Siân Jones, The Archaeology of Ethnicity. Constructing identities in the past and present. Londres, Routledge, 1997, 180p.
Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP
A Antropologia e as Ciências Humanas, em geral, têm discutido, nas últimas três décadas, ao menos, as noções de identidade étnica e etnicidade e o livro de Siân Jones procura demonstrar as implicações dessas reflexões para os estudiosos da cultura material.
A autora começa seu livro com uma introdução sobre como o conceito de cultura arqueológica, desenvolvido no último século, baseado em uma associação direta entre cultura material (a evidência arqueológica), grupo étnico ou raça e língua, continua a predominar, apesar dos estudos antropológicos recentes. Assim, "o mesmo paradigma básico que era usado na Alemanha nazista também formou o quadro rudimentar básico da pesquisa arqueológica mundial" (:5). No capítulo segundo, "a identificação arqueológica de povos e culturas" (:15-39), Jones descreve, em detalhe, o desenvolvimento do modelo histórico-cultural, fundado no pressuposto de que as culturas eram definidas com base nos traços materiais associados com sítios, em determinada região e tempo, aceitando-se que a continuidade cultural indicava uma continuidade étnica.
Este modelo histórico-cultural, iniciado por Gustav Kossinna em seu Die Herkunft der Germanen (A origem dos germanos), publicado em 1911, foi modificado e difundido, em escala mundial, pelo patrono da moderna Arqueologia, Gordon Childe, a justo título o mais influente arqueológo, cujas obras tornaram-se clássicas para ciências como a Antropologia ou a História. Para Childe, os arqueólogos deveriam buscar descobrir "culturas homogêneas", culturas essencialmente conservadoras. Os povos pré-históricos migrariam constantemente, o que justificaria as interpretações difusionistas e migracionistas. A autora demonstra como esses pressupostos continuaram a ser considerados válidos, de uma forma ou de outra, com o desenvolvimento da Arqueologia processual (anos 1960 e 1970) e usa como exemplo o caso da Bretanha Romana para exemplificar como a chamada técnica de seriação constrói as próprias evidências. Semelhanças são consideradas sinais de proximidade social e espacial, dissemelhanças são índices de distância, de modo que os pressupostos da existência de cultura e identidade como algo monolítico e delimitado são confirmados pelo próprio método de investigação. Freqüentemente, conceitos como "grupo étnico" e "cultura" são vistos como categorias naturais.
O capítulo terceiro, sobre "As taxonomias da diferença: a classificação dos povos nas Ciências Humanas" (:40-55), procura mostrar a origem histórica da identificação entre raça, língua e cultura, no século XIX, quando predominava uma preocupação, derivada do nacionalismo, com a homogeneidade, a ordem e os limites dos grupamentos humanos. Os conceitos de "sítio tipo" e de "cultura arqueológica" seguiam esses pressupostos que, no entanto, no período entre 1920 e 1960, foram questionados por trabalhos de campo antropológicos que demonstram não haver coincidência necessária entre as fronteiras culturais, lingüísticas e sociais (pace Leach). Em seguida, Jones trata do "domínio conceitual e teórico da etnicidade" (:56-83), a começar pela crítica ao ideal de objetividade, efetuada nas Ciências Humanas nos últimos quarenta anos. De modo que, em estudos empíricos, observou-se, por exemplo, que identificar objetivamente o povo Lue, da Tailândia, por descontinuidades na língua, cultura, estrutura política ou territorial, não era possível. Barth aprofundou essa linha de pensamento e propôs que não se pode assumir uma relação direta entre unidade étnicas e semelhanças e diferenças culturais (:60). Duas grandes hipóteses sobre a identificação étnica foram desenvolvidas, uma delas enfatizando "imperativos primordiais", inefáveis laços que explicariam a existência de unidades étnicas. Os primordialistas foram criticados por não explicarem, justamente, como alcançar algo definido como inefável. Outros preferiram o caminho oposto, propondo a existência de "etnicidades instrumentais", identidades criadas por interesses sócio-econômicos. Neste caso, a crítica centrou-se no fato de que o comportamento humano não se resume à maximização de resultados econômicos, de modo que apenas a instrumentalização não explicaria a identidade étnica.
No quinto capítulo, Jones propõe um "quadro analítico contextual: a etnicidade multidimensional" que procura incorporar os avanços da Antropologia contextual contemporânea. A autora procura superar a dicotomia entre objetivismo e subjetivismo a partir da teoria da prática de Bourdieu e do uso do conceito de habitus. O habitus é composto de disposições duradouras para certas percepções e práticas que acabam por se tornar parte do sentido de identidade individual, já em tenra idade. Segue, ainda, Bentley, ao propor que a noção de habitus permite diferenciar expressões culturais superficiais daquelas estruturais e profundas, de modo que, enquanto estruturas profundas do habitus fornecem a base para o reconhecimento da identidade, essas estruturas produzem uma grande variedade de expressões culturais de superfície. Neste caso, o contexto torna-se determinante das formas de expressão da etnicidade, variável, justamente, conforme o contexto. Esta abordagem da etnicidade põe em cheque, desta forma, as noções tradicionais e prevalecentes na Arqueologia desde Kossinna e Childe, ao historicizar a própria noção de grupo étnico e mostrar que a idéia de uma cultura homogênea, limitada no espaço, à maneira de um Estado Nacional moderno, com um povo, uma língua e uma cultura únicas, não passa de uma transposição do mito fundacional do Estado moderno para o passado. Se as identidades na França não correspondem a esse mito, tampouco haveria no registro arqueológico provas de identidades homogêneas, monolíticas e normativas, no passado.
As implicações dessas idéias das Ciências Humanas para a Arqueologia, tratadas no capítulo sexto, "Etnicidade e cultura material: rumo a uma base teórica para a interpretação da etnicidade na Arqueologia" (:106-127), são muitas, a começar pelo abandono do modelo normativo de sociedade. A idéia de que a cultura é multivariada, antes que univariada, já tem sido aceita pelos arqueólogos que procuram estar a par da literatura antropológica sobre etnicidade. "Os arqueólogos não podem supor que os graus de semelhança e diferença na cultura material fornecem um índice direto de interação" (:115). Questiona-se, portanto, a própria existência de grupos étnicos como entidades coerentes e monolíticas, nas quais a enculturação poderia explicar uma suposta expansão uniforme da cultura. No capítulo conclusivo, Jones relembra que o modelo histórico cultural foi o bastião das representações nacionalistas e colonialistas do passado, sendo o caso da invenção dos germanos pelos nazistas o exemplo, talvez o mais extremo, mas de modo algum o único. Em seu lugar, Jones propõe que monumentos e conjuntos de cultura material devam ser entendidos no contexto de construções de identidade cultural que são, muitas vezes, heterogêneas e contraditórias.
O livro de Jones é particularmente importante por dois motivos principais. Em primeiro lugar, por demonstrar que a Arqueologia construiu seus quadros analíticos no contexto da formação do Estado Nacional moderno, no século passado e no início deste século, e continou, em grande parte, a aceitar noções de cultura altamente ideológicas e autoritárias. Uma raça, uma língua e uma cultura, lemas dos regimes fascistas, passam por verdades quando aplicados na identificação de arianos (os mesmos dos nazistas) ou de tupis. Em seguida, por demonstrar o imperativo de se conhecer a Antropologia, tanto em seus trabalhos de campo, que mostram a fragilidade das "culturas homogêneas", como em suas elaborações teóricas, que demonstram o caráter construído das noções da própria ciência. A Arqueologia contextual, também chamada de pós-processual, tem ressaltado a indispensabilidade dessas duas posturas: historicização da própria disciplina e conhecimento dos interpretações sociológicas e antropológicas. Para que se possa interpretar o contexto arqueológico empírico não se pode, pois, dispensar, o conhecimento do contexto científico. Esta a significação maior do livro de Siân Jones, ao nos alertar que os contextos arqueológicos incluem, também, os contextos de produção de conhecimento.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Dez 2000 -
Data do Fascículo
1998