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Nos caminhos da lama: diálogos entre oleiras e marisqueiras através das fronteiras etnográficas sul-americanas

Through the paths of the mud: dialogues between women potters and shellfish gatherers across south american ethnographic boundaries

resumo

Este artigo compõe diálogos entre a antropologia indígena e a antropologia de comunidades pesqueiras. Analisa as técnicas produtivas e experiências corporais que mulheres oleiras e mulheres marisqueiras tecem com a lama em seus aspectos sensíveis e conceituais. Parte da noção de lama/barro, como entidade viva que possui dinâmicas materiais, históricas e afetivas singulares em cada contexto etnográfico. Assim, percorre relatos de mulheres das comunidades kichwa lamas na Amazônia Peruana e da Ilha de Itaparica na Costa Atlântica brasileira que, nos interstícios do antropo/capitaloceno, persistem nos caminhos da lama e da lua.

palavras-chave
Marisqueiras; oleiras; Kichwa Lamas; Itaparica; lama/barro

abstract

This paper composes dialogues between indigenous anthropology and the anthropology of fishing communities. It analyzes the productive techniques and bodily experiences that women potters and women shellfish gatherers weave with the mud in its sensitive and conceptual aspects. It starts from the notion of mud/clay as a living entity that has singular material, historical and affective dynamics in each ethnographic context. Thus, it goes through narratives of women from the Kichwa Lamas communities in the Peruvian Amazon and the Island of Itaparica on the Brazilian Atlantic coast who, in the interstices of the anthropo/capitalocene, persist in the paths of the mud and the moon.

keywords
Women selfish gatherers; women potters; Kichwa Lamas; Itaparica; mud/clay

Introdução

Trançando diálogos entre a antropologia indígena e a antropologia do campesinato e das comunidades pesqueiras, este artigo discute as relações corporais e sensíveis que as mulheres, nessas regiões etnográficas, estabelecem com a lama, entendida como um composto de terra, água e microrganismos. O intuito é mostrar consonâncias entre povos que, além das suas divergências geográficas, históricas e socioculturais, partilham modos de habitar e se relacionar com a terra e a água acoplados às fases da lua e aos ritmos e movimentos que estas geram em diversos tipos de lama. Propomos que as conexões entre mulher, lama e lua abram caminhos de estudo que não só nos permitam compreender a corporalidade, a partir de práticas e saberes femininos sobre a materialidade dos seres, mas também sobre a temporalidade e transformabilidade da paisagem, alimentos e artefatos. A lama/barro existe na transição entre os estados sólido e líquido, bem como entre os estados de decomposição, limpeza e sujeira, uma vez que a dinâmica da mistura desses elementos gera processos de compostagem, ou seja, a regeneração da fertilidade do solo através da proliferação de múltiplas vidas orgânicas. Lama é solo vivo, composto e compostagem.

Como argumenta Haraway ( 2016HARAWAY, Donna J. 2016. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham, Duke University Press.: 55), a ideia de compost , que em inglês reúne a noção de composto e compostagem, é um conceito forte que nos chama a reconsiderar nossas noções de humanidade diante dos dilemas decorrentes da destruição ambiental do antropo/capitaloceno. “Somos húmus, não homo , não anthropos; somos compostagem, não pós-humanos” (tradução nossa), diz a autora, chamando-nos a deixar de lado a face homo da história e a voltar a atenção para práticas de mistura que permitem renovar as potências da biodiversidade, através do envolvimento simpoético com a terra. É preciso aprender a ouvir as histórias protagonizadas pela multiplicidade de seres existentes que se entrelaçam entre si, a fim de abordar suas práticas de “devir-com” o outro, em que o homo é apenas mais uma personagem no trançado multiespécie. Nos tempos atuais, de precariedade e desorientação, diante da crise ambiental, “pensar-com” o outro é também reconectar-se às práticas dos povos com e da terra que persistem nos interstícios da devastação.

Fazendo eco com Haraway ( 2016HARAWAY, Donna J. 2016. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham, Duke University Press. ), voltamos nossa atenção para o trabalho simpoético com a terra, realizado por mulheres conhecedoras da lama que desenvolvem suas atividades em dois ecossistemas distintos: a mariscagem na ilha de Itaparica, no Nordeste do Brasil, e a cerâmica no sopé andino da Amazônia peruana. As primeiras são afrodescendentes e as segundas pertencentes ao povo indígena Kichwa Lamas, falantes de kichwa (quéchua) amazônico. Apesar de serem mulheres cujos saberes e fazeres são usualmente emoldurados por vertentes da Antropologia que pouco dialogam entre si, ambas as coletividades se relacionam com a terra não apenas como lugar de habitação, mas como acontecimento e sujeito com o qual convivem e se transformam. Nesse sentido, as mulheres e seus parentes, em ambos os contextos etnográficos, são “povos da terra” (Lewandowski; Santos, 2019LEWANDOWSKI, Andressa SANTOS, Júlia Otero dos. 2019. “Cosmopolíticas da terra contra os limites da territorialização”. Ilha, 21(1): 6-20.: 13; Souza et al ., 2016SOUZA et al. 2016. “T/terras indígenas e territórios conceituais: incursões etnográficas e controvérsias públicas”. Enteterras, 1(1): 1-60. ; Oliveira et al. , 2020OLIVEIRA, Joana Cabral de; AMOROSO, Marta; AMORIM, Ana Gabriela; DELIMA, SHIRATORI, Karen; MARRAS, Stelio EMPERAIRE, Laure. 2020. Vozes vegetais: diversidade, resistências e histórias da floresta. São Paulo, Ubu Editora/IRD. ). Assim, o texto procura aproximar as duas modalidades de experiência prática para compreender como tais mulheres constituem corpos-territórios na relação com a lama e a lua; contudo, enfatizamos que se trata de lamas com qualidades e fluxos diferentes, associadas a corpos, paisagens, tempos e modos de ser diferentes. De um lado, temos a lama/barro/argila da cerâmica amazônica, coletada nas minas, e limpa de organismos que fariam com que as peças moldadas se quebrassem quando queimadas. De outro lado, a lama do manguezal repleta de vida biológica, onde as marisqueiras imergem diariamente em suas atividades vitais.

Nosso objetivo é, portanto, sublinhar as confluências entre mulheres fazedoras de mundos e resistências/existências nos interstícios do antropo/capitaloceno, para pensar junto à Antropologia indígena e à Antropologia do campesinato e das comunidades pesqueiras, sem, no entanto, apagar suas singularidades. Primeiramente, introduziremos os dois lugares da nossa análise, suas histórias e os papéis das mulheres diante das atuais ameaças ambientais. Em seguida, nós nos concentraremos na imbricação entre a transmissão dos conhecimentos das mulheres e a conformação dos afetos e paisagens-tempos que sustentam a persistência de suas técnicas e poéticas do habitar. No terceiro tópico, nos interessamos por como elas concebem as fases da lua e seu impacto nas qualidades das lamas que manuseiam; e terminaremos examinando de perto a cinética corporal dessas mulheres quando elas interagem com a lama.

Lamas: cidade de oleiras

A cidade de Santíssima Cruz de los Motilones de Lamas foi fundada em 1656 para garantir o domínio espanhol sobre os povos autóctones que foram catequizados pelos jesuítas, usando o kichwa como língua franca. Hoje, ela tem cerca de 15 mil habitantes e é conhecida simplesmente como Lamas 1 1 A cidade de Lamas é a capital do distrito de Lamas, no departamento de San Martín. De acordo com alguns historiadores locais, o nome Lamas vem das numerosas minas de barro, mas não há consenso sobre esse ponto. As comunidades rurais kichwa lamas estão espalhadas em torno da cidade em diferentes níveis ecológicos do sopé andino, entre os 400 e 2.500 metros de altitude, que se comunicam por redes de caminhos pedestres, rios e riachos. As famílias falam uma variante amazônica do quéchua andino (Doria Rodriguez, 2004 ; Silva Jaime Tello, 2005 ; Volpi, 2022 ). , e sua população indígena é chamada Kichwa Lamas ou Kichwa Lamistas. Embora seja apenas coincidência, o nome Lamas homenageia a qualidade das minas de barro e a quantidade de cerâmica produzida pelas mulheres indígenas. A localidade também possui muitas nascentes nas quais as mulheres lavavam roupas e carregavam água em jarras de barro.

Localizada a 20 quilômetros de Tarapoto, um dos maiores polos de crescimento urbano, comercial e agroindustrial da Amazônia peruana, Lamas não é uma cidade alheia às transformações da paisagem dos últimos vinte anos, mas sua estrutura socioespacial continua expressando a antiga servidão imposta à população indígena, primeiro pelos espanhóis, depois pelos mestizos 2 2 Mestizo (mestiço) é a autodenominação comumente usada pela população das cidades peruanas de língua espanhola para quem não se autoidentifica como indígena. que monopolizam os empreendimentos de extração de recursos, produção agrícola e, recentemente, turismo. Os mestizos vivem na parte alta da cidade, enquanto os Kichwa Lamas vivem em Wayku, a parte baixa que estende sua influência às comunidades rurais, nas quais as famílias indígenas produzem alimentos e continuam cuidando coletivamente de suas nascentes (Santos Granero, 2003SANTOS GRANERO, Fernando. 2003. “Don Martín de la Riva Herrera y la conquista de los motilones, tabalosos, maynas y jíbaros”. In: RIVA HERRERA, Martin de la. La conquista de los motilones, tabalosos, maynas y jivaros. Monumenta Amazónica. Iquitos, Ceta, pp. 11- 49.: 22-31; Scazzochio, 1981SCAZZOCHIO, Françoise. 1981. “La conquête des motilones du Huallaga au XVIeme et XVIIeme siècle”. Bulletin de l´Institut Français d’ètudes Andines, 3-4: 9-111.: 103; Schellerup, 2001: 20-22; Chaparro, 2020CHAPARRO, Anahi. 2020. “Entrelazamientos entre cuerpos y territorio en la crianza Kichwa Lamista”. Amazonía Peruana, 16(33): 87-108. , 2021 CHAPARRO, Anahi. 2021. “Redes territoriales: relaciones de crianza kichwa lamista y San Martín como ‘región verde’”. Anthropologica, 49(46): 37-79. DOI: https://doi.org/10.18800/anthropologica.202101.002 .
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).

Na parte alta, ao contrário, a população mestiza fez descaso da delicada rede de nascentes, permitindo que seus esgotos contaminem a parte baixa da cidade e que empresas agroindustriais e produtoras de aves e suínos joguem seus resíduos nas antigas nascentes (Rondon Ramírez, 2016). Até hoje, as famílias kichwa lamas de Wayku não têm serviço de esgoto adequado e, devido à magnitude da contaminação gerada, elas também abandonaram a manutenção das nascentes na área urbana. Tudo isso impactou negativamente na olaria do povo Kichwa Lamas, pois uma das suas principais funções cotidianas era produzir jarras para levar água limpa da nascente até a casa. Além disso, a olaria foi prejudicada pela privatização do espaço público, pois as famílias mestizas botaram cercas nas terras no redor da cidade, cortando o livre trânsito, e construíram casas por cima das antigas minas de argila que existiam em abundância e, antes, estavam disponíveis para todos. Agora é preciso procurar o barro de qualidade fora da cidade e viajar de carro, uma ou duas horas, para coletá-lo.

As mulheres kichwa lamas, no entanto, continuam produzindo vasilhas de barro para venda a turistas e uso, especialmente para o uso festivo nas grandes celebrações coletivas do calendário anual de Lamas: carnavais em fevereiro, San Juan e San Pedro, em junho, e Santa Rosa Raymi, em agosto. Essas festas precisam de um arsenal de novas vasilhas para servir comida e chicha de milho em abundância. Elas são organizadas rotativamente e, cada ano, novos casais de cabezones são encarregados da fabricação dos vasos. É habitual que as mulheres das famílias de cabezones façam umas quinhentas peças de barro novas para receber os convidados. As principais peças para o uso festivo são jarras para fermentar chicha de milho ( hatun puyñu ), jarras para carregar água ( yakutera puyñu ), diversos tipos de panelas ( manka ), pratos para comida ( kallana ) e recipientes para servir chicha ( mokawa ). Depois de cada festa, os vasos são quebrados ou abandonados, e os pedaços de cerâmica espalhados pelas roças onde se misturam com a compostagem dos resíduos orgânicos no solo; mas, às vezes, depois muitos anos, os cascos de cerâmica serão moídos e reutilizados para fazer a massa de argila para os vasos que servirão para comemorar uma festividade futura. Apesar da contaminação e do despojo das minas, as mulheres e sua cerâmica continuam movimentando a reciclagem dos materiais e a engrenagem festiva da história kichwa lamas (Méndez Guerrero, 2010MENDEZ GUERRERO, Manuel. 2010. El arte de la cerámica lamista. Manual práctico. Madrid, Asociación Exterior XXI. ; Belaunde, 2016BELAUNDE, Luisa Elvira. 2016. “Corpo terra – tempo Lua: reflexões sobre o chão e a incerteza entre os quéchua-lamas da Alta Amazônia peruana”. In: VOLZ, Jochen RJEILLE, Isabella. 32ª Bienal de São Paulo: Incerteza viva. Dias de estudo. Pesquisa para a 32ª Bienal em Santiago, Chile; Acra, Gana; Lamas, Peru; Cuiabá e São Paulo. São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo; pp. 47-53. , 2017BELAUNDE, Luisa Elvira. 2017. Cerámica tradicional Kichwa Lamas de Wayku. Lima, Ministerio de Cultura. ).

Itaparica: ilhas de marisqueiras

A Ilha de Itaparica tem uma superfície de 239 quilômetros quadrados e mais de 36 quilômetros de comprimento, o que a torna a maior ilha marítima do Brasil. Ela possui dois municípios, Vera Cruz e Itaparica, e mais de 35 localidades. Itaparica é rodeada por pequenas ilhas, a maior delas é Matarandiba, que foi anexada alguns séculos depois da colonização ao território de Itaparica, devido a um aterramento marítimo. No período colonial, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, a violenta pesca de baleias para utilização do óleo fez da Ilha um ponto de interesse para a exploração portuguesa. Nos meados do século XIX, também se centralizou ali a produção naval portuguesa, e se desenvolveram algumas destilarias de cachaça, além da forte produção de cal oriunda das conchas de mariscos.

A Ilha foi palco de uma das batalhas mais importantes durante a luta pela independência da Bahia em 1822-1823. Um episódio marcou os enfrentamentos com as tropas portuguesas: seus navios foram cercados e incendiados por mais de duzentas pessoas, pretos (libertos – escravizados) e indígenas. O ataque foi liderado por Maria Felipa, uma mulher negra, liberta e marisqueira da Ilha. Alguns contam que os navios foram atraídos para os caminhos estreitos dos mangues, o que facilitou a vitória dos independentistas. Outros relatos descrevem que os homens das tropas portuguesas foram atraídos para os manguezais por um grupo de quarenta mulheres, lideradas por Maria Felipa, e que foram surrados com galhos de cansanção ( Jatropha Urens ) 3 3 Os relatos sobre Maria Felipa, apesar de terem sido pouco documentados pela história oficial, com exceção do livro de Eny Kleyde Vasconcelos Farias, publicado em 2010, estão presentes no imaginário social da ilha de Itaparica. Descrevemos aqui as duas principais narrativas sobre o enfrentamento das tropas portuguesas sob a liderança de Maria Felipa que uma das autoras recolheu através de conversas no campo, bem como em matérias de jornais e exposições museológicas que tratam sobre a independência da Bahia. . Maria Felipa foi pouco referenciada pela literatura histórica, mas sua luta é bastante conhecida pelos ilheenses de Itaparica e de comunidades do Recôncavo Baiano. Só recentemente ela foi oficialmente reconhecida e teve seu nome inscrito no Livro dos heróis e heroínas da pátria , através da Lei n 1.369, de 26 de julho de 2018.

O fim da colonização portuguesa e o fim da escravidão, anos mais tarde (1888), não puseram fim à exploração das terras e dos corpos das mulheres que lutaram e ainda lutam nesse território e em outros territórios indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais no Brasil. Nos meados dos anos 1960 uma empresa estrangeira passou a explorar as reservas de sal (salgema) no subsolo da Ilha de Matarandiba. Os comuns acordos de concessão de terras do governo com empresas extrativistas transnacionais permitiram à DOW Química exercer o controle sobre a maior parte das terras da Ilha de Matarandiba. A empresa é proprietária de quase todo o território, incluindo as terras já ocupadas pela comunidade 4 4 A ilha de Matarandiba tem uma área de 11,7 km². A mineradora DOW Brasil é proprietária de 97% desse território. (Brasil, Ministério de Minas e Energia CPRM - Serviço Geológico do Brasil. Relatório Preliminar : Ilha de Matarandiba/ Bahia , 2018 ) . Essa concessão/aquisição transformou completamente o território, modificou as dinâmicas, socialidades e relações com a mata remanescente da Mata Atlântica. As mulheres foram proibidas de tirar lenha na mata, a qual costuma ser utilizada para o cozimento dos mariscos; alguns caminhos foram fechados e novos foram abertos para a travessia dos pescadores e marisqueiras da mata até o mangue. Ademais, as mulheres relatam que no passado uma mortandade frequente de caranguejos e outros mariscos foi causada por vazamentos nos dutos de salmoura que atravessam os manguezais. A empresa também construiu a estrada de “terra batida” na ilha de Matarandiba. Na época, optou-se por um aterro marítimo no lugar de uma ponte, o que, segundo relatos de campo, causou o desaparecimento de grandes espécies de peixe na costa da Ilha. Atualmente, as duas ilhas, Itaparica e Matarandiba, estão conectadas por este caminho de terra.

Hoje, nas duas ilhas, as mulheres, assim como Maria Felipa, ainda têm a mariscagem como principal atividade produtiva e econômica. Elas coletam e capturam diferentes mariscos e crustáceos: chumbinho, ostra, sururu, aratu, siri, lambreta. A mariscagem é uma atividade pesqueira artesanal realizada quase que exclusivamente por mulheres para consumo próprio ou para comercialização local. Na maré de vazante (preamar), elas saem com os baldes equilibrados na cabeça e retornam na maré cheia. Elas “tiram marisco” (a ostra e o sururu) no mangue ou na beira do mangue. O manguezal é um ecossistema de transição marinho e terrestre encontrado nas zonas tropicais e intertropicais. É o habitat de uma diversidade de organismos e microrganismos: crustáceos, algas, moluscos, peixes, aves, larvas e bactérias. Além da sua rica biodiversidade marinha e terrestre, ele é reconhecido por seus benefícios para a proteção natural costeira e por seu alto potencial de captura e sequestro de carbono (Dahdouh-Guebas et al ., 2020DAHDOUH-GUEBAS et al. 2020. “Public perceptions of mangrove forests matter for their conservation”. Frontiers in Marine Science, 7. Disponível em: 603651. 10.3389/fmars.2020.603651.
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). As árvores que crescem apenas no manguezal têm a particularidade de poder viver em um solo quase desprovido de oxigênio e coexistir com a água salgada. Estas duas características dão aos arbustos um sistema de raízes aéreas e pneumatóforas, como o mangue vermelho ( Rhizophora mangle ) no primeiro caso e o mangue preto ( Avicennia germinans ) no segundo (Atlas dos Manguezais do Brasil, CPRM - Serviço Geológico do Brasil. Relatório Preliminar : Ilha de Matarandiba/ Bahia , 2018 BRASIL. Ministério de Minas e Energia. (2018) CPRM - Serviço Geológico do Brasil. Relatório Preliminar : Ilha de Matarandiba/ Bahia. Programa Geologia do Brasil Levantamento geológicos Básicos. https://rigeo.cprm.gov.br/jspui/bitstream/doc/20607/1/relatorio_matarandiba_07_nov_18_final.pdf
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).

Passados mais de duzentos anos da existência de Maria Felipa, as mulheres pretas de Itaparica e do Recôncavo Baiano resistem, no seu caminhar tortuoso pela lama do mangue, à invasão dos seus territórios e ao racismo ambiental que as expõem mais fortemente à poluição, aos produtos químicos e aos resíduos que resultam da exploração da indústria química (Boudia et al. , 2018 BOUDIA et al. 2018. “Residues: Rethinking chemical environments”. Engaging Science, Technology, and Society, 4: 165-178. DOI:10.17351/ests2018.245 .
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; Murphy, 2017 MURPHY, Michelle. 2017. “Alterlife and decolonial chemical relations”. Cultural Anthropology, 32(4): 494-503. 2017. https://doi.org/10.14506/ca32.4.02.%20o
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; Liboiron, 2021 LIBOIRON, Max. 2021. Pollution is colonialism. Durham, Duke University Press. DOI: https://doi.org/10.2307/j.ctv1jhvnk1 .
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). As marisqueiras também têm um papel importante na continuidade dessa paisagem multiespecífica. Nas técnicas de mariscagem, ao se revirarem os sedimentos à procura dos bivalves, também se auxilia na oxigenação do substrato e na liberação de nutrientes 5 5 São, sobretudo, os caranguejos que têm um papel essencial na oxigenação dos solos, nas suas incessantes escavações de tocas. que vão enriquecer o solo e renovar os espaços da vazante; ou seja, elas compõem com a lama, ao mesmo tempo que o solo alagadiço torna-se matéria orgânica para uma produção tecnossocial de alimentos.

Técnicas herdadas por mulheres em movimento

A relação entre persistência das técnicas produtivas e continuidade histórica dos povos indígenas e camponeses, anteriores ou nas margens da economia capitalista, é um tema clássico da Arqueologia e dos estudos da cultura material amazônica e do litoral brasileiro; mas, no sopé andino, frequentemente se fala em uma olaria sem gênero, “dos ceramistas”, apesar das evidências contemporâneas de que a olaria naquela região da Amazônia seja um fazer das mulheres. Da mesma forma, com frequência nos estudos do litoral brasileiro, fala-se sem gênero sobre as práticas de mariscagem que conduziram ao manejo dos manguezais e à formação dos sambaquis, ainda quando as evidências atuais apontam que as mulheres percebem os mangues costeiros da Costa Atlântica para além de uma fonte de subsistência, mas como lugar em que seus modos de ser se constituem.

Nossas etnografias abordam essas duas técnicas de utilização da lama, a partir de uma dimensão de gênero, focando nos conhecimentos e experiências das mulheres, mas também na sua inserção nas relações de parentesco singulares a cada contexto etnográfico. A olaria e a mariscagem são modos de criação que geram casas, afetos, corpos e territórios de mulheres que se movimentam.

Em Lamas, a olaria faz parte dos três conhecimentos que toda moça tem: produzir alimentos na roça, tecer cintos e faixas no tear de cintura, e “embarrar” ( llutakuy ), ou seja, fazer vasilhas de argila ( metu ). Esses três saberes estão interligados, explica Manuela Amasifuen Sangama, uma reconhecida oleira e liderança indígena: “quando você vai pra roça, precisa tecer os cintos e faixas para carregar cestas cheias de alimentos; para cozinhá-los e servi-los é preciso fazer vasilhas e potes e, também, jarras para levar a água, fermentar a chicha e guardar as sementes esperando a hora de semear”.

No pensamento kichwa lamas, a mulher é muito próxima das sementes, não só pela sua fertilidade, mas também pela sua mobilidade. “As mulheres, bem quanto as sementes, se movem e acabam florescendo em um solo distante de onde nasceram; somos caminhantes”, disse Manuela.

Numa pesquisa arqueológica desenvolvida em 1997, uma fotografia de Manuela sentada no chão, fazendo uma vasilha, é apresentada como modelo de “oleira de Lamas” (Silva Jaime Tello, 2005SILVA, Jorge JAIME TELLO, Cecilia. 2005. “Alfarería tradicional de los lamas”. In: VILLA RODRIGUEZ, Jose (ed.). El arte de vivir o la alegría sin límites de Felix Oliva. Sevilla, Fundación del Monte, pp. 127-160.: 149). Nessa época, ela já era uma oleira de destaque no Centro Artesanal Waska Waska Warmi Wasi (Casa da Mulher Trabalhadora), criado pelo município de Lamas em 1992 para promover a venda de produtos femininos. O referido estudo defende que a técnica aplicada por Manuela segue “[…] os mesmos padrões fabris e decorativos usados na década de 1940 […]”; e conclui que a olaria é um fator de persistência histórica e estabilidade cultural kichwa lamas, provavelmente desde séculos anteriores 6 6 Ver também Bartra del Castillo e Narvaez Vargas, 2012 , para um estudo da persistência histórica da cerâmica de Chazuta do lado de Lamas. . Vale notar, no entanto, que essa persistência não é uma relutância à mudança, mas sim uma expressão do modo como a mudança é concebida pelas oleiras.

Como toda menina da sua geração, Manuela aprendeu a olaria aos seis ou sete anos, imitando a sua mãe, sentada no chão usando o dorso de uma bandeja de madeira como mesa. Sua casa, como a maioria das casas kichwa lamas, é mobiliada com poucas coisas e todas têm usos múltiplos. A bandeja para ralar milho, mandioca e banana também serve como tabuleiro para a cerâmica. Hoje, bordeando os sessenta anos, o chão continua sendo o seu local de trabalho preferido. Essa postura corporal permite que ela tenha contato sensorial direto com a textura, a umidade e o cheiro da argila enquanto a prepara e molda. Além de produzir cerâmica, Manuela é fundadora das primeiras organizações de mulheres indígenas e associações de ceramistas para a venda turística. A necessidade de financiar os estudos escolares dos filhos a levou a decidir comercializar as vasilhas que fazia para uso próprio e festivo. Embora, no início, o marido se opusesse, ela conseguiu seu apoio na divisão das tarefas na roça. Para ela, a olaria é um instrumento de luta das mulheres pelos direitos dos povos indígenas e de geração de renda própria.

Quando ela era moça, fazer vasilhas de barro era requisito para se casar. Os matrimônios seguiam uma regra de exogamia virilocal. A mulher ia morar na terra do marido, que podia ficar longe, no alto das montanhas, nas ladeiras ou nas ribeiras dos vales, e devia se acostumar a conviver com a sogra e as cunhadas, plantando, tecendo e fazendo cerâmica ao lado delas. Ela pegava suas sementes de feijão, pimenta, milho e outras plantas, levava-as para sua nova casa embrulhadas num lenço e as guardava numa panela de barro até o tempo de plantio chegar. Quando voltava à sua casa natal para visitar a mãe, ela trazia mudas de sua nova terra para intercambiar. Hoje, o padrão de residência dos casais é mais variado, pois muitos vão para grandes cidades à procura de emprego e ensino superior para eles próprios ou para seus filhos, mas a movimentação das mulheres na paisagem e as trocas de sementes continuam, assim como o uso de panelas de barro para guardá-las (Belaunde, 2017BELAUNDE, Luisa Elvira. 2017. Cerámica tradicional Kichwa Lamas de Wayku. Lima, Ministerio de Cultura. ). Os movimentos das ceramistas estão imbricados nos afetos que fazem as casas e a criação de parentes.

Nas ilhas de Itaparica e Matarandiba, as meninas começam ainda bem jovens a catar mariscos, a maioria das marisqueiras dizem ter começado com dez ou doze anos a fazer esse trabalho. Atualmente, é menos comum o início precoce das atividades na maré. Apesar de já acompanharem suas mães quando crianças, fazem mais para brincar quando pequenas e ajudar quando estão mais crescidas. Brincar ocupa um sentido específico de uma aproximação ao mundo pesqueiro, tanto para pesca como para mariscagem. Aos poucos, as crianças se habituam à maré e, lentamente, aprendem os “ritmos” que definem essa atividade (Machado, 2019MACHADO, Renata Freitas. 2019. As folhas vermelhas do mangue: uma etnografia sobre os mortos, a morte e a maré em Matarandiba (BA). São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. DOI: 10.11606/T.8.2019.tde-17092019-155646.
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). As brincadeiras de criança garantem uma fabricação contínua do corpo. Um processo de experimentação que envolve todos os sentidos e que pode ser definido como uma “poética do habitar”, ou seja, as brincadeiras de criança na maré garantem uma percepção de uma paisagem particular (Ingold, 2018INGOLD, Tim. [2013] 2018. Marcher avec les dragons. Paris, Zones Sensibles: 49).

A chegada à vida adulta, o casamento e a maternidade são fatores que levam à intensificação do trabalho na maré. A ausência paterna, a viuvez ou a monoparentalidade são as principais causas apontadas para isso. Assim, como mães solo, elas garantem, através da venda do marisco, o sustento e a criação dos filhos e filhas. O trabalho na maré envolve um grande esforço físico, longas horas de exposição ao sol, a desvalorização do preço do marisco em relação ao peixe, dentre outras dificuldades; entretanto, as mulheres marisqueiras de diferentes gerações nos contam sobre os momentos passados na maré como momentos de partilha, de trocas, de aprendizado e afeto. Nos diferentes relatos sobre a experiência de viver da mariscagem, ressaltam com frequência: “criamos nossos filhos da/na maré, a nossa vida é a maré” (Machado, 2019MACHADO, Renata Freitas. 2019. As folhas vermelhas do mangue: uma etnografia sobre os mortos, a morte e a maré em Matarandiba (BA). São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. DOI: 10.11606/T.8.2019.tde-17092019-155646.
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).

Aqui é importante definir a categoria maré para uma compreensão mais ampla do que significa criar filhos e filhas nessa paisagem-tempo. A maré, nas Ilhas de Itaparica e Matarandiba, vai além de um fenômeno cíclico definido pelo avanço e o recuo das águas (Machado, 2019MACHADO, Renata Freitas. 2019. As folhas vermelhas do mangue: uma etnografia sobre os mortos, a morte e a maré em Matarandiba (BA). São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. DOI: 10.11606/T.8.2019.tde-17092019-155646.
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). A maré é paisagem-tempo de afetos, o lugar de pesca/coleta de marisco e do movimento das águas e dos corpos que assegura a produção e a reprodução social da vida (Machado, 2019MACHADO, Renata Freitas. 2019. As folhas vermelhas do mangue: uma etnografia sobre os mortos, a morte e a maré em Matarandiba (BA). São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. DOI: 10.11606/T.8.2019.tde-17092019-155646.
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). Uma paisagem-tempo em contínuo fluxo de transformação vital que envolve a relação dos diferentes seres que a compõem e são compostos por ela, incluindo a lama. A maré vai sendo constituída através da articulação de vários ritmos – os ritmos da maré; os ritmos da lua, os ritmos de gente, animais e plantas. Os filhos e as filhas de Matarandiba “são feitos e puxam a raiz da mãe” através de uma experiência sensorial em uma paisagem-tempo das águas, a maré (Machado, 2019MACHADO, Renata Freitas. 2019. As folhas vermelhas do mangue: uma etnografia sobre os mortos, a morte e a maré em Matarandiba (BA). São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. DOI: 10.11606/T.8.2019.tde-17092019-155646.
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).

Criar sozinhas os filhos na maré parece ser o caso das duas marisqueiras que protagonizam esta narrativa sobre as mulheres 7 7 No caso das marisqueiras, optou-se pelo uso de nomes fictícios. nos caminhos das lamas. Marina é uma senhora marisqueira de meia-idade, mãe de seis filhos e avó de quase uma dezena de netos e netas. Segundo seus relatos, ela começou a mariscar ainda muito jovem, acompanhava sua mãe no mangue. A mariscagem não foi a única atividade que ela fez na vida: também trabalhou em restaurantes, no tempo em que morou em Salvador, fez faxina para as casas de condomínio instalados na costa da Ilha de Itaparica e ainda, por muito tempo, foi a cozinheira chefe da rede de pousadas local. Ela não deixou de fazer as faxinas pontuais na vila ou nas casas dos veranistas da Ilha, principalmente no verão, quando o sol forte torna a atividade de mariscar ainda mais dura. Marina se aproxima da idade da aposentadoria, porém sua inscrição tardia na associação de pescadores para recolhimento do Guia da Previdência Social (GPS) retarda seus planos.

Assim como Marina, Edna também vive da lama, ou seja, dos mariscos que colhe na vazante da maré. Diferente de Marina, a preferência de Edna é a “cata do chumbinho”. Além de vizinhas, elas são quase parentes. Um parentesco associado à partilha dos netos. A filha mais velha de Edna, também marisqueira, casou-se com o filho mais novo de Marina e deu dois netos a elas. Uma das filhas gêmeas de Marina teve uma filha com o filho mais velho de Edna. Os netos e as netas às vezes acompanham as avós na rotina da mariscagem; ademais, o que elas têm em comum é terem criado os filhos na lama.

As luas da olaria e da mariscagem

Tanto a cerâmica como a mariscagem são técnicas sujeitas a ciclos e trazem reflexões sobre a temporalidade da produção dos utensílios de cozinha e alimentos, gerada pelos movimentos das mulheres e seus saberes-fazeres; porém, as singularidades dos contextos etnográficos analisados destacam-se claramente nas concepções sobre o ciclo lunar e sua influência na maneira como a água e a terra se misturam seguindo o ritmo da lua. Em ambos os casos, a lua tem um papel determinante nas técnicas realizadas pelas mulheres, mas há uma ciência da lua específica a cada paisagem-tempo que, além disso, difere da concepção canônica das fases da lua.

Em Lamas, o ciclo da lua começa com a llullu killa , ou seja, “lua bebê” ou “lua verde”, no sentido de algo que não é maduro. Essa lua é considerada pequena e cheia de água e, como os bebês recém-nascidos, ela “chora” ( llulay ) facilmente. Durante essa fase da lua, a terra também está carregada de água, embora possa não parecer. A água da lua está na terra, por isso, as peças de cerâmica feitas com o barro coletado durante a llullu killa pingam água. Mesmo que tenham sido bem queimadas, ficarão porosas e úmidas. “Elas vão chorar como bebês.”

Cinco dias depois do início da llulu killa , vem o quinto , uma palavra em espanhol usada pelos kichwa lamas para o ponto de inflexão em que a lua deixa de ser “bebê” e passa a ser “jovem”. No “quinto” começa o processo que conduz para a mengua (“míngua”), uma palavra em espanhol usada pelos kichwa lamas para indicar que a lua vai secando enquanto ela cresce e endurece. A mengua atinge seu ponto culminante na sumak killa , a “lua em plenitude”, formosa e totalmente visível no céu, devidamente crescida, seca e dura. Depois da mengua , a lua perde progressivamente seu vigor até voltar pra llullu killa (Pratec, 2001PRATEC. Crianza del monte en los Quechua-Lamas. Lima, Pratec. 2001. ). Ressaltamos que devemos evitar confundir a fase chamada mengua pelos Kichwa Lamas e a fase chamada “lua minguante” em espanhol e português. A mengua para os Kichwa Lamas se refere à mudança da lua quando ela chega à plenitude. A “lua minguante” ibérica se refere à diminuição do tamanho do astro visível no céu. No calendário lunar kichwa lamas, o período mais adequado para coletar o barro, prepará-lo e queimar as peças, e fazer várias outras atividades produtivas, é do “quinto” até a sumak killa , ou seja, durante a mengua . Para conseguir “fazer crescer” ( wiñachiy ) vasilhas e panelas que não deixem pingar a água, que sejam duras e perdurem sem quebrar facilmente, é preciso coletar e preparar o barro durante o tempo em que a lua também está crescendo, secando e endurecendo.

Além do exposto acima, é preciso respeitar as “dietas”, os resguardos praticados com antecedência. As dietas incluem consumo de alimentos especiais e banhos com plantas, assim como abstinência sexual e proibições alimentares e de comportamento; tipicamente, evitar doces, sal e carnes vermelhas e com muita gordura, guardar repouso e isolamento e manter distância durante a menstruação. Quando uma pessoa cumpre bem a dieta que lhe foi prescrita para um fim – por exemplo, poder recolher ou fazer ferver as resinas para impermeabilizar as vasilhas –, um dos efeitos notáveis é a mudança do seu cheiro corporal. Ela deixa de cheirar às substâncias sexuais e à gordura dos animais que ela come e que são repulsivas às entidades com quem precisa interagir (Belaunde, 2017BELAUNDE, Luisa Elvira. 2017. Cerámica tradicional Kichwa Lamas de Wayku. Lima, Ministerio de Cultura. ; Rengifo, 2009RENGIFO, Grimaldo. 2009. El retorno a la naturaleza. Apuntes sobre Cosmovisión Amazónica desde los Quechua-Lamas. Lima, Pratec. , 2010RENGIFO, Grimaldo. 2010. Los caminos de la sal: el regreso al territorio excluido. Efectos del Fondo de Iniciativas de Afirmación Cultural (FIAC) en la recuperación de los ámbitos de comunidad de los Quechua-lamas. Lima, Pratec. , 2015RENGIFO, Grimaldo. 2015. Según el gusto y las ganas. Lima, Pratec. ).

“A argila tem ciúmes” 8 8 O ciúme da argila é um tema chave entre vários povos amazônicos dessa região, falantes de kichwa e de línguas da família linguística jivaro, mas não é possível aprofundar o tema no escopo deste artigo (Belaunde, 2017 ). , explica Manuela. “Ela quer ser bem tratada. Quando ofendida, ela vai embora, fazendo com que a mina de barro desapareça.” 9 9 Existem minas de quatro tipos de barros nas proximidades de Lamas. O barro avermelhado para fazer a base de panelas; o barro cinza para fazer as vasilhas para servir comida e as jarras para beber; e as terras amarelas e brancas que servem para pintar as vasilhas antes de queimá-las (Mendez Guerrero, 2010 ; Belaunde, 2017 ). Por isso, as pessoas não podem coletar argila, queimar cerâmica ou preparar resinas se tiverem relações sexuais ou estiverem menstruadas. Antes de extrair o barro, é preciso “pagar a terra”, oferecendo fumaça de tabaco e cinzas. “Meu marido me acompanha. Ele fuma seu mapacho (charuto) e deixa as cinzas no solo em oferenda.” Se ele tiver feito resguardo nos dias anteriores à coleta, será ainda melhor. A oferenda agradará a argila. Você não pode remover o barro com um recipiente de plástico ou metal. Você deve pegá-lo com uma cabaça ( winku ) e depois carregá-lo em uma cesta ou saco. Manuela explica: “se não cumprir, o barro bom vai embora. Da próxima vez que você for procurar, não encontrará. Você só encontrará argila de má qualidade, cheia de água, pedrinhas, organismos e lixo orgânico que fazem as peças explodirem quando queimadas”. O barro é um sujeito com poderosos afetos; tem capacidade de locomoção e pode virar uma lama suja e cheia de água.

Na vila de Matarandiba, as senhoras mais velhas contam que no tempo delas era comum que um bebê recém-nascido fosse mantido de resguardo até a primeira noite da lua cheia. Uma vez chegada a “noite de lua”, as mães juntavam os pertences do bebê e iam até a praia. Chegando lá, elas berçavam os pertences e, como uma dança, direcionavam os objetos para a lua ao som do seguinte cântico:

Lua, Lua, Luar

Toma teu filho e me ajuda a criar.

Uma vez que a mãe e a lua passam a compartilhar os primeiros cuidados com o neném recém-chegado, ele está protegido e pode receber visitas e ser conhecido pela comunidade.

O período no qual a lua permanece completamente iluminada pelo sol, ou simplesmente as noites de lua cheia, é também o período de maior amplitude da maré. Assim, parece que mais uma entidade entra em cena e compartilha com as mães os cuidados com as crianças. Não é por acaso que as marisqueiras costumam se referir à maré como a mamãe carinhosa , e, ao fazerem referência à maré boa para mariscar, elas costumam dizer: “Amanheceu a mamãe carinhosa”. Essa mamãe, que se torna ainda mais carinhosa nos períodos de lua cheia e nova, permite às mulheres um ritmo mais intenso de trabalho e mais horas mariscando até que a maré cubra por completo os movimentos circulares que elas fazem na lama ao escavar o marisco na vazante ou arrancar as ostras enraizadas nos mangues. A maré, no final, torna-se mãe de todo mundo, das marisqueiras e dos filhos e filhas que elas têm.

As marisqueiras estabelecem suas rotinas de trabalho de acordo com a maré, não apenas nos dias, mas também nas semanas. As mulheres intensificam seu trabalho na maré boa (maré de maior amplitude). Por outro lado, durante o período da maré baixa, no quarto crescente e no quarto minguante, as mulheres se ocupam com outras atividades: beneficiamento dos pescados (oriundos da pesca feita pelos homens), faxinas nas casas de classe média e média alta, fora da ilha. Assim, as forças gravitacionais que resultam nos movimentos das marés definem os ritmos de vida e trabalho das mulheres. Elas seguem o calendário cíclico da maré; todavia, não somente se adaptam às variações da maré, mas também moldam esses ritmos (Krauze, 2013KRAUZE Franz. 2013. “Seasons as rhythms on the Kemi River in Finnish Lapland”. Ethnos, 78(1): 23-46. DOI: 10.1080/00141844.2011.623303.
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). Uma perspectiva que leva em consideração as dinâmicas ecológicas e sociais, ou seja, os conhecimentos locais sobre esses fenômenos, e que foi anteriormente apresentada no caso das mulheres kichwa lama, sobre as diferentes fases da lua. Ademais, essas variações fazem parte de uma categoria mais ampla, nomeada pelas mulheres marisqueiras como ritmos , os quais são aprendidos de geração em geração, com as mães, tias e avós, e correspondem a um complexo conjunto de técnicas, gestos e conhecimentos ecológicos sobre paisagens, movimentos e temporalidades das marés (Machado, 2019MACHADO, Renata Freitas. 2019. As folhas vermelhas do mangue: uma etnografia sobre os mortos, a morte e a maré em Matarandiba (BA). São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. DOI: 10.11606/T.8.2019.tde-17092019-155646.
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).

“Fazer crescer” como o barro

Voltando para a cidade de Lamas, focamos agora nos movimentos mais detalhados dos corpos das oleiras na interação direta com o barro. Descrevemos os procedimentos cotidianos, que se repetem com ligeiras variações, por vezes quase imperceptíveis, mas cujo ritmo e efeito cumulativo sustentam o processo de preparar a argila e “fazer crescer” o barro, criando artefatos de cozinha. Sublinhamos que a palavra kichwa “fazer crescer” ( wiñachiy ) é utilizada para diferentes modos de criação, como a criação das plantas e das crianças. Literalmente, uma vasilha de barro é um corpo com barriga ( wiksa ), pescoço ( kunka ), boca ( shimi kara ) e lábios ( wira ) (Mendez Guerrero, 2010MENDEZ GUERRERO, Manuel. 2010. El arte de la cerámica lamista. Manual práctico. Madrid, Asociación Exterior XXI. ; Belaunde, 2017BELAUNDE, Luisa Elvira. 2017. Cerámica tradicional Kichwa Lamas de Wayku. Lima, Ministerio de Cultura. ).

Depois de coletar o barro das minas mais distantes da cidade, chegando em casa, as oleiras o deixam no chão, exposto ao sol, para secar completamente, e para que todos os insetos ou vermes ali presentes desapareçam ou morram. Os torrões endurecidos são colocados numa bateia e embebidos em água durante um dia; após o que as oleiras passam a remover à mão todas as impurezas orgânicas, fibras e pedrinhas, e a esfarelar os torrões até conseguir uma massa uniforme de barro pronta para ser misturada com o shañu . Este é o ingrediente que precipita uma mudança, pois atua como desengordurante e aglutinante para dar resistência e plasticidade ao barro. É um produto da reciclagem da cerâmica que liga as novas vasilhas às antigas, que quebraram e ficaram como lixo jogado na roça até serem reintroduzidas no ciclo da olaria.

Para fazer shañu , os pedaços de potes velhos são triturados em um moinho de pedra e passados ​​na peneira até se obter um pó bem fino. A proporção de shañu e barro é aproximadamente um terço por dois terços. “Antes, encontrávamos na roça pedaços de vasilhas bem grossas. Essas não foram feitas pelas nossas avós. São potes dos aucas , dos antigos habitantes, anteriores a nós”, explica Manuela. As vasilhas feitas com auca shañu são, no seu ver, mais resistentes, mas, hoje, é difícil encontrá-las. A mistura da argila preparada se faz também no solo, pisando o barro e o shañu com o talão . A partir desse momento, a massa preparada está pronta. Ela começa a endurecer e deve ser moldada em vasilhas em poucos dias.

“Embarrar” ( llutakuy ) é uma dança entre a terra e a água, impulsionada pelo movimento circular e côncavo de corpos e instrumentos 10 10 As técnicas da olaria kichwa lamas têm fortes semelhanças com as práticas de outros povos amazônicos falantes do kichwa no Norte do Peru e no Equador. (Bartra del Castillo Narvaez Vargas, 2012 ; Mezzenzana, 2014 , 2015 , 2018 ; Cardenas Piedrahita, 2017 ; Premaur Marroquin, 2016 ; Sjöman, 1991 ; Whitten, 1991). . Sentada no chão, Manuela rodeia a bandeja de madeira com as pernas para equilibrar sua postura, mantendo uma postura ereta e o olhar voltado para o trabalho. Do lado da bandeja repousa uma tigela com água e vários raspadores, chamados llunkunas , feitos de tiras dos winku (cabaças) com diferentes curvaturas. É necessário pegar um punhado de argila preparada nos dias anteriores e girar as palmas das mãos até formar uma bola; em seguida, a bola é colocada na bandeja e esmagada com o golpe seco de um palmo. Assim nasce a base da vasilha, chamada enilla , que prefigura todas as curvas as quais serão completadas para “fazer crescer” seu corpo.

Pegando outro punhado de barro, Manuela o amassa com a palma da mão contra a bandeja até formar um rolo homogêneo, chamado chunchulli , que ela coloca na borda da bandeja. Quando ela tem vários chunchullis prontos, começa a aplicar a técnica do enrolamento, colocando os rolos ao redor da borda da enilla , apertando-os com as pontas dos dedos e raspando-os com as llunkunas . O olhar sempre atento da oleira vai observando a peça de todos os ângulos enquanto cresce e endurece, pois ela remove com cuidado todos os caroços, pedras, fibras ou restos orgânicos que possam causar a quebra da peça durante a queima. Com os dedos, mede constantemente a regularidade da curvatura da vasilha que se abre na barriga e fecha no pescoço. Umedece as paredes internas e externas apenas o suficiente para não enfraquecer o corpo ao raspar com as llunkunas secas ou molhadas, e deixa a peça secar de vez em quando, segurando-a no ar com uma das mãos enquanto faz novos chunchullis , com a outra. Para dar os últimos toques, usa llunchinas , fatias de casca de banana verde e madura, que servem para alisar o pescoço e a fina curva dos lábios do corpo formado.

Embora “embarrar” seja claramente uma expressão da intencionalidade subjetiva da oleira e das ligações intersubjetivas que ela mantém com as pessoas que lhe ensinaram, a ceramista não é a única protagonista neste processo. Não é somente ela que dá forma ao barro, mas uma força circular e côncava que se manifesta nas relações do seu olhar com as mãos, os braços e as pernas, os raspadores e os alisadores, o tabuleiro, a terra, a água, ou seja, todos aqueles que intervêm na coreografia executada no chão. No final, a vasilha obtida é uma pegada tridimensional de todos os movimentos, passo a passo, o que o diálogo corpo a corpo – atento entre a oleira, a terra e a água – possibilita. A motricidade da oleira, a ritmicidade da coreografia performada com a lama, e a execução cuidadosa das técnicas cotidianas de transformação da matéria são indissociáveis do olhar voltado para a tarefa.

O corpo tomado pela lama

As oleiras e as marisqueiras, nos seus diferentes movimentos, parecem partilhar o direcionamento ao chão, mas, na mariscagem, trata-se de um chão úmido e vivo, cheio de microrganismos. As marisqueiras caminham pelo chão lamacento, abrindo caminhos no manguezal, e, com os corpos curvados na lama, iniciam uma busca incessante por mariscos; ao retornarem para casa, elas se sentam no chão para cozinhar, limpar e triar o marisco coletado.

Dentre os vários mariscos encontrados no mangue e na vazante, é a ostra o bivalve de preferência de Marina para coleta e venda. Por vezes ela tira outro marisco por encomenda (sururu ou chumbinho), mas, “se fosse por gosto”, ela só tiraria a ostra. Segundo Marina, a ostra é mais fácil de tirar e não “força a coluna ao se curvar e levantar”, movimentos necessários para mariscar o chumbinho ou o sururu. A justificativa da escolha não é um tema de consonância entre as marisqueiras, ou seja, elas se justificam diferentemente: o gosto para comer, o gosto para tirar, o preço cobrado, o tempo consagrado para aquela atividade, o local para se coletar (se tem muita lama ou não). Tem marisqueira que prefere passar mais tempo no mangue do que na triagem do marisco, outras preferem tirar o marisco rápido e passar mais tempo na triagem.

Nas suas jornadas de mariscagem, Marina depende sobretudo da maré grande (nas luas cheias e nova), para a realização da atividade. A ostra é um dos mariscos que nascem em maior quantidade nos bosques mais escondidos do mangue, com predominância para o mangue vermelho; por isso a necessidade de mariscar na maré grande, quando a maré enche e esvazia por completo, nos lugares onde a lama mais mole cobre acima dos nossos tornozelos, o que torna a mariscagem quase um trabalho de equilibrista. Além do equilíbrio necessário para se manter em pé na lama, também é necessário saltar as raízes do mangue, entrando e se entrelaçando às plantas para não perder nenhuma ostra.

Marina segue para o mangue acompanhada de uma espada e um balde. A espada, como é nomeada pelas marisqueiras, é um facão com as pontas em formato triangular, com sua lâmina gasta pelo uso, cujo cabo é amarrado por um tecido velho em cotton . A imagem de Marina com sua espada é marcante. A espada serve para desenraizar as ostras das raízes do mangue e também auxilia na limpeza do caminho de passagem pelas matas e pelo mangue, além de ser utilizada para cortar a lenha que servirá para o cozimento do marisco.

O caminho até o mangue costuma ser longo, Marina atravessa a reserva de Mata Atlântica pelas trilhas abertas pela empresa mineradora 11 11 A reserva legal remanescente de Mata Atlântica é gerida pela empresa que decide quais caminhos ficarão abertos ou fechados para a passagem da população. . O caminho é entrecortado por tubos que levam o sal extraído até o continente. Os dutos de sal atravessam a lama do mangue, e Marina precisa atravessá-los para seguir até o mangue. Ao chegar ao mangue, ela passa o primeiro apicum (feição do mangue) e segue por um caminho estreito, no qual a lama começa a cobrir os seus tornozelos. Marina vai analisando pelo caminho se tem ostra bastante que valha a pena parar e ficar; chegando ao “lugar bom” para começar a coletar, ela coloca o balde no chão, recupera sua espada e começa a procurar ostras, entrelaçando-se entre as raízes do mangue. O ritmo incessante do atrito da espada sobre as raízes produz um ruído singular no mangue, que se mistura com o som das diferentes espécies presentes: um som de sucção, típico de uma espécie de crustáceo, forma uma paisagem sonora particular no mangue.

A técnica utilizada pelas referidas mulheres para colher as ostras deixa cicatrizes nas raízes e ramos dos manguezais. Mesmo que os mangues tentem regenerar o tecido perdido no corte, as marcas permanecem até a morte. As cicatrizes das árvores dos mangues vermelhos servem como calendário e dão uma ideia de quantas marés grandes (lua cheia e nova) passaram desde a última coleta naquele local. Não são apenas os manguezais que são “marcados” por essa atividade: os braços das mulheres também estão cheios de cicatrizes do corte das ostras. Na colheita ou na triagem, às vezes por distração, as mulheres se ferem ao manusearem o marisco que costuma ter suas extremidades bem afiadas como uma “espada”.

As mulheres também deixam marcas na lama com seus passos incessantes no caminhar tortuoso pelas trilhas abertas nos manguezais. As marcas deixadas na lama, que retratam sua atividade, são recobertas a cada novo avanço e recuo da maré; todavia, há ainda as marcas de lama que restam nos corpos, seja a secura deixada por conta do contato intenso com o ambiente salino, ou o cheiro forte característico da lama composta de vida, a marca da mariscagem.

O trabalho das mulheres não termina quando a maré enche. Quando voltam para casa, é hora de cozinhar as ostras coletadas na fogueira de lenha, e, uma vez cozidas, as mulheres retiram a carne das conchas para congelá-las e colocá-las à venda. A fase de beneficiamento é realizada coletivamente entre parentes e vizinhas. As ostras cozidas são comercializadas em pequenas quantidades dentro da vila ou vendidas, em maior quantidade e mais baratas, aos atravessadores que revendem aos restaurantes de Itaparica por um preço mais elevado.

Edna, a outra marisqueira que protagoniza esta narrativa, tem o chumbinho como marisco de preferência para colheita. As técnicas e os locais para a colheita da ostra e a do chumbinho são diferentes. A colheita do chumbinho resulta dos movimentos rápidos de raspagem da lama com um cavador (faca torta, como um gancho). Edna raspa “a flor de areia”, camada mais fina e argilosa que cobre a superfície da lama nas vazantes do mangue, e esse movimento repetitivo produz um som diferente daquele produzido pela coleta das ostras, sendo muito mais um som de fricção do toque rápido do cavador sobre as cascas do bivalve. Edna costuma ficar em pé com o corpo curvado, entretanto, às vezes, ela alterna essa postura permanecendo quase de cócoras, sem fincar por completo os pés no chão. O cansaço a faz alternar esse movimento, deixando que o peso do corpo penda para uma das pernas. Assim como a olaria de Lamas, a cata do chumbinho também é uma coreografia executada no chão, pois, enquanto Edna cava com a mão direita, com a esquerda segura os chumbinhos; aos poucos, quando sua mão está cheia, ela despeja os mariscos no “ajuntador” (pequeno balde). Ela circula pela beira do mangue, à medida que tudo ao seu redor já foi cavado, e a maré aos poucos avança, cobre as marcas que ela deixa na lama, e lhe dá referência do tempo que passa (Machado, 2019MACHADO, Renata Freitas. 2019. As folhas vermelhas do mangue: uma etnografia sobre os mortos, a morte e a maré em Matarandiba (BA). São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. DOI: 10.11606/T.8.2019.tde-17092019-155646.
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). Ao final, é o movimento que define a atividade de mariscagem, o movimento das mãos, do corpo das mulheres por inteiro e das marés no vai e vem dos seus ciclos diários e semanais.

O chumbinho, tal como a ostra, é vendido já beneficiado. O trabalho de beneficiamento começa ainda na maré, quando as mulheres lavam o marisco e retiram toda a lama; em seguida, elas o cozinham e o beneficiam nos quintais da casa ou na mata, com os pequenos fogos improvisados que são feitos para essa função. O cozimento provoca a abertura das conchas, e, no caso da ostra, facilita a abertura do bivalve, já que a morte do molusco provoca o enfraquecimento do músculo que tem a capacidade de abrir e fechar o bivalve para sua nutrição. Uma vez finalizada a triagem, o fruto do mar é ensacado, e sua quantidade ou peso é medida com a ajuda de uma lata (de molho de tomate). Três latas equivalem a um quilo de marisco; após esse processo, as mulheres congelam e aguardam um comprador ou atravessador interessado.

Conclusões

Os movimentos das mulheres aqui retratados constituem “técnicas corporais” (Mauss, 1950MAUSS, Marcel. [1935] 1950. Sociologie et Anthropologie. Paris, PUF.) cujas mobilidades são socialmente moldadas e cujas ritmicidades, como defende Leroi-Gourhan ( 1993LEROI-GOURHAN, Antoine. 1993. Gesture and speech. Cambridge, MIT Press. ), surgem nas recorrentes regularidades cinéticas em marcha. Seguindo Ingold (2018), abordamos o movimento como relação, pois, em ambos os contextos etnográficos, nas populações indígenas e entre as marisqueiras afrodescentes, a percepção e o conhecimento do entorno e dos materiais estão intrinsecamente ligados ao corpo da mulher na sua relação com o chão, quando ela se senta, fica de pé ou se movimenta, criando caminhos que interpelam a diversidade de seres e de ritmos que compõem a sua poética do habitar. Com Ingold ( 2011INGOLD, Tim. 2011. Being alive: essays on movement, knowledge and description. London, Routledge. ), vemos que, mais do que habitar uma paisagem predeterminada pelas qualidades naturais do meio ambiente, as oleiras e as marisqueiras habitam uma taskscape , ou seja, um horizonte de tarefas a serem realizadas no mundo vivido, sensorial e afetivo. Conhecer é movimento para realizar tarefas, e vice-versa, movimento é conhecimento e narração das tarefas-paisagens.

Em ambos os casos etnográficos, a execução das técnicas produtivas cotidianas se processa por etapas minuciosas, mas transforma o entorno e assenta espaços de poder das mulheres que vão bem além do doméstico. Como argumenta Pazzarelli ( 2010PAZZARELLI, Francisco. 2010. “La importancia de hervir la sopa. Mujeres y técnicas culinarias en Los andes”. Antípoda. Revista de Antropología y Arqueología, 10: 157-181. ), em seu estudo sobre as cozinhas do Norte da Argentina, gestos óbvios como lavar, limpar, deixar de molho, secar, descascar, cortar, picar, moer, rechear, ferver, coar etc. transbordam seus objetivos funcionais de tornar os alimentos comestíveis. O monopólio da cozinha pelas mulheres possibilita as técnicas de transformação que sustentam a reprodução das casas e a ordem do mundo andino, regido por entidades poderosas mais que humanas, como a terra e as montanhas tutelares. Fazer a sopa, então, é também ir “[…] libertando e incorporando as energias necessárias para a continuidade da vida, em todos os seus sentidos” (Pazzarelli, 2012: 176).

Estudos recentes das comunidades camponesas de Minas Gerais também apontam para as técnicas de cozinha como poder de transformação da mulher. A produção de pessoas e os ensinamentos que envolvem essa produção “passam pela grande roda do fogão” (Alves, 2018ALVES, Yara. 2018. “As mães que enraízam e o mundo que gira: criação e movimento no Vale do Jequitinhonha-MG”. Tessituras, 6(2): 193-213. ). Ainda como descrito por Carneiro ( 2010CARNEIRO, Ana. 2010. O povo parente dos buracos: mexida de prosa e cozinha. Rio de Janeiro ,Tese de doutorado em Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Antropologia Social, PPGAS/MN-UFRJ. ), o “sistema do povo” dos Buracos é aquele em que, através da ação feminina na cozinha, “a comida puxa a prosa que puxa a comida”; ou seja, “no pé do fogão”, as mulheres “com a mão boa” conhecem o tempo certo e a maneira eficaz de preparar e ofertar a “comida da roça”, que é criadora de prosas, relações, corpos e pessoas. Desse fazer e de sua temporalidade, desdobram-se os efeitos políticos dos processos de coletivização engajados entre a cozinha, o quintal e a beira do rio (Carneiro, 2020CARNEIRO, Ana. 2020. “Le temps des visites: philosophie politique de la maison dans une localité du Sertão de Minas Gerais”. BRÉSIL(S) – Sciences Humaines et Sociales, 1: 2-21. ). No caso das oleiras kichwa lamas e das marisqueiras de Itaparica, a lama e seu acoplamento cíclico com a lua (e a maré nas ilhas) assumem a posição ocupada pela roça, a casa de forno, a “roda do fogão” e cozinha.

A lama é um sujeito com qualidades e afetos mutantes; é solo vivo, mas a sua composição e ciclos variam de acordo com o lugar e os corpos das mulheres que o trabalham. Retomando o fio da introdução do nosso artigo e o chamado de Haraway ( 2016HARAWAY, Donna J. 2016. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham, Duke University Press. ) para priorizar a compostagem, vemos que emergem as singularidades da olaria e da mariscagem no que diz respeito às suas modalidades de compostagem. Na olaria, temos processos de reciclagem da lama em que a compostagem está sujeita à engrenagem das gerações de mulheres e vasilhas de barro. A olaria se faz no chão, o lugar da ancestralidade, com o barro das minas e os cascos das vasilhas que as gerações passadas deixaram para se juntarem ao húmus no solo das roças e, depois, serem convertidos em pó para dar fortaleza às novas vasilhas. Assim, há gerações de vasilhas tanto quanto gerações de oleiras, e, em cada nova geração, misturam-se os restos dos corpos do passado com a lama recentemente tirada da terra, mas limpa de organismos que poderiam causar a quebra das vasilhas no momento de queimá-las.

Na mariscagem, o ecossistema do mangue está repleto de tramas relacionais de coexistência entre microrganismos, mariscos, crustáceos, caranguejos, manguezais e catadoras de mariscos (Pereira Silveira 2021 PEREIRA, Lucas Coelho; SILVEIRA, Pedro Castelo Branco. 2021. “Humanos e caranguejos nos manguezais do Delta do Parnaíba: histórias da paisagem”. Revista AntHropológicas, [S.l.], jun. DOI: https://doi.org/10.51359/2525-5223.2021.248380 .
https://doi.org/10.51359/2525-5223.2021....
; Silveira Buti, 2020 SILVEIRA, Pedro Castelo Branco BUTI, Rafael Palermo. 2020. “A vida e a morte dos guaiamuns: antropologia nos limites dos manguezais”. Anuário Antropológico, 45 (1): 117-148. DOI: https://doi.org/10.4000/aa.4945 .
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; Machado, 2019MACHADO, Renata Freitas. 2019. As folhas vermelhas do mangue: uma etnografia sobre os mortos, a morte e a maré em Matarandiba (BA). São Paulo, Tese de doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. DOI: 10.11606/T.8.2019.tde-17092019-155646.
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). Meulemans e Granjou (2021: 6) propõem “[…] maneiras de conceber, de conhecer e gerir os solos como entidades ecológicas, vulneráveis e vivas que são ativas e ao mesmo tempo dinâmicas” (tradução nossa). Os autores criticam a forma de pensar o solo, enquanto segundo plano, para uma existência biológica e social na sua superfície ou simplesmente como matéria-prima empobrecida para exploração capitalista, industrial e de plantation . Apesar do reconhecimento dos autores sobre a existência social e política dos solos, não há uma referência aos solos de zonas alagadiças em que a fronteira entre terra e água é porosa, como no caso das vazantes, manguezais ou zonas ribeirinhas. Assim, nossa proposta é pensar o solo/lama como matéria orgânica semelhante à compostagem para diferentes produções tecnossociais, levando em consideração as dinâmicas temporais e os seres vivos que compõem e são compostos por essa entidade.

Seguindo os caminhos da lama para pensar modos de trançar diálogos entre fronteiras etnográficas, chegamos, então, a caracterizar algumas das singularidades e confluências em torno das mulheres. Tanto no caso das marisqueiras de Itaparica, quanto das oleiras kichwa lamas, o corpo-território pertence à mulher, mas vai além dela. “O que acontece no corpo da mulher acontece fora dele, conectando mundos, e vice-versa, os seres e mundos de fora encontram-se no corpo-território da mulher” (Belaunde Nieto Moreno, 2023 BELAUNDE, Luisa Elvira NIETO MORENO, Juana Valentina. 2023. “Cosmo-climatología amazónica: friaje, menstruación y conexiones femeninas murui”. Revista Española de Antropología Americana, 53(2): 281-296. DOI: https://doi.org/10.5209/reaa.84466 .
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: 292). A riqueza das etnografias aqui apresentadas reside na ênfase das mulheres sobre a eficácia das técnicas cotidianas e dos processos de transmissão dos seus saberes-fazeres. Processos que envolvem experiências corporais das novas gerações em ambientes específicos (a floresta amazônica e os mangues), o que nos remete a pensar com Ingold (2018) em ecologias sensíveis, poéticas do habitar, ou, como nos indica Haraway ( 2016HARAWAY, Donna J. 2016. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham, Duke University Press. ), em um trabalho simpoético de “devir com” a terra.

A lama, nas suas diferentes modalidades, a lua e a maré não são ideias distantes, mas seres com quem as mulheres interagiram desde crianças e continuam a interagir no dia a dia para criar suas famílias e gerar coletividades que encaram os desafios das ameaças ambientais do antropo/capitaloceno. Diante da atual proliferação de narrativas de destruição (Kirksey Helmreich 2010 KIRKSEY, S. Eben HELMERICH, Stefan. 2010. “The emergence of multispecies ethnography”. Cultural Anthropology, 25(4): 545-576. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1548-1360.2010.01069.x .
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), “pensar com” as histórias das mulheres indígenas e de comunidades pesqueiras nos caminhos da lama e da lua nos reconecta às trajetórias de luta que, como diz Tsing ( 2019TSING, Anna Lowenhaupt. 2019. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília, IEB/Mil Folhas. ), “perturbam nossas certezas” e nos compelem a criar formas de parentesco com o chão.

Agradecimentos

Agradecemos às mulheres marisqueiras de Matarandiba e às oleiras Kichwas Lamas, especialmente, à Manuela Amasifuén Sangama, o acolhimento e o tempo dedicado para nos receber durante a pesquisa de campo. Somos gratas também ao grupo Gênero e políticas da terra pelos encontros que resultaram na produção deste artigo e do dossiê, aos pareceristas anônimos pelos comentários nas versões anteriores deste texto, bem como agradecemos a leitura atenta de Ana Carneiro, além da revisão textual de Mazé Guimarães.

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  • 1
    A cidade de Lamas é a capital do distrito de Lamas, no departamento de San Martín. De acordo com alguns historiadores locais, o nome Lamas vem das numerosas minas de barro, mas não há consenso sobre esse ponto. As comunidades rurais kichwa lamas estão espalhadas em torno da cidade em diferentes níveis ecológicos do sopé andino, entre os 400 e 2.500 metros de altitude, que se comunicam por redes de caminhos pedestres, rios e riachos. As famílias falam uma variante amazônica do quéchua andino (Doria Rodriguez, 2004SORIA RODRÍGUEZ, Waldemar. 2004. Relatos históricos de Lamas. Tarapoto, Gobierno Regional de San Martín-Municipalidad Provincial de Lamas. ; Silva Jaime Tello, 2005SILVA, Jorge JAIME TELLO, Cecilia. 2005. “Alfarería tradicional de los lamas”. In: VILLA RODRIGUEZ, Jose (ed.). El arte de vivir o la alegría sin límites de Felix Oliva. Sevilla, Fundación del Monte, pp. 127-160. ; Volpi, 2022VOLPI, Laura. 2022. “La sangre no puede mentir. Entre una concepción genético-estratégica del territorio y una manera relacional de ver el mundo”. Anthropologica, 39(46): 115-141. ).
  • 2
    Mestizo (mestiço) é a autodenominação comumente usada pela população das cidades peruanas de língua espanhola para quem não se autoidentifica como indígena.
  • 3
    Os relatos sobre Maria Felipa, apesar de terem sido pouco documentados pela história oficial, com exceção do livro de Eny Kleyde Vasconcelos Farias, publicado em 2010, estão presentes no imaginário social da ilha de Itaparica. Descrevemos aqui as duas principais narrativas sobre o enfrentamento das tropas portuguesas sob a liderança de Maria Felipa que uma das autoras recolheu através de conversas no campo, bem como em matérias de jornais e exposições museológicas que tratam sobre a independência da Bahia.
  • 4
    A ilha de Matarandiba tem uma área de 11,7 km². A mineradora DOW Brasil é proprietária de 97% desse território. (Brasil, Ministério de Minas e Energia CPRM - Serviço Geológico do Brasil. Relatório Preliminar : Ilha de Matarandiba/ Bahia , 2018 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. 2023. Atlas dos manguezais do Brasil. Brasília, Diretoria de Ações Socioambientais e Consolidação Territorial em Unidades de Conservação, 2018. Disponível em: https://ava.icmbio.gov.br/pluginfile.php/4592/mod_data/%20content/%2014085/atlas%20dos_manguezais_do_brasil.pdf .
    https://ava.icmbio.gov.br/pluginfile.php...
    )
  • 5
    São, sobretudo, os caranguejos que têm um papel essencial na oxigenação dos solos, nas suas incessantes escavações de tocas.
  • 6
    Ver também Bartra del Castillo e Narvaez Vargas, 2012BARTRA DEL CASTILLO, Juana NARVAEZ VARGAS, Luis Alfred. 2012. Chazuta: arte ancestral. Tarapoto, Gobierno Regional de San Martín. , para um estudo da persistência histórica da cerâmica de Chazuta do lado de Lamas.
  • 7
    No caso das marisqueiras, optou-se pelo uso de nomes fictícios.
  • 8
    O ciúme da argila é um tema chave entre vários povos amazônicos dessa região, falantes de kichwa e de línguas da família linguística jivaro, mas não é possível aprofundar o tema no escopo deste artigo (Belaunde, 2017BELAUNDE, Luisa Elvira. 2017. Cerámica tradicional Kichwa Lamas de Wayku. Lima, Ministerio de Cultura. ).
  • 9
    Existem minas de quatro tipos de barros nas proximidades de Lamas. O barro avermelhado para fazer a base de panelas; o barro cinza para fazer as vasilhas para servir comida e as jarras para beber; e as terras amarelas e brancas que servem para pintar as vasilhas antes de queimá-las (Mendez Guerrero, 2010MENDEZ GUERRERO, Manuel. 2010. El arte de la cerámica lamista. Manual práctico. Madrid, Asociación Exterior XXI. ; Belaunde, 2017BELAUNDE, Luisa Elvira. 2017. Cerámica tradicional Kichwa Lamas de Wayku. Lima, Ministerio de Cultura. ).
  • 10
    As técnicas da olaria kichwa lamas têm fortes semelhanças com as práticas de outros povos amazônicos falantes do kichwa no Norte do Peru e no Equador. (Bartra del Castillo Narvaez Vargas, 2012BARTRA DEL CASTILLO, Juana NARVAEZ VARGAS, Luis Alfred. 2012. Chazuta: arte ancestral. Tarapoto, Gobierno Regional de San Martín. ; Mezzenzana, 2014MEZZENZANA, Francesca. 2014. “Doing it like real runa women and men a runa ceremonial festival”. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America. 12(1): 61-79. , 2015MEZZENZANA, Francesca. 2015. Living through forms: similarity, knowledge and gender among the Pastaza Runa (Ecuadorian Amazon). 294 p. London, Thesis (Ph.D.), The London School of Economics and Political Science (LSE). , 2018 MEZZENZANA, Francesca. 2018. “Moving alike: movement and human-non human relationships among the Runa (Ecuadorian Amazon)”. Social Anthropology/Anthropologie, 26(2): 238-252. DOI:10.1111/1469-8676.12486 .
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  • 11
    A reserva legal remanescente de Mata Atlântica é gerida pela empresa que decide quais caminhos ficarão abertos ou fechados para a passagem da população.
  • Financiamento

    Luisa Elvira Belaunde contou com o financiamento da Universidad Nacional Mayor de San Marcos RR 005557-2022-R/UNMSM, Projeto E22150121 do Programa Proyectos de Investigación para grupos de investigación Pconfigi-2002. Renata Freitas Machado contou com o financiamento IFRIS – Institut Francilien Recherche, Innovation, Société e da unidade de pesquisa PALOC – Patrimoines locaux, environnement & globalisation do MNHN (Paris) para a realização da sua pesquisa.
  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    02 Out 2023
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