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Guerras e saques: apropriações e incorporações diferenciais das alteridades entre os Jê - ‘Cayapó’ meridionais

To be or not to be an artisanal fisherwoman? Female work, recognition and social representation among shellfish collectors in the Campos Basin, RJ

Resumo

Este ensaio quer intervir no tema das guerras dos Jê - Cayapó’ meridionais- no século XVIII com vistas a mostrar como esses grupos incorporaram de maneira diferencial os inimigos e seus bens no contexto histórico dos contatos. A partir da análise de documentos referentes à região hoje conhecida como sul de Goiás, Triângulo Mineiro e norte de São Paulo, o artigo dialoga com a Antropologia e a História e pretende mostrar que, por meio das guerras de saque, esses grupos indígenas colocaram em ação simultânea diferentes avaliações simbólicas e incorporações políticas de suas alteridades.

Palavras-chave:
Índios no Brasil; >História indígena; ‘Cayapó’ meridionais; Identidades e alteridades

Abstract

This papper aims to intervene in the matter of the southern ‘Cayapó’- wars in the eighteenth century to show how these groups differentially incorporated enemies and their goods into the historical context of contacts. Based on an analysis of documents referring to the region known today as south of Goiás, Triângulo Mineiro and north of São Paulo, the papper dialogues with Anthropology and History and intends to show that, by means of the wars of loot, these indigenous groups put into simultaneous action different symbolic evaluations and political incorporations of their alterities.

Keywords:
Indians in Brazil; Indigenous history; Southern ‘Cayapó’; Identities and aterities

DA HISTÓRIA À ETNOLOGIA

Num requerimento de 23 de janeiro de 1762 uma mãe viúva, em seu nome e de seus filhos, solicitou ao rei d. José moratória de dívidas por cinco anos. Seria este um caso comum não fosse a justificativa dada pela requerente: seu marido falecera “na sua lavra [...] juntamente com quarenta e três escravos, devido ao ataque dos índios Caiapós” (AHU-ACL-CU-008-cx.18-doc.1072).

De um caso banal, o documento então evoca as alegorias da colonização: uma família destroçada, aniquilada, uma mãe sozinha para criar os filhos devido a um ataque de índios bárbaros, cruéis, traiçoeiros, corsários, selvagens, e tantos outros adjetivos negativos que recheiam as descrições que no século XVIII se fizeram de grupos dos Jê, documentalmente tratados como ‘gentio Cayapó’.

E como a história sempre foi escrita pelos impérios, nesses mesmos documentos nada se lê que lembre os sofrimentos quando, em 1742, no empenho de guerra contrao“Gentiobárbarodanação Cayapó, eosmaisq.’infestãoocaminhodepovoado emthé as minas de Goiaz”, d. Luiz de Mascarenhas ordena que “não se rendendo os ditos Gentios, e sendo tomada as mãos na pelleja os passarão a espada sem distinção ou differença algûa de sexo” (D.I., 22D.I. 1913. Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Publicação oficial do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tipografia Cardozo Filho.: 168). À revelia das diferentes visões que os documentos evocam, a sensação comum é o do que essa guerra verdadeiramente foi: uma das mais longas, cruéis e sangrentas na América colonial portuguesa.

Para ambos os lados, mas de diferentes formas, a história dos contatos entre índios e não-índios no século XVIII nas regiões dos atuais sul de Goiás, Triângulo Mineiro e norte de São Paulo parece ter sido, em si mesma, uma história de guerras. Mas uma história para a qual não se pode mais reproduzir seja a visão civilizatória e oficial ou a visão romântica dos indígenas passivos. Afinal houve guerras indígenas e guerras coloniais; e isso implica entender como elas fizeram parte do modo estruturante do império ultramarino português, tanto quanto do regime relacional e simbólico desses grupos dos Jê com algumas de suas alteridades.

Em face disso, os relatos dos ataques que esses grupos empreenderam contra diferentes inimigos no século XVIII podem nos ajudar a compreender melhor as suas estratégias de avaliação simbólica e apropriação cultural dos bens de seus diferentes. O ponto de flexão nessa abordagem é pensar como, naquele momento, esses grupos indígenas incorporaram ao seu campo semântico de significações diferentes alteridades e, apesar da guerra como modalidade de relação com algumas delas, atuou de diferentes maneiras, com abordagens e estratégias específicas para cada categoria de inimigo.

Neste caminho, a gama de temas aqui aberta não toca apenas nas versões ou narrativas dos fatos históricos, mas também numa série de temas propriamente etnológicos. Dentre eles, a guerra como mecanismo ao mesmo tempo de abertura para o mundo exterior e incorporação dos bens de contato e espólios na produção do mundo interior. No caso desses grupos dos Jê -‘Cayapó’ meridionais, isso implica na relativização do binômio centrífugo - centrípeto para pensar as distinções entre povos Tupi e Jê na etnologia brasileira (Cunha; Castro, 1985CUNHA, Manuela Carneiro da e CASTRO, Eduardo Viveiros de. 1985. “Vingança e temporalidade: os Tupinambá”. Journal de la Socièté dês Americanistes, LXXI: 191-208.; Fausto 2001FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos fléis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. SP: Editora Universitária USP.), e aprofunda temporalmente o diagnóstico de que esses grupos indígenas colocaram em ação estruturas simbólicas diferenciais de classificação e apropriação dos bens dos seus diferentes outros.

Com base, então, em parte de uma documentação histórica do XVIII, este ensaio quer apresentar como esses indígenas, ao empreenderem guerras de saques, consumiram e incorporaram diferencialmente coisas e pessoas de seus inimigos. Por meio delas, esses grupos não parecem ter se fechado numa tendência centrípeta, porque mantiveram-se continuamente abertos à avaliações e apropriações diferen- ciadas das alteridades.

OS JÊ - ‘CAYAPÓ’ MERIDIONAIS

Quando no primeiro quarto do século XVIIII começam a aparecer os documentos escritos sobre o sul de Goiás, Triângulo Mineiro e norte de São Paulo, essa era uma área de ocupação contínua, mas não exclusiva, de grupos documentalmente tratados por ‘Cayapó’ que, na etnologia, devido à sua localização, são chamados de me- ridionais. Porém, a construção desse termo para fazer referência a um coletivo de indígenas tem de ser vista com certa cautela, pois ele não parece corresponder a uma etnotaxinomia social. Ao contrário, há indícios de que ele seja produto histórico das interações sociais e políticas entre índios e não-índios, e por isso uma classificação genérica irremediavelmente associado às circunstancias práticas, legais e simbólicas em que se deram os contatos.

Desde pelo menos 1723, quando é feito o primeiro registro histórico do termo entre grupos situados no atual sul de Goiás, eles são retratados como extremamente violentos. O sertanista que primeiro os descreveu, Antonio Pires de Campos, já registrava que “seu maior exercício é o de serem corsários de outros gentios de várias nações e prezarem-se muito entre eles a quem mais gente há de matar” (Campos, 1976CAMPOS, Antonio Pires de. 1976. “Breve notícia do gentio bárbaro que há na derrota das minas de Cuiabá e seu recôncavo, na qual declara-se os reinos [...]”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.). Relatos sertanistas, pp. 181-200. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 181). Embora pareça não ter ocorrido nenhum incidente de beligerância nesse primeiro contato documentado, não tardaria para que todas as narrativas viessem recheadas dos ataques que esses indígenas estavam fazendo não só a outros grupos indígenas (tal como o fragmento indica), mas aos roceiros, aos viajantes e aos mineradores; “pois que não chegou viandante ou comboeiro a esta Vila [Vila Boa de Goiás] que não viesse fazendo repetidas queixas dos insultos que continuamente estão fazendo os mesmos Cayapós” (BN-MS 575 (1) - doc. 7).

Nesse contexto prático de hostilidade, com ataques que passaram a ser defla- grados por ambos os lados, os grupos dos Jê -tratados como ‘gentio Cayapo’- serviram para atualizar as alegorias do índio hostil, selvagem, bravo, inimigo, tal como aparece naquela petição de moratória da mãe viúva e seus filhos. De fato, nos sertões das minas de Goiás e Minas Gerais no século XVIII, esses grupos deviam corresponder à categoria de índios independentes, ou seja, que ainda não se encontravam sob o domínio da Coroa portuguesa, portanto não catequisados ou civilizados. Por isso, sobre eles se voltaram as políticas indigenistas de Goiás, cujo projeto era justamente o de livrar a Capitania dos índios não assimilados e trazê-los para a autoridade da Igreja e do Estado; mesmo que para isso as autoridades e os colonos usassem do extermínio e da desinfestação (Karash, 1992: 397-410), como afinal ilustra a Ordem de bando de Luis de Mascarenhas para mandar passar “a espada sem distinção ou differença algûa de sexo” e escravizar os menores de dez anos, pois “meninos e meninas de dês annos pa. baixo [...] os conduzirão a esta Va. para delles se tirar o quinto de S. Mage. E os mais se repartirem por quem tocar” (D.I., 22D.I. 1913. Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Publicação oficial do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tipografia Cardozo Filho.: 168).

Guerra concebida como justa e de prática ofensiva, as investidas contra o ‘gentio Cayapó’ nos sertões das minas de Goiás no século XVIII, reeditaram ou adaptaram a guerra como modo estruturante do império ultramarino português, baseada, inclusive, no uso de índios amigos ou aliados para combater os índios inimigos e hostis. Na região e período em foco, a readaptação desse modo efetivou-se numa política de aldeamento de indígenas transferidos de outras partes da colônia (‘Bororo’, ‘Xakriabá’, ‘Pareci’, ‘Karajá’, ‘Javaé’) para a região do atual Triângulo Mineiro (Lourenço, 2015LOURENÇO, Luis Antonio Bustamante. 2015. “Populações indígenas e política indigenista no Triangulo Mineiro nos séculos XVIII e XIX”. In: FERREIRA FILHO, Aurelino (ed.) Índios do Triângulo Mineiro , pp: 25-56. Uberlândia: Editora Universitária UFU .; Mori, 2015MORI, Robert. 2015. Os aldeamentos indígenas no Caminho dos Goiases: guerra e etnogênese no sertão do Gentio Cayapó (Sertão da Farinha Podre) séculos XVIII e XIX. Uberlândia, 2015, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Uberlândia.; Ravagnani, 1987RAVAGNANI, Oswaldo M. “ALDEAMENTOS GOIANOS EM 1750 - OS JESUÍTAS E A MINERAÇÃO.” Rev. Antropol., 30/32, 1987, pp. 111-132./88/89). Embora esses grupos de índios aldeados - coloniais - possam ter desenvolvido formas de participação nesse projeto (Amantino, 2013AMANTINO, Marcia. 2013. “Caiapós, Bororos, fronteiras e os projetos coloniais para o sertão do Campo Grande no século XVIII”. In: LUZ, Guilherme Amaral; ABREU, Jean Luiz Neves e NASCIMENTO, Mara Regina. (eds.). Ordem crítica: a América portuguesa nas ‘fronteiras’ do século XVIII, pp: 151-168. Belo Horizonte: Fino Traço.: 165), foram a imagem do “índio manso”, por serem a mão de obra e os soldados coloniais nas guerras contra os índios hostis do sertão.

Assim, nos processos de contato e de registro histórico do termo ‘Cayapó’, um contexto prático de hostilidade se retroalimentava com uma política indigenista que diferenciava os índios aliados dos índios inimigos, normatizando o tipo de tratamen- to que deveriam receber dos colonos e missionários (Perrone-Moisés, 1992PERRONE-MOISÉS, Beatriz. 1992. “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista no período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (ed.). História dos índios no Brasil , pp: 115-132. São Paulo: Companhia das Letras .). A esse quadro somava-se ainda um imaginário colonial que desde o século XVI usava uma divisão dos índios em Tupi e Tapuia. Forjada por grupos de língua Tupi ou Guarani do litoral para se referir a grupos falantes de outras línguas (Monteiro, 2001MONTEIRO, John. 2001. Tupis, tapuias e os historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Campinas, 2001, Tese de Livre Docência, Uniersidade Estadual de Campinas ), essa divisão esteve ora associada a uma diferenciação linguística (Cardim, 1980: 103), e ora a uma diferenciação cultural nós (Tupi-Guarani) e outros (Vasconcelos, 1977VASCONCELOS, Simão. 1977. Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis: Vozes/NL/MEC: 109) bastante genérica, pois, como hoje sabemos, o termo Tapuia encobre uma grande heterogeneidade linguística e cultural. Assim, quando usado nos sertões das minas do XVIII o termo Tapuia foi aplicado genericamente a todo e qualquer grupo que não se assemelhasse às características culturais compartilhadas pelos índios aldeados, pelos colonos, pelos missionários e pelas tropas militares que no século XVIII varriam o caminho das minas.

Com base nesse quadro, uma leitura crítica de parte dos documentos faz propor que a designação genérica ‘Cayapó’ foi um significante construído com base em experiências e representações que esses agentes fizeram dos sertões; lugar inóspito e desvanecido ocupado por onças, gentios e negros fugidos, já que nos sertões sempre “teria sucedido de algum perigo de alguns Negros, Gentios, sede alguma fera” (BN-18.2.6 -doc. 34).

Por isso é que os grupos indígenas identificados como ‘Cayapó’ foram descritos no XVIII como Tapuias, “por ser diversa a sua língua da geral” (Braga, 1976BRAGA, Alferes Peixoto da Silva. 1976. “Notícia 1a prática que dá ao P. M. Diogo Soares o Alferes Peixoto da Silva Braga”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.) Relatos sertanistas, pp. 121-137. São Paulo: Livraria Martins Editora.:. 126); como os que “tudo levam de traição e rapina” (Campos, 1976CAMPOS, Antonio Pires de. 1976. “Breve notícia do gentio bárbaro que há na derrota das minas de Cuiabá e seu recôncavo, na qual declara-se os reinos [...]”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.). Relatos sertanistas, pp. 181-200. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 182); como o “mais traidor de todos” (Camello, 1976CAMELLO, João Antonio Cabral. 1976. “Notícias práticas das Minas de Cuiabá e Goiases, na Capitania de São Paulo e Cuiabá, [...] em 1727”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.) Relatos monçoneiros, pp. 114-123. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 115); como “nação que não tem domicílio certo, nem plantas ou lavouras” (Barros, 1976BARROS, Manoel de. 1976. “Notícia 7a Prática - Roteiro verdadeiro das Minas do Cuiabá, e de todas as suas marchas”. In TAUNAY, Afonso (org). Relatos monçoneiros, pp. 141-147. São Paulo: Livrara Martins Editora.: 148); como os que “guerreiam com traição [...] e se sustenta de imundices do mato” (Barros, 1976BARROS, Manoel de. 1976. “Notícia 7a Prática - Roteiro verdadeiro das Minas do Cuiabá, e de todas as suas marchas”. In TAUNAY, Afonso (org). Relatos monçoneiros, pp. 141-147. São Paulo: Livrara Martins Editora.: 148-149); como selvagens pelados, porque “os trajes desses bárbaros é viverem nus, tanto homens como mulheres” (Campos, 1976CAMPOS, Antonio Pires de. 1976. “Breve notícia do gentio bárbaro que há na derrota das minas de Cuiabá e seu recôncavo, na qual declara-se os reinos [...]”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.). Relatos sertanistas, pp. 181-200. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 182); como inimigos cruéis e impiedosos porque “havendose com tão bárbara crueldade, que nem as crianças perdoam” (D.I., 22D.I. 1913. Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Publicação oficial do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tipografia Cardozo Filho.: 185).

Emface dessas circunstâncias está claro que os grupos indígenas que ocupavam e/ou perambulavam pela região dos atuais sul de Goiás, Triângulo Mineiro e norte de São Paulo formavam um contingente de ‘gentio’ ainda livre da autoridade colonial que, independentemente de etnia, foram denominados de ‘Cayapó’. De certo, deviam todos compartilhar as características que os associavam à série dos ‘Gentios’ para serem reunidos sob uma mesma designação. Porém, raramente nominados, grupos autóctones como ‘Quirixá’/‘Araxá’, ‘Goiá’, ‘Akroá’, ‘Puxavante’, ‘Xiquiabá’ eram tratados, na maior parte dos documentos, no anonimato. Isso se verifica, inclusive, naquela ordem de guerra de d. Luis de Mascarenhas em 1742 contra o “Gentio bárbaro da nação Cayapó, e os mais q.’infestão o caminho [...] emthé as minas de Goiaz”, (D.I., 22D.I. 1913. Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Publicação oficial do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tipografia Cardozo Filho.: 168). Ocultados como “os mais”, no lugar de todos eles o termo ‘Cayapó’ passou a ser o lugar comum para os documentos do período descreverem ou narrarem fatos associados aos índios dos sertões.

Assim, e tal como já se tem mostrado que grupos documentalmente tratados como Coroado - Guayaná no interior do estado de São Paulo eram, em parte, grupos dos Kayngáng e Xokléng - Jê meridionais (Monteiro, 1992MONTEIRO, John. 1992. “Os guarani e a história do Brasil meridional: séculos XVI - XVII”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (ed.). História dos índios no Brasil , pp. 475-498. São Paulo: Companhia das Letras .); o termo ‘Cayapó’ nas regiões dos atuais norte de São Paulo, Triângulo Mineiro e sul de Goiás tem de ser tomado como um termo genérico que devia abrigar não só os ‘Cayapó’ meridionais, mas também diferentes grupos da família linguística Jê do Tronco Macro-Jê, associados, seguramente, ao universo dos Jê setentrionais e, provavelmente, dos Jê Centrais. No primeiro caso, já parece ser consensual a associação de parte de grupos dos ‘Cayapó’ do XVIII aos atuais ‘Panará’ ou ‘Kreen-Akarôre’, contatados nos anos 1970 na região norte de Mato Grosso, nas margens do rio Peixoto de Azevedo. Com base em dados linguísticos e culturais uma série de etnólogos (Ewart, 2015EWART, Elizabeth. 2015. “Fazendo pessoas e fazendo roças entre os Panará do Brasil Central”. Revista de Antropologia, 48(1): 9 - 35. https://doi.org/10.1590/S0034-77012005000100001
https://doi.org/10.1590/S0034-7701200500...
: 203; Giraldin, 1997GIRALDIN, Odair. 1997. Cayapó e Panará Luta e sobrevivência de um povo Jê no Brasil Central. Campinas: Editora Universitária Unicamp.: 121; Heelas, 1979HEELAS, Richard. 1979. The social organisation of the Panará, a Gê tribe of Central Brazil. University of Oxford, 1979. Phd. Tese. St. Catherine’s Colege,: 2; Turner, 1992TURNER, Terence. 1992. “Os Mebengokre Kayapó: história e mudança social, de comunidades autônomas para a coexistência interétnica”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (ed.). História dos índios no Brasil , pp: 311-338. São Paulo: Companhia das Letras .: 312-313, Schwartzman, 1987SCHWARTZMAN, Stephan. 1987. The Panará of the Xingu National Park, the transformations of a society. Chicago, 1987, PhD Dissertation, University of Chicago.: 264-265) já concluiu pela relação ‘Cayapó’ - ‘Panará’; e a considerar que o último desses grupos falam uma língua da subfamília Jê Setentrional que inclui, além dos ‘Panará’, os ‘Mebengokré’, os ‘Suya’, os ‘Apinayé’ e as línguas ‘timbira’, está certo pensar que parte do grupos registrados nas fontes como ‘Cayapó’ meridionais pode ser associada aos grupos linguísticos dos Jê Setentrionais. Mas como o apelativo ‘Cayapó’ era um termo genérico, ele pode também ser provavelmente associado na documentação do período a grupos dos Jê Centrais (‘Xavante’, ‘Akroá’, ‘Xacriabá’). No XVIII, porém, ‘gentio bárbaro e gentio Cayapó’ eram termos associados a grupos indígenas retratados, independentemente de etnia, como violentos, aguerridos, de aparência e costumes estranhos, de línguas diferentes da geral e que, de certa forma, se colocavam como obstáculos nos caminhos das minas; portanto, à revelia de etnia, reconhecidos pela moderna etnografia como grupos dos Jê Setentrionais e/ou Centrais. Concorre a isso o fato do termo ‘Cayapó’ não ser mesmo etnotaxonomia, mas palavra de origem Tupi ou Guarani que significa “como macaco” (Turner, 1992TURNER, Terence. 1992. “Os Mebengokre Kayapó: história e mudança social, de comunidades autônomas para a coexistência interétnica”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (ed.). História dos índios no Brasil , pp: 311-338. São Paulo: Companhia das Letras .: 311). Em face desse amplo espectro de dados, parece haver provas suficientes para não tratar o termo ‘Cayapó’ como uma incontestável realidade empírica. Antes, e como se propõe, deve-se pensá-lo como constructo histórico dentro de marcos simbólicos e pragmáticos nos quais se deram os contatos entre índios e não índios na região.

***

Como a história revelou, o confronto entre lógicas e interesses diferentes de indígenas e não indígenas foi constante durante todo o século XVIII e remodelou a ambas. Por um lado - o da Coroa portuguesa - a região era estratégica para o escoamento das riquezas da mineração em Goiás. Por outro, e de acordo com os próprios relatos históricos, os vários grupos identificados como Jê - ‘Cayapó’ meridionais ocupavam e perambulavam de forma intensiva por essa região, tendo nela grandes e numerosas aldeias. O choque foi inevitável!

Os documentos produzidos ao longo da história desses contatos sempre apontaram na direção de uma grande e densa ocupação desses grupos indígenas na região. O sertanista que primeiro os descreveu no atual sul de Goiás, em 1723, comentou que “o gentio chamado Caiapó [...] é de aldeias, e povoa muita terra por ser muita gente, cada aldeia com seu cacique, que é o mesmo que governador” (Campos, 1976CAMPOS, Antonio Pires de. 1976. “Breve notícia do gentio bárbaro que há na derrota das minas de Cuiabá e seu recôncavo, na qual declara-se os reinos [...]”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.). Relatos sertanistas, pp. 181-200. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 181). Quase sessenta anos depois desse primeiro registro, em 1781, o regente de campo Ignácio Correa Pamplona ainda mencionou um denso povoamento desses grupos: “do Rio Paranaíba segui adiante a verificação dos morros desta Capitania [Minas Gerais] com a de Goiáz e São Paulo [...] chegando ao lugar chamado da Glória, ahi encontrei os grandes vestígios do gentio Cayapó, e parte de seu alojam.to”; e nas cabeceiras do rio Dourados, um afluente do Paranaíba, “topa-mos trez alojamentos do gentio Cayapó, cada hum com vinte e tantas casas” (APM-CC-cx.87, doc. 20256). Ao longo de todo o século XVIII, instruções e cartas dos entrantes na região dos atuais Triângulo Mineiro e sul de Goiás confirmaram constantemente essas informações; seja porque “o Pais em que vay penetrar hé infestado de gentio” (BN-18.2.6-doc.5);

ou porque “a extenção deste bárbaro gentio pode dar o nome [...] de hum emperio, pela sua grde Grandeza” (BN-18.2.6 - doc. 19); ou porque os “alojamentos em que estavão os Gentios [eram] tão populozos como serião” (BN 1.4.001 - doc. 17).

Estudos arqueológicos realizados desde a década de 1980 nos municípios de Perdizes e Centralina, localizados no vale do Paranaíba no Triângulo Mineiro, revelaram, ainda, ocupações indígenas de longa profundidade temporal. Num desses sítios - Rezende - os vestígios apontam na direção de uma continuidade de longa duração, já que “além da antiguidade do Rezende, é importante destacar a sua diversidade cultural, ocupado que foi por caçadores e coletores - populações nômades voltadas para a caça, coleta e pesca [...] e por populações ceramistas em processo de sedentarização” (Alves, 2002ALVES, Marcia Angelina. 2002. “O sitio Rezende: de acampamento de caçadores-coletores a aldeia ceramista pré-histórica”. Clio - Série Arqueológica, 15: 189-203. https://periodicos.ufpe.br/revistas/clioarqueologica/article/view/246996/35889
https://periodicos.ufpe.br/revistas/clio...
: 201). Embora não se queira propor uma relação cultural direta entre esses dois horizontes de ocupações, e muito menos entre esses e os grupos historicamente registrados na região, a escavação recente nessa mesma área de sítios agricultores ceramistas históricos, datados entre a metade do século XVIII e meados do XIX, associados aos ‘Cayapó’ meridionais (Magalhães, 2015MAGALHÃES, Wagner. 2015. Estudo arqueométrico dos sítios arqueológicos Inhazinha e Rodrigues Furtado, município de Perdizes/MG. São Paulo, 2015, Dissertação de Mestrado, USP.), confirmam semelhanças com sítios ceramistas pré-coloniais e as ocupações densas relatadas nos documentos do XVIII, tratadas nos dados arqueológicos como várias manchas escuras correspondentes às habitações.

Com base na intersecção desses dados é possível então desenhar um quadro de ocupações indígenas de longa profundidade temporal e de denso contingente populacional de grupos associados aos Jê. A partir do primeiro quarto do XVIII o choque desses grupos com as frentes coloniais foi inevitável. Do ponto de vista da ordem colonial, esses grupos atualizaram as alegorias do gentio bárbaro e a eles se voltou a política indigenista de Goiás no final do XVIII cujo projeto, de acordo com Karasch (1992KARASCH, Mary. 1992. “Catequese e cativeiro - política indigenista em Goiás:1780-1889”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (ed.) História dos índios no Brasil, pp: 397-412. São Paulo: Companhia das Letras.: 397-410), era justamente o de executar as guerras de extermínio e escravização. Para os grupos ‘Cayapó’ essas práticas desde cedo foram constantes e estima-se que em um só ano (1741) aproximadamente oito mil desses índios tenham sido escravizados por paulistas (Karasch, 1997KARASCH, Mary. 1997. “Conflito e resistência inter-étnicos na fronteira brasileira de Goiás, nos anos 1750 a 1780”. Revista da SBPH, 12: 31-49. : 33).

Como desde a década de 1730 já se tem uma guerra ofensiva declarada contra esses grupos indígenas, a inevitável fuga de suas aldeias, a depopulação, a abrupta desarticulação social, política e econômica teve consequências drásticas para o regime de produção e reprodução social desses grupos e suas estratégias de relações com as alteridades. Além disso, esse novo jogo de forças marcado por disputas e intensos conflitos, típicos de ambientes colonialistas, colocaram esses grupos em contatos com diferentes alteridades: não-índios, índios aldeados, negros fugidos, e outros grupos indígenas com os quais mantinham contatos provavelmente desde tempos pré-coloniais.

Uma história possível desses encontros a partir dos relatos documentais mostra não ter sido unânimes as formas de atuação desses grupos nas relações com esses diferentes outros, tendo elas sido cambiantes e mutantes a depender da situação e dos agentes envolvidos. Guerra, comércio, paz, alianças, defesa mutua de interesses etc. não foram estratégias excludentes desses grupos indígenas, mesmo quando retratadas com uma mesma categoria de alteridade (Mano, 2011MANO, Marcel. 2011. “Contato, guerra e paz: problemas de tempo, mito e história”. Política & Trabalho. 28(34): 193 - 212. https://periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/view/12189/7054
https://periodicos.ufpb.br/index.php/pol...
), o que leva a propor a coexistência de diferentes linhas históricas de atuação nas relações de contatos com as diversas alteridades; e um modelo não fixo ou binário de identidade.

Apesar disso, durante um curto período de tempo, entre o segundo e terceiro quartos do século XVIII, esses grupos dos Jê - ‘Cayapó’ - parecem ter usado a guerra como forma preferencial de contato com duas categorias de inimigos: os não-índios e outros grupos indígenas. Mas mesmo aí, onde a forma preferencial de contato foi a mesma, definida como relação de guerra e saque, o conteúdo da predação indica a existência de estruturas simbólicas diferenciais de classificação e apropriação também diferenciais dos bens desses diferentes outros.

AS GUERRAS NO SÉCULO XVIII: OS INIMIGOS E SEUS BENS

Se considerarmos um ataque de indígenas a partir da perspectiva das vítimas, ele devia ser mesmo um horror. No imaginário e na sensibilidade do XVIII a própria travessia dos sertões vinha em parte recheada do medo face ao possível encontro com as diversas feras, e a simples suspeita da presença de índios considerados hostis já devia ser suficiente para causar pânico. Nos sertões das minas correspondentes aos atuais sul de Goiás, Triângulo Mineiro e norte de São Paulo, esse temor era amplificado pelas notícias correntes de gentios bárbaros, hostis, traiçoeiros, selvagens - chamados de ‘Cayapó’- que atacavam impiedosamente aos roceiros, aos viajantes e aos mineradores. Seus ataques contra os não-índios (mestiços, garimpeiros, viajantes, negros escravos, roceiros), pareciam não diferenciar locais, nem poupar vítimas ou minimizar estragos; e suas várias estratégias quase sempre produziram os resultados esperados.

Às vezes, posicionados a certa distância, lançavam ataques contra a população dos povoados: “no rio das Abelhas [hoje rio Araguari] um troço de caiapó, de cento e muitos arcos, vindos do sertão do Paraná começaram a atirar flechas por elevação e mataram muitos moradores” (Vasconcelos, 1974VASCONCELOS, Diogo. 1974. História média de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia.: 181). Noutras ocasiões invadiam, matavam e saqueavam: “invadiram o distrito, mataram um negro, roubaram ferramentas e possibilitaram a fuga de escravos” (AHU-ACL-CU-008, cx. 27, d. 1773). Nessas invasões e ataques deviam, além das flechas, usar o porrete ou bilro “[...] garrotes, que são de páu de quatro ou cinco palmos com uma grande cabeça bem feita, e tirada, com os quais fazem um tiro em grande distância, e tão certo que nunca erram a cabeça; é a arma de que mais se fiam, e se prezam muito dela” (Campos, 1976CAMPOS, Antonio Pires de. 1976. “Breve notícia do gentio bárbaro que há na derrota das minas de Cuiabá e seu recôncavo, na qual declara-se os reinos [...]”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.). Relatos sertanistas, pp. 181-200. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 182). Noutras ocasiões ainda, realizavam emboscadas, queimavam e matavam:

A 11 dias q’ me segue o gentio Cayapó ao longe, queima todo o alojamto depois de eu sahir daquele lugar, hé inimigo q’ não briga a peito descoberto, tendo-lhe feito mil enganos (...) este inimigo costuma adas em horas mortas, chegam sutilmente, largão fogo nas barracas de capim e põem-se de parte com frexas, afrechar a todos q’ sai com o repente incêndio tudo a hum só instante. (APM-CC-cx.154- doc. 21531)

Não parecia haver alguém a salvo daquilo que as autoridades chamaram de ‘insolências dos gentios’. Seja nos povoados, nas estradas, nos sítios, nas lavras ou onde quer que fosse, os colonos e entrantes nos sertões das minas de Goiás no XVIII viam-se constantemente atormentados pelas atrocidades desses ataques:

[...] matando e roubando aos Viajantes que vão, e vem, e aos roceyros insultandoos em suas próprias cazas, queymando-lhes citios, e os payoys em que tem recollido os seus fructos matandolhes também os seos escravos, cavallos, porcos, e mais criações havendose com tão bárbara crueldade, que nem as crianças perdoam, nem dão quartel a pessoa alguma (D.I., 22D.I. 1913. Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Publicação oficial do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tipografia Cardozo Filho.: 185).

Espalhar pânico, atacar ferozmente, matar o maior número de inimigos, queimar as propriedades, destruir as plantações e criações, e roubar. Pareciam ser essas as diretrizes de todos os ataques relatados contra os não-índios no período. Eram rápidos, fulminantes e direcionados à aniquilação física, material e moral. Nas diferentes notícias, não parecia haver tempo para as vítimas se defenderem. Eles as apanhavam de surpresa, e sobre elas jogavam-se em ataques ferozes e seus guerreiros, invariavelmente bravos, agiam sempre “com tão bárbara crueldade e sua costumeira ferocidade” (AHU- ACL-CU-008, cx. 2, d. 179). Queimavam, matavam e levavam os espólios da guerra: bens materiais móveis, pois andavam “roubando os viajantes” (D.I., 22D.I. 1913. Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Publicação oficial do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tipografia Cardozo Filho.: 185) e “levando os despojos” (UNB. AHU-ACL-CU-008, cx. 20, d. 1220). Em face desses dados, a forma pela qual se dava a relação desses grupos indígenas com o mundo exterior não índio era nitidamente a de saque. Com ataques rápidos e certeiros, matavam, destruíam e se apropriavam de elementos materiais da cultura de suas vítimas (plantas, armas de fogo, ferramentas de metal e objetos exóticos). Além disso, há uma outra constante nos ataques contra os não-índios: eles nunca visaram cativos. Embora haja uma farta e copiosa documentação produzida no XVIII sobre os ataques desses grupos dos Jê -‘Cayapó’, em nenhuma há relato de raptos, reféns ou cativos feitos entre os não-índios. Ao contrário, sempre matavam todos ou o quanto mais podiam, porque “havendo-se com tão barbara crueldade [...] nem dão quartel a pessoa alguma” (D.I., 22D.I. 1913. Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo. Publicação oficial do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tipografia Cardozo Filho.: 185).

Assim, uma estrutura e conteúdo comuns aos ataques impetrados contra os não-índios permitem defini-los como guerras de saque sem cativos. Quando se lançaram contra essa alteridade fizeram a apropriação e incorporação de bens materiais - coisas - e não de pessoas. A ausência de cativos nas guerras interétnicas desses grupos dos Jê já foi explicada com base no argumento de que esses grupos indígenas, “não faziam cativos dos seus inimigos porque não havia possibilidade de serem incorporados em seus ‘SDG’ ou ‘clãs’” (Giraldin, 1997GIRALDIN, Odair. 1997. Cayapó e Panará Luta e sobrevivência de um povo Jê no Brasil Central. Campinas: Editora Universitária Unicamp.: 50; Heelas, 1979HEELAS, Richard. 1979. The social organisation of the Panará, a Gê tribe of Central Brazil. University of Oxford, 1979. Phd. Tese. St. Catherine’s Colege,: 79); modelo este indiretamente relacionado à uma suposta tendência centrípeta dos grupos Jê.

Acontece, no entanto, que a guerra foi uma constante abertura para o mundo exterior com o objetivo explícito de incorporação interna de bens e riquezas. A apropriação continuada de bens materiais móveis dos não-índios deve ter feito afluir para o interior desses grupos uma quantidade de bens de consumo que deviam ser apreciados por suas qualidades estéticas e funcionais, sobretudo as ferramentas de metal. Como e de que forma esses objetos circulavam no interior desses grupos permanecerão, ao menos por enquanto, incógnitas. Com base em dados etnológicos dos ‘Mebengokré’ e ‘Panará’ modernos, podemos apenas considerar como certa a circulação interna dos objetos móveis sacados nas guerras contra os não índios. Sobre as guerras ‘Mebengokré” contra brasileiros, Turner (1992TURNER, Terence. 1992. “Os Mebengokre Kayapó: história e mudança social, de comunidades autônomas para a coexistência interétnica”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (ed.). História dos índios no Brasil , pp: 311-338. São Paulo: Companhia das Letras .: 329) afirmou que ”o único motivo [...] para ataques a brasileiros era a obtenção de armas de fogo e bens manufaturados: a guerra era [...] uma forma de circulação de mercadorias”. E sobre o costume dos ‘Panará’ em frequentar as cidades brasileiras, Ewart (2015EWART, Elizabeth. 2015. “Fazendo pessoas e fazendo roças entre os Panará do Brasil Central”. Revista de Antropologia, 48(1): 9 - 35. https://doi.org/10.1590/S0034-77012005000100001
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: 216-217) escreveu: “[...] lugar para ficar durante um tempo, conseguir bens de valor, e depois ir embora de novo [...] e há, por isso, um certo grau de ansiedade em relação à redistribuição de bens comprados nas cidades e trazidos de volta à aldeia”. De certo, os fatos concretos apontam, então, para uma constante busca e circulação desses bens, apenas compatível ao total desprezo pelos seus donos originais.

Nessas guerras de saque sem cativos, os ‘Cayapó’ meridionais pareciam estar pondo em avaliação simultânea os homens e as coisas. Entre os homens, durante todo o período em tela nunca houve gesto de aliança ou comércio pacífico, pois sempre tomou lugar os ataques e mortes. Figuravam então, na avaliação simbólica desses grupos, como inimigos e criaturas desprezíveis que deviam ser mortas, e essa atitude talvez se explique em relação à uma divisão dos humanos em duas categorias, como apontam as etnografias sobre os ‘Parará’ modernos. Seja como ‘kaben’ (Heelas,1979HEELAS, Richard. 1979. The social organisation of the Panará, a Gê tribe of Central Brazil. University of Oxford, 1979. Phd. Tese. St. Catherine’s Colege,: 64) ou como ’hi’pe’ (Schwartzman, 1987SCHWARTZMAN, Stephan. 1987. The Panará of the Xingu National Park, the transformations of a society. Chicago, 1987, PhD Dissertation, University of Chicago.: 93; Ewart, 2013EWART, Elizabeth. 2013. Space and society in Central Brazil: a Panará Ethnografy. London: Bloomsbury Academic.), ambos cognatos do termo ‘Kayapó’ -‘kuben’ (branco), nessas categorias eles incorporam quaisquer grupos não ‘Panará’. Às vezes traduzidas como inimigo, de acordo com Schwartzman (1987SCHWARTZMAN, Stephan. 1987. The Panará of the Xingu National Park, the transformations of a society. Chicago, 1987, PhD Dissertation, University of Chicago.: 231) é por meio das relações com os ‘hi´pe’ que se constrói a identidade ‘Panará’ de guerreiro e bravo. Portanto, é possível que nas guerras dos ‘Cayapó’ meridionais do XVIII os não índios oferecessem bens materiais e bens simbólicos como a bravura para a construção interna de corpos e pessoas. Por isso, ao mesmo tempo que eram desprezíveis e deviam ser mortos, na avaliação indígena os não índios eram inimigos poderosos, detentores de certos poderes e bens materializados em seus objetos. Nessas condições, a avaliação podia ser a de que a riqueza possível dos não-índios estivesse em seus objetos e nas oportunidades que ofereciam aos índios de mostrar bravura, mas nunca neles próprios. A apropriação das capacidades criativas, estéticas, funcionais e simbólicas dessa alteridade se dava por meio da apropriação e incorporação guerreira de seus objetos, e não de seus corpos, pendor que parecia ser bem diferente quando se tratava de uma outra categoria de inimigo: outros grupos indígenas.

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A região aqui em foco foi, desde o período pré-colonial, área de ocupação de grupos dos Jê. Arqueologicamente associados à Tradição ceramista Aratu Sapucai “representada pela presença de arestas de vasos geminados e cacos de possíveis igaçabas” (Fagundes, 2015FAGUNDES, Marcelo. 2015. “Histórico das pesquisas arqueológicas no Triângulo Mineiro” In: FERREIRA FILHO, Aurelino (ed). Índios do Triângulo Mineiro, pp: 99-146. Uberlândia: Editora Universitária UFU.: 120), e documentalmente relacionados ao ‘gentio Cayapó’, esses grupos não podem, como acima se tentou mostrar, serem tomados como um todo e único grupo. A homogeneização pelo guia fóssil cerâmico e/ou por um significante construído tem ambos o defeito de apagar as diversidades e dinâmicas internas que escapam aos sistemas exógenos de classificação. Nesse sentido, é bem provável que diferentes grupos pertencentes à família linguística Jê do Tronco Macro-Jê encenavam, desde antes da penetração não-índia, as histórias dos contatos nessa região.

Embora raras, as evidencias documentais do século XVIII apontam exatamente nessa direção. Em 1781, um sertanista que já conhecia a área pelo menos desde 1769, escrevia do quartel das cabeceiras do rio dos Dourados, um afluente do Paranaíba: “como hei de conquistar, aldear e povoar uma conquista com treze homens, estas tam [ilegível] com quatro naçõens de gentios por nomes de suas naçõens Cayapó, Araxás, Puxavante, Xiquiabá e os q’ mais temo” (APM-CC-cx.87-doc.20256); e quatro décadas antes o administrador dos contratos das entradas das minas de Goiás avisava sobre os “insultos que continuam dos Gentioz Cayapó e Acroassû nos caminhos que entram para as minas de Goyas” (AHU-ACL-CU-008, cx. 4, d. 326). Ainda que esparsos dentro de uma ampla documentação histórica, todos os termos utilizados para se referirem aos gentios bárbaros dos sertões (‘Cayapó’, ‘Araxá’, ‘Xavante’, ‘Xakriabá’ e ‘Akroá’) podem ser identificados modernamente como grupos indígenas da família dos Jê. O ‘Cayapó’ constitui uma língua homônima da família Jê do Tronco Macro-Jê, e os ‘Akroá’, hoje extintos, falavam a língua “Akuen” (Apolinário, 2003APOLINÁRIO, Juciene R. 2003. “A saga dos Akroá nas fronteiras do sertão”. Tellus, 3(5): 83-94. http://dx.doi.org/10.20435/tellus.v0i5.72
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: 86), mesma língua falada pelos ‘Xakriabá’ e ‘Xavante’, e também considerada uma língua da família Jê do Tronco Macro-Jê (Rodrigues, 2002RODRIGUES, Aryon. 2002. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas no Brasil, São Paulo: Loyola.). A considerar ainda que parte desses grupos dos ‘Cayapó’ meridionais são os atuais Panará (‘Kreen-Akarôre’) estão abertas, como acima mencionado, as relações dos grupos ‘Cayapó’ meridionais registrados nas fontes do XVIII com o universo dos Jê Setentrionais e/ou Centrais.

Por sua vez, os ‘Araxá’, que desaparecem da documentação ainda no século XVIII e não tiveram a sua língua identificada, podem, pelas descrições que deles se fizeram, serem indiretamente também associados a grupos dos Jê. Os ‘Quirixá’ (‘Araxá’) foram encontrados pela bandeira do Anhanguera em 1722 quando entrou ao descobrimento das minas de Goiás. Após atravessar o rio Grande em direção ao atual Triângulo Mineiro, a bandeira estava perdida quando encontrou “rancharias do gentio e seus fogos”. Silva Braga, que noticiou essa entrada, após usar o termo “Tapuia” para se referir a esses indígenas “por ser sua língua diversa da língua geral” (Braga, 1976BRAGA, Alferes Peixoto da Silva. 1976. “Notícia 1a prática que dá ao P. M. Diogo Soares o Alferes Peixoto da Silva Braga”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.) Relatos sertanistas, pp. 121-137. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 126), complementou sua descrição:

Chamava-se este gentio Quirixá, vive aldeado, usa do arco, flecha e porrete [...]. Tinha 19 ranchos todos redondos, bastantes altos, e cobertos de palmito, com uns buracos junto ao chão em lugar de portas; em cada um destes viviam 20 e 30 casais juntos, as camas eram uns cestos de buritis, que lhes serviam de colchão e cobertor; eram pouco mais de 600 almas; estava situada toda esta aldeia, junto d’um grande córrego [...] (Braga, 1976BRAGA, Alferes Peixoto da Silva. 1976. “Notícia 1a prática que dá ao P. M. Diogo Soares o Alferes Peixoto da Silva Braga”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.) Relatos sertanistas, pp. 121-137. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 128).

Nessa primeira descrição história de um grupo ‘Araxá’ vários elementos então se coadunam para aproximá-los dos Jê: a ausência da rede de dormir, a língua diversa da geral e o uso do bilro. O primeiro desses itens - a rede de dormir - é um elemento etnograficamente associado aos grupos Tupi (Laraia, 1986LARAIA, Roque de Barros. 1986. Tupi - índios do Brasil atual. SP: Editora Universitária FFLCH - USP.: 45) e, portanto, sua ausência revela tratar-se de grupos não Tupi ou Guarani; certeza confirmada na descrição da língua ‘Quirixá’ como diversa da geral. Eram, pois, Tapuias como diz o documento. Além disso, tal como na primeira descrição histórica dos ‘Cayapó’, de 1723, os ‘Araxá’ descritos um ano antes também empunhavam o porrete ou garrote conforme a descrição. Arma continuamente mencionada no século XVIII entre grupos indígenas dos sertões, o seu uso foi tão difundido entre os Jê - ‘Cayapó’ que alguns autores (Mead, 2010MEAD, David. 2010. Caiapó do Sul: an etnohistory (1610 - 1920). Gainesville, 2010, PhD Dissertation, University of Florida.: 67-77; Monteiro, 1994MONTEIRO, John. 1994. Negros da terra - bandeirantes e índios na formação de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras . : 63; Neme, 1969NEME, Mario. 1969. “Dados para a história dos índios Caiapó”. Anais do Museu Paulista, 23:101-147.: 114-117) já levantaram a hipótese de no século XVII eles serem conhecidos como Bilreiros ou Ibirajara, “senhores do tacape” segundo Schaden (1954SCHADEN, Egon. 1954. “Os primitivos habitantes do território paulista”. Revista de História, 18: 396-411.: 397). Se essa hipótese for aceita, na região em foco ela deveria abranger os ‘Araxá’, cuja primeira descrição histórica também apontou o uso do bilro (Braga, 1976BRAGA, Alferes Peixoto da Silva. 1976. “Notícia 1a prática que dá ao P. M. Diogo Soares o Alferes Peixoto da Silva Braga”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.) Relatos sertanistas, pp. 121-137. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 128).

Se ‘Bilreiro’ - ‘Cayapó’ - ‘Araxá’ eram grupos aparentados entre si talvez nunca chegaremos de fato a saber; mas certamente eram grupos, assim como os demais mencionados nas fontes documentais do XVIII, que a moderna etnografia identificaria como linguisticamente associados aos Jê Setentrionais e/ou Centrais. E mesmo que os documentos não nos permitam pensar a existência (ou não) de similaridades políticas e culturais entre os ‘Cayapó’ e os ‘Araxá’, eles nos permitem, porém, acompanhar por um curtíssimo período de tempo as relações de contato entre esses dois grupos. Entre 1749 e 1753, há algumas notícias documentadas de ataques de grupos ‘Cayapó’ a grupos ‘Araxá’ que viviam “sobre a passagem do Rio Grande no caminho que vai para S. Paulo” (AHE-GO, Livro Especial 4, doc. 125).

Pouquíssima conhecida, a história dos contatos entre índios pode nos ajudar a desenhar um quadro mais amplo das relações de identidades e alteridades entre diferentes agentes sociais. Ainda que a presença não-índia e de índios aldeados possa ter intensificado e modificado as formas tradicionais de relações que diferentes grupos indígenas dos Jê mantinham entre si, o cenário resultante pode nos ajudar a compreender melhor as estratégias de contato como resultado de estruturas simbólicas diferenciais de classificação e apropriação dos bens dos seus diferentes outros. No final do ano de 1749, o governador de Goiás, d. Marcos de Noronha escreveu ao rei sobre a chegada em Vila Boa de dois padres missionários encarregados de fazer a redução e o aldeamento dos índios “Araxá” e então informou que o

[...] gentio Arachâs que vivem sobre a passagem do Rio Grande no caminho que vay p. São Paulo, tem pedido que querem missionário, e que querem ser governados por homens brancos [...] A parte mais a proposito para a criação desta aldeia é junto ao Rio das Velhas, porque com ela se segurará melhor aquele caminho e ficará menos exposto às hostilidades que nele tem feito repetidas vezes o gentio Caiapó (AHU-ACL-N-GO, doc. 427)

Dois anos depois, esse mesmo governador notificou para “Pires de Campos cuidar da redução do Gentio Araxás que vive sobre a passagem do Rio Grande no caminho que vay para S. Paulo [...] que nele tem feito repetidas vezes o gentio Cayapó” (AHU-ACL-CU-008, cx.6, doc. 473). Pouco depois, em 1753, a mesma situação foi narrada em provisão do rei d. José ao governador de Goiás “sobre as hostilidades que o Gentio Cayapó fizera aos da nação Araxás pediram missionário” (AHU-ACL-N-GO, doc. 569). Nos documentos posteriores não há indícios sobre os ‘Araxá’ terem ou não sido aldeados (Mori, 2015MORI, Robert. 2015. Os aldeamentos indígenas no Caminho dos Goiases: guerra e etnogênese no sertão do Gentio Cayapó (Sertão da Farinha Podre) séculos XVIII e XIX. Uberlândia, 2015, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Uberlândia.). Mas apesar dessa lacuna, os dados nos apontam com certa constância para o fato de grupos ‘Cayapó’ atacarem, matarem e saquearem esse grupo designado nas fontes por ‘Araxá’. Até aí nenhuma novidade, pois nas guerras contra grupos indígenas parecia se repetir a mesma estrutura e conteúdo das guerras contra os não-índios que já conhecemos: como estes, outros índios também podiam ser ‘hi´pe’ e, como tais, fornecedores de bens e chances de provar bravura. Porém, as semelhanças visíveis escondem um diferencial importante: a existência de cativos nas guerras contra outros grupos indígenas.

[...] o gentio Caiapó tinha feito tal hostilidade aos gentios Arachás, que não só lhe fizera uma grande mortandade, mas depois lhes cativaram todas as mulheres e crianças, as quais levaram para o seu alojamento, para as comerem porque sempre que tem ocasião se sustentam de carne humana. Com esta novidade foi preciso tomar diversas medidas, porque, nação Arachás, não ficou mais do que mortos, porque os homens extinguiu, o gentio Caiapó, totalmente. (AHU-ACL-CU-008, cx. 6, d. 465)

Na ausência de mais informações diretas de beligerância entre esses dois grupos indígenas, o quadro que se desenha pode ser reforçado por documentos que, embora sem mencionar termos para se referirem aos grupos indígenas atacados pelos ‘Cayapó’, indicam certas semelhanças com os ataques contra os ‘Araxá’. Antonio Pires de Campos, o primeiro cronista a utilizar o termo escreveu:

[...] e o seu maior exercício é serem corsários de várias outras nações e prezarem-se muito entre eles a quem mais gente há de matar, sem mais interesse que de comerem os seus mortos, por gostarem muito de carne humana, e nos assaltos que dão e prezas que fazem reservam os pequenos que criam para seus cativos [...] e nas suas campinas cursam muita terra de outros gentios a quem causam muito descômodos com as suas traições. (Campos, 1976CAMPOS, Antonio Pires de. 1976. “Breve notícia do gentio bárbaro que há na derrota das minas de Cuiabá e seu recôncavo, na qual declara-se os reinos [...]”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.). Relatos sertanistas, pp. 181-200. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 181-182)

Menções a cativos não são excepcionais na etnologia das terras baixas sul-a-mericanas; porém são muito escassas entre os Jê - ‘Cayapó’ no século XVIII. Além dessa informação genérica de Pires de Campos, e os documentos sobre os ‘Araxá’, apenas em mais uma ocasião, quando parte de grupos ‘Cayapó’ já se faziam presentes nas tropas de resgate, são mencionados prisioneiros. Em 1784, uma tropa que seguiu a fazer contato com os Xavante no norte de Goiás

[. ] aprisionou alguns indivíduos daquella rebelde nação, o que facilmente conseguio pela destreza do domesticado Gentio Caiapó, [. ] levando prisioneiro consigo hum valente Xavante, quatro índias e algumas crianças da mesma nação (Freire, 1790FREIRE, José R. 1790. “Relação da conquista do gentio Xavante” [...]. Lisboa: Typografia Nunesianna: 10,11)

Mas neste caso, ao contrário das guerras intertribais anteriores, os prisioneiros ‘Xavante’ não foram incorporados pelos indígenas. Assim, embora não excepcionais, continuam raras as informações de guerra entre os ‘Cayapó’ e outros grupos indígenas no XVIII. Apesar disso, as poucas informações de que dispomos permitem identificar alguns pontos nos quais esses ataques se diferenciavam dos ataques aos não-índios. Entre esses últimos havia tratamento indiferenciado para o gênero e a idade, matavam todos: homens, mulheres e crianças. “Consta que estes índios atacarão [. ] e matarão a mulher e a filhinha de José Severino, duas outras crianças e uma escrava” (Ataídes, 2005: 100). Enquanto isso, nas guerras contra os ‘Araxá’, noticiadas entre 1749 e 1753, parecia haver tratamentos diferentes dados ao gênero e idade dos inimigos. Matavam todos os homens adultos “porque, [da] nação Arachás, não ficou mais do que mortos, porque os homens extinguiu, o gentio Caiapó, totalmente”; enquanto as mulheres e crianças eram levadas como cativas, pois “cativaram todas as mulheres e crianças, as quais levaram para o seu alojamento” (AHU-ACL-CU-008, cx. 6, d. 465). Daí segue o indicio daquelas guerras contra não-índios serem de saque sem cativos, e as guerras contra outros grupos indígenas serem de saque com cativos.

Se a interpretação dos dados estiver correta, grupos Jê - ‘Cayapó’ no século XVIII direcionaram sua abertura para o mundo exterior numa constante incorporação diferenciada dos bens de seus diferentes outros. Uma estrutura comum de guerra como demonstração de poderio e força contra grupos indistintamente vistos como inimigos -‘hi’pe’ ou ‘kaben’ -, parecia ocultar avaliações simbólicas e incorporações distintas de seus outros. Ao saquearem o mundo exterior, afluíram para o mundo interior bens móveis da cultura material dos estrangeiros não-índios; e mulheres e crianças de outros grupos indígenas. Ou em outros termos, a apropriação das capacidades criativas, estéticas e funcionais dos não-índios se dava por meio da apropriação e incorporação apenas de seus objetos; enquanto a apropriação das capacidades criativas dos outros grupos indígenas se dava também pela incorporação de pessoas.

ETNOLOGIA E HISTÓRIA: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE OS JÊ

As guerras de saque com cativos fizeram circular, mesmo que momentaneamente, corpos e subjetividades no interior dessas comunidades. De acordo com os relatos, a incorporação interna dessa alteridade coloca um problema etnológico: a antropofagia, cuja possível prática aproximaria esses grupos Jê dos sistemas amazônicos canibais. No entanto, aqui também é preciso certa cautela. A predação de corpos inimigos para além da morte em batalha nunca foi descrita diretamente entre esses grupos. Ao contrário do que acontece com as abundantes descrições históricas dos rituais antropofágicos entre povos Tupi-Guarani, não há descrição alguma da predação canibal entre os Jê - ‘Cayapó’ no século XVIII. Em apenas um documento há a descrição da predação de corpos além da morte, segundo o qual os ‘Cayapó’ foram acusados de matar alguns escravos e bastardos de posse dos fazendeiros e de “[...] lhes raspar toda a carne do corpo deixando-hes só a cabeça e orgnz ocando o corpo” (AHU-ACL-CU-008, cx. 1-doc. 17). Mas mesmo aí, não se observa a prática da antropofagia, e sim o descarne de restos humanos.

É bom lembrar que quando a antropofagia foi a eles imputada, sempre o foi de maneira indireta, seja “porque gostam de carne humana” (Campos, 1976CAMPOS, Antonio Pires de. 1976. “Breve notícia do gentio bárbaro que há na derrota das minas de Cuiabá e seu recôncavo, na qual declara-se os reinos [...]”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.). Relatos sertanistas, pp. 181-200. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 182) ou seja “porque sempre que tem ocasião se sustentam de carne humana”. (AHU-ACL-CU-008, cx. 6, d. 465); mas, de fato, não é conhecida testemunha ocular que tenha descrito ou observado a devoração canibal. Então, mesmo que aceitemos como verdadeiro o documento que menciona o descarne de corpos inimigos, não há relato algum da ingestão ritual de carne humana por esses grupos dos Jê. Portanto, podemos definir as guerras intertribais e interétnicas como guerras de saque, mas não como canibal. Reforça essa assertiva o fato dos documentos sobre as guerras contra os ‘Araxá’ mencionarem que os ‘Cayapó’ mataram todos os homens e “depois lhes cativaram todas as mulheres e crianças, as quais levaram para o seu alojamento, para as comerem”. Ora, um canibalismo ritual exigiria a morte de um guerreiro (homem adulto) e não mulheres e crianças. Isto posto, os documentos sobre as guerras contra os ‘Araxá’ claramente não se ajustam ao universo da antropofagia, embora, como essa, possa ser entendida como predação.

Por isso, a imputação da prática da antropofagia a esses grupos dos Jê -‘Cayapó’ no século XVIII está associada às representações e imagens do sertão como mundo das feras, habitado por “[...] três classes de inimigos [...] índios selvagens, negros fugidos e feras” (Vasconcelos, 1974VASCONCELOS, Diogo. 1974. História média de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia.: 179). A antropofagia, análoga à imagem das feras, se ajusta à mencionada criação do termo ‘Cayapó’ como fato associado às circunstancias práticas, legais e simbólicas em que se deram os contatos e, por isso, como mais um elemento do repertório das alegorias da colonização.

Mas se esses argumentos afastam a ideia desses cativos irem parar de fato na barriga dos inimigos; eles ainda não explicam qual o destino dos mesmos. Uma das hipóteses já levantadas (Mead, 2010MEAD, David. 2010. Caiapó do Sul: an etnohistory (1610 - 1920). Gainesville, 2010, PhD Dissertation, University of Florida.) é a de que esses cativos estavam destinados a substituir as perdas humanas desses grupos no contexto de guerras contra os não-indios. Como desde a década de 1730 já se tinha uma guerra declarada contra os grupos Jê- ‘Cayapó’ e um massivo processo depopulacional decorrente das doenças, escravidão e mortes, o rapto de mulheres e crianças pode ter sido uma alternativa posta em ação por esses grupos.

Attacking to Araxá to abudct their women and children was, in part, an attempt to replenish village populations depleted of war (women and children, after all, were the most common victims of Pires de Campos and other bandeira leaders). The social disruption, territorial deslocation and population loss associated with Portgueses contact and war made abudction womem and children a viable alternative for the Caiapó (Mead, 2010MEAD, David. 2010. Caiapó do Sul: an etnohistory (1610 - 1920). Gainesville, 2010, PhD Dissertation, University of Florida.: 123)

No entanto, essa pode ser apenas parte da resposta. Porque mesmo se aceitarmos o caráter prático, há dois problemas. O primeiro é o de que guerras intertribais de saque com cativos sempre se apresentaram como uma constante entre os povos indígenas das terras baixas sul-americanas, e mesmo entre os grupos dos Jê modernos (Verswijver, 1992VERSWIJVER, Gustaaf. 1992. The club-flgthers of the Amazon. Warfare among the Kayapó indians of Central Brazi”. Gent: Rijksuniversiteit te Gent.). Isso levanta a possiblidade do rapto de mulheres e crianças de outros grupos indígenas ser estratégia anterior aos contatos com os não-índios; hipótese que pode ser confirmada na primeira descrição história desses grupos dos Jê -‘Cayapó’, na qual Pires de Campos descreveu que nos “assaltos que dão e prezas que fazem reservam os pequenos que criam para seus cativos” (Campos, 1976CAMPOS, Antonio Pires de. 1976. “Breve notícia do gentio bárbaro que há na derrota das minas de Cuiabá e seu recôncavo, na qual declara-se os reinos [...]”. In: TAUNAY, Afonso d’E. (ed.). Relatos sertanistas, pp. 181-200. São Paulo: Livraria Martins Editora.: 182). Fazer presas e cativos de outros grupos indígenas era, então, o que parecia se repetir em meados do XVIII quando esses grupos atacaram os ‘Araxá’.

O segundo problema do rapto como consequência da situação colonial está em pensar: porque mulheres e crianças não indígenas não serviram aos mesmos propósitos? Neste caso, parte da resposta pode estar em pensar as guerras não apenas em relação às estruturas práticas da situação colonial; mas também em relação às estruturas simbólicas de avaliação dessas alteridades e dos seus modos de incorporação.

De certo, permanecerão incógnitas como e de que forma objetos e pessoas circulavam no interior desses grupos. Mas a ausência de materiais históricos e documentais diretos não deve, no entanto, desestimular a pesquisa. Ocaminho para preencher parte das lacunas talvez possa ser comparar os dados históricos com a etnografia de grupos Jê, incluindo aí os ‘Kayapó’ e os ‘Panará’ modernos. De acordo com a etnologia desses grupos, a apropriação diferenciada da alteridade não se deu apenas na história dos contatos dos Jê -‘Cayapó’ meridionais. Grupos dos Jê setentrionais do Brasil Central, ‘Xikrin’, ‘Mebengokré’, ‘Menkragnoti’ e ‘Kren-Akrore’ (‘Panará’), etnografados a partir das décadas de 1960 e 1970, revelaram formas de conflito com seus outros que podem, apesar do caráter heurístico, iluminar a história dos contatos dos Jê no século XVIII.

Ao adotar esse caminho, pontos de convergência entre os dados históricos e a etnografia podem ser vistos em vários níveis. Quando na década de 1970 Lux Vidal empreendeu o seu trabalho de campo entre os ‘Xikrin’, ela escreveu sobre os ataques destes aos grupos ‘Gorotiré’.

Um dos objetivos das contendas com os Gorotire era roubar crianças e mulheres. As crianças capturadas eram adotadas e submetidas ao processo de socialização como qualquer outra criança. [...]. Homens adultos eram mortos, nunca aprisionados. (Vidal, 1977VIDAL, Lux Boelitz. 1977. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os kayapó-xikrin do Rio Catete. SP: Hucitec.: 46)

A semelhança desses ataques com os notificados em meados do XVIII é impressionante. Em ambos os casos matavam os homens e raptavam mulheres e crianças. São, pois, igualmente, guerras de saque com cativos.

Dados provenientes da etnografia de outros grupos dos Jê ‘Kayapó’ também sugerem aproximações consistentes com as guerras dos ‘Cayapó’ meridionais. Com base na etnografia de grupos ‘Kayapó-Menkragnoti’, Verswijver (1992VERSWIJVER, Gustaaf. 1992. The club-flgthers of the Amazon. Warfare among the Kayapó indians of Central Brazi”. Gent: Rijksuniversiteit te Gent.) sugeriu duas formas principais de conflito entre esses grupos. O primeiro, definido como guerras externas, eram ataques movidos por grupos de jovens guerreiros a estabelecimentos de brasileiros e visavam sobretudo o butim. O segundo tipo, definido como guerras internas, moviam quase todos os homens da aldeia e dirigiam-se a outros grupos indígenas ‘Kayapó’ e visavam também o rapto de mulheres. Entre os grupos atacados pelos ‘Menkragnoti’ estavam os ‘Panará’ ou ‘Kren-Akrore’, grupos então aparentados linguisticamente, tal como as ‘Xikrin’ - ‘Gorotiré’ descritas por Vidal (1977VIDAL, Lux Boelitz. 1977. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os kayapó-xikrin do Rio Catete. SP: Hucitec.).

Por meio das semelhanças entre os fatos históricos e etnográficos, pode ser proposto que os grupos ‘Araxá’ fossem subgrupos de uma unidade inclusiva maior que abrangia os ‘Cayapó’, e essa guerra do XVIII ser uma guerra interna entre grupos aparentados. Apesar dos documentos não indicarem similaridades políticas e/ou culturais entre esses dois grupos que permitam confirmação, eles permitem, por outro lado, reconhecer que uns e outros eram grupos que a moderna etnografia identificaria com os Jê, como acima mencionado. Portanto, ainda que não fossem aparentados entre si, podiam representar grupos linguisticamente próximos. A importância do parentesco linguístico, ou na sua ausência, de um processo de aprendizado da língua, pode ser confirmado com outras informações etnográficas

do trabalho de Vidal (1977VIDAL, Lux Boelitz. 1977. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os kayapó-xikrin do Rio Catete. SP: Hucitec.) entre os ‘Kayapó-Xikrin’. Preocupada com o destino das mulheres raptadas de outros grupos indígenas não ‘Kayapó’, ela escreveu: “Perguntei se pegavam essas mulheres para fins sexuais imediatos, disseram: ´Não, não sabem falar; primeiro amansar, falar e depois casar´ (Vidal (1977VIDAL, Lux Boelitz. 1977. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os kayapó-xikrin do Rio Catete. SP: Hucitec.: 47); ou ainda, do trabalho de Luckesh, (1976LUKESCH, Anton. 1976. Mito e vida dos índios Cayapós. SP: Pioneira .: 77): “[...]. Quem souber falar a sua língua é considerado como um deles; o que é válido até hoje”.

Parentesco linguístico e aprendizado da língua podiam então ser as capacidades exigidas para a incorporação social de crianças e mulheres de grupos indígenas estrangeiros. Isso explica em parte a predileção por cativos de grupos linguisticamente próximos e, associada à aparência, a exclusão de cativos não-índios. De acordo ainda com a etnografia, “as crianças raptadas eram submetidas ao processo de socialização como qualquer outra criança”. Se forem certos, isso permite superar duas antigas certezas sobre os ‘Cayapó’ meridionais. A certeza histórica editada por Pires de Campos, o primeiro cronista a descrever grupos ‘Cayapó’, de que as crianças raptadas de outros grupos eram criadas para seus cativos; e a certeza etnológica de que esses grupos dos Jê não faziam cativos por não haver instituição que os incorporassem socialmente (Heelas, 1979HEELAS, Richard. 1979. The social organisation of the Panará, a Gê tribe of Central Brazil. University of Oxford, 1979. Phd. Tese. St. Catherine’s Colege,: 79, Giraldin, 1997GIRALDIN, Odair. 1997. Cayapó e Panará Luta e sobrevivência de um povo Jê no Brasil Central. Campinas: Editora Universitária Unicamp.: 50). Pelas suposições levantadas, não só as crianças podiam ser incorporadas socialmente, mas também as mulheres.

Como observou Vidal (1977VIDAL, Lux Boelitz. 1977. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os kayapó-xikrin do Rio Catete. SP: Hucitec.: 47), “o interesse em raptar mulheres [de outros grupos ‘Kayapó’], especialmente moças, é que eram imediatamente aproveitáveis para fins sexuais e de vida em comum, pois falavam a mesma língua e compartilhavam a mesma cultura”. Tornadas esposas, as mulheres raptadas podiam representar um ganho sem a contrapartida da perda, como propôs Clastres (2004CLASTRES, Pierre. 2004. Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify.) a partir de Lévi-Strauss. Negação da troca como reciprocidade simétrica, a guerra de saque com cativos coloca em foco uma incorporação do outro que não se limita ao saque de corpos e objetos, mas também de pessoas.

Se por um lado os corpos das jovens moças raptadas de outros grupos aparentados linguisticamente eram imediatamente ‘aproveitáveis’, por outro lado esse não era o caso quando se tratava de mulheres raptadas de outras etnias. Os dados etnográficos apresentados por Vidal (1977VIDAL, Lux Boelitz. 1977. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os kayapó-xikrin do Rio Catete. SP: Hucitec.: 47) e Verswijver (1992VERSWIJVER, Gustaaf. 1992. The club-flgthers of the Amazon. Warfare among the Kayapó indians of Central Brazi”. Gent: Rijksuniversiteit te Gent.: 152) sugerem que um dos objetivos do rapto de jovens moças pertencentes à grupos não ‘Kayapó’, era o de aprender, por seu intermédio, cantos e cerimonias.

Certamente tomaram cativos de grupos estrangeiros, em especial mulheres e crianças. […], as mulheres estrangeiras eram capturadas com o objetivo explícito de que ensinassem cantos e cerimônias, daí a preferência pelo rapto de moças jovens. […] as relações sexuais e/ou casamento com tais jovens estrangeiras não ocorriam antes que elas passassem por um processo de ‘domesticação’ ou ‘socialização’ (por outras palavras, aparentamento), marcado, no discurso dos informantes, sobretudo no que toca ao aprendizado da língua. (Gordon, 2006GORDON, Cesar. 2006. Economia selvagem - ritual e mercadoria entre os Xikrin Mebêngôkre. SP: Editora Universitária UNESP/ISA.: 124, 125)

Sejam como esposas ou como cativas, as jovens estrangeiras raptadas de outros grupos indígenas serviam para fazer circular e colocar em operação uma rede de saberes e conhecimentos. Por meio delas, seus apropriadores obtinham cantos, nomes, danças, cerimônias, técnicas e conhecimentos. Assim como a guerra de saque sem cativos fez circular bens materiais dos estrangeiros, a guerra de saque com cativos fez circular também pessoas e conhecimentos. Apesar de estar em jogo o exercício de classificações e apropriações diferenciadas das alteridades, em comum ambas as guerras estavam produzindo riquezas. Uma produção interna que implicava na destruição e incorporação dos bens de suas diferentes alteridades. Por esse caminho, desde as guerras ‘Cayapó’ no XVIII a história nos leva aos problemas etnológicos sobre os grupos Jê.

PARA CONCLUIR

Emersos da lixeira da história, os dados acerca da apropriação diferenciada das alteridades entre os Jê - ‘Cayapó’ colocam problemas em vários níveis da interpretação etnológica. O primeiro se refere à suposta tendência centrípeta a eles associada. Afinal, os dados históricos aqui apresentados mostram como entre esses grupos a guerra funcionou como uma dobradiça vai-e-vem; pois tanto se abriu para o outro e para fora numa tendência centrífuga, como se fechou sobre si numa tendência centrípeta. Em suas guerras, esses grupos não parecem ter exercido a predação canibal que caracteriza os sistemas centrífugos Tupi; e nem mesmo estiveram fechados na espacialidade e reiteração que caracteriza os sistemas centrípetos Jê. Ou seja: não se encaixam plenamente em nenhum dos sistemas. Com base nisso, supõe-se que os modelos dicotômicos sejam importantes para pensar o continuum de possiblidades entre eles e não os pólos antagônicos em si, do qual os Jê - ‘Cayapó’ no XVIII, com o exercício de uma simbólica aberta para as alteridades, combinada com a incorporação fechada de riquezas, parecem ser um bom exemplo.

Em consequência, ao relativizar o suposto fechamento em si em favor de uma constante abertura para os outros, outra questão etnológica se coloca: a da identidade. Durante algum tempo, e ainda em fortalecimento à suposta tendência centrípeta, aceitou-se a existência de uma tradicional identidade binária (Turner, 1992TURNER, Terence. 1992. “Os Mebengokre Kayapó: história e mudança social, de comunidades autônomas para a coexistência interétnica”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (ed.). História dos índios no Brasil , pp: 311-338. São Paulo: Companhia das Letras .) entre os grupos Jê - ‘Cayapó’, segundo a qual o universo social estaria dividido entre um Nós (‘Kayapó’) e os Outros genéricos (não-‘Kayapó’). No entanto, as informações apontam para uma avaliação simbólica que diferenciava as categorias estrangeiras com base nos bens e riquezas que cada uma delas poderia fornecer. Ambos inimigos do ponto de vista bélico, uns ofereciam objetos materiais e bravura, e os outros ofereciam também pessoas; o que supõe pensar que uns e outros não estavam sendo avaliados como iguais numa genérica definição. Esses dados, somados aos que já se tem conhecido das relações de aliança dos Jê -‘Cayapó’ meridionais- com os negros

fugidos da escravidão durante esse mesmo período (Mano, 2015MANO, Marcel. 2015. “Negros e Índios nos sertões das minas: contatos e identidades”. Varia História, 31(56): 511-546. http://dx.doi.org/10.1590/0104-87752015000200009
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), afastam definitivamente a existência de uma identidade binária tradicional. Em seu lugar, deve surgir uma definição que se assemelha mais a imagem de uma mandala, na qual coexistem pontos variados de intersecções e arranjos diversos. Aplicado à história dos contatos, esse modelo tem a vantagem de desenhar processos e combinações de diferentes encontros e intersecções que geram mesclas hibridas, resultados inesperados e processos de reconstrução continua das identidades e alteridades. Por isso, essas não são categorias fixas, mas, antes, contextuais, pois dependem tanto das estruturas de significação quanto das condições práticas. Isso significa que esses grupos já se reconheciam, no XVIII, numa identidade fluida e relacional.

Nesse emaranhado, cujo trançado consiste nas várias formas de internalização das diferenças, as guerras ‘Cayapó’ no XVIII colocam também fatos acerca da história desses grupos. Tal como sua identidade, essa história deve ser pensada como rede não estruturada e não determinada, mas imprevisível, síntese de estruturas de significação e campos de ação que dependeram dos sujeitos, dos contextos, dos signos e dos interesses envolvidos, podendo por isso mesmo ser cambiante e mutante espacial e temporalmente, pois como ilustram as guerras de saques, implicam na coexistência de diferentes linhas históricas de atuação.

Finalmente, mas não por fim, um último problema da ordem da etnologia que os dados históricos colocam é a do próprio estatuto da guerra. Ao que tudo indica, ela não foi apenas “[...] a grande tarefa [...] para a ocupação das condições objetivas da existência, seja para a proteção e perpetuação de tal ocupação (do solo)” (Marx, 1985MARX, Karl. 1985. Formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo: Paz e Terra.: 69). Também não foi mero “[...] resultado de transações [comerciais] mal sucedidas” (Lévi-Strauss, 1976LÉVI STRAUSS, Claude. 1976. “Guerra e comércio entre os índios da América do Sul”. In: SCAHDEN, Egon (ed.). Leituras de etnologia brasileira, pp: 325-339. SP: Cia Nacional.: 337). Assim como também não teve apenas uma função integradora cujas “[...] causas sociais, [...] ou fator determinante tópico, são de natureza mágico-religiosa” (Fernandes, 1970FERNANDES, Florestan. 1970. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. SP: Pioneira.: 355). Afinal, as guerras ‘Cayapó’ no XVIII evidenciaram estruturas simbólicas e pragmáticas diferenciais de apropriação e incorporação de bens materiais e simbólicos. Se aproximam aqui das recentes teorias das guerras como predação externa para a produção interna (Fausto, 2001FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos fléis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. SP: Editora Universitária USP.; Gordon, 2006GORDON, Cesar. 2006. Economia selvagem - ritual e mercadoria entre os Xikrin Mebêngôkre. SP: Editora Universitária UNESP/ISA.), mas delas também se afastam em relação às supostas diferenças entre predação canibal e predação cerimonial. Os dados históricos acerca das guerras dos Jê -‘Cayapó’ no XVIII sugerem que a morte do inimigo e o saque de suas riquezas podem dispensar a devoração, mas não a destruição de corpos e a apropriação de partes objetiváveis e não objetiváveis de suas alteridades, da qual a antropofagia parece ser apenas uma forma.

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  • 1
    Os documentos manuscritos estão identificados no corpo do texto pelos seus códices; e as indicações completas são arroladas nas referências como Documentos Manuscritos.
  • 2
    Abreviatura aqui e doravante usada para a série de publicações dos Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. No corpo do texto a abreviatura é seguida do volume e página de onde se extraiu a citação. A indicação completa se acha nas referências como Documentos Impressos.
  • 3
    Técnicas de manufatura das cerâmicas, recorrência das formas, ausência de pintura e engobo, e queima em fornos escavados (Magalhães, 2015: 68, 551) são algumas das semelhanças existentes entre ambos os horizontes ceramistas (pré-histórico e histórico) que apontam uma possível continuidade de ocupação que as associaria, documentalmente, aos grupos dos Jê - ‘Cayapó’.
  • 4
    Essa proposta de definição das guerras contra os não- índios como “guerras de saque sem cativos” só pode ser estendida aos grupos Jê - ‘Cayapó’, não podendo, pois, ser tratada como uma constante entre os grupos Jê. De acordo, por exemplo, com documentos de 1788 sobre a pacificação dos ‘Xavante’, há provas contrárias disso (Freire, 1790FREIRE, José R. 1790. “Relação da conquista do gentio Xavante” [...]. Lisboa: Typografia Nunesianna: 25- 26).
  • 5
    Neste texto viemos usando até agora o termo ‘Cayapó’ com ‘C’ por se tratar da grafia histórica, e para diferenciar estes dos grupos ‘Kayapó” com ‘K’, tal como são grafados pelas etnografias.
  • 6
    Mais de uma vez os autores modernos (Giraldin, 1997GIRALDIN, Odair. 1997. Cayapó e Panará Luta e sobrevivência de um povo Jê no Brasil Central. Campinas: Editora Universitária Unicamp.; Turner, 1992TURNER, Terence. 1992. “Os Mebengokre Kayapó: história e mudança social, de comunidades autônomas para a coexistência interétnica”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (ed.). História dos índios no Brasil , pp: 311-338. São Paulo: Companhia das Letras .; Schwartzman, 1987SCHWARTZMAN, Stephan. 1987. The Panará of the Xingu National Park, the transformations of a society. Chicago, 1987, PhD Dissertation, University of Chicago.) mencionaram o papel importante desempenhado pelas expedições de guerra na organização dos principais rituais dos ‘Panará’ e ‘Kayapó’. O ritual de nominação, de perfuração de lábios e orelhas e de escarificação, que denotam a produção social da pessoa, dependem em certa medida dessas expedições. São, em sua maioria, rituais de dor que o homem suporta porque os inimigos os tornaram bravos. Em outras palavras, o ideal do guerreiro e bravo só se realiza na relação com os inimigos.
  • 7
    Essa verdade histórica obviamente se modificou ao longo do contato, pois o domínio e interesse pelos conhecimentos não-índios foram necessários para guiar, inclusive, suas ações políticas nas relações de contato.
  • 8
    Mais recentemente, grupos de indígenas não-aldeados vivendo em cidades do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba - MG, congregados na Fundação ANDAIÁ (Associação de Desenvolvimento e Intercâmbio Cultural Indígena da Região de Araxá), reivindicam o reconhecimento como remanescentes dos ‘Katu- awá - Araxá’; tema que ainda carece de estudo especifico.
  • 9
    Isso talvez explique a existência, em sítios arqueológicos da região estudada, de cerâmicas piriformes, típicas da Tradição ‘Aratú-Sapucaí’ (associada aos grupos dos Jê), com tratamento estético policrômico, típico da Tradição ‘Tupiguarani’.
  • Financiamento

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2017
  • Aceito
    28 Abr 2020
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