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Uma teoria etnográfica das religiões de matriz africana

GOLDMAN, Marcio. Do outro lado do tempo: Sobre religiões de matriz africana. Rio de Janeiro: 7Letras, 2023. 1. 284

O mais recente livro de Marcio Goldman, Do outro lado do tempo: sobre religiões de matriz africanaGOLDMAN, Marcio. Do outro lado do tempo: Sobre religiões de matriz africana. Rio de Janeiro, 7Letras, 2023. 1ª ed, 284p. , reúne sete textos produzidos ao longo de quase quarenta anos, juntamente com um inédito. Este volume, que faz parte da Coleção Ecos, vinculada ao Núcleo de Filosofia da Criação (IFCS-UFRJ), proporciona uma análise minuciosa do desenvolvimento de algumas das mais significativas e influentes transformações na antropologia das religiões ao longo das últimas décadas. Nele, os leitores têm a oportunidade de testemunhar um bem-sucedido trabalho de pesquisa de longa duração que integra uma etnografia consistente, o debate teórico e a teoria etnográfica, conforme o autor já demonstrou em seus trabalhos sobre o tema da política (Goldman, 2006 GOLDMAN, Marcio. 2006. Como funciona a democracia: Uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro, 7Letras. ). Nesse sentido, cabe ressaltar a justa insistência em levar a sério o que dizem os “nativos” na mesma medida em que levamos a sério o que “dizem” os autores de teorias antropológicas.

Conforme Goldman observa, este livro é uma “espécie de continuação, preâmbulo e contraponto” (30) à sua publicação anterior, Como funciona a democracia: Uma teoria etnográfica da política ( 2006 GOLDMAN, Marcio. 2006. Como funciona a democracia: Uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro, 7Letras. ). Essa continuidade se dá tanto porque ambos os livros estão situados no mesmo contexto etnográfico, quanto porque se apoiam na noção malinowskiana de “teoria etnográfica”. Por outro lado, o livro representa uma contribuição significativa para a antropologia simétrica ao levantar a questão: qual é o “grau de verdade [que] somos verdadeiramente capazes de aceitar no discurso nativo”? (40). Para Goldman, “se há alguma singularidade na antropologia, esta só pode consistir em uma disciplinada subordinação aos pontos de vista que se sabe ou se imagina que aqueles que estudamos adotam” (40).

Os dois primeiros capítulos, “A construção ritual da pessoa: a possessão no candomblé (1985)” e “Candomblé (1990)”, são textos fundamentais para a análise que o autor inaugura ao contrastar com as interpretações externalistas, então predominantes nos estudos das religiões de matriz africana. Publicado inicialmente em 1984, o capítulo I introduz temas e abordagens que continuarão presentes ao longo da obra do autor. Sua crítica da antropologia das religiões de matriz africana então praticada no Brasil cria as condições para a emergência de uma pesquisa inovadora. Para Goldman, não seria a estrutura da sociedade abrangente, nem a noção de indivíduo moderno ocidental que deveria pautar o estudo da possessão, mas sim a estrutura do culto em que estavam inseridos e a noção de pessoa dos iniciados. Esta abordagem inaugura a perspectiva na qual a possessão é vista como um fenômeno complexo que leva em conta, no mínimo, dois devires: o devir do santo e o devir da pessoa. O orixá é considerado uma “força natural cósmica” (71) diversa em si mesma, e a pessoa é vista como múltipla. “[…] [O] ser humano é pensado no candomblé como uma síntese complexa, resultante da coexistência de uma série de componentes materiais e imateriais […]” (79). O assentamento das entidades faz com que o filho de santo torne-se ligado não mais a forças abstratas, mas a orixás individualizados. Retomando uma importante tese de Ordep Serra ( 1978 SERRA, Ordem. 1978. Na trilha das crianças: os erês num terreiro Angola. Brasília, Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília. ), Goldman sustenta que o que se faz na iniciação é tanto o santo quanto a pessoa (ori).

Igualmente importante é o reenquadramento dos estudos do ritual a partir da leitura de Levi-Strauss. Goldman advoga, já nesses textos, por uma atenção aos sistemas rituais nas religiões de matriz africana de modo similar à análise da lógica das mitologias, ainda que de modo distante das aproximações funcionalistas dos rituais. Essa empreitada se baseia em um entendimento dos rituais como parte de um sistema integrado. Enquanto o mito insere descontinuidades no âmbito do pensamento totêmico, o ritual busca restabelecer continuidades no plano da experiência. No candomblé, em que o tema fundamental da mitologia é a separação entre Aiê e Orum, todo aparato ritual tenta recriar a continuidade entre o mundo dos vivos e os mundo dos orixás. Esse assunto é aprofundado no segundo capítulo, de 1990, “Candomblé”, no qual o autor formula a tese de que, “ao lado de uma lógica metafórica” própria dos sistemas totêmicos, no candomblé existe uma “lógica metonímica que busca o contato e que responde pelo caráter propriamente religioso […] de todo o sistema” (100).

O capítulo III, “Formas do saber e modos do ser: Observações sobre multiplicidade e ontologia no candomblé”, originalmente publicado em 2005, investiga os princípios ontológicos do candomblé, destacando que estes parecem estar mais relacionados a “devires e multiplicidades do que [a] estados do ser concebido como fundamentalmente único” (107). O autor sustenta que tais princípios estão diretamente ligados à epistemologia do candomblé, que se baseia no que os iniciados costumam chamar de “catar folhas”, uma forma de aprendizado assentado na suposição de que o conhecimento não está dado e que enfatiza a necessidade da relação entre mestre e aprendiz. Esse processo lento de produção do conhecimento se assemelha ao gradual desenvolvimento da pessoa, possivelmente porque é parte da iniciação.

No quarto capítulo, “Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: Ensaio de simetrização antropológica” (2009), o autor aborda um tema da antropologia dos objetos, que à época estava amadurecendo, por meio de debates sobre o conceito de “fetiche”. Goldman refuta as abordagens funcionalistas predominantes nos anos 1970 que sustentavam que as religiões de matriz africana estariam se degradando ou que o sincretismo religioso comprometeria a conexão de tais religiões com o continente africano. Ele reafirma a pertinência da hipótese bastidiana de que essas religiões atualizam tendências já existentes, argumentando que “como no caso dos mitos estudados por Levi-Strauss, estamos sempre às voltas com sistemas em que cada singularidade pode e deve ser tratada como uma transformação das demais”. O capítulo V, “Cavalo dos deuses: Roger Bastide e as transformações das religiões de matriz africana no Brasil”, de 2012, propõe uma reinterpretação do antropólogo francês, desviando-se das críticas reducionistas dos anos 1970. Além disso, e retomando a teoria etnográfica do “catar folhas”, propõe uma mudança de postura em relação aos autores clássicos: menos como doutrina, mais como “ folhas entre tantas outras” (162, ênfase original).

Um outro tema de grande relevância na história da antropologia é abordado no capítulo VI, “O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil”. Nele, além de fazer uma leitura crítica de algumas das principais abordagens da dualidade expressa nas díades inato-adquirido, natureza-cultura, dado-feito, Goldman mais uma vez introduz um ponto de fuga por meio da teoria etnográfica do candomblé. Ele problematiza a própria natureza da questão após demonstrar que, nessa religião, tal dualidade não é evidente, como se pensava. Assim, demonstra que o processo de criação é pensado segundo a lógica da confirmação – e não segundo modelos ex-nihilo judaico-cristão ou hilemórfico grego –, que seria a “revelação das virtualidades que as atualizações dominantes contêm ”, ou ainda que “todos os seres já existem mesmo antes de serem feitos”.

No sétimo capítulo, “‘Nada é igual’: Variações sobre a relação afroindígena”, de 2021, Goldman explora a relação entre negros, indígenas e brancos por meio do conceito deleuziano de minoração , demonstrando ser possível deslocar o termo dominante branco, que tende sempre a promover uma síntese, para focalizar na relação entre os termos minoritários que revelam, ao contrário, a possibilidade de uma aliança sem eliminar a diferença de cada um deles. A partir de diversos casos etnográficos, essa operação se apresenta como uma importante maneira de enfrentar as teorias racistas da mistura, da miscigenação e do sincretismo religioso.

O capítulo final e inédito “Das oferendas nas religiões de matriz africana” surge em um momento crucial, quando o tema do sacrifício de animais volta a ser alvo dos ataques racistas contra essas religiões. O autor apresenta um contraste entre o “corte” (como preferem chamar os iniciados no candomblé) e o sacrifício no catolicismo, ressaltando a distinção entre “obrigação” e “exigência” para, então, promover um diálogo entre as filosofias das religiões de matriz africana e a de Deleuze e Guatarri. Para tanto, Goldman propõe a conexão de um termo comum a essas filosofias, afirmando que “eu tenderia a tentar traduzir a complexidade do que está em jogo nas oferendas […] como um corte que introduz no fluxo da vida pontos que permitem a captura, a concentração e a distribuição do axé – essa energia vital que constitui tudo o que existe e pode existir no cosmo” (235).

Dado que se trata de uma coletânea de textos publicados em diferentes momentos, o autor reconhece a presença de temas já introduzidos e que voltam no decorrer dos capítulos. No entanto, a experiência da leitura dos escritos aqui reunidos em ordem cronológica revela muitas vantagens. Além de terem a oportunidade de reencontrar elaborações fundamentais para a antropologia das religiões de matriz africana em diferentes momentos, os leitores se deparam com o que Deleuze ( 2018 DELEUZE, Gilles. 2018. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro/São Paulo, Paz e Terra. ) chamou de a verdadeira repetição, quando o que retorna não vem desacompanhado de algo novo, ou melhor, quando o que se repete é a própria diferença. Isso, no caso em questão, possibilita acompanhar as inovações teóricas trazidas por Goldman em sua trajetória de pesquisa, bem como explorar poderosas inovações no campo da antropologia das religiões, particularmente no candomblé.

Referências bibliográficas

  • DELEUZE, Gilles. 2018. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro/São Paulo, Paz e Terra.
  • GOLDMAN, Marcio. 2006. Como funciona a democracia: Uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro, 7Letras.
  • SERRA, Ordem. 1978. Na trilha das crianças: os erês num terreiro Angola. Brasília, Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília.
  • GOLDMAN, Marcio. Do outro lado do tempo: Sobre religiões de matriz africana. Rio de Janeiro, 7Letras, 2023. 1ª ed, 284p.
  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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