piso ao pescador até uma área menos lamacenta de mangue duro e, dali, ao costeiro onde estão os guaiamuns. Mesmo que o trajeto a remo seja acompanhado por outros pescadores, a pesca do guaiamum é feita de modo geralmente solitário. Caso esteja só, o barco pode ser próprio ou emprestado. Se estiver acompanhado, pode estar aproveitando carona junto a outros pescadores e pescadoras.

Figuras 1 e 2
Na primeira imagem, gaiamunzeiro sai do barco atracado na maré baixa. A lama está no joelho. Na segunda imagem, caminha no mangue duro em direção aos costeiros segurando o saco de ráfia.

Caso o lugar escolhido para a captura do guaiamum seja o mesmo do dia anterior, a primeira ação do gaiamunzeiro ao chegar no mato é se dirigir ao lugar onde deixou o saco de ráfia com as ratoeiras , nome popular das armadilhas de captura do guaiamum. 7 7 As ratoeiras são a armadilha utilizada em vários locais do Brasil para pescar o guaiamum. São construídas pelos próprios pescadores com materiais disponíveis em seu ambiente, incluindo uma estrutura cilíndrica que pode ser feita com garrafas PET, canos de PVC, embalagens plásticas diversas, latas de óleo ou de leite. Nela, o gaiamunzeiro encaixa uma isca em um arame ao fundo da ratoeira conectado à uma tampa aberta na extremidade frontal (que dá acesso ao guaiamum). Quando o guaiamum morde a isca na extremidade do fundo, a ratoeira se fecha na extremidade da frente. As iscas são frutas ou alimentos orgânicos de cheiro forte com poder de atração, como o limão, por exemplo. Ele recolhe este saco e se dirige a um ponto próximo para iniciar a preparação das mesmas. Um bom gaiamunzeiro possui uma percepção acurada dos ambientes das encostas do mangue onde vivem os guaiamuns, sabendo se a área que irá percorrer tem guaiamuns grandes, médios ou pequenos entocados. Geralmente não pegam os pequenos, e evitam as fêmeas. Tão logo chegam em alguma área de pesca, já sabem se ali terão ou não sucesso na empreitada: se o mangue estiver batido significa que outros gaiamunzeiros já capturaram guaiamuns, o que os pode fazer, inclusive, mudar de local ou retornar para casa. A percepção da ausência de guaiamuns andando ao longo do trajeto é um indicativo de pouca ocorrência desses animais, sinal de um dia de pesca possivelmente ruim.

Para iniciar a pesca, o gaiamunzeiro caminha com seu saco cheio de ratoeiras armadas procurando as tocas com guaiamum dentro: o critério para a seleção das tocas é o tamanho do buraco e o tamanho das fezes que ficam em sua entrada. O próprio formato destas indica se o guaiamum é macho ou fêmea, pequeno ou grande. Se for grande, o pescador coloca a ratoeira com a extremidade aberta na entrada da toca do guaiamum, cobrindo seu contorno com areia e folhas, para manter o campo visual do animal o mais escuro possível.

Figura 3
Garoto armando ratoeira com material de lata de óleo na ilha de Cajaíba.

Para o gaiamunzeiro que vive exclusivamente da venda de guaiamum, quarenta é, aproximadamente, o número máximo de ratoeiras usadas no dia, referentes à quantidade que consegue transportar no saco de ráfia. 8 8 Diante da diminuição da ocorrência dos guaiamuns, poucos são os gaiamunzeiros que vivem exclusivamente da pesca deste crustáceo na cidade. Há os gaiamunzeiros que saem para capturar guaiamuns para o consumo. Estes costumam levar menos ratoeiras. Com essas ratoeiras ele buscará fechar as tocas em duas rodadas. Uma média de uma hora separa o tempo que o gaiamunzeiro armou as primeiras ratoeiras do tempo que ele as abrirá para conferir se estão batidas, ou seja, se o animal foi pego. Se sim, ele recolherá a ratoeira com o guaiamum dentro, a colocando no saco; se não, ele retirará a ratoeira vazia para a colocar no saco, limpando a toca para seguir seu caminho. Limpar a toca implica tirar o excesso de areia e folhas colocadas na entrada do buraco quando da montagem da ratoeira. É uma ação importante, pois permite que o guaiamum possa seguir sua vida estando ou não dentro do buraco: caso esteja dentro, ele poderá sair e não morrer sufocado, caso esteja fora, poderá retornar à toca. Uma vez finalizados os dois trajetos da primeira rodada ( armar e desarmar a ratoeira), o gaiamunzeiro se dirige ao lugar de início do trajeto, onde preparou as armadilhas. Ali coloca os guaiamuns em outro saco de ráfia que deixará guardado no mato, além de iniciar a preparação das próximas ratoeiras que serão usadas na próxima montagem das armadilhas.

Figura 4
Gaiamunzeiro caminha no costeiro com o saco de ráfia transportando as ratoeiras.

Num primeiro momento, portanto, o gaiamunzeiro peregrina ao longo dos caminhos acessados pelo mato ou pelo rio, que podem ser planos, sinuosos e irregulares, entre as árvores e arbustos contíguos aos manguezais a partir de sua percepção das tocas e das fezes. Não há toca prévia ou lugares fixos a serem percorridos: o caminho do gaiamunzeiro é produzido por sua percepção das tocas boas. A existência de tocas de guaiamum no trajeto do pescador não implica, portanto, uma relação de pesca: há outras variáveis que vão determinando a trilha produzida no caminhar. Ao colocar todas as ratoeiras nas tocas o pescador vai tecendo os fios do que se pode chamar de uma primeira “malha” do trajeto gaiamunzeiro (Ingold, 2015 INGOLD, Tim. 2015. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição . São Paulo: Vozes ). 9 9 O uso que faço da noção ingoldiana de malha é uma forma de evidenciar a dimensão dinâmica do cotidiano de pesca artesanal na região. Como veremos adiante, trata-se de um território produzido ao longo dos deslocamentos e aberto à muitas variáveis, que conferem à territorialidade pesqueira uma dimensão relacional e imprevisível. Segundo Ingold ( 2015 ), a malha não é um “campo de pontos interconectados, mas de linhas entrelaçadas”, como trilhas (Ingold, 2015: 118). “Cada uma dessas trilhas revela uma relação […] ao longo da qual a vida é vivida […], nem começando aqui, nem terminando lá […], é simplesmente um fio em um tecido de trilhas que, juntas, compreendem a textura do mundo da vida” (Ibidem). Trata-se, aqui, de enfatizar a textura do mundo da vida de guaiamuns e gaiamunzeiros.

Figura 5
Desenhos de três diferentes trajetos da pesca do guaiamum.

Depois de montadas todas as ratoeiras, o gaiamunzeiro aguarda um pouco para que o tempo permita ao guaiamum sentir o cheiro da isca e mordiscá-la. Num segundo momento é a memorização das armadilhas montadas que faz com que o gaiamunzeiro percorra o caminho. Ele reprisa, portanto, o trajeto, revisitando as tocas com as ratoeiras. A malha do primeiro trajeto vai sendo desfeita na medida que as ratoeiras vão sendo colocadas no saco de ráfia com ou sem guaiamuns.

O lugar de preparação das ratoeiras e reserva dos guaiamuns capturados é um ponto fixo importante do trajeto, e pode-se dizer o que liga a primeira da segunda malha do trajeto. Ela vai sendo tecida como a primeira: pela peregrinação do gaiamunzeiro em suas percepções sobre tocas e fezes ao longo do costeiro e da montagem das armadilhas. A depender do local de pesca, o segundo trajeto pode repetir os ambientes navegados no primeiro, incluindo outras tocas. Pode também navegar outros ambientes. Uma vez feita a segunda malha do trajeto, ela será desfeita na medida que o território seja percorrido através da memorização das armadilhas, momento no qual as ratoeiras retornam ao saco de ráfia com ou sem guaiamum. E assim se esvai a segunda malha do trajeto na medida que o saco de ráfia se enche de ratoeiras.

Figura 6
Trajeto de um dia de pesca do guaiamum com pontos georreferenciados. O ponto da parte superior é o local onde foi colhido o limão para a ratoeira. Abaixo em círculos os locais onde foram armadas as ratoeiras.

O ponto final do trajeto é justamente o inicial: o gaiamunzeiro coloca os guaiamuns no saco junto aos que ali já se encontram. O saco deve estar cheio de folhas, preferencialmente de mangue, para que os guaiamuns se alimentem no caminho de volta. Caso pretenda retornar no dia seguinte, o gaiamunzeiro poderá iniciar uma terceira malha de trajeto antes de ir embora: ele arma as ratoeiras para desarmá-las na manhã seguinte.

Idealmente, uma boa pescaria para o gaiamunzeiro implica ter feito, com sucesso, as duas rodadas com todos as tocas batidas. É algo cada vez mais difícil de ocorrer. Nos intervalos entre elas, ou no fim da pescaria, o gaiamunzeiro pode descansar um pouco no mato, colher frutos para levar para casa, como o dendê (que serve de alimento para o guaiamum), fazer sua refeição e relaxar. Caso tenha atracado o barco, ele caminhará até o local, transitando da terra firme às feições mais lamacentas do manguezal, até chegar nas mais profundas, típicas da beira de rio, e entrar no barco. Caso esteja a pé, fará a caminhada pelo mato até chegar aos acessos de rua que o levarão a sua casa. Se sai de manhã, o retorno não tende a passar do meio-dia, quando se inicia o processo de transporte dos guaiamuns para os viveiros , nome dado aos lugares de engorda dos guaiamuns. Os viveiros costumam ser feitos a partir do reaproveitamento de materiais, como freezers, pneus, caixas-d’água e até orelhões telefônicos. Ali os guaiamuns serão alimentados para consumo próprio ou venda.

Pesca andada

Diferente dos guaiamuns, os caranguejos , designação genérica localmente dada ao caranguejo-uçá ( Ucides cordatus ), não ocupam os costeiros do manguezal, mas suas áreas lamacentas no mangue . Ali vivem outros crustáceos de valor alimentar e comercial, como o aratu (Goniopsis cruentata) , caranguejo vermelho que costuma perambular pelos troncos das árvores no mangue. Guaiamuns e caranguejos são, nas palavras divertidas de um pescador da cidade, primos: o primeiro é o “primo rico”, pois vive em terra firme e não se suja como o outro, que é o “primo pobre”, por viver na lama, esse lugar mais inacessível, e de certo modo socialmente estigmatizado. Por ocorrem em diferentes feições e lugares limítrofes do ecossistema manguezal, guaiamuns e caranguejos fazem com que seus pescadores percorram, para capturá-los, trajetos diferentes durante a pesca, além de implicá-los em técnicas também distintas, mesmo que semelhantes em alguns aspectos. 10 10 Para conhecer abordagem etnográfica da pesca do caranguejo em outra localidade do Nordeste, ver Pereira e Silveira ( 2021 ).

Figura 7
Limites entre os costeiros e os mangues em localidades da pesca do guaiamum contornadas por rios e estrada.

Embora sejam crustáceos dos manguezais, guaiamuns e caranguejos possuem habitabilidades diferentes, o que implica dizer que os trajetos para a pesca de um e de outro são distintos. Gaiamunzeiros se voltam à terra firme das encostas, nos limites com as áreas mais úmidas de manguezal para procurar as tocas de guaiamum, e podem utilizar as áreas de margem de rio, interiores e lamacentas como atalho ou passagem entre um costeiro e outro. Ocasionalmente podem praticar outro tipo de pesca no mesmo dia, se atendo, para isso, por mais tempo nos interiores do manguezal. Já caranguejeiros se voltam para os bosques de mangue a procura das tocas dos caranguejos ao longo das áreas mais lamacentas, onde estão também as marisqueiras na coleta dos moluscos fixados tanto na lama (como o sururu, Mytella charruana), quanto nos troncos aéreos das vegetações de mangue (as ostras, Crassostrea rhizophorae ).

Embora perambulem pelos interiores do manguezal em sua feição mais úmida, caranguejeiros (majoritariamente homens) e marisqueiras (majoritariamente mulheres) se utilizam da terra firme dos costeiros, apicuns e mato como caminhos e acesso para a pesca. É no cruzamento dos movimentos das diferentes linhas que compõem os trajetos de cada território de pesca que gaiamunzeiros se encontram com caranguejeiros e marisqueiras. Algumas vezes eles se dirigem a lugares de pesca juntos, sobretudo quando moram próximos e precisam chegar ao lugar embarcados, mas se separam a procura do que lhes cabe, tecendo as linhas das muitas malhas que conformam o cotidiano dos territórios pesqueiros da região.

Conforme as palavras divertidas de uma marisqueira da cidade, estes homens e mulheres que praticam a pesca nos manguezais são pescandadores . Não navegam nas águas dos rios ou mares, como o fazem os pescadores embarcados de peixe e camarão. Ao contrário, pescar, para estes, implica andar ao longo dos ambientes de manguezal, o que exige percepção acurada sobre os diferentes lugares, seres e ciclos do mato e da maré. A categoria mariscar pode englobar, inclusive, a captura dos crustáceos, não sendo restrita às espécies de moluscos que costumam, em outras partes do país, estar associado ao nome. O que gaiamunzeiros, caranguejeiros e marisqueiras comercializam são os mariscados (podendo incluir, além dos mariscos e ostras, o guaiamum, o siri e o caranguejo), diferente dos pescados , termo que abrange a comercialização de peixes. Marisqueiras, gaiamunzeiros e caranguejeiros habitam as áreas de manguezal praticando o que se pode chamar de extrativismo pesqueiro. Provenientes em grande medida de famílias negras de baixa renda, estes pescadores tendem a ser uma categoria de pesca informal e estigmatizada em relação a outras modalidades de pesca na Baía de Todos os Santos. 11 11 A informalidade do extrativismo pesqueiro nos manguezais é decorrência do caráter muitas vezes intermitente da prática. Além dos pescadores que vivem exclusivamente da captura de guaiamuns, caranguejos e mariscos, há aqueles que pescam somente em períodos de ausência de emprego formal ou informal, bem como de escassez de alimento. Por isso não são formalmente reconhecidos como pescadores, embora possam passar longos períodos pescando. Há também invisibilidades impostas pelo próprio poder público, que não reconhece o seguro defeso do guaiamum e do caranguejo. Isso acaba por desestimular o reconhecimento formal desta modalidade de pesca, dificultando a produção de dados oficiais e a criação de políticas públicas voltadas à modalidade.

Não somente gaiamunzeiros e caranguejeiros andam para pescar: guaiamuns e caranguejos também o fazem para reproduzir. As andadas são conhecidas na cidade como práticas desses crustáceos associadas ao período reprodutivo. Elas ocorrem em alguns dias específicos no período de outubro a março, geralmente associados à lua cheia. Trata-se do momento em que saem de suas tocas para acasalar. A última andada geralmente ocorre na semana da lua cheia de março, quando as fêmeas transitam das tocas às margens dos riachos para raspar com as patas os ovos da barriga. O período da desova coincide com a maré mais alta do ano, a maré de março . Calcula-se que as fêmeas carregam de 3 a 5 mil ovos, cujas larvas, viajando pelas águas, poderão vingar novas vidas.

Figura 8
Gaiamuma ovada. Os milhares de ovos estão em sua parte frontal e lateral. 12 12 Agradeço ao gaiamunzeiro José Américo Borges pela cessão da imagem.

As andadas são os únicos momentos do ano que se pode ver os caranguejos perambulando em quantidade efervescente pelos manguezais. Geralmente esses animais têm uma postura mais reservada quando saem nas tocas para praticar a atividade de forrageamento da vegetação, afora o tempo que permanecem entocados. Além da proximidade da lua, um dos sinais de início da andada se dá quando pescadores percebem que guaiamuns e caranguejos estão espumando ao caminhar, indício de que o período está chegando. 13 13 O período reprodutivo dos caranguejos e guaiamuns é regulado por lei, sendo popularmente conhecidos por “defeso”. Implica na proibição da captura e comercialização destes crustáceos nos períodos definidos pelos órgãos ambientais.

Mesmo sendo animais que andam, o ciclo de vida e reprodução de guaiamuns e caranguejos está intimamente vinculado às águas que correm, pois são nas margens dos rios e riachos que as fêmeas desovam. Por estarem associadas aos diferentes lugares terrestres e aquáticos do ecossistema manguezal, as habitabilidades de guaiamuns e caranguejos extrapolam os limites dos costeiros e bosques de mangue onde perambulam e vivem entocados. As condições de existência dos guaiamuns implicam, portanto, a proteção de seus ambientes por parte dos gaiamunzeiros, que deles dependem sua segurança alimentar e trabalho.

Embora os pescandadores possam percorrer diferentes feições de manguezal em um dia de pesca (costeiro, mato, mangue mole, mangue duro, estradas, rio, mar), a relação que estabelecem com cada uma é diferente: o que implica dizer que não é possível auferir uma classificação e descrição genéricas sobre habitabilidade dos territórios pesqueiros de manguezal. Pelo contrário, cada modalidade de pesca produz uma malha territorial diferente a partir dos fios de trajetos tecidos pelo pescador/marisqueira em relação ao seu próprio roteiro de pesca (rio ou mato), à localização/movimento/temporalidade das espécies, bem como às técnicas de pesca associadas. Marisqueiras tendem a fazer um trajeto mais devagar e menor nos bosques do mangue, detidas em um único ponto na coleta de ostras e sururus por mais tempo. Gaiamunzeiros e caranguejeiros não: devem percorrer uma área de abrangência maior (nos costeiros ou bosques de mangue) e, por isso, em maior velocidade, não somente pela procura das tocas dos crustáceos, mas pela necessidade de repetir o trajeto ao menos uma vez (para desarmar as ratoeiras), guiados também (no caso dos caranguejeiros) pela temporalidade da subida da maré nas zonas úmidas do mangue.

A habitabilidade dos caranguejeiros, gaiamunzeiros e marisqueiras implica não somente perambular pelos lugares e conhecer muito bem as diferentes texturas do manguezal, mas, também, moldá-las e manejá-las. As formas de manejo associadas ao extrativismo pesqueiro no manguezal remontam ao período pré-colonial, tendo em vista que este foi um dentre os ambientes litorâneos da Baía de Todos os Santos fundamentais para a instalação humana (Etchevarne e Fernandes, 2011 ETCHEVARNE, Carlos; FERNANDES, Luydy 2011. “Apontamentos para uma Arqueologia do Recôncavo Baiano”. In: CAROSO, Carlos; TAVARES, Fatima; PEREIRA, Claúdio. (Orgs). Baía de todos os santos: aspectos humanos . Salvador: EDUFBA, pp. 28-48 ). 14 14 Ainda que ocupada por diferentes coletivos indígenas ao longo de sua história, a Baía de Todos os Santos estava majoritariamente habitada por povos Tupinambá no contexto da invasão europeia (Etchevarne e Fernandes, 2011 ). Sua ocupação pré-colonial engloba grupos de caçadores coletores sambaqueanos e horticultores ceramistas cuja datação mais antiga remonta 3 mil anos antes do presente. Registros arqueológicos mais antigos da região, os sambaquis são “o resultado de um padrão cultural de comportamento social derivado do acúmulo intencional de uma grande quantidade de conchas coletadas dos mangues”, usadas seja como base de alimentação, seja para a construção de montículos que serviam de aterro (Idem: 34). Importante local de pesca referenciado nas figuras 3, 12 e 13 deste artigo, a ilha de Cajaíba abriga um sambaqui não escavado com datação relativa de 2 mil anos antes do presente (Simões, 1972 ). Com o colonialismo europeu, o genocídio indígena e a escravização africana, estes lugares passaram, também, a moldar-se a partir dos saberes socioecológicos vinculados aos homens e mulheres deste continente, formando o que Watkins ( 2015 WATKINS, Case. 2015. African Oil Palms, Colonial Socioecological Transformation and the Making of an Afro-Brazilian Landscape in Bahia, Brazil. Environment and History , Vol. 21, n. 1: 13-42. ) chama de “paisagens afro-brasileiras”. Pode-se pensá-las, também, como paisagens afroindígenas. 15 15 Por paisagens afroindígenas pretendo apenas sugerir que os ambientes de manguezal na Baía de Todos os Santos reúnem, também, o acúmulo compartilhado de experiências, práticas e trocas ecológicas de africanos e indígenas na longa duração. A base para esta proposição deriva das noções de “indigeneidade das paisagens” (Balée, 2008), “paisagens afro-brasileiras” (Watkins, 2015 ) e “paisagens afroindígenas” (Cardoso, 2019 ). É uma forma de evidenciar a dimensão milenar desse modo de habitar, fazer mundo e ser feito por ele, sua continuidade histórica à despeito do colonialismo, escravismo, genocídio e ecocídio impostos pelos povos eurodescendentes aos seus “outros” na América.

Nessas paisagens, pescandadores criam lugares de habitar, fazem caminhos, pequenos roçados, manejam as muitas espécies de árvores e ervas, espalham sementes, colhem frutos, plantam o mangue, produzem mel, abrem o mato, coletam e catam marisco , 16 16 Catar marisco está ligado não à fase de captura, mas de beneficiamento dos mariscos, sendo o ato de tirá-los das conchas e limpá-los para consumo e venda. pernoitam, fazem fogueira, cozinham, despacham oferendas. Nas palavras de um gaiamunzeiro, manguezal é o lugar do habitar: das muitas formas de habitar associadas aos territórios de uso comum. No entanto, as habitabilidades de caranguejos e caranguejeiros, guaiamuns e gaiamunzeiros, ostras, sururus e marisqueiras são também conformadas por forças produzidas por outros programas.

Figuras 9 e 10
Marcas da habitabilidade pescandadora no manguezal: fogueira e conchas de mariscos catados.

Irrupção das infraestruturas

Trouxe até aqui habitabilidades humanas e não humanas nos manguezais: acordar de manhã, remar até a margem de um rio, perambular pelas texturas do mangue, ou pelas encostas à procura de caranguejos, são práticas humanas que poderiam ser descritas por um etnógrafo em qualquer parte do mundo. Deixar as fezes nas tocas, dimensioná-las ao tamanho do corpo, perambular por arbustos e sombras praticando o forrageamento, atrair-se por limão, desovar nas águas da maré e buscar distância dos humanos, são práticas crustáceas que poderiam ser descritas por um biólogo em qualquer parte do mundo. As duas seções acima trouxeram de modo singelo uma abordagem que tenta incorporar, por meio de textos, fotografias, desenhos e imagens aéreas, a vitalidade das paisagens da pesca artesanal de uma antropologia da vida (Ingold, 2015 INGOLD, Tim. 2015. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição . São Paulo: Vozes ). Para tal contei histórias de lugares, atividades e saberes vinculados a pesca artesanal como recurso para descrever sete anos de experiências compartilhadas junto aos pescadores e pescadoras da região.

As descrições são resultado de um exercício de atentividade a práticas que exigem um conjunto de técnicas e percepções que eu, como antropólogo, professor e gestor universitário tive, e tenho, dificuldade de aprender. 17 17 O Instituto de Humanidades e Letras do campus dos Malês da Unilab está localizado no campus dos Malês em uma área próxima do manguezal no município de São Francisco do Conde. Para quem não está acostumado, perambular no manguezal é difícil, assim como perceber os sinais das vidas e perigos que o habitam. Compreender o ritmo da maré, as variações do vento, os ciclos dos animais e as técnicas de pesca é tão difícil quanto sentir os problemas físicos e as dores no corpo associadas ao trabalho contínuo na pesca. É preciso repetição.

Embora procurar crustáceos, remar nas águas, atracar o barco nas margens do rio, perambular no mangue, caminhar no mato, pisar no costeiro, procurar sombra para viver, se alimentar das folhas, raspar os ovos nas águas, fugir dos humanos, sejam práticas comuns do cotidiano de muitas paisagens de manguezal em diversas partes do planeta, há fenômenos que parecem conferir aos manguezais da Baía de Todos os Santos singularidade própria. Ao longo do tempo e dos caminhos percorridos junto aos pescadores da região aprendi que algumas situações vividas nos lugares pisados, contornados, evitados e navegados não pertenciam ao ambiente de uma normalidade do manguezal, sequer ocorriam no que a literatura ecológica denomina de “feições naturais” deste ecossistema, embora pudessem parecer à primeira vista.

Isso se dá porque guaiamuns, caranguejos e pescadores da cidade têm suas habitabilidades conformadas pelo encontro de dois tipos de projetos neoextrativistas emaranhados nas paisagens de manguezal: as grandes fazendas de plantation e pecuária que vicejam na região desde os primórdios da ocupação colonial nas Américas; e a cadeia de produção de petróleo instalada na cidade em meados do século XX, desdobrando-se em um dentre os mais importantes enclaves petrolíferos do país. Ambos, a seus modos, transformaram e transformam radicalmente os lugares de ocorrência e habitabilidade de todas as vidas do manguezal, conferindo especificidade aos territórios pesqueiros da cidade.

Por isso, embora pareçam, as descrições sobre a pesca artesanal do guaiamum até aqui trazidas são insuficientes para a compreensão dos territórios pesqueiros da cidade. A estas é preciso incorporar as infraestruturas do neoextrativismo emaranhadas em seus lugares de ocorrência. O uso que faço aqui do termo infraestrutura é inspirado em Anna Tsing ( 2021 TSING, Anna. 2021. O Antropoceno mais que humano. Ilha – Revista de Antropologia , Vol. 23, n. 1: 176-191. DOI https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75732
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), para quem cabe à antropologia descrever os efeitos concretos e os modos de realização locais dos projetos de governança ligados à extração e movimentação das commodities globais. Isso implica concebê-la não em uma esfera abstrata e genérica, mas material e específica, a partir de “fragmentos” e “manchas” ligadas a “transformação da paisagem” (Tsing et al ., 2019 TSING, Anna L; MATHEWS, Andrew S.; BUBANDT Nils. 2019 Patchy Anthropocene: Landscape Structure, Multispecies History, and the Retooling of Anthropology. Current Anthropology , Vol. 60, Supp. 20: S186-S197. DOI 10.1086/703391
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; Tsing, 2021 TSING, Anna. 2021. O Antropoceno mais que humano. Ilha – Revista de Antropologia , Vol. 23, n. 1: 176-191. DOI https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75732
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).

Infraestrutura, aqui, não corresponde meramente às benfeitorias, edificações e suportes das obras públicas e privadas que costumam, no senso comum, se associar ao termo muitas vezes como “solução ótima, universal e imparcial” oferecida pela governança para resolver os problemas do mundo (Vailatti e D’andrea 2020 VAILATI, Alex; D’ANDREA, Anthony. 2020. Antropologia da Infraestrutura no Brasil: desafios teóricos e metodológicos em contextos emergentes. Anthropológicas , Vol. 31, n. 2: 3-27. DOI: https://doi.org/10.51359/2525-5223.2020.249899
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: 4). Trata-se, antes, de uma categoria que nos permite estabelecer “relações entre coisas” (Larkin 2020 LARKIN, Brian. 2020. Políticas e Poéticas da Infraestrutura. Anthropológicas , Vol. 31, n. 2: 28-60. DOI https://doi.org/10.51359/2525-5223.2020.249895
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: 31) e descrever projetos de poder que podem não somente alterar radicalmente paisagens e reconstruir materialmente ambientes, mas diferenciar “populações e sujeitos através de subordinação, colonização, racialização e uma série de violências” (Lima, 2020 LIMA, Maria Raquel Passos. 2020. (Toxi)Cidade do Aço: Infraestrutura siderúrgica e contestação social em um caso de contaminação por resíduos industriais. Anthropológicas , Vol. 31, n. 2: 86-121. DOI: https://doi.org/10.51359/2525-5223.2020.247373
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: 90).

Para Tsing e seus colaboradores (Tsing et al ., 2019 TSING, Anna L; MATHEWS, Andrew S.; BUBANDT Nils. 2019 Patchy Anthropocene: Landscape Structure, Multispecies History, and the Retooling of Anthropology. Current Anthropology , Vol. 60, Supp. 20: S186-S197. DOI 10.1086/703391
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; Tsing, 2021 TSING, Anna. 2021. O Antropoceno mais que humano. Ilha – Revista de Antropologia , Vol. 23, n. 1: 176-191. DOI https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75732
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), infraestrutura produz “estruturas de paisagem”, pensadas como unidades de análise para descrever transformações de lugares e novos padrões de habitabildade. Segundo a autora, paisagens são unidades de heterogeneidade cujos componentes são manchas. São as manchas que mostram a estrutura de paisagem, ou seja, os padrões morfológicos nos quais humanos e não-humanos estão dispostos. São os problemas associados a estas estruturas de paisagem o que permite rastrear infraestruturas. Pesquisadores devem seguir os rastros deixados pelas manchas como forma de descrever as desigualdades interseccionais entre os seres humanos, incorporando um olhar também atento à relações com e entre os demais seres vivos.

Em São Francisco do Conde, guaiamuns e gaimunzeiros habitam estruturas de paisagem petrolíferas e agropastoris. Estas infraestruturas neoextrativistas produziram, também, as suas próprias manchas, ou seja, suas próprias feições artificiais nos manguezais, alterando seus padrões morfológicos. Ali, ambientes de guaiamuns foram radicalmente transformados pelas fazendas, guaiamuns são expulsos pelas plantations e pelo gado, vivem em pastos, canaviais, eucaliptais, cacauais e aterros petrolíferos, além de serem contaminados por petróleo, que também mata bosques de mangue e produz feições desertificadas nos manguezais, afugentando árvores, caranguejos, sombras, sons e pássaros. O que implica dizer que não há habitabilidade fora do efeito dessas infraestruturas extrativistas moldadas e habitadas, também, por gaiamunzeiros.

Se nas duas primeiras sessões trouxe a descrição da territorialidade gaiamunzeira através das malhas do trajeto da pesca artesanal, agora o faço a partir das manchas das estruturas de paisagem agropastoris e petrolíferas. Para isso, repetirei algumas imagens aéreas com novos elementos, assim como induzirei o leitor e a leitora à rever figuras já vistas. Deste modo pretendo associar as habitabilidades gaiamunzeiras já descritas aos dois projetos infraestruturais mencionados. Qualquer descrição que não ofereça a relação da territorialidade pesqueira com estas estruturas de paisagem correrá o risco de não compreender aspectos importantes dos modos de habitá-los. Para tal, sigamos os guaiamuns.

Fazenda no costeiro

Ainda que guaiamuns possam jocosamente ser considerados como os primos ricos em relação aos caranguejos, eles também são os primos cada vez mais raros: tendo em vista que, por ocorrerem nas terras firmes de transição entre o manguezal e as florestas, passaram a disputar suas habitabilidades com a frente

de expansão do que estou chamando de estrutura de paisagem agropastoril. A proliferação desse tipo de paisagem foi inaugurada pelo colonialismo europeu em muitos lugares da América, e implicou de forma radical a simplificação ecológica dos lugares, o extermínio dos povos indígenas, a perda da sociobiodiversidade, a domesticação das espécies monocultoras invasoras e a imposição à condição escrava aos grupos humanos provenientes do continente africano.

Por vigorar como um dos centros brasileiros mais importantes da história da economia colonial açucareira nas Américas, a Baía de Todos os Santos traz em suas paisagens uma história ambiental das plantations. Por séculos, as infraestruturas do açúcar ali dispostas para fins de exportação, com suas vastas fazendas, casas grandes, casas de moendas, instalações para o fabrico, as igrejas, o gado, os senhores de engenho, os trabalhadores escravizados, as usinas e os canaviais nas terras férteis do massapê, ocuparam os muitos lugares das cidades, incluindo as encostas dos manguezais, estes, pontos estratégicos para o transporte de produtos e pessoas através dos rios conectados a Baía de Todos os Santos e à capital Salvador (Barickman, 1988; Schwartz, 1988 SCHWARTZ, Stuart. 1988. Segredos internos, engenhos e escravos na sociedade colonial 1550 - 1835 . São Paulo: Companhia das Letras. ; Amorin, 2008 AMORIM, Liane Alves. 2008. Memórias e Trajetórias de trabalhadores da cana de açúcar na Bahia . Salvador: Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia. ).

Por isso, as estruturas de paisagem agropastoril, como as do monocultivo da cana-de-açúcar, tiveram como fronteira de ocupação justamente os costeiros, estes ambientes propícios para a habitabilidade dos guaiamuns. Não puderam, as monoculturas, cravar raízes nas feições mais úmidas do manguezal, ali onde estão os bosques de mangue, seus caranguejos, sururus e ostras. Os costeiros passaram a ser ocupados hegemonicamente pelos canaviais até meados dos anos 1960, dando lugar, dali em diante, aos monocultivos de cacau, eucalipto e bambu, além de habitados pelo gado, espécie cuja presença atua, ela mesma, como disparadora e expropriadora colonial (Alencastro, 2020; Ficek, 2019 FICEK, Rosa E. 2019. Cattle, capital, colonization: tracking creatures of the Anthropocene in and out of human projects. Current Anthropology , Vol. 60, Suppl. 20: 260–271. DOI 10.1086/702788
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).

A história da apropriação dos lugares por parte das grandes propriedades não é coisa do passado. Um estudo do Grupo Geografar ( 2015 GEOGRAFAR. 2015. Comunidade negra rural quilombola Porto de Dom João: Relatório Preliminar. UFBA. ) informa que 90% da malha fundiária de São Francisco do Conde corresponde a três matrículas de terra, o que configura um dos maiores índices de concentração fundiária da Bahia. Um dos efeitos associados à questão agrária na cidade é a baixa intensidade de agricultura familiar, o que torna seus moradores bastante dependentes da maré (Nascimento, 2020 NASCIMENTO, Wanderson dos Santos. 2020. Segurança alimentar e nutricional e agricultura familiar: o caso de São Francisco do Conde, Bahia . Redenção (CE): Monografia de graduação, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. ).

A conformação das paisagens de manguezal pelas fazendas se dá não somente pela concentração fundiária, simplificação ecológica, diminuição das áreas de abrangência de guaiamum, irrupção das feralidades associadas às pragas que devem ser envenenadas, mas pela interdição da prática da pesca imposta pelas “cercas nas águas” 18 18 “Cercas nas Águas: Derrubar”. Este é um grito de guerra entoado nas atividades e encontros dos Movimentos de Pescadores e Pescadoras Artesanais no Brasil. É deste movimento que emerge a campanha em prol da regularização dos territórios pesqueiros, que pode ser acessada em http:// www.peloterritoriopesqueiro.blogspot.com. Acesso em: 23 jul. 2023. e nas terras, pela segurança armada e pelos cachorros ferozes nos manguezais impedindo o livre acesso. Muitas vezes, os limites do território de um gaiamunzeiro pode ser demarcado pelas paisagens sonoras imprevistas: desde disparos de espingarda ao alto, a latidos de cães de guarda que se aproximam de forma violenta, sem muitas vezes o pescador poder visualizá-los.

Figura 11
Representação do conflito sonoro da pesca nas infraestruturas agropastoris.

Nas infraestruturas agropastoris reinam as monoculturas venenosas sem agricultura familiar e o pasto de beira de manguezal, tornando a terra dura e sem as sombras das árvores e arbustos, o que dificulta aos guaiamuns cavarem buracos para viver e acessarem folhas para se alimentar. Sem possibilidades de fazer buracos, guaiamuns perdem habitabilidade, deixando de reproduzir-se. Há relatos, inclusive, de fazendeiros que tampam as tocas de guaiamuns propositalmente para que o gado não se acidente ao pisá-los. Há histórias de fazendeiros que não deixam gaiamunzeiros atracar seus barcos. A estrutura de paisagem agropastoril parece, ela mesma, inimiga da habitabilidade do guaiamum e do gaiamunzeiro. O conflito é não somente fundiário, entre grupos humanos, mas também ecológico, entre espécies, entre guaiamuns e bois, entre humanos e cachorros.

Figura 12
Gado em área de guaiamum na ilha de Cajaíba, em São Francisco do Conde. 19 19 Agradeço ao colega Thiago Mota Cardoso pela cessão da imagem.

Figura 13
Supressão dos costeiros pelo pasto (indicado por uma seta) e pelo engenho na ilha de Cajaíba.

Quatro imagens mostram a supressão dos costeiros pela estrutura de paisagem agropastoril. As figuras 12 e 13 remetem ao gado e ao pasto da ilha de Cajaíba Ali se localiza o Engenho de Cajaíba, construído no século XVIII e morada da família de um dos principais escravocratas de seu tempo, o Barão de Cajaíba. Já as figuras 15 e 19 (a seguir) remetem à pequenos canaviais e cacauais cultivados em lugares historicamente ocupados por grandes plantations de cana de açúcar.

Essas manchas implicaram na diminuição radical dos ambientes de vida do guaiamum, e, portanto, do modo de vida do gaiamunzeiro na Baía de Todos os Santos. A perda de habitat em decorrência dos desmatamentos é o principal fator associado à diminuição da ocorrência de guaiamuns em diferentes lugares do Nordeste (Santos e Ribeiro, 2019 SANTOS, Maria do Carmo Ferrão; RIBEIRO, Fabiano Pimentel. 2019. Manejo da pesca do guaiamum: uma alternativa para conservação das áreas de apicum do nordeste oriental brasileiro. Revista CEPSUL - Biodiversidade e Conservação Marinha , Vol. 8: e2019004. DOI: https://doi.org/10.37002/revistacepsul.vol8.861e2019004
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; Silveira e Buti, 2020 SILVEIRA, Pedro Castelo Branco; BUTI, Rafael. 2020. A vida e a morte dos guaiamuns: antropologia nos limites dos manguezais. Anuário Antropológico , Vol. 45, n. 1: 117-148. DOI: https://doi.org/10.4000/aa.4945
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). Mas não é somente a estrutura de paisagem agropastoril, com sua terra endurecida pelo gado, com seus lugares sem árvores e sombras, com seus venenos associados, com seus títulos de terra, com suas monoculturas vicejantes, com suas cercas, cachorros e espingardas, que conforma e tensiona as habitabilidades dos guaiamuns e gaiamunzeiros em São Francisco do Conde. Estas são também moldadas por forças produzidas por outro programa.

Seres e feições petrolíferas dos mangueizais

Em fevereiro de 2017 acompanhei um gaiamunzeiro em uma de suas jornadas diárias de trabalho. Na ocasião, o pescador se preparava para recolher as últimas ratoeiras que armara nas tocas de guaiamum. Ao perceber que a toca estava batida e iniciar a abertura da armadilha, nos deparamos com o que ele mesmo denominou, surpreendido, de guaiamum-petroleiro: um guaiamum de coloração preta, de consistência oleaginosa e um cheiro bastante forte, fruto da contaminação por petróleo da área no fundo do buraco onde vivia, de profundidade algo em torno de dois metros.

Estávamos em um costeiro próximo a um riacho com bosques de mangue. Este petróleo que ocupava o fundo do buraco do guaiamum-petroleiro não foi ali parar por decorrência de um vazamento recente em uma das tubulações que atravessam os manguezais da cidade. Tratava-se, ao contrário, de um petróleo vazado há décadas, quando o então pescador, criança, ouvira falar do rompimento de um duto na estrada próxima em área mais elevada, o que ocasionou, de noite, uma grande explosão e a descida do petróleo rio abaixo em direção à Baía de Todos os Santos. Conta-se que a descida do petróleo pelas águas foi percebida por moradores em decorrência de um fogo de cinco metros de altura ao longo do rio, além do forte cheiro associado.

Figura 14
Guaiamumpetroleiro capturado no ano de 2021.

Além da existência do guaiamum-petroleiro, surpreendia a história contada pelo pescador, que informava um intervalo de incríveis 40 anos entre os dois eventos: o nosso encontro com o animal e o desastre pretérito que desencadeou sua condição atual. Este é um exemplo radical de “violência lenta” na longa duração (Nixon, 2011 NIXON, Rob. 2011. Slow Violence and the Environmentalism of the Poor . Cambridge, MA/London, England: Harvard University Press. ), quando a contaminação é dispersa e marcada pela indeterminação temporal e espacial, contribuindo para sua dissimulação e desresponsabilização dos culpados. O nome duplo do animal batizado pelo pescador indicava sua condição híbrida e atravessada pelas infraestruturas extrativistas. Este é um exemplo de uma estrutura de paisagem petrolífera emaranhada nos lugares, sendo o guaiamum petroleiro seu produto. Saído do fundo de sua toca mediante uma tecnologia tradicional de pesca, o animal mostrava os efeitos irregulares e perversos do extrativismo mineral, a injustiça e o racismo ambiental que escolhe corpos e lugares para precarizar e matar na longa e curta duração.

A longevidade do petróleo ao fundo da toca não é ao acaso. Data dos anos 1940 a descoberta dos primeiros campos de produção de petróleo para fins comerciais no Brasil, justamente no “ventre mole do massapê” da zona açucareira da Baía de Todos os Santos (Costa Pinto, 2000 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. 2000, O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII . São Paulo: Companhia das Letras. ). Conhecidos por pioneiros , estes campos continuam em atividade: são compostos por poços de produção, reservatórios, estradas e tubulações, abrangendo áreas de terra e mar, incluindo manguezais e ilhas da Baía de Todos os Santos. 20 20 Trata-se do campo Candeias, descoberto em 1941, e do campo Dom João Terra, descoberto em 1947. Além destes, há o campo Dom João Mar, descoberto em 1954. Ainda que hoje a grande maioria do petróleo trabalhado pela refinaria seja proveniente dos campos offshore das bacias de Campos e Santos, a produção dos campos maduros do Recôncavo continua em atividade, contribuindo para alçar a Bahia ao segundo estado de maior produção em terra, e o quarto de maior produção nacional (Mendes et al., 2019 ). A existência desses campos reconfigurou o planejamento territorial da região, impulsionando a construção de um dos polos petrolíferos mais importantes da América do Sul, a refinaria Landulpho Alves (Brito, 2008 BRITO, Cristóvão. 2008. A Petrobrás e a gestão do território no Recôncavo Baiano . Salvador: EDUFBA. ). 21 21 A Petrobras concluiu, no dia 30 de novembro de 2021, a venda da Refinaria Landulpho Alves à empresa árabe Mubadala Investment Company, sediada em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos. Desde então a refinaria passou a chamar-se Refinaria de Mataripe. Para mais ver a reportagem de Douglas Correia ( 2019 ) para a Agência Brasil. Erguida em 1950, em uma área de manguezal no interior do campo Candeias nas fozes dos rios Mataripe e São Paulo, a refinaria está conectada por linhas, oleodutos, portos e estradas não somente aos muitos reservatórios e poços de produção de petróleo em terra e mar da Baía de Todos os Santos, mas aos portos e polos industriais da região metropolitana de Salvador, incluindo o complexo petroquímico Aratu/Candeias e o Polo Industrial de Camaçari.

Foi no interior de um dos manguezais abrangidos pelo Campo Dom João que encontramos o guaiamum-petroleiro. Aquela foi uma das minhas primeiras incursões aos manguezais junto aos pescadores da cidade. Minha intenção inicial era conhecer a territorialidade quilombola do lugar, o que implicava adentrar nos territórios de trabalho e vida dos moradores do quilombo Dom João, comunidade na qual passei a estabelecer colaboração através de projetos de ensino, pesquisa e extensão. Naquele dia, não imaginava a possibilidade de pescar petróleo . O ocorrido conduziu uma mudança radical na minha percepção em relação aos ambientes do manguezal na região, reeducando minha atenção para a problemática do petróleo na vida das pessoas, seres e lugares.

Incrivelmente resistente, o guaiamum-petroleiro não morreu contaminado, diferente do caranguejo encontrado morto por uma moradora anciã do quilombo Dom João dias depois de um vazamento grave ocorrido em maio de 2018, quando um duto da Petrobras também localizado no Campo Dom João rompeu-se e contaminou manguezais e áreas residenciais da comunidade (Buti, 2020 BUTI, Rafael Palermo. 2020. Imagens do petroceno: habitabilidade e resistência quilombola nas infraestruturas do petróleo em manguezais do Recôncavo Baiano. Amazônica , Vol. 12, n. 1: 277-301. DOI 10.18542/amazonica.v12i1.8504
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; 2023 BUTI, Rafael Palermo. 2023. Histórias Contaminadas: alianças ambientais das comunidades pesqueiras e quilombolas contra a violência lenta do petróleo na Baía de Todos os Santos. Horizontes Antropológicos , Vol. 66, n. 2: e660405. DOI https://doi.org/10.1590/1806-9983e660405
https://doi.org/10.1590/1806-9983e660405...
). Na ocasião de uma reunião ocorrida na Associação Quilombola Dom João para tratar sobre este vazamento, esta senhora relatara ter enterrado em seu quintal um caranguejo morto pelo petróleo por ela ali encontrado. Enterrar um caranguejo recém petrolificado e pescar um guaiamum contaminado por um petróleo vazado há quase meio século evidenciam não somente a vitalidade das relações dos pescadores e pescadoras com os seres do manguezal, mas a diversidade das formas perversas às quais estão expostos aos riscos ambientais derivados do petróleo.

Embora o petróleo vaze nos manguezais da Baia de Todos os Santos há mais de 70 anos e haja acúmulo de pesquisas sobre os efeitos da contaminação na Baía de Todos os Santos (Hatge et al ., 2009 HATJE Vanessa; BÍCEGO, Márcia; CARVALHO, Gilson; ANDRADE Jailson. 2009. “Contaminação Química”. In: HATJE, Vanessa; ANDRADE, Jailson B. (orgs.). Baía de Todos os Santos: aspectos oceanográficos . Salvador: Edufba, pp. 243-298. ; Franco et al ., 2013 FRANCO, Evelin D. S. S.; VIANA, Anderson S. LIMA, Ícaro M.; ANJOS, José Ângelo S. A. 2013. Avaliação físico-química das borras de petróleo, oriundas de antigos poços, existentes na região de são Francisco do Conde, Bahia. Seminário Estudantil de Produção Acadêmica , vol. 12: 85-99. ), este debate é insipiente na esfera pública para a efetivação dos direitos socioambientais das comunidades pesqueiras. 22 22 O Grupo Ambientalista da Bahia (GAMBÁ) possui um acervo de pesquisas sobre contaminação de petróleo e outros contaminantes industriais na Baía de Todos os Santos. Ver: https://www.gamba.org.br/category/textos . Acesso em 25 jul. 2023. Manguezais são ecossistemas sensíveis aos efeitos da contaminação por petróleo (Brasil, 2004 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. 2004. Secretaria de Mudanças Climáticas e Qualidade Ambiental. Especificações e normas técnicas para elaboração de cartas de sensibilidade ambiental para derramamentos de óleo . Brasília: MMA. ; Martins et al ., 2015 MARTINS, M. P; SILVA, M. O; AZEVEDO e V. P. SILVA. 2015. Produção de petróleo e impactos ambientais: algumas considerações. Holos , Vol. 6: 54-76. DOI https://doi.org/10.15628/holos.2015.2201
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), e por isso carecem de atenção especial por parte do poder público, que é omisso diante das evidências e denúncias oferecidas por pescadores e entidades atuantes em prol da defesa do meio ambiente e das comunidades pesqueiras da região. Em artigo recente analiso dois vazamentos de petróleo ocorridos no ano de 2018, e mostro as estratégias da Petrobras para dissimular e ocultar a gravidade dos vazamentos, seja manipulando mapas de incidentes em relatórios internos, seja minimizando sua gravidade para a mídia, seja emitindo pareceres conclusivos sobre a inexistência de riscos ao meio ambiente e às pessoas sem sequer considerar as versões e a realidade de quem habita os territórios contaminados (Buti, 2023 BUTI, Rafael Palermo. 2023. Histórias Contaminadas: alianças ambientais das comunidades pesqueiras e quilombolas contra a violência lenta do petróleo na Baía de Todos os Santos. Horizontes Antropológicos , Vol. 66, n. 2: e660405. DOI https://doi.org/10.1590/1806-9983e660405
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). 23 23 Um exemplo das estratégias de ocultação da gravidade dos vazamentos de petróleo é o relatório conclusivo da Petrobras relativo ao vazamento ocorrido em Dom João no ano de 2018, o mesmo que fez a senhora enterrar um caranguejo petrolizado. Este relatório está inserido na Ação Civil Pública nº 1010667-90.2019.4.01.3300 movida pelo quilombo Dom João contra a Petrobras (Brasil, 2019). Além de ocultarem no mapa do incidente a residência mais próxima do local de vazamento, concluem os técnicos responsáveis que “não foram encontrados animais petrolizados nem óleos em tocas de caranguejo”, e que “apesar do impacto ambiental momentâneo, não foram evidenciados agravos à saúde humana nem danos significativos à biodiversidade” (Idem: 160). Detalhe: o relatório foi concluído apenas um dia após a ocorrência. Análise da ação civil pública está em Buti, 2023.

Isso implica dizer que os manguezais da Baía de Todos os Santo, esses lugares da habitabilidade pesqueira afroindígena historicamente precarizados pelas fazendas de plantation e gado, se encontrou com as infraestruturas do petróleo, fazendo irromper estruturas de paisagens petrolíferas e seus seres contaminados. Essas infraestruturas transformaram radicalmente as paisagens de manguezal, precarizando lugares e suas vidas na curta e longa duração. O mangue que o petróleo criou nessa porção da Baía de Todos os Santos possui feições que lhes são inerentes, como prainhas de mangue morto, aterros sobre manguezais destruídos, ruínas de estações e tubulações desativadas, além das benfeitorias recentes que extraem e transportam o petróleo de suas profundezas geológicas indiferentes às geografias e ecologias de quem habita a superfície.

Malhas manchadas

Os problemas associados ao guaiamum nas estruturas de paisagem nos manguezais de São Francisco do Conde são a referência para a descrição da pesca artesanal na cidade. De um lado sua ocorrência diminuiu por conta das estruturas de paisagem agropastoril; de outro, sua existência contamina-se por conta das estruturas de paisagem petrolífera. Seguir o guaiamum nos permitiu conhecer formas de relação entre territórios e comunidades tradicionais com programas ligados à extração e movimentação de comodities. Há conectado ao guaiamum a pessoa do gaiamunzeiro: aquele que, simultaneamente, vive para capturá-lo e busca proteger e cuidar do seu modo de vida, de seu ambiente. Não cuidar do guaiamum e dos ambientes do guaiamum implica o fim do próprio modo de vida gaiamunzeiro.

Nas primeiras duas sessões deste texto trouxe as habitabilidades, saberes e práticas associadas à pesca do guaiamum vinculadas às paisagens afroindígenas. Àquela altura, eu descrevia as malhas dos trajetos andados por guaiamuns e gaiamunzeiros sem vinculá-las diretamente às manchas das infraestruturas agropastoris e petrolíferas que as conformam. Minha intenção era também positivar o modo de vida pesqueiro e mostrar que a vida sobrepõe a morte, e que é possível abarcá-la sem enfatizar dimensões do conflito e da injustiça. Ao introduzir as infraestruturas e suas estruturas de paisagem assumi tratar-se de uma descrição insuficiente para a compreensão de aspectos importantes ligados aos territórios pesqueiros.

Figura 15
Essa imagem repete os mesmos pontos georreferenciados da pesca do guaiamum da Figura 6. A diferença está na camada do mapa. Os pontos estão sobre os aterros no mangue no Marapé, construídos para viabilizar a Trincheira de Marapé (indicada por uma seta). Ao redor da Trincheira estão os mangues mortos conhecidos como prainhas, no entorno de um canavial localizado na parte superior à direita na imagem.

Figura 16
Essa imagem repete a Figura 8. Inclui as manchas petrolíferas no manguezal, como os aterros e as prainhas indicadas por setas.

É o que pretendo fazer agora: incorporar as manchas nas malhas para reescrever a habitabilidade gaiamunzeira levando em consideração as estruturas de paisagem agropastoril e petrolífera. Trata-se, aqui, de descrever a camada do desastre ecológico incrustrado na vitalidade da pesca do guaiamum. A digressão será acompanhada, novamente, de imagens e novos lugares incorporados às estruturas de paisagem já ilustradas. Será uma maneira de relacionar as malhas pesqueiras e suas andadas às manchas infraestruturais e suas injustiças. É importante, para isso, seguir o gaiamunzeiro. Voltemos, com ele, ao costeiro.

Pescar no costeiro

O gaiamunzeiro sai de sua casa remando. O faz pois este é seu trabalho. Gostaria de plantar mandioca e feijão, mas não pode porque não tem terra, a despeito de ser um filho dessa terra. Aliás, o gaiamunzeiro nasceu na condição de agregado de fazenda. Vivia no lugar, mas não era dono. Hoje mora em uma área de aterro erguida pela Petrobras para exploração petrolífera. Abandonada e arruinada, o gaiamunzeiro contribuiu para a recuperação ecológica da área: plantou árvores, ervas, sementes, operou a “retomada” de plantas, animais, guaiamuns e outras vidas. Cuida de muitas espécies. O gaiamunzeiro entende que o manguezal é o melhor lugar para se trabalhar, pois não tem patrão.

Por isso rema em direção ao costeiro, para pegar guaiamum. Em um ponto do trajeto a remo, ele escuta um ruído: é o som da Trincheira do Marapé, nome de um poço de produção de petróleo localizado em uma área de manguezal de nome homônimo. Este poço está conectado por dutos localmente conhecidos por linhas”, que atravessam o manguezal e o canavial transportando o petróleo do subsolo a um reservatório próximo.

Essas linhas sempre deixam o petróleo vazar, seja de modo quase imperceptível, de gota a gota, seja com algum rompimento. Uma destas linhas rompeu e matou uma importante área de pesca há pouco tempo. Na ocasião deste vazamento, o gaiamunzeiro questionou seus motivos aos petroleiros que tentavam limpar o mangue, mas ouviu deles que não era para os moradores habitarem o lugar. O gaiamunzeiro pensou: “petróleo pode?”.

Figura 17
Representação da poluição sonora da pesca nas infraestruturas do petróleo.

O gaiamunzeiro continua remando. O acesso ao Marapé se dá ou pelo mangue através do rio, ou pela estrada através do aterro. O gaiamunzeiro não vai pescar no Marapé, pois o aterro destruiu boa parte das áreas de costeiro, onde viviam os guaiamuns. Eles foram também expulsos pela cana-de-açúcar, que ainda viceja no lugar. Há muita contaminação no Marapé. O gaiamunzeiro disse que guaiamuns foram se transmutando no lugar, ficando aos poucos diferentes, enfraquecidos. Ali ele pesca ocasionalmente, pois os guaiamuns também ocuparam os aterros. Quando o faz, aproveita para chupar cana.

O gaiamunzeiro continua remando, se afastando dos ruídos do Marapé. Segue em direção ao porto em uma área de manguezal. No trajeto, desvia de um pedaço de ferro no meio do rio. É uma linha desativada que servia ao petróleo do campo Dom João, e hoje virou ruína. Na maré alta não há problema passá-la. Na maré baixa, caso o barco não desvie, poderá se acidentar. É um verdadeiro perigo para quem não é do lugar. É necessário conhecer os lugares produzidos pela estrutura de paisagem petrolífera.

O gaiamunzeiro segue seu trajeto e atraca no porto (voltar às Figuras 1 e 2). Desce com dificuldade e caminha pelas feições mais profundas do manguezal, na margem do rio. Sente muitas dores nas costas, efeito de seu trabalho de décadas pescando. Perambula até chegar em uma área mais dura do manguezal, onde continua caminhando em meio às árvores de mangue: visualiza alguns caranguejos menores e aratus nos troncos. Na medida que caminha, as árvores de mangue, os caranguejos e os aratus vão desaparecendo: tudo fica deserto e silencioso. É uma prainha: nome dado às áreas de manguezal mortas pela contaminação do petróleo.

Figura 18
Mangue morto pela Trincheira de Marapé. Estes lugares são também conhecidos por ‘prainhas’.

O petróleo deve ter vazado aos poucos e em longo período do poço próximo, ou por ocasião de alguma maré levando quantidade de petróleo ao lugar. Hoje está morto, sem árvore de mangue, sem caranguejo, sem marisco, sem marisqueira. Manguezal morre aos poucos, primeiro diminuem os caranguejos, depois secam as árvores, e logo seu destino está traçado. Seu silencio é o som da infraestrutura petrolífera. É possível recuperá-lo. Segundo o gaiamunzeiro, basta plantar as mudas de mangue “com amor”.

O gaiamunzeiro passa pela prainha até enfim chegar em terra firme: é um aterro. Esse caminho quem fez foi a Petrobras. Não existia, assim como as prainhas, a tubulação, o ruído no rio e o silêncio do mangue. Nada disso existia. Tudo isso existe hoje todo dia, como se sempre existisse. Não dá para ver, mas onde o gaiamunzeiro pisa tem um poço desativado de produção de petróleo. Hoje o mato tomou conta. Ao lado desse mato um pé de coco bem pequeno, foi plantado pelo gaiamunzeiro. Próximo está outro poço de exploração ativado. Nesse caminho de aterro duro erguido sobre as áreas mais úmidas e lamacentas do manguezal o gaiamunzeiro perambula em direção ao costeiro.

Figura 19
Limite entre mangue e um costeiro suprimido pelo monocultivo de cacau. As setas vermelhas indicam aterros e prainhas do petróleo.

Ele pode, já ali, observar o ambiente e aproveitar para armar algumas ratoeiras nas tocas, pois os guaiamuns, expulsos dos costeiros, colonizaram os aterros através das andadas. Sim, guaiamuns e humanos ressurgem nas ruínas. Não são muitos os guaiamuns que se pode pegar nos aterros, mas ajuda caso a pescaria não seja boa. O gaiamunzeiro arma duas ratoeiras nos aterros de petróleo, e segue em frente em direção aos costeiros. Já ouve os latidos dos cachorros fazendeiros, mas segue seu caminho à procura das tocas. É o som das infraestruturas agropastoris.

Por conta dos desmatamentos, os costeiros estão cada vez mais diminutos. Para acessá-los, entrecorta paisagens de pasto, cana-de-açúcar, cacau, dendezeiros, bananeiras, cercas (voltar à Fig. 4). Vai armando as ratoeiras uma a uma. Descontente com os costeiros, adentra em outro aterro erguido sobre os bosques de mangue: ali arma uma ratoeira. Findado o trajeto, adentra no mangue para tirar marisco, o faz com uma faca, nos troncos das árvores de mangue. Coloca os mariscos em um saco plástico que traz consigo. Terminada a etapa, reinicia o trajeto dos guaiamuns desarmando as ratoeiras, desfazendo a malha na medida que o saco de ráfia se enche. Coloca os guaiamuns no saco de ráfia.

No caminho de retorno ao barco, vai atrás dos dendezeiros, onde colhe dendês para fazer azeite e alimentar os guaiamuns. Extrai alguns limões-boi pelo caminho, que em ocasiões de aperto financeiro servem, junto aos dendês, para comercializar nas ruas da cidade ou na feira. Antes de entrar nos bosques de mangue, senta-se em uma ruína de petróleo para catar marisco . Há uma marisqueira fazendo a mesma coisa, e na medida que retiram as conchas, as jogam na terra em um dos montículos de cascas erguido do chão de aterro, como o faziam os habitantes milenares do lugar (voltar à Fig. 10). Ambos retornam para casa como o faziam os habitantes milenares do lugar: remando.

Figura 20
Gaiamunzeiro percorre um aterro de petróleo que liga o mangue aos costeiros.

A retomada dos guaiamuns

Habitar os manguezais de São Francisco do Conde implica necessariamente relacionar-se com as forças derivadas dos projetos agropastoris e petrolíferos. Se o modo de vida pesqueiro está imbricado com estes programas de extração e movimentação de comodities, o modo de morte também o está. Afinal de contas, guaimuns petroleiros, costeiros sem árvores, tocas tapadas por bois e fazendeiros, prainhas e aterros no mangue, latidos de cachorro e zunidos de espingarda dizem respeito à produção da morte. Há hoje na Baia de Todos os Santos engajamentos coletivos que resistem às violências impostas. Esse olhar vem dos quilombos. Produzindo a crítica ao latifúndio e ao racismo, é também contra as contaminações industriais que as comunidades quilombolas e pesqueiras vêm pautando sua agenda na construção de um futuro possível. Isso passa, necessariamente, pela regularização de seus territórios quilombolas e pelo reconhecimento dos territórios pesqueiros.

A construção desse futuro se baseia nos saberes antigos. Um deste está associado a noção de que a maré é uma só, e que sua força que dá vida às espécies e rege o ciclo dos peixes, mariscos, guaiamuns, pescadores e marisqueiras, pode levar também a contaminação de um lugar ao outro. Isso explica as contaminações mesmo em locais não diretamente afetados por um vazamento. Isso implica aos humanos a necessidade de cuidar dos lugares, guiar-se pelos saberes e práticas destes homens e mulheres da pesca artesanal da Baía de Todos os Santos.

O guaiamum está, desde 2014, na lista das espécies ameaçadas de extinção, conforme Portaria n.445/2014 do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Embora não esteja sozinho na lista, ele é o único crustáceo presente. Outro dispositivo infralegal do MMA datado de 2018, a Portaria Interministerial 38, dispõe sobre o Plano de Recuperação Local da espécie Guaiamum. Segundo esta Portaria, a partir de novembro de 2019 a captura e comercialização do guaiamum está proibida em lugares cujos pescadores não apresentaram Planos de Recuperação Local, sob o efeito da criminalização da prática e multa aos gaiamunzeiros.

Diante das exigências legais envolvendo a possível extinção do guaiamum e a proibição de sua pesca, gaiamunzeiros, caranguejeiros e marisqueiras dos quilombos de Dom João, Acupe, São Braz e Cambuta (em São Francisco do Conde e Santo Amaro) elaboraram o plano de recuperação do guaiamum dos seus territórios, configurando uma iniciativa propositiva e inovadora das comunidades pesqueiras do Brasil. 24 24 Intitulado Guaiamuns e Gaiamunzeiros na Baía de Todos os Santos: proposta das comunidades quilombolas pesqueiras de Santo Amaro e São Francisco do Conde para o Plano de Recuperação Local do Guaiamum na Região Norte da Baía de Todos os Santos (Bahia, Brasil), o documento está em fase de finalização. Ele é resultado das articulações das comunidades quilombolas com o CPP e o MPP da Bahia em conjunto com a Unilab e Fundaj. O que estes homens e mulheres dos manguezais ensinam é que o projeto de preservação da espécie passa não pela proibição de sua captura por parte do gaiamunzeiro, mas pela recuperação e preservação das áreas desmatadas e devastadas por fazendeiros e empresas mancomunadas com os tomadores de decisão do Estado. Não há, portanto, como estabelecer um plano de preservação e cuidado com o guaiamum sem responsabilizar os verdadeiros agentes de sua destruição.

A possibilidade de uma retomada dos guaiamuns engajada por pescadores e pescadoras artesanais quilombolas na Baía de Todos os Santos se dá como denúncia ao racismo, conflitos fundiários e destruição ambiental que conformam os territórios pesqueiros da região. Eles ensinam que as políticas de gestão e preservação da espécie guaiamum devem estar orientadas e embasadas pelas perspectivas, saberes e cuidados daqueles que os capturam, e não o contrário. Afinal de contas, são eles os conhecedores dos guaiamuns, que pisam no mesmo chão onde habitam, que testemunham suas histórias de vida e morte, e que cuidam dos seus ambientes de vida.

Ao discorrer sobre ação política Tupinambá na defesa de seus territórios, Cacique Babau ( 2019 BABAU, Cacique Tupinambá. 2019. Retomada. PISEAGRAMA , n. 13: 98-105. ) nos ensina que a retomada de terras é também um movimento de renascimento ecológico. Ao retomarem territórios, povos indígenas fazem ressurgir paisagens biodiversas vinculadas aos seus saberes ancestrais. A retomada dos guaiamuns aos seus lugares de ocorrência é também um renascimento ecológico. Ela implica, necessariamente, liberar as forças das infraestruturas neoextrativistas incrustradas nos manguezais em benefício da diversidade das muitas vidas que o habitavam, o habitam e que podem o habitar. A retomada dos guaiamuns é, também, a retomada dos manguezais, seus costeiros, matos, mangues, ostras, dendezeiros, rios e lamas. É também a retomada de sua gente: quilombolas, gaiamunzeiros, caranguejeiros e marisqueiras.

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  • SILVEIRA, Pedro Castelo Branco; BUTI, Rafael. 2020. A vida e a morte dos guaiamuns: antropologia nos limites dos manguezais. Anuário Antropológico , Vol. 45, n. 1: 117-148. DOI: https://doi.org/10.4000/aa.4945
    » https://doi.org/10.4000/aa.4945
  • SIMÕES. Mário F. 1972. Índice das fases arqueológicas brasileiras: 1950-1971 . Publicações Avulsas. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, n. 18.
  • TSING, Anna. 2021. O Antropoceno mais que humano. Ilha – Revista de Antropologia , Vol. 23, n. 1: 176-191. DOI https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75732
    » https://doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e75732
  • TSING, Anna L; MATHEWS, Andrew S.; BUBANDT Nils. 2019 Patchy Anthropocene: Landscape Structure, Multispecies History, and the Retooling of Anthropology. Current Anthropology , Vol. 60, Supp. 20: S186-S197. DOI 10.1086/703391
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  • VAILATI, Alex; D’ANDREA, Anthony. 2020. Antropologia da Infraestrutura no Brasil: desafios teóricos e metodológicos em contextos emergentes. Anthropológicas , Vol. 31, n. 2: 3-27. DOI: https://doi.org/10.51359/2525-5223.2020.249899
    » https://doi.org/10.51359/2525-5223.2020.249899
  • WATKINS, Case. 2015. African Oil Palms, Colonial Socioecological Transformation and the Making of an Afro-Brazilian Landscape in Bahia, Brazil. Environment and History , Vol. 21, n. 1: 13-42.
  • 1
    Agradeço aos gaiamunzeiros, pescadores e pescadoras artesanais de São Francisco do Conde e região por receber-me em suas casas e lugares de trabalho, permitindo-me aprender e conhecer um pouco sobre o modo de vida de quem vive da pesca nos manguezais. Agradeço também ao Conselho Pastoral dos Pescadores da Bahia (CPP) pelas atividades conjuntas realizadas ao longo dos últimos cinco anos. Espero que este texto possa contribuir para os direitos dos pescadores e pescadoras artesanais da Baía de Todos os Santos. Agradeço aos/às pareceristas da Revista de Antropologia, que foram fundamentais para seu aprimoramento.
  • 2
    Faço uso do termo neoextrativismo amparado em Santos e Milanez ( 2013 SANTOS, Rodrigo Salles Pereira dos; MILANEZ, Bruno. 2013. Neoextrativismo no brasil? uma análise da proposta do novo marco legal da mineração. Revista Pós Ciências Sociais , Vol. 10, n. 19: 119-148. ), que o define como “um modelo de desenvolvimento focado no crescimento econômico e baseado na apropriação de recursos naturais em redes produtivas pouco diversificadas” e associadas não só a extração de recursos minerais e do petróleo, mas às atividades agrárias e florestais (Idem: 121).
  • 3
    Ao longo do texto o itálico será empregado para destacar categorias constituintes do universo de pesquisa. Trechos de entrevistas e conversas serão registrados entre aspas.
  • 4
    Inserido na Região Metropolitana de Salvador, o município de São Francisco do Conde situa-se na porção norte da Baía de Todos os Santos, a 70 quilômetros da capital do estado da Bahia. De acordo com o censo do IBGE de 2010, 91,1% de seus aproximadamente 33 mil habitantes se autodeclararam negros. Ver: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/sao-francisco-do-conde/pesquisa/23/22107 . Acesso em 12 jul. 2023.
  • 5
    O guaiamum é popularmente conhecido no Brasil por goiamu ou gaiamum, esta, a designação comum na Baía de Todos os Santos. Gaiamunzeiro é como são conhecidos os pescadores de guaiamum na região. Costeiro é uma designação local sobre lugares de manguezal, não estando presente nas feições de manguezal tipificadas no Atlas dos Manguezais do Brasil (Schaeffer-Novelli 2018 SCHAEFFER-NOVELLI, Yara. 2018. “A Diversidade do Ecossistema Manguezal”. In: ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Atlas dos Manguezais do Brasil. Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, pp. 23-29. ). Os lugares de ocorrência deste crustáceo estão geralmente associados à feição de manguezal classificada por pesquisadores deste ecossistema como apicuns, caracterizadas por alta salinidade, menor influência da maré, além de normalmente desprovidas de vegetação arbórea (Santos e Ribeiro 2019 SANTOS, Maria do Carmo Ferrão; RIBEIRO, Fabiano Pimentel. 2019. Manejo da pesca do guaiamum: uma alternativa para conservação das áreas de apicum do nordeste oriental brasileiro. Revista CEPSUL - Biodiversidade e Conservação Marinha , Vol. 8: e2019004. DOI: https://doi.org/10.37002/revistacepsul.vol8.861e2019004
    https://doi.org/10.37002/revistacepsul.v...
    ; Schimidt et al., 2013 SCHMIDT, Anders J.; BEMVENUTI, Carlos Emílio; DIELE, Karen. 2013. Sobre a definição da zona de apicum e a sua importância ecológica para populações de caranguejo-uçá, Ucides cordatus . Boletim Técnico-Científico do CEPENE , Vol. 19, n. 1: 9–25. ).
  • 6
    A designação local mangue corresponde a feição do manguezal tipificada por “bosque de mangue” no Atlas dos Manguezais do Brasil (Schaeffer-Novelli, 2018 SCHAEFFER-NOVELLI, Yara. 2018. “A Diversidade do Ecossistema Manguezal”. In: ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Atlas dos Manguezais do Brasil. Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, pp. 23-29. ). Além dos bosques de mangues e apicuns, os “lavabos” constituem outra das três feições dos manguezais tipificadas no Atlas.
  • 7
    As ratoeiras são a armadilha utilizada em vários locais do Brasil para pescar o guaiamum. São construídas pelos próprios pescadores com materiais disponíveis em seu ambiente, incluindo uma estrutura cilíndrica que pode ser feita com garrafas PET, canos de PVC, embalagens plásticas diversas, latas de óleo ou de leite. Nela, o gaiamunzeiro encaixa uma isca em um arame ao fundo da ratoeira conectado à uma tampa aberta na extremidade frontal (que dá acesso ao guaiamum). Quando o guaiamum morde a isca na extremidade do fundo, a ratoeira se fecha na extremidade da frente. As iscas são frutas ou alimentos orgânicos de cheiro forte com poder de atração, como o limão, por exemplo.
  • 8
    Diante da diminuição da ocorrência dos guaiamuns, poucos são os gaiamunzeiros que vivem exclusivamente da pesca deste crustáceo na cidade. Há os gaiamunzeiros que saem para capturar guaiamuns para o consumo. Estes costumam levar menos ratoeiras.
  • 9
    O uso que faço da noção ingoldiana de malha é uma forma de evidenciar a dimensão dinâmica do cotidiano de pesca artesanal na região. Como veremos adiante, trata-se de um território produzido ao longo dos deslocamentos e aberto à muitas variáveis, que conferem à territorialidade pesqueira uma dimensão relacional e imprevisível. Segundo Ingold ( 2015 INGOLD, Tim. 2015. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição . São Paulo: Vozes ), a malha não é um “campo de pontos interconectados, mas de linhas entrelaçadas”, como trilhas (Ingold, 2015 INGOLD, Tim. 2015. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição . São Paulo: Vozes : 118). “Cada uma dessas trilhas revela uma relação […] ao longo da qual a vida é vivida […], nem começando aqui, nem terminando lá […], é simplesmente um fio em um tecido de trilhas que, juntas, compreendem a textura do mundo da vida” (Ibidem). Trata-se, aqui, de enfatizar a textura do mundo da vida de guaiamuns e gaiamunzeiros.
  • 10
    Para conhecer abordagem etnográfica da pesca do caranguejo em outra localidade do Nordeste, ver Pereira e Silveira ( 2021 PEREIRA, Lucas Coelho; SILVEIRA, Pedro Castelo Branco. 2021. Humanos e Caranguejos nos Manguezais do Delta do Parnaíba: histórias da paisagem. Anthropológicas , Vol. 32, n. 1: 1-36. DOI https://doi.org/10.51359/2525-5223.2021.248380
    https://doi.org/10.51359/2525-5223.2021....
    ).
  • 11
    A informalidade do extrativismo pesqueiro nos manguezais é decorrência do caráter muitas vezes intermitente da prática. Além dos pescadores que vivem exclusivamente da captura de guaiamuns, caranguejos e mariscos, há aqueles que pescam somente em períodos de ausência de emprego formal ou informal, bem como de escassez de alimento. Por isso não são formalmente reconhecidos como pescadores, embora possam passar longos períodos pescando. Há também invisibilidades impostas pelo próprio poder público, que não reconhece o seguro defeso do guaiamum e do caranguejo. Isso acaba por desestimular o reconhecimento formal desta modalidade de pesca, dificultando a produção de dados oficiais e a criação de políticas públicas voltadas à modalidade.
  • 12
    Agradeço ao gaiamunzeiro José Américo Borges pela cessão da imagem.
  • 13
    O período reprodutivo dos caranguejos e guaiamuns é regulado por lei, sendo popularmente conhecidos por “defeso”. Implica na proibição da captura e comercialização destes crustáceos nos períodos definidos pelos órgãos ambientais.
  • 14
    Ainda que ocupada por diferentes coletivos indígenas ao longo de sua história, a Baía de Todos os Santos estava majoritariamente habitada por povos Tupinambá no contexto da invasão europeia (Etchevarne e Fernandes, 2011 ETCHEVARNE, Carlos; FERNANDES, Luydy 2011. “Apontamentos para uma Arqueologia do Recôncavo Baiano”. In: CAROSO, Carlos; TAVARES, Fatima; PEREIRA, Claúdio. (Orgs). Baía de todos os santos: aspectos humanos . Salvador: EDUFBA, pp. 28-48 ). Sua ocupação pré-colonial engloba grupos de caçadores coletores sambaqueanos e horticultores ceramistas cuja datação mais antiga remonta 3 mil anos antes do presente. Registros arqueológicos mais antigos da região, os sambaquis são “o resultado de um padrão cultural de comportamento social derivado do acúmulo intencional de uma grande quantidade de conchas coletadas dos mangues”, usadas seja como base de alimentação, seja para a construção de montículos que serviam de aterro (Idem: 34). Importante local de pesca referenciado nas figuras 3, 12 e 13 deste artigo, a ilha de Cajaíba abriga um sambaqui não escavado com datação relativa de 2 mil anos antes do presente (Simões, 1972 SIMÕES. Mário F. 1972. Índice das fases arqueológicas brasileiras: 1950-1971 . Publicações Avulsas. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, n. 18. ).
  • 15
    Por paisagens afroindígenas pretendo apenas sugerir que os ambientes de manguezal na Baía de Todos os Santos reúnem, também, o acúmulo compartilhado de experiências, práticas e trocas ecológicas de africanos e indígenas na longa duração. A base para esta proposição deriva das noções de “indigeneidade das paisagens” (Balée, 2008), “paisagens afro-brasileiras” (Watkins, 2015 WATKINS, Case. 2015. African Oil Palms, Colonial Socioecological Transformation and the Making of an Afro-Brazilian Landscape in Bahia, Brazil. Environment and History , Vol. 21, n. 1: 13-42. ) e “paisagens afroindígenas” (Cardoso, 2019 CARDOSO, Thiago Mota. 2019. A arte de viver no Antropoceno: um olhar etnográfico sobre cogumelos e capitalismo na obra de Anna Tsing. ClimaCom – Fabulações Miceliais , ano 6, n. 14. ). É uma forma de evidenciar a dimensão milenar desse modo de habitar, fazer mundo e ser feito por ele, sua continuidade histórica à despeito do colonialismo, escravismo, genocídio e ecocídio impostos pelos povos eurodescendentes aos seus “outros” na América.
  • 16
    Catar marisco está ligado não à fase de captura, mas de beneficiamento dos mariscos, sendo o ato de tirá-los das conchas e limpá-los para consumo e venda.
  • 17
    O Instituto de Humanidades e Letras do campus dos Malês da Unilab está localizado no campus dos Malês em uma área próxima do manguezal no município de São Francisco do Conde.
  • 18
    “Cercas nas Águas: Derrubar”. Este é um grito de guerra entoado nas atividades e encontros dos Movimentos de Pescadores e Pescadoras Artesanais no Brasil. É deste movimento que emerge a campanha em prol da regularização dos territórios pesqueiros, que pode ser acessada em http:// www.peloterritoriopesqueiro.blogspot.com. Acesso em: 23 jul. 2023.
  • 19
    Agradeço ao colega Thiago Mota Cardoso pela cessão da imagem.
  • 20
    Trata-se do campo Candeias, descoberto em 1941, e do campo Dom João Terra, descoberto em 1947. Além destes, há o campo Dom João Mar, descoberto em 1954. Ainda que hoje a grande maioria do petróleo trabalhado pela refinaria seja proveniente dos campos offshore das bacias de Campos e Santos, a produção dos campos maduros do Recôncavo continua em atividade, contribuindo para alçar a Bahia ao segundo estado de maior produção em terra, e o quarto de maior produção nacional (Mendes et al., 2019 MENDES, André Pompeo A.; TEIXEIRA, Cássio Adriano Nunes ; ROCIO, Marco Aurélio Ramalho; PRATES, Haroldo Fialho. 2019. Produção de petróleo terrestre no Brasil. BNDES , Vol. 25, n. 49: 215-264. ).
  • 21
    A Petrobras concluiu, no dia 30 de novembro de 2021, a venda da Refinaria Landulpho Alves à empresa árabe Mubadala Investment Company, sediada em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos. Desde então a refinaria passou a chamar-se Refinaria de Mataripe. Para mais ver a reportagem de Douglas Correia ( 2019 CORREA, Douglas. 2019. “Petrobras conclui venda da Refinaria Landulpho Alves, na Bahia”. Agência Brasil . Rio de Janeiro, 30 nov. 2021. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-11/petrobras-conclui-venda-da-refinaria-landulpho-alves-na-bahia Acesso em 20 out. 2023.
    https://agenciabrasil.ebc.com.br/economi...
    ) para a Agência Brasil.
  • 22
    O Grupo Ambientalista da Bahia (GAMBÁ) possui um acervo de pesquisas sobre contaminação de petróleo e outros contaminantes industriais na Baía de Todos os Santos. Ver: https://www.gamba.org.br/category/textos . Acesso em 25 jul. 2023.
  • 23
    Um exemplo das estratégias de ocultação da gravidade dos vazamentos de petróleo é o relatório conclusivo da Petrobras relativo ao vazamento ocorrido em Dom João no ano de 2018, o mesmo que fez a senhora enterrar um caranguejo petrolizado. Este relatório está inserido na Ação Civil Pública nº 1010667-90.2019.4.01.3300 movida pelo quilombo Dom João contra a Petrobras (Brasil, 2019). Além de ocultarem no mapa do incidente a residência mais próxima do local de vazamento, concluem os técnicos responsáveis que “não foram encontrados animais petrolizados nem óleos em tocas de caranguejo”, e que “apesar do impacto ambiental momentâneo, não foram evidenciados agravos à saúde humana nem danos significativos à biodiversidade” (Idem: 160). Detalhe: o relatório foi concluído apenas um dia após a ocorrência. Análise da ação civil pública está em Buti, 2023.
  • 24
    Intitulado Guaiamuns e Gaiamunzeiros na Baía de Todos os Santos: proposta das comunidades quilombolas pesqueiras de Santo Amaro e São Francisco do Conde para o Plano de Recuperação Local do Guaiamum na Região Norte da Baía de Todos os Santos (Bahia, Brasil), o documento está em fase de finalização. Ele é resultado das articulações das comunidades quilombolas com o CPP e o MPP da Bahia em conjunto com a Unilab e Fundaj.
  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    15 Jun 2023
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
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