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“Cada um em seu lugar”. Domínios territoriais Xucuru-Kariri e Kiriri

“Each one in yours place”: territorial domains Xucuru-Kariri and Kiriri

Resumo

Atualmente, tensão e conflito caracterizam a relação entre caciques xucuru-kariri e kiriri no município de Caldas (Minas Gerais, Brasil). Ambos lideram famílias em recriações de aldeias no sul do estado. O processo de formação territorial dos Xucuru-Kariri e dos Kiriri nessa região explica-se, primeiro, por troca de terras e aliança estabelecidas nas gerações anteriores às dos caciques quando viviam na Bahia e, segundo, por suas cosmopolíticas. Enfim, a hipótese sobre domínios territoriais de indígenas Xucuru-Kariri e Kiriri é sustentada com análise diacrônica de interações entre lideranças no sertão baiano e descrição de seus princípios cosmopolíticos, introduzindo uma perspectiva para além das relações indígenas com o Estado no entendimento de processos de territorialidade.

Palavras-chave:
Etnologia indígena; Xucuru-Kariri; Kiriri; Cosmopolítica; Chefia; Territorialidade

Abstract

Currently, tension and conflict characterize the relationship between the Xucuru-Kariri and Kiriri chiefs in the Caldas City, in brazilian state of Minas Gerais. Both lead families in their recreations of villages in this region. The process of territorial formation Xucuru-Kariri and Kiriri in Caldas City is explained, firstly, by the exchange of lands and alliance established by their generation above when they lived in brazilian state of Bahia and, second, by their particular cosmopolitics. Finally, the hypothesis on territorial domains of indigenous Xucuru-Kariri and Kiriri is supported by a diachronic analysis of interactions between leaders in the state of Bahia and description of their cosmopolitical principles, introducing a perspective beyond indigenous relations with the State in the understanding of territoriality processes.

Keywords:
Ethnology; Xucuru-Kariri; Kiriri; Cosmopolitic; Indigenous chiefs; Territoriality

INTRODUÇÃO

Neste texto, analisamos relações entre chefes indígenas xucuru-kariri e kiriri tanto no Sertão baiano quanto no Sul mineiro com foco particular nas configurações territoriais que suas interações têm produzido ao longo do tempo1 1 O artigo é versão modificada do trabalho que apresentamos, em novembro de 2017, na XVIII Jornada Discente do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Agradecemos pelos comentários dos professores Elsje Lagrou e Cesar Gordon durante o evento. .

Os Xucuru-Kariri estão localizados em terras indígenas oficiais dos estados brasileiros de Alagoas, Bahia e Minas Gerais. Ainda podem ser encontrados na capital de São Paulo (Lima, 2008LIMA, Carmen Lúcia S. 2008. “Vivendo na metrópole: os Pankararu em São Paulo”. In Anais da 26ª Reunião Brasileira de Antropologia. 2008, Porto Seguro, Brasil [online]. Disponível em: http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/GT%2034/Vivendo%20na%20metrópole%20-%20 aba.pdf (acesso em 28 de abril 2018).
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) e algumas poucas famílias sem terras reconhecidas no distrito de Guarda dos Ferreiros, que se localiza entre os municípios de São Gotardo e Rio Paranaíba2 2 Conforme notícia de 28 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/triangulo-mineiro/noticia/pm-faz-reintegracao-de-posse-e-familias-sao-evacuadas-de-propriedade-entre-sao-gotardo-e-rio-paranaiba.ghtml. Acessado em 05 de abril de 2018. Enquanto a primeira versão deste artigo era redigida, tais Xucuru-Kariri se encontravam numa ocupação em Patos de Minas, em Minas Gerais. Atualmente, no momento de revisão do texto, os mesmos indígenas habitam uma terra oficialmente reconhecida em Presidente Olegário/MG. , no estado de Minas Gerais. Compõem um povo indígena formado historicamente no atual estado de Alagoas a partir das relações estabelecidas entre os Wakonã habitantesde Alagoas (família linguística Kariri) e os Xukuru descidos de onde é Pernambuco hoje3 3 Sobre o processo de formação da etnia Xucuru-Kariri, indícios históricos de interações entre esses indígenas da família linguística Kariri no século XVII são apresentados por Antunes (1973). Para uma revisão pormenorizada sobre a formação do aldeamento indígena por meio de ação missionária, no século XVIII, onde é a atual Palmeira dos Índios/AL, sobre registros documentais da ocupação indígena em Alagoas, além dos processos históricos de espoliação e reconhecimento dos territórios dos Xucuru-Kariri no local e sua relação com o Estado, ver Martins (1994) e Silva Jr. (2007). . A formação histórica do povo remonta o aldeamento capuchinho da segunda metade do século XVIII no Agreste alagoano - colocando em interação indígenas deslocados por conta de secas e de perseguições coloniais - e o processo de seu reconhecimento étnico-territorial pelo Estado na primeira metade do século XX. O etnônimo Xucuru-Kariri oficializou-se pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) com a aquisição, por esse órgão em 1952, da terra indígena Fazenda Canto, anos depois de terem sido considerados extintos em 1872, ocasião em que a Câmara de Vereadores de Palmeira dos Índios/AL reivindicou as terras do aldeamento setecentista.

A história de uma parcela do povo Xucuru-Kariri, que se encontra no município de Caldas, em Minas Gerais, iniciou entrelaçamento com a história de uma parentela dos Kiriri quando, em 1987, famílias xucuru-kariri de Alagoas lideradas pelos Sátiros deslocaram-se com apoio da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para o Sertão baiano devido a conflitos com parentes, o que resultou inclusive em morte (Martins, 1994MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1994. Os Caminhos da Aldeia… Índios Xukuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais. Recife, 1994, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pernambuco.). O deslocamento dessas famílias reiterou o poder que os membros da família Celestino haviam adquirido na oficialização da aldeia em 1952. Os Sátiros foram instalados em Ibotirama na Bahia (Martins, 1994MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1994. Os Caminhos da Aldeia… Índios Xukuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais. Recife, 1994, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pernambuco., 1999MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1999. “Os caminhos das aldeias Xucuru-Kariri”. In OLIVEIRA, João Pacheco de (org.), A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa.; Parisi, 2008PARISI, Rosana Soares Bertocco. 2008. Xucuru-kariri: a reconstituição da trajetória de um grupo indígena remanejado e suas habitações e “novaterra. São Paulo, 2008, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.; Silva, 2010SILVA, Beatriz S. 2010. Educação Escolar indígena. Mas, o que é mesmo uma escola diferenciada? Trajetória, equívocos e possibilidades no contexto da E. E. Indígena Xucuru Kariri Warcanã, de Aruanã (Caldas MG). Campinas, 2010, dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.), região que dista aproximadamente oitocentos quilômetros do município de Banzaê/BA, onde está localizado a aldeia mais antiga dos Kiriri. De Ibotirama, os Sátiros e seus aliados seguiram para um assentamento conhecido como Fazenda Pedrosa, que está localizado mais exatamente no município de Nova Glória/BA (Martins, 1999MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1999. “Os caminhos das aldeias Xucuru-Kariri”. In OLIVEIRA, João Pacheco de (org.), A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa.), onde viveram por dezoito anos. Posteriormente, em razão de secas e conflitos com os locais, os Xucuru-Kariri foram realocados para o distrito de Guarda dos Ferreiros, em São Gotardo/MG, município em que residiram durante três ou quatro anos dentro do centro urbano. Foi somente após reivindicações que conseguiram estabelecer-se, dentre outras terras oferecidas pela FUNAI, numa antiga fazenda no município de Caldas, no extremo sul do estado de Minas Gerais (Parisi, 2008PARISI, Rosana Soares Bertocco. 2008. Xucuru-kariri: a reconstituição da trajetória de um grupo indígena remanejado e suas habitações e “novaterra. São Paulo, 2008, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.; Silva, 2010SILVA, Beatriz S. 2010. Educação Escolar indígena. Mas, o que é mesmo uma escola diferenciada? Trajetória, equívocos e possibilidades no contexto da E. E. Indígena Xucuru Kariri Warcanã, de Aruanã (Caldas MG). Campinas, 2010, dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.).

No que se refere ao povo Kiriri, documentos históricos confirmam sua presença na região Nordeste do Brasil desde o final do século XVII, quando trabalhos missionários com esses índios já eram organizados (Brasileiro, 1999BRASILEIRO, Sheila. 1999. “Povo indígena Kiriri: emergência étnica, conquista territorial e faccionalismo”. In OLIVEIRA, João Pacheco de (org.),A viagem de volta. Etnicidade, política e reelaboração cultural no nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa.). A antiga aldeia Saco dos Morcegos, atual Mirandela, localizada em Banzaê, foi fundada pelo jesuíta português João de Barros, assim como as três outras aldeias. O objetivo dessas missões era reunir os Kiriri em uma área específica para catequizá-los e, assim como as demais aldeias, Saco dos Morcegos também sofreu fortes pressões e disputas ocasionadas pelo acelerado processo de expansão da pecuária (Brasileiro, 1996BRASILEIRO, Sheila. 1996. A organização política e o processo faccional no povo indígena Kiriri. Salvador, 1996, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia.). Objetivando o fim do conflito entre sesmeiros e religiosos, em 1700, a Coroa Portuguesa destinou uma “légua em quadra” de terras a todas aldeias missionárias do sertão. Em menos de um século após a criação da aldeia, no ano de 1758, Saco dos Morcegos seria elevada à condição de vila e ocupada de maneira crescente por camponeses que buscavam áreas férteis no agreste para plantar (Brasileiro, 1996BRASILEIRO, Sheila. 1996. A organização política e o processo faccional no povo indígena Kiriri. Salvador, 1996, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia.). No século XIX, estiveram envolvidos em intensas perseguições de pecuaristas da região e por desmandos administrativos comprometidos geralmente com interesses locais. Durante esse período estima-se que boa parte das terras da antiga aldeia Saco dos Morcegos tenha sido negociada pelos próprios Kiriri, que, então, se dispersaram do núcleo central de morada, passando a ocupar localidades pouco atrativas em seu entorno (Brasileiro, 1999BRASILEIRO, Sheila. 1999. “Povo indígena Kiriri: emergência étnica, conquista territorial e faccionalismo”. In OLIVEIRA, João Pacheco de (org.),A viagem de volta. Etnicidade, política e reelaboração cultural no nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa.). Como consequência, perdurou a resistência ao reconhecimento desse povo até meados do século XX quando, a partir do ano de 1979, os Kiriri iniciam diversas estratégias para, gradualmente, retomarem suas terras.

Atualmente, os Kiriri estão distribuídos em onze aldeias ao redor do núcleo central de Mirandela, sendo estes: Baixa da Cangalha, Baixa do Juá, Araçá, Canta Galo, Cajazeira, Segredo, Pau Ferro, Marcação, Baixa Nova, Mirandela, Gado Velhaco e Lagoa Grande, (Macedo, 2009MACEDO, Silvia Michele. 2009. Educação por outros olhares: aprendizagem e experiência cultural entre índios Kiriri do sertão baiano. Salvador, 2009, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia.). Recentemente, algumas famílias kiriri passaram a reivindicar uma área de cinquenta e cinco hectares, ocupada desde março de 2017, e que pertence ao governo do estado de Minas Gerais em Caldas. Distintamente dos Xucuru-Kariri que chegaram no município, em 2001, para habitarem uma terra reconhecida pelo órgão indigenista, os Kiriri, na cidade mineira, solicitam o reconhecimento do terreno sob administração da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) pouco mais de um ano4 4 Na ocasião da escrita do artigo, os Kiriri ainda estavam em Caldas. No entanto, em abril de 2018, deixaram o local rumo a Pato de Minas para instalarem-se numa terra administrada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e ocupada por quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais do Movimento dos Sem Terra (MST). Decidiram partir de Caldas/MG após o término do período de vigência da liminar judicial que havia derrubado, em 2017, a ordem de reintegração de posse. Isso é um capítulo a mais no desenvolvimento dos processos que apresentamos, que conta agora com o retorno dessas famílias para a cidade sul-mineira. .

Os povos Xucuru-Kariri e Kiriri seriam, conforme determinadas conceituações da Antropologia brasileira, “índios do Nordeste”. É uma categoria etnológica que habitualmente se refere a um conjunto de populações do Nordeste Brasileiro que experienciaram intensamente relações com atores do processo de colonização e do Estado brasileiro por meio de seus órgãos indigenistas. Em função dessas relações, que os puseram em processos políticos de disputa por suas existências e seus territórios, ocorreram territorializações e desterritorializações com consequências transformativas à organização política e social desses indígenas (Oliveira, 1998OLIVEIRA, João Pacheco de. 1998. “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”. Mana, vol. 4, n. 1, pp. 47-77. https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003
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). Para que houvesse o reconhecimento estatal da identidade étnica, objetivada espacialmente na forma de terra indígena, teriam sido constrangidos a assumirem determinados traços culturais e sociais considerados como tipicamente de “índios”, tais como ritual, cacique e pajé (Grünewald, 2005GRÜNEWALD, Rodrigo de Azevedo. 2005. “As Múltiplas Incertezas do Toré”. In GRÜNEWALD, Rodrigo de Azevedo (Org.), Toré: regime encantado dos índios do Nordeste. Recife, Massangana.). Dito de outro modo, “índios do Nordeste” trata-se de uma categoria antropológica que diria respeito aos povos indígenas cujas organizações sociais atuais decorreriam de processos históricos de relação com sujeitos favorecidos politicamente para reconhecerem e definirem identidades e territórios indígenas. Ou seja, a categoria “índios do Nordeste” remete, em geral, a este viés epistemológico que considera que a compreensão sobre as populações indígenas deve voltar-se à historicidade das classificações étnicas e das morfologias sociais. Portanto, não se trata apenas de uma classificação etnológica a partir da localização geográfica, inclui-se nela uma perspectiva sobre o fazer antropológico.

Embora digam que são povos que estão historicamente associados a avanços de frentes pastoris e missionárias do século XVII e XVIII, Dantas, Sampaio e Carvalho (1992DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L. e CARVALHO, Maria Rosário G. de. 1992. “Os povos indígenas no Nordeste Brasileiro: um esboço histórico”. In CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (org.), História dos índios do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP.) definem os “índios do Nordeste” de forma distinta. Até porque o escopo de análise dos autores abarca períodos históricos anteriores à chegada dos europeus. Atestam uma ampla diversidade de povos indígenas no Nordeste brasileiro antes, durante e depois do período colonial e conceituam os povos da região, em particular nos tempos anteriores e primordiais da colônia, enquanto uma unidade histórica e etnográfica contrastante com os Tupi e os Jê, respectivamente, habitantes a leste e a oeste. Entretanto, trazem aparentemente para a definição etnológica dos povos indígenas do Nordeste um elemento a mais em relação a definição de Oliveira (1998OLIVEIRA, João Pacheco de. 1998. “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”. Mana, vol. 4, n. 1, pp. 47-77. https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003
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). Afirmam que são inquestionavelmente povos relacionados adaptativamente com o ambiente natural da caatinga. A informação é relevante à medida que, mais recentemente, observamos famílias xucuru-kariri e kiriri procurarem habitar Minas Gerais também em razão de suas características morfoclimáticas e ambientais, que se distinguem das do semiárido nordestino5 5 O tema das relações ambientais dos povos indígenas com o semiárido tem rendido investigações bem contemporâneas (Santos, Silva e Oliveira, 2018). .

No caso dos Kiriri, como mostra Henrique (2019HENRIQUE, Fernanda Borges. 2019. Por um lugar de vida: os Kiriri do Rio Verde, Caldas/ MG. Campinas, 2019. dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.), foram as qualidades sensíveis percebidas no ambiente centro-sul mineiro que, conjuntamente às experiências vividas na aldeia do Oeste baiano, os levou a procurar uma terra em Caldas. Já no caso Xucuru-Kariri, são Parisi (2008PARISI, Rosana Soares Bertocco. 2008. Xucuru-kariri: a reconstituição da trajetória de um grupo indígena remanejado e suas habitações e “novaterra. São Paulo, 2008, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.) e Franco (2013FRANCO, Caetano Lucas Borges. 2013. Territórios e identidades: dinâmicas socioespaciais dos índios Xucuru-Kariri residentes em Caldas - MG. Alfenas, 2013, Trabalho de conclusão de curso, Universidade Federal de Alfenas.) os primeiros autores a fornecerem registros que nos permitem notar que os conflitos (Martins, 1994MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1994. Os Caminhos da Aldeia… Índios Xukuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais. Recife, 1994, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pernambuco.) não são os únicos a terem condicionado os desejos destes indígenas por uma morada fora da Bahia. Eles trazem informações sobre as considerações que os Xucuru-Kariri faziam, por exemplo, ora sobre a abundância, ora sobre a escassez de água nas reservas habitadas naquele estado. Nessecontextodedeslocamentos, nãoparecemserignoráveisosaspectosditos naturais na compreensão dos processos sociais relativos a essas coletividades como não são dispensáveis eventos temporalmente diversos. Não temos, então, nenhuma pretensão essencializadora em afirmar que são índios por isso ou aquilo, queremos tão somente incorporar aspectos sobressaídos em perspectivas que reconhecemos, ao mesmo tempo, distintas e complementares em nossa descrição etnográfica.

Se, por um lado, a Antropologia política e histórica (Oliveira, 1998OLIVEIRA, João Pacheco de. 1998. “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”. Mana, vol. 4, n. 1, pp. 47-77. https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003
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) parece não dar conta de dinâmicas outras que perpassam a vida dos indígenas, a saber, aquelas que podem ser observadas segundo uma abordagem da socialidade, como, por exemplo, o parentesco (Viegas, 2007VIEGAS, Susana de Matos. 2007. Terra calada: Os Tupinamba na Mata Atlantica do Sul da Bahia. Rio de Janeiro, 7Letras.), por outro lado, seu ângulo histórico aponta para uma dimensão diacrônica das relações em que estão situados, possibilitando a busca no passado por chaves explicativas de relações atuais. Embora incite procurar, na história, compreensões sobre o presente, trata-se agora de olharmos menos intensamente para as relações com atores do Estado brasileiro e da colonização, ou seja, com sujeitos não-indígenas, e mais para as relações interindígenas. O que não quer dizer que centramos exclusivamente nossa análise em redes sociais indígenas e muito menos voltamo-nos às trocas de saberes rituais entre povos como parte de processos de etnogêneses, como feito por Arruti (1999ARRUTI, José Maurício P. A. 1999. “A árvore Pankararu: fluxos e metáforas da emergência étnica no sertão do São Francisco”. In OLIVEIRA, João Pacheco de (org.), A viagem de volta. Etnicidade, política e reelaboração cultural no nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa.) ao procurar revelar circulações de toré6 6 Utilizaremos o itálico para falas e categorias nativas, bem como para títulos de obras, deixando as aspas para noções analíticas. entre grupos. Pretendemos voltar nosso entendimento às cosmopolíticas xucuru-kariri e kiriri para ensaiar compreensões - pelo menos inicia-las - acerca do desenvolvimento passado e recente de suas interações, respectivamente, na Bahia e em Minas Gerais e, por consequência, objetivamos levantarmos hipóteses acerca da constituição de domínios territoriais nesses dois estados federais. As sociopolíticas ameríndias interpenetram-se aos seus regimes cosmológicos (Sztutman, 2012SZTUTMAN, Renato. 2012. O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens. São Paulo, Edusp.: 101). Como neste caso, a política indígena inclui ontologias não-humanas (seres espirituais e capacidades animais). Ou ainda, trata-se de compreender como a política é postulada por eles tendo-se em conta seus regimes de relação com outros seres humanos e outros seres que habitam seus cosmos. As trocas históricas entre famílias xucuru-kariri e kiriri e a maneira pela qual admitem as relações entre os viventes cósmicos, segundo a hipótese sugerida, são elementos que estão no princípio da economia política e territorial que os envolvem, particularmente hoje, em Caldas. A título de exemplo, que desenvolveremos ao longo do texto com alguns outros mais, encontra-mos, entre os Kiriri, negociações com mortos como premissas relacionais à obtenção do direito de posse da terra, a qual passaram a ocupar em março de 2017, e, entre os Xucuru-Kariri, pressupostos de existências animais nos modos de agir dos chefes.

Apontaremos que nas etnografias sobre esses povos - que em um primeiro momento pareciam ser fontes potenciais de observação de relações históricas entre tais indígenas - não foi escrito sobre trocas xucuru-kariri/kiriri ou, quando relatadas, aparecem como um dado etnográfico secundário em relação às interações com outros atores. Ademais, demonstraremos que a aliança decorrida de troca no sertão baiano responsável em parte pela escolha kiriri por Caldas como lugar de vida -, no atual momento, passa por uma reconfiguração, visto que não se troca mais bens em sinal de uma cumplicidade política, mas se troca desafetos, acusações de feitiçaria e indiferença.

ALIANÇA ENTRE CACIQUES

Como relatado no livro Nosso Povo: Leituras Kiriri, produzido por professores indígenas, aconteceu, em meados do ano de 1986, um dos primeiros movimentos de cisão na aldeia Lagoa Grande, na Bahia. O evento é significativo, pois é a partir dele que alguns Kiriri puderam aproximar-se dos Xucuru-Kariri que haviam se mudado para aquele estado em 1987. Contudo, pouco ou quase nenhum material acadêmico pode ser encontrado relatando esta dissensão em Lagoa Grande. Assim, sabemos por trabalhos de campo realizados nas aldeias em Caldas, desde agosto de 20177 7 Desde agosto de 2017, Bort Jr. e Henrique dividem-se em trabalhos de campo mensais, respectivamente, na aldeia xucuru-kariri e na aldeia kiriri. Embora tenha sido a ideia inicial, não tem sido prudente realizar entradas conjuntas nas aldeias em razão da configuração das relações entre os povos. Esta reflexão que publicamos é resultado de compartilhamento, entre nós, de dados, impressões, leituras e situações. , que algumas famílias kiriri lideradas por um conhecido cacique8 8 Manteremos os nomes dos indígenas sempre em anonimato. Eventualmente, explicitaremos aqueles que a literatura antropológica tornou público. deixaram a localidade em direção à região do Oeste baiano devido a conflitos, onde foram acolhidas pelo cacique do povo Pankaru. Permaneceram juntos até que o conhecido cacique Kiriri, pai do atual cacique kiriri do Rio Verde9 9 Kiriri do Rio Verde e Xucuru-Kariri de Caldas são os modos pelos quais as famílias indígenas em Caldas se autodenominam. , conheceu, em Brasília, o líder à época dos Xucuru-Kariri da Bahia. Este último contou para o velho kiriri sobre a área de terra que seu povo possuía no município de Muquém de São Francisco/BA e sobre seu desejo de mudar-se de lá.

É interessante notar que nas etnografias (e.g. Martins, 1994MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1994. Os Caminhos da Aldeia… Índios Xukuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais. Recife, 1994, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pernambuco.), ao contrário do que informam os indígenas kiriri, não aparecem referências sobre uma aldeia xucuru-kariri em Muquém de São Francisco. Consta somente que foram alocados para Ibotirama, um município adjacente a este outro, o que nos faz pensar que não há exata referência às localidades em que habitaram os Xucuru-Kariri antes de se mudarem para Nova Glória. Talvez isso decorra da forma como os Xucuru-Kariri narram sua própria história para os pesquisadores (Martins, 1994MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1994. Os Caminhos da Aldeia… Índios Xukuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais. Recife, 1994, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pernambuco., 1999OLIVEIRA, João Pacheco de. 1998. “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”. Mana, vol. 4, n. 1, pp. 47-77. https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003
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; Parisi, 2008PARISI, Rosana Soares Bertocco. 2008. Xucuru-kariri: a reconstituição da trajetória de um grupo indígena remanejado e suas habitações e “novaterra. São Paulo, 2008, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.; Silva, 2010SILVA, Beatriz S. 2010. Educação Escolar indígena. Mas, o que é mesmo uma escola diferenciada? Trajetória, equívocos e possibilidades no contexto da E. E. Indígena Xucuru Kariri Warcanã, de Aruanã (Caldas MG). Campinas, 2010, dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.). Eles continuam afirmando que habitaram Ibotirama, apesar de também dizerem que acordaram com o cacique kiriri que, junto com as famílias lideradas, este poderia, depois que saíssem, tomar a aldeia para si. Logo, os próprios Xucuru-Kariri de Caldas reconhecem que a aldeia de Muquém de São Francisco foi um dia sua morada. A imprecisão advém muito provavelmente do fato dessa aldeia ficar na margem esquerda do Rio São Francisco, pertencente a Muquém de São Francisco, e a margem direita competir ao município de Ibotirama.

A área onde viviam os Xucuru-Kariri às margens do Rio São Francisco foi adquirida pela FUNAI a fim de evitar os conflitos em que suas famílias estavam envoltas, como já dito. Mas, por dificuldades de “adaptação” à região10 10 A percepção de um alto índice de violência e a proximidade excessiva com a cidade foram algumas das razões apontadas pelos indígenas sem que tenhamos conseguido maiores detalhes das agressões sofridas. , os Xucuru-Kariri foram realojados pelo órgão para o povoado de Quixaba, em Nova Glória, Bahia. Em vista disso, o cacique xucuru-kariri sinalizou ao chefe dos Kiriri a ideia de assumirem suas terras em Muquém de São Francisco, uma vez que estes últimos estavam vivendo junto aos Pankaru:

Como os índios Xucuru Kariri não se adaptaram a essa região, resolveram repassar a terra e as casas do povoado de nome Passagem para os índios Kiriri e voltaram para Paulo Afonso, sede da FUNAI Regional, alojando seu povo em novas terras adquiridas pela FUNAI no povoado de Quixabá, em Nova Glória, aqui na Bahia (Professores Kiriri, 2005PROFESSORES KIRIRI. 2005. Nosso povo: leituras Kiriri: educação diferenciada na visão do povo Kiriri. Salvador, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, (Livro do Aluno / Ensino Fundamental).: 22).

É neste momento que fios de suas histórias iniciam seu entrecruzamento, cuja duração é notavelmente maior quando percebemos que, recentemente, ambos passaram a habitar o mesmo município no Sul de Minas Gerais. Afirmamos que um dos fios dessa história se entrecruza naquele instante, pois Martins (1999MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1999. “Os caminhos das aldeias Xucuru-Kariri”. In OLIVEIRA, João Pacheco de (org.), A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa.) apresenta um dado que induz a pensar sobre outras relações mantidas pelo velho cacique xucuru-kariri com os Kiriri. Diz ela:

Observei que Zezinho [liderança xucuru-kariri] mantinha bons relacionamentos com outras etnias indígenas na região. Os contatos mais próximos eram com os Pankararé e os Tuxá. Ele me contou que, quando procurava um local para reassentamento [de Ibotirama/BA para Nova Glória/BA], havia recebido um convite dos Kiriri de Mirandela para morar na área deles. Recusou porque não queria morar na área de nenhum outro grupo. Alegou que com o tempo poderia haver problemas e que ‘o melhor é cada um no seu lugar’ (Ibid.: 223).

Desse modo, o velho Sátiro não parece ter interagido exclusivamente com o cacique kiriri que habitava entre os Pankaru, porque o relato acima demonstra relações com outros Kiriri que habitavam na aldeia de Mirandela, em Banzaê. Ou estamos tratando de relações do cacique xucuru-kariri com chefes kiriri distintos, ou, a título de hipótese, estamos tratando de uma única liderança kiriri, considerando que a mobilidade indígena entre as muitas regiões que habitam é enormemente conhecida. A autora não traz outros elementos em seu texto que ajudem a revelar mais detalhadamente como se iniciou esse “bom relacionamento” também com os Kiriri de Mirandela. Se a passagem de seu texto não permite entender com quem o velho xucuru-kariri interagia nesta localidade, nem mesmo ajuda a revelar alguma complexidade das circulações dessas famílias xucuru-kariri, uma vez que não se mostram tão unidirecionais quando vistas a partir das informações do livro dos professores kiriri. A autora fala de uma mudança dos Xucuru-Kariri de Ibotirama para Nova Glória; os Kiriri informam sobre uma “volta” para Paulo Afonso, região deste último município. Os Xucuru-Kariri que estão em Caldas permitem-nos sustentar a informação de que se mudaram definitivamente de Muquém de São Francisco.

Não há ainda informações precisas sobre quando, onde, ou mesmo como o convite dos Kiriri de Mirandela à coabitação foi feito. Teria o cacique xucuru-kariri conversado sobre as dificuldades enfrentadas por eles na adaptação à terra de Ibotirama e, por isso, a liderança kiriri abriu-se ao outro fazendo o convite? Apesar disso, a aliança xucuru-kariri, por meio da oferta da terra, consolidou-se com aqueles Kiriri que habitavam entre os Pankaru, posto que foram os filhos do cacique kiriri que estava entre os Pankaru e o do cacique xucuru-kariri que prosseguiram, na geração seguinte, relacionando-se em Caldas. Supomos que a troca entre os chefes xucuru-kariri e kiriri, em Muquém de São Francisco, foi mais bem-sucedida na instituição da aliança visto que, como veremos, é na geração abaixo desses líderes e não na de outros que trocas foram repetidas. Esta oferta de terra pela antiga liderança xucuru-kariri trata-se decerto - pelo que ensina Lévi-Strauss (2009LÉVI-STRAUSS, Claude. [1949] 2009. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Vozes. [1949]) - de uma forma manifesta de dádiva que pôde instituir uma aliança favorável aos esforços de continuar produzindo suas vidas, reencontradas hoje em Caldas.

Sem dúvida, a aliança xucuru-kariri com outros povos é sensível na etnografia (Martins, 1999MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1999. “Os caminhos das aldeias Xucuru-Kariri”. In OLIVEIRA, João Pacheco de (org.), A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa.), embora não lhe tenham dedicado a profundidade analítica necessária enquanto parte das agências indígenas na conformação de domínios territoriais. Esclarecimentos dessa história indígena forneceria inúmeros entendimentos à etnologia dos povos da região. É somente com a busca kiriri por um lugar de vida em Caldas, como já haviam feito os Xucuru-Kariri dezessete anos antes por meio da estratégia de habitar os escritórios da FUNAI e, ainda segundo os Xucuru-Kariri, não de ocupar terras do Estado, como fazem os Kiriri em Caldas, que a aliança entre os velhos caciques foi decifrada como uma das chaves de compreensão de terras indígenas no presente e no passado. As formações das aldeias seriam explicadas apenas parcialmente sem a devida atenção a essa aliança, que, é preciso dizer, fora estabelecida segundo às atuações de seus chefes.

Sugerimos que as relações de chefias na constituição de seus espaços de vida podem ser analisadas, até certo ponto, à luz de uma aproximação com a noção cosmológica de “dono”, verificada entre ameríndios amazônicos (Fausto, 2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2, pp. 329-366. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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). São dados produzidos a partir de nossa inserção entre os Xucuru-Kariri de Caldas que autorizam essa inspiração em nossa interpretação etnográfica11 11 Realizamos trabalho de campo na aldeia Xucuru-Kariri em Caldas desde 2017. Neste texto, procuramos incorporar o máximo de informações obtidas a partir da relação com os indígenas, mas a pesquisa permanece em desenvolvimento. . A primeira informação a se considerar é que o cacique da aldeia em Caldas afirma ser exatamente um dono da aldeia. Tal noção chegou a causar, por exemplo, estranhamento à diretora da Superintendência Regional de Ensino de Poços de Caldas durante uma das visitas de acompanhamento pedagógico-administrativo da escola dos indígenas. A afirmação do cacique à época (pai do atual) de que era dono de tudo, referindo-se até mesmo à escola que está institucionalmente subordinada ao governo de Minas Gerais, provocou espanto, porém foi resolvida ao passar dos anos graças à disposição da servidora, segundo nos contou, em procurar entendê-lo. A outra informação a se ter em conta é o ideal de viverem juntos e tudo controladinho12 12 Disponível em: http://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/jornal-da-eptv/videos/v/reportagem-especial-mostra-como-vivem-os-indios-da-tribo-xucuru-kariri-em-caldas-mg/4512635/. Acessado em 27 de abril de 2018. , elucidando uma relação entre o cacique e as famílias chefiadas - descrita a seguir - que parece aproximável da concepção de “maestria” que se verifica para “donos” amazônicos. Temos em perspectiva teórica justamente que o controle é uma das capacidades dos chefes, mestres ou donos em relação a coletividades de seres, espaços ou coisas (Fausto, 2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2, pp. 329-366. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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).

Há alguns Xucuru-Kariri que questionam a ideia de o cacique ser o único dono, justificando que a posse da terra foi conseguida porque as famílias de cunhado secunhadas se mantiveram a convite dele morando por perto mesmo quando co-residia com seus filhos, noras e netos em meio à cidade de São Gotardo. Nesse sentido, o evidenciar das alianças como premissas da liderança na obtenção da posse da terra multiplicam o número de pessoas existentes no que aparece como um na relação. Já tem algum tempo que sabemos que as sociedades indígenas produzem mecanismos contra a centralização do poder (Clastres, 2003CLASTRES, Pierre. [1974] 2003. A sociedade contra o Estado. São Paulo, Cosac & Naify. [1974]), somente não tínhamos conhecimento, até o presente, dessa maneira xucuru-kariri de evitar que o cacique seja um dono sozinho. E, de fato, não é, mas a parte da posse que lhe compete deve ser específica.

Em Caldas, as casas e suas zonas próximas são daqueles que as construíram, que cuidam ou zelam por elas. O uso do termo permite pensar que o cacique tem a aldeia do mesmo modo que um pai tem de segmentos dela (a casa, a roça, o terreiro). A equivalência relativa é conclusão a que chegamos da própria argumentação do cacique durante uma reunião recente com a comunidade, na qual dizia que a postura em preservar as habitações de suas deteriorações deveria ser a mesma com a aldeia. Por isso, continuou dizendo, cada um era um pouco cacique. A diferença é que ele não é um potencial chefe; ele ocupa efetivamente a posição, por isso se sente à vontade para solicitar frequentemente a presença de outros chefes, os de família, em reuniões de interesse geral ou de elencar, entre esses, quem terá acesso a vagas de emprego na escola ou no posto de saúde em vista de seus saberes e de suas necessidades ocasionais. Recordamos a vez em que nos pedia para pôr ou retirar nomes de uma lista de homens que integrarão um projeto de apicultura da prefeitura do município. Também é dele a comparação metafórica pela qual faz entender que ser cacique é ser um pai análogo à onça que caça para alimentar seus filhotes. Não nos encorajamos a numerar as vezes em que se afirmou um caçador do povo. Ora, há algo de predador nesse pai, que é ao mesmo tempo chefe dos chefes, os quais, por serem de família, são pais. Precisaríamos questionar, a partir de Fausto (2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2, pp. 329-366. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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) e Sztutman (2012SZTUTMAN, Renato. 2012. O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens. São Paulo, Edusp.), se o problema seria da escala de pessoas.

Embora o cacique xucuru-kariri não vire a própria onça, ele retira de um modo de ser animal os princípios para sua própria ação de liderança, inclusive porque, como vários indígenas relataram, antigamente reproduziam no corpo as bolinhas da pele do felino13 13 A mudança é inerente à pintura xucuru-kariri de Caldas, ainda que não acreditemos na alteração de seu fundamento guerreiro: as cores preta e vermelha sempre permanecem significando, respectivamente, luto e sangue derramado, i. e., há uma guerra contínua. A questão foi inicialmente apresentada por Bort Jr. (2018). . É mais esse sentido que devemos considerar para traçarmos proximidades entre chefias e domínios que parecem encontrarem-se, a despeito das diferenças de estarem lá ou acolá, nas Terras Baixas da América do Sul. Um exercício reflexivo, feito alhures (Bort Jr., 2018BORT JUNIOR, João Roberto. 2018. “A estética guerreira no toré dos Xucuru-Kariri em Caldas/MG”. In II Encontro de Etnologia, História e Política Indígena. São Carlos, Universidade Federal de São Carlos.), parece ter revelado dimensões hostis da política xucuru-kariri a partir desse ser que quase inexiste na mata da aldeia, mas, com certeza, vive na cosmologia. Agora, para além da reiteração de que a política ameríndia se constitui associada à natureza, por isso uma cosmopolítica (Sztutman, 2012SZTUTMAN, Renato. 2012. O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens. São Paulo, Edusp.), estamos sublinhando haver uma concepção de filiação que se sustenta especificamente pela busca (caça) que o cacique, em suas palavras, faz de bem-estar e sustentabilidade para as famílias que vivem no território para o qual se apresenta como um dono. Essas informações de trabalho de campo conduzem a colocar em tese se aqui não se trata de mais um desses “certos casos” em que a liderança se impõe como um “grande pai, (...) porque assume para os seguidores uma espécie de papel paternal” (Sztutman, 2012SZTUTMAN, Renato. 2012. O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens. São Paulo, Edusp.: 319).

Em diálogos com os Xucuru-Kariri, nem sempre o cacique aparece como mediador imprescindível na obtenção de partes do território da aldeia. Indicou-nos uma senhora que a limpeza de uma área da aldeia é a maneira para tomar de conta e fazer uma casa ou roça. Noutras vezes, as conversas com os Xucuru-Kariri indicaram que se torna elementar o cacique. Dois jovens homens xucuru-kariri explicaram que lugares além da região das residências são possíveis de serem conseguidos para cultivo ou criação de animais mediante pedidos feitos ao chefe. Esses locais servem, normalmente, de pastagem para o pequeno rebanho de bovinos que este possui. Compreendemos que a negociação com o cacique será tão mais necessária quanto maior a dimensão da área, afinal a mesma senhora que contou sobre a preparação do pedaço enquanto ação de posse disse que a significativa parte usada por seu filho foi decidida com o antigo chefe. Ela não mencionou a participação do cacique quando indagamos sobre o modo de uma área passar a pertencer a alguém, no entanto havíamos condicionado a pergunta ao exemplo de uma porção muito pequena em frente à sua casa. É totalmente notável, enfim, que a posição dono da aldeia pressupõe os mesmos zelos que uma pessoa deve reservar para sua casa, mas também o controle e a distribuição da posse conquistada, ou da produção de alimentos, como era realizada quando faziam roça coletiva de milho e feijão a partir dos insumos agrícolas vindos da FUNAI14 14 Apresentam o regime climático e pluviométrico do Sul mineiro como dificuldades à continuação do plantio. . Talvez seja mais apropriado afirmar que o cacique-dono xucuru-kariri possui alguma espécie de anterioridade na relação com a aldeia, que, por sinal, se expressa em sua função cerimonial.

Pensamos na ocasião em que ele, enquanto falava diante de uma outra servidora do estado de Minas Gerais, virou-se para os demais indígenas e pediu que ficassem mais próximos do que já estavam, pois precisava de força. Isto é, não se é cacique por si, compõe-se enquanto tal solicitando que as pessoas ajam da maneira que lhe permita atuar politicamente. Talvez nem mesmo o cacique diria que é prescindível a força que recebe em troca do sustento que fornece. É preciso notar que estamos descrevendo os sentidos da relação do chefe com os seus.

Nessas situações, que são bastante emaranhadas com danças e cantos, ele, antes de tudo, balança seu chocalho denominado maracá para chamar as pessoas a fim de ouvirem orientações, por sua vez audíveis apenas para quem o rodeia. Logo em seguida, sai à frente agitando o instrumento, olhando para trás para ver se a fila de índios formou-se adequadamente, e vai ao encontro dos visitantes para os quais geralmente faz um discurso longo, que em boa parte tangencia, quando não começa por aí, a conquista da terra como motivo óbvio do reconhecimento que continuaria merecendo seu falecido pai.

Retemos, então, que o cacique xucuru-kariri é quem consegue mover pessoas (e suas forças) de modo organizado. Diz com frequência, muitas das vezes em reuniões com os próprios xucuru-kariri, que o povo não vai sozinho pra lugar nenhum. Acreditamos que por aí há também algum fundamento da posição de dono. Ele não é proprietário da terra, mas é quem possui anterioridade no seu controle devido tê-la obtido para o grupo em relação ao qual está na dianteira, dando-lhe os direcionamentos político-rituais. O controle, no sentido que a noção de “maestria” confere à palavra, é relativo, primeiro de tudo, às pessoas. A prova em síntese é o maracá do cacique: o objeto que o faz ser literalmente seguido. É possível demonstrar que os movimentos na dança-canto toré são produzidos a partir do mesmo instrumento. Por exemplo, os homens lado a lado dos homens e as mulheres lado a lado das mulheres avançam rumo ao público que lhes assiste somente após o baixar do chocalho do chefe. Entre os Xucuru-Kariri de Caldas quem puxa o toré - a concepção de puxar é central é invariavelmente o cacique ou alguém para quem pede um canto. O fato dessas cerimônias conhecidas como apresentações de toré serem definidas ao mesmo tempo como momentos para fazer política e dar boas-vindas impulsiona a repensar o quão também seria lógico interpretar a noção do chefe xucuru-kariri a partir da matriz relacional da festa. Para Perrone-Moisés (2015)PERRONE-MOISÉS, Beatriz. 2015. Festa e guerra. São Paulo, 2015, Tese de Livre Docência, Universidade de São Paulo., o chefe não representa, porque ele existe antes do grupo como o anfitrião que convida as pessoas. Escreve a autora:

Em vez de se ver no chefe variante de dono ou sogro, por exemplo, aqui se propõe que donos, sogros, chefes de guerra, líderes de caçadas, donos de aldeias etc. são variantes de uma relação entre quem dá existência (no sentido de originar e alimentar) a sujeitos que o fazem ser quem é. Puxador e seguidores. Todos seriam, de certo modo, variantes da relação Anfitrião-Convidado (Perrone-Moisés, 2015PERRONE-MOISÉS, Beatriz. 2015. Festa e guerra. São Paulo, 2015, Tese de Livre Docência, Universidade de São Paulo.: 7).

É a segunda geração de caciques em Caldas que frequentemente se utilizam de concepções de movimento para orientarem sobre ações convergentes, como se vê quando dizem que onde um pisa, todos pisam também. O que é significativo à etnografia é que pisar para os Xucuru-Kariri pode ter igualmente o sentido de dançar. Ou seja, se todos devem executar as mesmas ações e se pisar equivale semanticamente a dançar, que é ação puxada pelo cacique, concluímos que o viver controladinho é efeito de liderança. Nisso se inclui o cuidado para que a coletividade se perpetue, como nos sugere às observações do cotidiano da aldeia.

Por exemplo, quando brigas devido a adultérios se estendem dos núcleos domésticos, agregando outras unidades familiares ao problema, tornando as desavenças uma questão socialmente ampla, a mãe do chefe tende a debater o assunto circulando entre as casas para que se evite acirramentos dos conflitos e, por decorrência, uma maior chance de cisões. Cremos que essa e outras mulheres adiantam-se na resolução, pois, como ouvimos ponderarem, temem o modo agressivo dos homens. É precisamente por conta desses registros de campo, os quais nos apontam sentidos reverberantes entre contextos etnográficos das TBAS, que se deve entender a presença de debates teóricos forjados a partir de casos amazônicos. Quisemos iniciar um diálogo. Se não ficou evidente, deveríamos ter sido mais claros em afirmar que não se trata de uma conclusão categórica de que o chefe xucuru-kariri estabelece, com as pessoas em seus domínios territoriais, uma relação de filiação adotiva15 15 Para povos indígenas no Nordeste brasileiro, o cosmo é habitado por mestres. Há, portanto, alguma conversa possível com a noção cosmológica de “maestria” amazônica também em outros planos relacionais, posto que Fausto (2008) aposta que essa é uma forma concebida de relação entre diferentes entidades em distintas esferas. ou de hospitalidade anfitriã. Nossa preocupação primordial tem sido a de descrever dimensões relacionais tanto do parentesco e do ritual quanto do plano da natureza para mostrar suas interconexões com a política xucuru-kariri. E qual a relevância disso para o argumento aqui desenvolvido? Isso começa iluminar o que significaria, para os Xucuru-Kariri, aceitar o convite de um outro cacique. O velho xucuru-kariri, que ensinou seu filho a liderar, concebia as pessoas habitantes da aldeia em comparação aos filhotes famintos da onça-pintada, animal pelo qual se pensava, conforme dito, e que era a tradução de seu nome, segundo relatos do atual cacique.

O escopo do artigo não é largo o suficiente para detalharmos as situações em que ainda o vimos colocar-se como leão, lobo, serpente e águia. Acreditamos, todavia, que isso basta para também fazer notar a prioridade que dá aos animais carnívoros em seu pensamento. Quando escolheu um vivente com disposição alimentar distinta para comparar-se, pensou no canário, que, de acordo com sua ideia, é altamente agressivo na defesa do território. A propósito, no intuito de entender como os Xucuru-Kariri percebem esses passarinhos, certa vez chamamos atenção para dois deles brigando enquanto voavam. Os homens que estavam perto responderam que os canários são muito bravos, além de terem acrescentado informações sobre rinhas dessas aves no Nordeste.

Nesse sentido, a aliança e a reconfiguração dos domínios territoriais dos chefes Xucuru-Kariri e Kiriri não podem ser compreendidas senão enquanto produtos constituídos nessas interações em que se orientam por princípios cosmopolíticos como esses. É por isso mesmo que o velho chefe Xucuru-Kariri pôde transferir as terras em Muquém de São Francisco aos Kiriri, pois era de seu domínio a aldeia e todos os contidos nela. E ao fazer não deixou de cumprir com a ética esperada pelos que ele controla, porque ele mesmo almejava poder produzir melhor a vida de todos fora dali; longe, por exemplo, das violências de fazendeiros (Martins, 1994MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1994. Os Caminhos da Aldeia… Índios Xukuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais. Recife, 1994, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pernambuco.), na nova aldeia da Fazenda Pedrosa, em Nova Glória. No que se refere à constituição de domínios territoriais da perspectiva cosmológica dos Kiriri, as relações com mortos aparentam ser mais elementar para a compreensão do regime de posse da terra. A isso voltaremos adiante.

Como explica Fausto (2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2, pp. 329-366. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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) sobre alguns povos amazônicos, o dono ou o chefe mostra-se sempre com duas faces: uma protetora como de um pai para seu filho e uma outra voraz e canibal que aniquila a alteridade por transformação. No Xingu, tal lógica da predação expressa-se pelas maneiras como chefes-mestres apresentam-se a outros: cobertos com garras e couro ao modo de um jaguar. No caso do cacique Xucuru-Kariri, os colares feitos de ossos, contas ou sementes apresentam rabo de cascavel, presas e cabeças de águia representadas também em peças de ossos. Forma, em harmonia com as enormes presas fabricadas para pôr nos lóbulos auriculares, uma estética corporal não menos aguerrida. A feição guerreira não passa imperceptível, pois há ainda em sua narina e lábios muitas varetas de ossos atravessadas, cujas pontas são bem afiadas. Por essa mesma razão, acreditamos que o antigo cacique xucuru-kariri, reconhecido por sua postura notável, tenha rejeitado o convite dos Kiriri de Mirandela à coabitação16 16 Ler os eventos do passado a partir de observações etnográficas do presente é considerar as continuidades na ação política deste povo indígena. Para mais referências metodológicas das possibilidades de ler a história a partir da etnografia, ver Sztutman (2012). . Aceitar, supomos a partir dessa corporalidade guerreira, seria ceder a si e os seus à virtual dissolução do que são nos domínios do Outro: significaria ser tomado pelo Outro, ser englobado por ele, o que parece pouco possível para caciques xucuru-kariri que se mostram a partir de capacidades agressivas. Nesse sentido, o melhor mesmo era “cada um no seu lugar”. Procede agora explicar como as noções cosmopolíticas específicas de cada um dos dois povos indígenas trazem revelações sobre a situação que se desenvolve entre caciques e famílias no sul-mineiro. Essa lógica deve favorecer o entendimento do porquê as relações interétnicas, em contraposição a aliança estabelecida entre os antigos líderes Xucuru-Kariri e Kiriri, converteram-se de cumplicidade em conflito, ou ainda, passaram da troca de terra para a troca de maus afetos, acusações e indiferença, bem como auxiliará levantar hipóteses sobre os domínios territoriais que foram constituídos em Caldas.

AS CHEGADAS DAS FAMÍLIAS INDÍGENAS EM CALDAS/MG

Após um longo período em meio a secas do sertão baiano e enchentes do Rio São Francisco, somadas a conflitos com fazendeiros e policiais do entorno da Fazenda Pedrosa, em Nova Glória, famílias xucuru-kariri reivindicaram junto à FUNAI uma nova terra. Temporariamente foram conduzidos pelo órgão indigenista até São Gotardo, onde viveram em média três anos (Parisi, 2008PARISI, Rosana Soares Bertocco. 2008. Xucuru-kariri: a reconstituição da trajetória de um grupo indígena remanejado e suas habitações e “novaterra. São Paulo, 2008, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.). Posteriormente, em 2001, instalarem-se oficialmente no antigo Posto Agropecuário do município de Caldas17 17 Recentemente, funcionários da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (EPAMIG) negaram que tenha sido o atual assentamento Fazenda Boa Vista uma fazenda experimental da empresa. Na própria certidão daquelas terras, colhida no Registro de Imóveis da Comarca de Caldas, o terreno que tinha pertencido ao Município de Caldas foi doado, em 1949, para a União com o objetivo de abrigar ali um Posto Agropecuário. De acordo com funcionários da EPAMIG e da Prefeitura do Município de Caldas, a Fazenda Boa Vista estava sob administração da Universidade Federal de Lavras que havia feito do posto um centro avançado de pesquisas agropecuárias, mas que não estava em funcionamento desde muito antes da chegada dos Xucuru-Kariri. , que veio ser o atual assentamento de famílias xucuru-kariri conhecido como Fazenda Boa Vista.

Nessa mesma reserva indígena de Minas Gerais, alguns Kiriri passaram um tempo inclusive para ajudarem os Xucuru-Kariri a se estabelecerem no local. O apoio foi oferecido pelos Kiriri diante das dificuldades que surgiram da chegada dos Xucuru-Kariri numa região onde os moradores estavam desacostumados com a presença de indígenas. De resto, a estadia do cacique kiriri do Rio Verde deu-se ao longo de dois anos. Naquele tempo, o cacique, que ainda não era conhecido por essa designação, mantinha um relacionamento afetivo com umas das filhas do velho cacique xucuru-kariri, demonstrando que as alianças não foram constituídas tão somente por meio de troca de terra. Com o fim do matrimônio em Caldas, decidiu voltar à aldeia kiriri em Muquém de São Francisco, onde dividiu a chefia com sua irmã na condição de vice-cacique. O retorno, contudo, não foi definitivo. Algum tempo após isso, deslocou-se de novo para ficar com os Xucuru-Kariri em Caldas e trabalhar em roças do entorno, em geral de batatas.

Após a morte da conhecida liderança kiriri responsável por instituir a aldeia de Muquém de São Francisco, seu filho, atualmente chefe dos Kiriri do Rio Verde, foi outra vez para sua terra originária, na Bahia. Sua intenção de apoiar um prefeitável de Muquém de São Francisco distinto do qual a cacique pretendia dar apoio fez-lhe deixar a vice-liderança na esperança de encontrar uma terra onde pudesse formar uma nova aldeia. Tomada a decisão, anunciou seu pertinente desejo de localizar uma área no sul do estado de Minas Gerais para sua família e para quem quisesse o acompanhar. Ele e sua mulher voltaram mais essa vez para Caldas, aparentemente ainda mais motivados, com apoio de mais algumas famílias Kiriri e trazendo junto uma lista de outras que gostariam de se mudar para as terras que seriam encontradas. Por isso mesmo, destinou-se com sua esposa, a essa altura uma indígena do povo Pankaru, à aldeia caldense dos Xucuru-Kariri intencionando o apoio de seus antigos anfitriões a fim de que pudessem ocupar a terra em que habitam hoje.

Logo nos primeiros momentos da volta, os Kiriri decidiram alugar uma chácara no mesmo município em que vivem os Xucuru-Kariri e não mais coabitar com eles. A procura não parou até que os Kiriri ocuparem, no início de 2017, uma área pertencente ao governo do estado de Minas Gerais, que, desde então, demandam como terra para suas famílias. O cacique kiriri, que se tornou líder do grupo após fazer o enfrentamento de todo este processo de vinda para Caldas, lembra que há muitos anos guarda uma vontade de encontrar uma terra para seu povo no sul mineiro, onde há abundância de água e menos violência18 18 Os Xucuru-Kariri, por sua vez, relataram o contrário. Incomodou-os, ao menos em princípio, a inexistência de um rio à beira de seu território, como no Nordeste, que mesmo na seca apresentava um flo d’água. Disseram ainda sobre as dificuldades que sentiram frente ao frio e às ladeiras do terreno montanhoso da região (Parisi, 2008). Por outro lado, como os Kiriri, afirmam que a vida em Caldas é mais tranquila por não haver tantos conflitos como aqueles que narram quando rememoram a vida na Bahia. . Obviamente isso faz questionar o rompimento com sua irmã e cacique de Muquém de São Francisco unicamente como reflexo de suas divergências políticas. Estas certamente são razões mais superficiais do que as profundas motivações de busca por lugares em que sua família e de outros possam viver bem.

Diante do apoio requerido pelos Kiriri, soubemos que o chefe xucuru-kariri lhe propôs que os dois povos vivessem juntos na aldeia, o que foi rejeitado pelo outro num gesto muito semelhante ao que fizera a antiga liderança dos Xucuru-Kariri quando recebeu o convite dos Kiriri para viver em Mirandela. Assim como o velho xucuru-kariri, o jovem cacique kiriri partiu da premissa das dificuldades potenciais da convivência. Da perspectiva deste, os grupos se comportam politicamente diferente, uma vez que os Kiriri distribuiriam, ainda segundo sua perspectiva, mais horizontalmente o poder do que os Xucuru-Kariri. Embora os dois chefes entendam-se como provedores de bem-estar daqueles que habitam as aldeias que lideram, é improvável que o cacique kiriri, como o Xucuru-Kariri, seja visto enquanto dono da aldeia. Logo, chegou a concluir que o melhor mesmo é cada povo possuir sua terra e seu próprio cacique.

Decerto, o chefe kiriri sabe por suas próprias experiências que a habitação em domínios de outra chefia implica no perigo virtual do englobamento da diferença. Independente das formas distintas de organização do poder entre os Xucuru-Kariri e os Kiriri, o ponto de vista do cacique kiriri faz sobressaltar sua recusa à anulação da alteridade que viria ser efetuada diante da disposição do chefe xucuru-kariri de caçar e fazer filhas as pessoas de seu domínio. É uma renúncia à assemelhação e uma renitência à diferenciação por separação de domínios. É o que sugerem ao menos os que vivem na aldeia de Caldas e não são genealogicamente Xucuru-Kariri, mas que assim se produzem por viverem em territórios de Outros.

Os Outros sob domínios do cacique xucuru-kariri conhecem, pois, sua capacidade de refrear diferenças: não-indígenas e indígenas de outras etnias que habitam entre os Xucuru-Kariri de Caldas anunciam-se igualmente como os que lhes acolhem. Os exemplos que dão sustentação à nossa interpretação é principalmente a estética corporal que assume um professor kiriri na convivência com os Xucuru-Kariri e que era produzida no jovem cacique kiriri do Rio Verde à época em que também morava na aldeia deles. No caso do professor, tem as mesmas furações faciais dos seus anfitriões, utiliza-se dos mesmos grafismos na pintura, publica nas redes sociais o orgulho de ser Xucuru-Kariri, além de seguir as atitudes de respeito do sistema de parentesco (pedidos de bênçãos a todos da geração acima), as quais desconhecia, conforme o vimos comentar para a mulher xucuru-kariri com quem foi casado. No que diz respeito ao cacique dos Kiriri em Caldas, fotografias vistas por nós mostraram que ele, pelo menos, adotava em danças ornamentação corporal igual à dos seus co-residentes.

É o que está pressuposto nas considerações do chefe xucuru-kariri sobre o acordo político malsucedido entre os líderes. O Kiriri e sua mulher decidiram ocupar as terras independentemente da participação do jovem xucuru-kariri e isso, para este último, foi desafiador à sua figura de cacique. Portanto, a partir da noção xucuru-kariri, não é possível que haja um outro chefe a não ser que esteja obviado em seus domínios. E colocar um outro chefe sob seu controle é anular a diferença por incorporação, como bem deixaram explícitas as afirmações do cacique xucuru-kariri numa gravação feita por uma emissora regional de Poços de Caldas19 19 O vídeo foi assistido durante uma aula na escola da aldeia. Uma professora xucuru-kariri possui o arquivo completo da reportagem. . Ele respondeu ao repórter, que observou ser a pintura igual para todos, dizendo que desde aí são unidos e organizados, e, como já dito, tendo por base a fala de uma senhora, o ideal de viver unidos é viver controladinho. Fora da aldeia não se pode viver plenamente como índio, que nunca é o índio genérico que a história colonial produziu para falar dos nativos da América, é, senão, o que os próprios Xucuru-Kariri pensam sobre si. E dentro da aldeia, a diferença é transformada em semelhança, como os brancos que se casam com indígenas e passam a fazer (dançar toré e respeitar) e ter o corpo como os deles20 20 Por sua vez, o acesso ao ritual ouricuri, realizado na mata, é impedido aos brancos, que serão aceitos se forem reconhecidos pela comunidade como um igual, aquele que sabe ter respeito. .

Frente à potencial transformação em domínios xucuru-kariri, o jovem cacique kiriri consultou a ciência de seu povo no intuito de localizar espaços possíveis para ocupar e criar uma aldeia em Caldas, o que sempre faz quando surgem questões importantes referentes à comunidade. Viu pela ciência que, exatamente onde estão assentados desde março de 2017, morava um Tapuia, o verdadeiro dono do lugar que foi apoderado pelo governo do estado de Minas Gerais. Se o cosmo araweté está cheio de seres ferozes canibais com os quais os indígenas pouco se preocupam para realizar seus atos de apropriação-predação do mundo e no cosmo parakanã não existe preocupação alguma em negociar domínios porque não existem donos (Fausto, 2008FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2, pp. 329-366. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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), no cosmo kiriri, a ética da negociação com o índio morto permitiu que famílias ocupassem a terra, o que ocorreu inicialmente com barracas de lona e posteriormente com casas de barro.

Os Kiriri construíram nove moradas de taipa na área ocupada, sendo duas destas moradas cobertas com telhas de cerâmica doadas por moradores do município de Caldas. Já as outras sete moradas eram cobertas por lona, sendo uma coberta por lona preta e as outras quatro cobertas por lona branca21 21 As cores da lona utilizadas em contexto de ocupação de terra podem ser indicativas do que Lygia Sigaud (2000, 2002) considerou chamar de “forma acampamento”. Para esta autora, a “forma acampamento” atua enquanto linguagem simbólica, constituindo a forma adequada de demandar terra ao Estado nos últimos 30 anos, que pode ser verificada por elementos que se repetem a cada nova ocupação como, por exemplo, as bandeiras, lonas e barracas, podendo ser compreendida pelo Estado brasileiro, movimentos e pelos próprios acampados. Contudo, Sigaud se refere à “forma acampamento” enquanto estratégia amplamente difundida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Por isso, não podemos afirmar que a utilização da “forma acampamento” pelo povo indígena Kiriri do Rio Verde é idêntica ao modo como fazem uso os movimentos sociais no que diz respeito à demanda de terras. A ocupação de terras por indígenas tem suas especificidades. . Os Kiriri do Rio Verde também construíram um espaço, localizado em meio às moradas para que danças e rituais possam acontecer, como, por exemplo, o toré. Este espaço, chamado de cabana, tem um formato circular e é coberto com algumas folhas de palmeiras encontradas na região, o que deverá ser modificado, uma vez que a folha de Carnaúba (Copernicia prunifera), encontrada no Nordeste do país, seria melhor. Com as folhas de Carnaúba também seriam construídas, desta vez em meio à mata, três espaços para a realização dos rituais da ciência kiriri. Um destes espaços, chamado de casa da ciência, deveria ser utilizado para que o filho do cacique fosse fabricado pajé. O preparo para se tornar um mediador cósmico envolve restrições alimentares, sexuais e reclusão na casa da ciência durante vinte e um dias. A casa da ciência foi elencada pelo próprio grupo como quarta prioridade do processo de formação da aldeia: em um primeiro momento os indígenas ocuparam a terra, numa segunda fase construíram suas casas, em seguida edificaram a cabana onde podem dançar o toré e o passo seguinte seria a construção da casa da ciência. Contudo, a insegurança sobre a territorialização naquela terra, causada pela incerteza de aliança com indígenas xucuru-kariri, poder público local, estadual e federal - manifesta, por exemplo, pela falta de interesse do Estado em levar energia elétrica até eles -, fizeram com que os indígenas se sentissem impossibilitados de construir a casa de ciência e, consequentemente, o pajé incapacitado de realizar o rito de obrigação para com seus ancestrais.

A ciência dos Kiriri é, portanto, o saber com o qual o cacique pode abrir os caminhos de negociação não apenas com seres espirituais, como o Tapuia, mas é ainda o conhecimento que lhe permite visualizar as negociações futuras que são imprescindíveis à constituição de seus domínios territoriais. A ciência foi utilizada para que os indígenas pudessem prever o andamento da reunião, referente às demandas do grupo, com a FUNAI, o governo do estado (a terra pertence à UEMG) e o prefeito de Caldas, que se mostrou contrário a permanência dos Kiriri em seu município. As reuniões são encontros cosmopolíticos específicos por consistirem em espaços de negociações com chefes humanos não-indígenas. Afinal, com outros seres há outros mais privilegiados. Com exceção daquela aliança com o Tapuia, o cacique Kiriri não tinha obtido sucesso em suas tentativas de conseguir apoio até aquele momento.

No que concerne à aliança xucuru-kariri/kiriri na geração anterior, a qual recorreu o chefe kiriri em princípio para ocupar o terreno, estão reconfiguradas pelo seu avesso - a guerra (Lévi-Strauss, 2009LÉVI-STRAUSS, Claude. [1949] 2009. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Vozes.) - na geração dos atuais caciques. Troca-se, na atualidade, menos cumplicidades e apoios. Os Kiriri mostram-se ressentidos com os Xucuru-Kariri, enquanto os Xucuru-Kariri, se não se silenciam no que concerne à situação dos Kiriri, culpam-lhes de feitiços, contra os quais têm as cerimônias ouricuri. A divergência entre os caciques procede, como indicamos acima, das perspectivas distintas que possuem sobre a ética pela qual devem se orientar nas negociações cosmopolíticas - os Xucuru-Kariri julgam antiética uma ocupação em domínios de outros. Entre estes últimos, os sentidos de guerra e agressão, dependentes de ontologias animais, aparentam deslocados para a estética, como defendemos em análise acerca de danças, ornamentos e cantos durante apresentações de toré, dança da lança e partidas de futebol (Bort Jr., 2019BORT JUNIOR, João Roberto. 2019. “O corpo dos Xucuru-Kariri e de seus ancestrais no mato, na aldeia e na cidade”. In Anais do 3º Congresso Internacional Povos Indígenas da América Latina. Brasília, Universidade de Brasília.), e não têm se manifestado literalmente para os caldenses desde que esses mineiros aprenderam, segundo narram, a respeitá-los. Além disso, a divergência também procede da perturbação da proximidade dos domínios que estavam em constante constituição em Caldas. A presença de aldeias Outras, que sejam próximas demais, significa, para os Xucuru-Kariri, que os Outros podem estender suas relações nos domínios daqueles brancos com os quais mantêm relações estabilizadas. Em nossa hipótese, as trocas nada amigáveis decorrem da forma como os domínios territoriais Xucuru-Kariri e Kiriri estão constituídos presentemente e que não se assemelham à forma como, nas gerações de seus pais, foram conformados.

O ROMPIMENTO DA ALIANÇA

Em 2017, aconteceu mais uma edição dos Jogos Indígenas do Estado de Minas Gerais, ocorrida na aldeia xucuru-kariri de Caldas/MG, evento no qual povos habitantes do estado estiveram presentes, entre eles, os Maxakali, os Krenak, os Pataxó, os Xakriabá e os Kaxixó. Os indígenas chegaram um dia antes do início das atividades de competição e instalaram-se em enormes barracas que, ao lado do campo de futebol da aldeia, foram armadas com ajuda do poder municipal. Para alimentarem-se durante todos os dias, os indígenas tiveram três refeições diárias também custeadas pelo poder público, mas também podiam ter acesso às barracas dos Xucuru-Kariri para comprar seus salgados, sorvetes, sanduíches, refrigerantes, etc. que, em meio a outras de artesanato, foram montadas com apoio de funcionários da prefeitura municipal ou contratados por essa. Para a higiene pessoal, os grupos indígenas tinham à disposição vestiários improvisados em containers trazidos à aldeia, além do vestiário de alvenaria construído para atender os visitantes dos jogos indígenas. Todos adquiridos com financiamento público. A limpeza do terreno para criar um estacionamento para os ônibus que trouxeram as comitivas indígenas também ficou a cargo do maquinário da prefeitura de Caldas, assim como a coleta de lixo que fora organizada pelos servidores do município após solicitação do cacique. Muitos humanos e recursos para que os indígenas pudessem, com seus corpos em lutas ou em competições com bola, zarabatana e arco, articularem-se entre si.

Dentre as atividades esportivas, os índios concorreram nas modalidades, tanto masculina quanto feminina, de futebol, corrida de maracá, derrubada do toco e arco e flecha. Ocorrido durante quatro dias, o evento foi aberto com a presença de inúmeras lideranças políticas de Minas Gerais - dentre esses, um deputado e alguns secretários estaduais - e lideranças políticas da cidade - como o prefeito, o secretário municipal de esporte. Ainda naquele dia, autoridades da rede pública mineira de educação e outros secretários municipais, como foi o caso da secretária de finanças do município (a cacica da prefeitura, segundo os Xucuru-Kariri), também circularam aos arredores do campo de futebol recentemente gramado com recursos estatais. Porém, antes das falas dos políticos e dos gestores, os jogos indígenas iniciaram-se com o toré dos Xucuru-Kariri, responsáveis por abrir espaço para as demais etnias fazerem suas apresentações. Só assim puderam, então, as lideranças políticas não-indígenas e indígenas compor a mesa de abertura do evento que estava posta sobre um grande palco montado com apoio da prefeitura de Caldas/MG. A estrutura contava ainda com grande aparelhagem de som e iluminação que pôde, nas noites do evento, entusiasmar indígenas com muito forró e funk.

Após as apresentações de danças rituais de outros indígenas e falas de lideranças políticas dos brancos, que sinalizaram apoio irrestrito aos povos presentes, os jogos foram definidos pelos caciques como ocasião para fazerem política indígena e conhecerem a realidade da aldeia uns dos outros. As falas indígenas durante a abertura do evento foram todas no sentido de defesa de seus direitos no que se refere à educação, à saúde e ao território. Anunciavam ser um momento importante de construção de uma luta conjunta no estado de Minas Gerais. Entre uns e outros momentos dos jogos, os Xucuru-Kariri anunciavam, por exemplo, reuniões de caciques para definirem mais do que a programação das atividades esportivas, diziam ser momento para unirem-se politicamente. O momento não era para usar saberes de abertura de comunicação e negociação com seres de outros patamares cósmicos, como fazem o cacique e o pajé dos Kiriri para encontrar alianças com mortos. O líder Xucuru-Kariri, durante os jogos, valia-se de suas habilidades de negociação para articular os povos indígenas em conjunto e capturar o que fosse possível das autoridades. Era um enfretamento que certamente não seria exagero definir como guerra, porque a festa é a própria guerra, como nos lembra Perrone-Moisés (2015)PERRONE-MOISÉS, Beatriz. 2015. Festa e guerra. São Paulo, 2015, Tese de Livre Docência, Universidade de São Paulo. sobre modos ameríndios de fazer política. Imensamente adornado com um enorme cocal (adorno de cabeça) e muitas plumas nas orelhas e braços, o cacique apresentava-se amplamente ornamentado sobre o palco. Carregava também todos aqueles ossos dos quais já falávamos. Pelo microfone, notavelmente comandava os indígenas a saírem organizadamente do fundo do campo de futebol, que mais era uma arena ritual naquele momento, e a atravessarem-no com dança e cantos para imporem-se emplumados, pintados e armados com arcos, flechas e bordunas diante dos brancos. Promessas de apoio dos políticos e gestores foram obtidas. Os caciques pareciam estar abertos uns aos outros; dispostos a aliarem-se num combate por direitos, recursos e condições de vida.

Observa-se disso que, em certa medida, o jogo ao qual pareciam estar mais dispostos a jogar era o político, apesar de o fazerem ritual-esportivamente. Não eram atletas competindo, naquele instante, mas guerreiros unidos em contraposição às lideranças não-indígenas num evento de caráter esportivo.

Nesse sentido, a ocupação da terra do Tapuia, chefiada pelo cacique kiriri, sugere ser, por comparação à forma xucuru-kariri de fazer política, uma negociação distinta da operada pelos guerreiros sob comando do cacique adversário. O primeiro invade domínios Outros para constituir o seu próprio, como narram os Xucuru-Kariri sobre a luta kiriri, que os próprios julgam legítima já que fora autorizada pelo índio Tapuia. O segundo, performatiza o enfrentamento por meio de corpos guerreiros dispostos a capturar coisas de outros domínios que tem seus líderes próprios. Isso significa que se, por um lado, o cacique Xucuru-Kariri é um guerreiro-caçador de coisas de Outros, por outro lado, essa captura do que está além dos seus domínios é provida de uma ética segundo a qual a preensão deve expressar-se em cerimônia, mas não que seus efeitos sejam menos reais. Os Xucuru-Kariri opuseram-se ao pedido do cacique kiriri para auxiliarem na ocupação do terreno da UEMG, isso porque se tratam de povos cujas éticas de interação com domínios alheios divergem na sua forma. Supomos que os Kiriri e os Xucuru-Kariri em Caldas não chegarão a apoiarem-se, porque os princípios cosmológicos e sociopolíticos que lhes orientam na relação com o lugar são incompatíveis.

Os Kiriri, que tinham sido aliados dos Xucuru-Kariri numa geração acima, estavam agora para além do plano dos adversários ao serem totalmente excluídos da possibilidade de celebrarem com a presença de brancos e de lutarem do lado dos indígenas nesse evento essencialmente de disputa. Os Kiriri não foram convidados, assim como em momento algum foram lembrados pelos presentes, para capturar bens dos domínios dos brancos. Diga-me com quem tu festejas que direi quem tu és, diria novamente Perrone-Moisés (2015)PERRONE-MOISÉS, Beatriz. 2015. Festa e guerra. São Paulo, 2015, Tese de Livre Docência, Universidade de São Paulo.. Nos quatro dias do evento produziram ao mesmo tempo alianças, visibilidades, demandas indígenas ao poder público e um silenciamento sobre a reivindicação da posse da terra dos Kiriri. Enquanto isso, no bairro rural Rio Verde de Caldas, indígenas Kiriri expressavam ressentimento.

É imprescindível esclarecer um paradoxo aparente nas relações descritas: por que a relação de aliança entre os caciques da geração anterior não replicou na geração seguinte e envolveu seus filhos caciques em tensões? Por que, em termos lévi-straussianos, relações de aliança no sertão baiano passaram a um “desfecho de transações infelizes” na região sul da Mata Atlântica mineira? A primeira hipótese, como imaginamos ter demonstrado,é de que a ação política decorrente da perspectiva cosmopolítica kiriri diverge daquela que deriva da perspectiva xucuru-kariri. A segunda hipótese, que por ora levantamos, é a de que a transação do velho cacique xucuru-kariri com o velho cacique kiriri no sertão baiano não instaurou domínios territoriais tangentes ou potencialmente sobrepostos. Os velhos não constituíram domínios com interesses conflitantes, haja vista que, após a transferência da terra, os domínios do Xucuru-Kariri estavam demasiadamente longe para se sobreporem aos do Kiriri. A troca de terras entre os pais dos caciques no sertão baiano seguiu-se com o deslocamento dos Xucuru-Kariri para Nova Glória, localizada a cerca de mil quilômetros dos domínios territoriais daqueles Kiriri.

Diferentemente disso, no que diz respeito aos recentes domínios que estão em constituição em Caldas, o domínio do cacique kiriri representa para o chefe xucuru-kariri, que se prestigia proporcionalmente ao número de famílias que zela e aos recursos que obtém para o bem-estar de “seu” povo, uma interferência sobre os domínios territoriais da prefeitura onde este chefe indígena tem caçado desde a morte de seu pai. A liderança xucuru-kariri reclama que, desde que os Kiriri aportaram em Caldas, algumas famílias de sua aldeia pensaram habitar o território kiriri em formação e que o poder público cogitou dar acesso ao posto e à escola xucuru-kariri também para os recém-chegados. São as relações com a prefeitura que, do ponto de vista do chefe xucuru-kariri, poderiam ser desestabilizadas caso não fosse possível a anulação por englobamento da alteridade perturbadora do Outro.

A territorialidade sendo, antes de apego ao espaço, relações entre pessoas (Pietrafesa de Godoi, 2016PIETRAFESA DE GODOI, Emília. 2016. “Entre campos y ciudades: movilidades, lugar y pertinência”. Conferência proferida no XIII Coloquio Nacional de Sociología. Universidad del Valle, Cali, Colômbia (no prelo).) e os lugares como criações feitas por meio de (inter)ações entre seres (humanos ou outros) (Coelho de Souza, 2017COELHO DE SOUZA, Marcela. 2017. Dois pequenos problemas com a lei: terra intangível para os Kisêdjê. R@U, São Carlos, vol. 9, n. 1, pp. 109-130. http://www.rau.ufscar.br/wp-content/uploads/2017/10/5_Marcela_Coelho_de_Souza.pdf
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), então, a proximidade de uma outra aldeia significaria para o chefe xucuru-kariri não um perigo para seus domínios territoriais, mas para a territorialidade constituída para além de seus domínios e para os lugares feitos em Caldas. A cidade como espaço de caça (Tommasino, 2001TOMMASINO, Kimiye. 2001. “Os sentidos da territorialização dos Kaingang nas cidades”. In Anais da IV Reunião de Antropologia do Mercosul. 2001. Curitiba, Brasil.), que não chega ser plenamente um domínio do chefe xucuru-kariri, é um lugar com o qual guarda alguma intimidade, porque tornou-se parte da territorialidade xucuru-kariri na medida em que passou a responder positivamente à contínua produção de suas vidas. Dito de outro modo, a denegação kiriri ao convite à habitação nos domínios xucuru-kariri impediu a incorporação englobante dos primeiros pelos segundos no convívio diário, conduzindo, do ponto de vista dos segundos, a uma situação de interferência sobre suas relações com os domínios dos brancos que vivem no seu cosmo e, consequentemente, sobre os lugares de onde o cacique ao mesmo tempo obtém os recursos para os cuidados com a aldeia.

Em síntese, é possível dizer que a constituição dos domínios no sertão baiano foi favorável à formação da aliança, visto que para os caciques isso não levaria ao englobamento da diferença para nenhum deles e permitiria a conformação de domínios territoriais sem concorrência por lugares. Em Caldas, a situação se revela diferente, pois não apenas os caciques estão em rivalidade, como potencialmente as relações de aliança com os donos dos domínios vizinhos fazem-se incertas, gerando tensões e conflito. Vejamos como isso tem se equacionado.

“CADA UM EM SEU LUGAR”: ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

Portanto, ao que parece, se a escolha dos Kiriri pela cidade de Caldas certamente se deu por possibilidades abertas pela aliança que tinham até então com os Xucuru-Kariri, o que se configura recentemente é a disputa, a acusação ou negação do Outro, de tal forma que não são mais considerados aliados e, por isso, não foram convidados para integrarem as trocas, os jogos e a grande caçada que se deu durante os jogos indígenas. Se das mãos do secretário municipal de esportes o cacique xucuru-kariri pegou a bola - parte metonímica do Estado -, os Kiriri não estavam no campo com os demais guerreiros que a receberam por meio de seu lançamento. Trata-se de compreendermos, por conseguinte, as possibilidades que estão abertas ao cacique kiriri, para além da cumplicidade já estabelecida com o Tapuia morto. Com quem eles poderiam obter algum reconhecimento a mais de seu domínio territorial no Sul de Minas Gerais? Afinal, a relação com seus vizinhos indígenas mostra-se tensa e fechada e com os domínios do poder público igualmente inacessível.

Tendo os Xucuru-Kariri construído relações com autoridades públicas caldenses de maneira que os têm possibilitado adquirir as condições de viver, é notável que espaços da cidade são, pois, domínios Outros onde os Xucuru-Kariri conseguem constituir territorialidade para incorporar bens e coisas em seus projetos de vida por meio de seu chefe. Os Kiriri, por sua vez, parecem encontrar uma solução justamente onde os Xucuru-Kariri não têm estendido sua territorialidade por meio de eventos esportivos, como esses dos jogos indígenas de Minas Gerais. Outras formas de aliança, aqui não tão exploradas, seriam casamentos com brancos e jogos de futebol aos domingos com times da região de Poços de Caldas. Nas franjas da territorialidade criada pelos Xucuru-Kariri sob a liderança de seu chefe, os Kiriri têm estabelecido os seus próprios lugares. A forma encontrada por estes últimos parecem ser os eventos religiosos que congregam os moradores das áreas rurais do Rio Verde, bairro onde está localizada a terra que ocupam os índios em Caldas, estendendo-se possivelmente até a comunidade rural de Laranjeiras.

Os moradores da região de Rio Verde receberam muito generosamente os Kiriri na missa da quinta-feira da semana santa de 2018, que celebrava simbolicamente o dia em que Jesus Cristo teria lavado os pés dos apóstolos em sinal de humildade. A comunidade recebeu os indígenas com apertos de mão e conduziram-lhes ao primeiro banco da igreja bem aos pés do padre. Logo nos primeiros minutos da missa, a presença dos Kiriri foi agradecida pelo sacerdote que, no auge da celebração, lavou os pés dos indígenas com auxílio do seminarista. A gentileza e a lavação dos pés, que, para os presentes, eram sinais de modéstia, pareciam retribuir a recepção que tinham tido no dia anterior na ocupação kiriri.

A missa da quinta-feira santa e a visita dos vizinhos no dia anterior eram instantes de um ciclo de trocas iniciado e que continuou quando o padre responsável pelas igrejas matriz e rurais do munícipio convidou os indígenas para integrarem a programação dos próximos eventos da semana que precede a páscoa e que aconteceriam na capela da comunidade do Rio Verde. Como acordado entre indígenas e o padre, o grupo participou das celebrações realizadas na igreja. Aquelas outras realizadas na cabana, por sua vez, contaram com a presença dos moradores da comunidade rural do entorno. Ainda, na sexta-feira da mesma semana, os Kiriri ofereceram um almoço para todos os moradores do Rio Verde, no qual serviram arroz, feijão inteiro, feijão de corda - prato típico do Nordeste e ansiosamente aguardado pelos moradores das comunidades - macarrão, angu, ensopado de peixe e peixe frito. Ao final do almoço, puseram à mesa mingau de milho verde. Compartilharam também diferentes tipos de refrigerantes, que foram levados pelos visitantes. No sábado, desta vez após a celebração ocorrida na capela da localidade, o jantar oferecido foi preparado por pessoas da comunidade, que ajudam frequentemente na manutenção da igreja. Neste dia, as opções para a refeição eram o arroz, o feijão, a carne de porco e a tradicional sopa de mandioca da região, prato também aguardado ansiosamente pelos Kiriri. De forma semelhante ao ocorrido na aldeia, refrigerantes e vinhos locais que acompanharam o jantar foram oferecidos pelos moradores da comunidade. As interações entre indígenas e católicos seguiram até o domingo de páscoa, quando os Kiriri realizaram uma apresentação de toré do lado de fora da igreja do distrito de Laranjeiras. Nesse último dia de uma sequência de visitas e celebrações, faziam-se presentes os moradores de sete dos bairros rurais caldenses.

Dessa forma, os eventos delinearam-se como uma sucessão organizada de visitas intercaladas dos moradores da comunidade do Rio Verde aos Kiriri e dos Kiriri à capela do Rio Verde e à igreja de Laranjeiras. Logo, um ciclo de troca de festas, gentilezas e comidas que durou toda a semana, inclusive no domingo de páscoa, e pelo qual a aliança entre os habitantes da área rural de Rio Verde e o casal kiriri caminhava para a sua consolidação. A expressão da cumplicidade entre os índios e seus vizinhos foi notável no apoio que os locais deram aos indígenas por meio de um abaixo-assinado pela instalação da energia elétrica nas casas kiriri, que circulou durante as celebrações e festividades, e seria entregue à prefeitura de Caldas. Igualmente perceptível, uma carta em oposição à reintegração de posse das terras pertencentes à UEMG retribuía aos Kiriri por sua generosidade com os moradores dos sítios do Rio Verde.

Em suma, se os Xucuru-Kariri constituíram sob liderança de seu cacique uma territorial idade que envolve aqueles que administramos domínios do núcleo urbano, sendo a prefeitura um lugar onde circula o chefe-caçador - fala que lá as portas estão abertas a ele -, aos Kiriri alguma possibilidade da produção da legitimidade daquelas terras do Rio Verde como seu domínio estavam a cargo das negociações com aqueles humanos e não-humanos com os quais os Xucuru-Kariri não tinham algum acordo anterior, a saber, o Tapuia morto e os rurais que habitam o lado oposto do município onde está localizada a terra indígena xucuru-kariri. A territorialidade xucuru-kariri cria lugares para si mais em solo urbano ou é mais proximamente relacionada com os agentes e as instituições urbanas do que a territorialidade kiriri produzida em eventos cristãos das comunidades rurais do Rio Verde. Embora os Kiriri tenham entendido que sem os Outros (indígenas, funcionários do Estado, vizinhos, espíritos) não conseguirão criar seus domínios territoriais, suas ações ainda não resultaram em efeitos totalmente positivos. Em meados de abril de 2018, os Kiriri deixaram as terras que ocupavam em Caldas rumo à zona rural de Pato de Minas, em Minas Gerais, logo após o término da vigência da liminar judicial que impediu a reintegração de posse da terra até pouco tempo. Todavia, a partida para outro lugar foi mais uma etapa de um processo de busca pela formação de território. O problema é que em Patos de Minas não tiveram tanta sorte e o espírito do quilombola que habita a região não lhes deu permissão de caçar animais e nem de constituir aldeia, apenas algum tempo para encontrar outra morada e alguns peixes do rio próximo para se alimentarem. A saída foi retornar à Caldas, onde, apesar de inimigos, possuem apoios vindos das pessoas que habitam o bairro rural Rio Verde e do verdadeiro dono das terras, o mesmo Tapuia. São também agências como essas que devemos olhar se quisermos compreensão sobre processos políticos e territoriais em que estão envolvidos esses ameríndios deslocados do Nordeste brasileiro.

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    » http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/GT%2034/Vivendo%20na%20metrópole%20-%20 aba.pdf
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  • VIEGAS, Susana de Matos. 2007. Terra calada: Os Tupinamba na Mata Atlantica do Sul da Bahia Rio de Janeiro, 7Letras.
  • 1
    O artigo é versão modificada do trabalho que apresentamos, em novembro de 2017, na XVIII Jornada Discente do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Agradecemos pelos comentários dos professores Elsje Lagrou e Cesar Gordon durante o evento.
  • 2
    Conforme notícia de 28 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/triangulo-mineiro/noticia/pm-faz-reintegracao-de-posse-e-familias-sao-evacuadas-de-propriedade-entre-sao-gotardo-e-rio-paranaiba.ghtml. Acessado em 05 de abril de 2018. Enquanto a primeira versão deste artigo era redigida, tais Xucuru-Kariri se encontravam numa ocupação em Patos de Minas, em Minas Gerais. Atualmente, no momento de revisão do texto, os mesmos indígenas habitam uma terra oficialmente reconhecida em Presidente Olegário/MG.
  • 3
    Sobre o processo de formação da etnia Xucuru-Kariri, indícios históricos de interações entre esses indígenas da família linguística Kariri no século XVII são apresentados por Antunes (1973)ANTUNES, Clóvis. 1973. Wakona-Kariri-Xukuru: Aspectos Sócio-Antropológicos dos Remanescentes Indígenas de Alagoas. Maceió: Imprensa Universitária - UFAL.. Para uma revisão pormenorizada sobre a formação do aldeamento indígena por meio de ação missionária, no século XVIII, onde é a atual Palmeira dos Índios/AL, sobre registros documentais da ocupação indígena em Alagoas, além dos processos históricos de espoliação e reconhecimento dos territórios dos Xucuru-Kariri no local e sua relação com o Estado, ver Martins (1994)MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. 1994. Os Caminhos da Aldeia… Índios Xukuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais. Recife, 1994, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pernambuco. e Silva Jr. (2007)SILVA-JUNIOR, Aldemir Barros da. 2007. Aldeando sentidos: os Xukuru-Kariri e o serviço de proteção aos índios no agreste alagoano. Salvador, 2007, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia..
  • 4
    Na ocasião da escrita do artigo, os Kiriri ainda estavam em Caldas. No entanto, em abril de 2018, deixaram o local rumo a Pato de Minas para instalarem-se numa terra administrada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e ocupada por quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais do Movimento dos Sem Terra (MST). Decidiram partir de Caldas/MG após o término do período de vigência da liminar judicial que havia derrubado, em 2017, a ordem de reintegração de posse. Isso é um capítulo a mais no desenvolvimento dos processos que apresentamos, que conta agora com o retorno dessas famílias para a cidade sul-mineira.
  • 5
    O tema das relações ambientais dos povos indígenas com o semiárido tem rendido investigações bem contemporâneas (Santos, Silva e Oliveira, 2018)SANTOS, Carlos Alberto B., SILVA, Edson H. e OLIVEIRA, Edivania G. da S. 2018. História ambiental, história indígena e relações socioambientais no Semiárido Brasileiro. Paulo Afonso, SABEH..
  • 6
    Utilizaremos o itálico para falas e categorias nativas, bem como para títulos de obras, deixando as aspas para noções analíticas.
  • 7
    Desde agosto de 2017, Bort Jr. e Henrique dividem-se em trabalhos de campo mensais, respectivamente, na aldeia xucuru-kariri e na aldeia kiriri. Embora tenha sido a ideia inicial, não tem sido prudente realizar entradas conjuntas nas aldeias em razão da configuração das relações entre os povos. Esta reflexão que publicamos é resultado de compartilhamento, entre nós, de dados, impressões, leituras e situações.
  • 8
    Manteremos os nomes dos indígenas sempre em anonimato. Eventualmente, explicitaremos aqueles que a literatura antropológica tornou público.
  • 9
    Kiriri do Rio Verde e Xucuru-Kariri de Caldas são os modos pelos quais as famílias indígenas em Caldas se autodenominam.
  • 10
    A percepção de um alto índice de violência e a proximidade excessiva com a cidade foram algumas das razões apontadas pelos indígenas sem que tenhamos conseguido maiores detalhes das agressões sofridas.
  • 11
    Realizamos trabalho de campo na aldeia Xucuru-Kariri em Caldas desde 2017. Neste texto, procuramos incorporar o máximo de informações obtidas a partir da relação com os indígenas, mas a pesquisa permanece em desenvolvimento.
  • 12
  • 13
    A mudança é inerente à pintura xucuru-kariri de Caldas, ainda que não acreditemos na alteração de seu fundamento guerreiro: as cores preta e vermelha sempre permanecem significando, respectivamente, luto e sangue derramado, i. e., há uma guerra contínua. A questão foi inicialmente apresentada por Bort Jr. (2018)BORT JUNIOR, João Roberto. 2018. “A estética guerreira no toré dos Xucuru-Kariri em Caldas/MG”. In II Encontro de Etnologia, História e Política Indígena. São Carlos, Universidade Federal de São Carlos..
  • 14
    Apresentam o regime climático e pluviométrico do Sul mineiro como dificuldades à continuação do plantio.
  • 15
    Para povos indígenas no Nordeste brasileiro, o cosmo é habitado por mestres. Há, portanto, alguma conversa possível com a noção cosmológica de “maestria” amazônica também em outros planos relacionais, posto que Fausto (2008)FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos demais: maestria e domínio na Amazônia”. Mana, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2, pp. 329-366. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132008...
    aposta que essa é uma forma concebida de relação entre diferentes entidades em distintas esferas.
  • 16
    Ler os eventos do passado a partir de observações etnográficas do presente é considerar as continuidades na ação política deste povo indígena. Para mais referências metodológicas das possibilidades de ler a história a partir da etnografia, ver Sztutman (2012)SZTUTMAN, Renato. 2012. O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens. São Paulo, Edusp..
  • 17
    Recentemente, funcionários da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (EPAMIG) negaram que tenha sido o atual assentamento Fazenda Boa Vista uma fazenda experimental da empresa. Na própria certidão daquelas terras, colhida no Registro de Imóveis da Comarca de Caldas, o terreno que tinha pertencido ao Município de Caldas foi doado, em 1949, para a União com o objetivo de abrigar ali um Posto Agropecuário. De acordo com funcionários da EPAMIG e da Prefeitura do Município de Caldas, a Fazenda Boa Vista estava sob administração da Universidade Federal de Lavras que havia feito do posto um centro avançado de pesquisas agropecuárias, mas que não estava em funcionamento desde muito antes da chegada dos Xucuru-Kariri.
  • 18
    Os Xucuru-Kariri, por sua vez, relataram o contrário. Incomodou-os, ao menos em princípio, a inexistência de um rio à beira de seu território, como no Nordeste, que mesmo na seca apresentava um flo d’água. Disseram ainda sobre as dificuldades que sentiram frente ao frio e às ladeiras do terreno montanhoso da região (Parisi, 2008PARISI, Rosana Soares Bertocco. 2008. Xucuru-kariri: a reconstituição da trajetória de um grupo indígena remanejado e suas habitações e “novaterra. São Paulo, 2008, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.). Por outro lado, como os Kiriri, afirmam que a vida em Caldas é mais tranquila por não haver tantos conflitos como aqueles que narram quando rememoram a vida na Bahia.
  • 19
    O vídeo foi assistido durante uma aula na escola da aldeia. Uma professora xucuru-kariri possui o arquivo completo da reportagem.
  • 20
    Por sua vez, o acesso ao ritual ouricuri, realizado na mata, é impedido aos brancos, que serão aceitos se forem reconhecidos pela comunidade como um igual, aquele que sabe ter respeito.
  • 21
    As cores da lona utilizadas em contexto de ocupação de terra podem ser indicativas do que Lygia Sigaud (2000SIGAUD, Lygia, et al. 2000. “A forma acampamento: notas a partir da versão pernambucana”. Novos Estudos CEBRAP, vol. 58, pp. 73-92. http://novosestudos.com.br/produto/edicao-58/#:~:text=A%20Forma%20Acampamento%3A%20Notas%20a,de%20terras%20pelo%20governo%20federal.
    http://novosestudos.com.br/produto/edica...
    , 2002SIGAUD, Lygia, et al. 2002 Lonas e bandeiras em terras pernambucanas. Rio de Janeiro, Museu Nacional/Tecnopop.) considerou chamar de “forma acampamento”. Para esta autora, a “forma acampamento” atua enquanto linguagem simbólica, constituindo a forma adequada de demandar terra ao Estado nos últimos 30 anos, que pode ser verificada por elementos que se repetem a cada nova ocupação como, por exemplo, as bandeiras, lonas e barracas, podendo ser compreendida pelo Estado brasileiro, movimentos e pelos próprios acampados. Contudo, Sigaud se refere à “forma acampamento” enquanto estratégia amplamente difundida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Por isso, não podemos afirmar que a utilização da “forma acampamento” pelo povo indígena Kiriri do Rio Verde é idêntica ao modo como fazem uso os movimentos sociais no que diz respeito à demanda de terras. A ocupação de terras por indígenas tem suas especificidades.
  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Código de Financiamento 001 – e Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) – Processo nº 2017/13949-0.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2018
  • Aceito
    17 Jan 2020
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