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Modos de cuidar e se movimentar: experiências etnográficas entre indígenas, quilombolas e agricultoras familiares

resumo

Com base em etnografias realizadas em diferentes contextos – povo Pankararu em Pernambuco e São Paulo, quilombolas de Alcântara/MA e agricultoras agroecológicas do leste de Minas Gerais –, propomos, neste artigo, que os “modos de cuidar” fazem parte de uma ética de relacionamentos que envolve seres tangíveis – homens, mulheres, plantas e a terra – e seres intangíveis, como os encantados. E, ainda, que há práticas de cuidado relacionadas a “movimentos” que se realizam com intensidades e ritmos variados. Nos contextos trabalhados, os modos de cuidar, enquanto eixo organizador de relações sociais, são protagonizados pelas mulheres, embora não sejam restritos ao universo feminino, e são compreendidos em suas dimensões afetivas e disruptivas. Ao trazer a relação entre “movimento e cuidado”, nosso propósito é contribuir com uma nova perspectiva para os debates que têm sido realizados sobre estes temas.

palavras-chave
Modos de cuidar; movimento; mulheres; Pankararu; quilombolas; agricultoras familiares

abstract

Based on ethnographic studies that were carried out in different contexts - with Indigenous (Pankararu) tribes in the states of São Paulo and Pernambuco, with Afro-descendant groups ( quilombolas ) in Alcântara in the state of Maranhão, and with small scale, family-based fema- le farmers in the eastern part of Minas Gerais - we propose that “forms of caring” are part of a relationship ethics that involves tangible beings -men, women, plants, and the land - and intangible beings, that are part of the “divine,” supreme realm of human existence. We also explore the possibility of the existence of care practices linked to “movements” that take place with varying intensities and rhythms. Within the contexts of our respective ethno- graphic fields, the forms of caring, as the organizing axis of social relations, are carried out by women, although they are not perceived as intrinsically being tied to “women’s nature” and are also understood in their affective and disruptive dimensions. By bringing up the relationship between “movement and care,” we aim to contribute with a new perspective to the debates that have been held on these topics.

keywords
Forms of caring and care-taking; movement; women; Pankararu; quilombola communties ; women farmers

Introdução

O propósito deste artigo é abordar, a partir de três diferentes contextos etnográficos, a relação entre os modos de cuidar e de se movimentar de pessoas e de seres outros que humanos 1 1 Utilizamos a expressão “outros que humanos” ( other-than-human ), cunhada por Marisol de la Cadena ( 2018 ) para se referir à pluralidade de seres humanos e não humanos que participam da composição do cosmos. Assim como La Cadena, outros autores/as vêm apostando em noções que questionam a centralidade da agência e do protagonismo humano e que mostram a intercomunicabilidade entre humanos e não humanos (Descola, 2005 ; Ingold, 2011 ; Haraway, 2003 , entre outros/as). . Propomos que os modos de cuidar envolvem uma gramática de interdependência social, espiritual e material a partir de uma teia de relacionalidades que abarca pessoas, plantas e entidades supranaturais, que estão em constante movimento. Assim, compreendemos o movimento como práticas que cultivam cuidado, expressas na cura , no afeto e no controle . Pessoas, coisas, objetos, encantados e plantas circulam entre lugares e ajudam a modular ações orientadas ao cuidado. No caso da mobilidade espacial humana, o movimento pode ser compreendido como um “princípio organizador de dinâmicas sociais”, que possui ritmos, variações, paradas e intensidades, e “mesmo quando em repouso, propaga conexões, espaços e identidades”, conforme observam Carneiro e Daianese ( 2015 CARNEIRO, Ana & DAINESE, Graziele. 2015. “Notas sobre diferenças e diferenciações etnográficas do movimento”. Ruris, 9(1), mar. ( https://doi.org/10.53000/rr.v9i1.2079 )
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, p. 145; 154). Para essas autoras, os deslocamentos podem, por um lado, ser extensivos, ou seja, caracterizados por fluxos geográficos a distância, envolvendo a circulação de pessoas entre localidades específicas. Por outro lado, podem ser compreendidos como “intensivos”, isto é, aqueles que se circunscrevem em espaços mais imediatos, entre casas, quintais e roças, porém, de forma afluente, afetando pessoas, animais e outros seres. Apesar de trazermos as reflexões sobre os movimentos extensivos e intensivos em duas diferentes seções, entendemos que movimentos extensivos comportam movimentos intensivos, pois mesmo em deslocamentos a distância há pontos de intensificação e de afluência, não sendo nossa intenção, portanto, colocá-los em termos dicotômicos.

Neste artigo, somos três antropólogas em interlocução que encontraram em seus campos etnográficos a centralidade do movimento e do cuidado. O que nos reuniu foram as conexões e aproximações que nossas distintas etnografias possibilitaram no plano da nossa interlocução acadêmica e de nossas perspectivas analíticas. As pesquisas foram realizadas entre as mulheres Pankararu em São Paulo 2 2 Atualmente, o povo pankararu encontra-se localizado em sua maior parte na Terra Indígena Pankararu (TI Pankararu) e Terra Indígena Entre Serras (TI Entre Serras), em Pernambuco. A localização dessas TI’s é parte da configuração territorial dos antigos aldeamentos realizados pelas missões jesuíticas e que remete a um quarto aldeamento, chamado Brejo dos Padres, próximo às margens do rio São Francisco, que, segundo a memória ancestral compartilhada, foi uma “doação imperial” feita a uma “missão religiosa que aldeou seus antepassados durante os séculos XVIII e XIX” (Arruti, 1996: 24-32). Em São Paulo, o grupo encontra-se concentrado, sobretudo, no bairro do Real Parque, zona sul da capital paulista, e em outros bairros da região metropolitana da capital paulista. , as quilombolas do Maranhão 3 3 As comunidades quilombolas de Alcântara resultam em sua maioria da desagregação de antigas fazendas de algodão e de cana-de-açúcar, que se deu ao longo do século XIX. Ordens religiosas também possuíam fazendas na região, como a Companhia de Jesus, que fundou em 1722 um aldeamento ao fundo da Baía de Cumã, dando-lhe como padroeiro São João. No início da segunda metade dos setecentos, coloca-se em curso o projeto pombalino para o Estado do Maranhão e Grão-Pará, decretando o fim da escravidão dos índios e retirando, em 1757, o poder temporal dos missionários religiosos sobre os aldeamentos. Com isso, os antigos aldeamentos foram em sua grande maioria transformados em vilas de camponeses, como nos informa Karasch ( 1993 ), ou em lugares, como nos informa Lopes ([ 1957 ] 2002). Naquele momento, o tráfico de escravizados africanos para a região foi intensificado. Nas terras do antigo aldeamento encontra-se uma das comunidades quilombolas tratadas aqui. Esse é o contexto em que índios desaldeados, ex-escravizados livres e quilombolas passam a construir a sua autonomia, configurando povoados, hoje reconhecidos como comunidades remanescentes de quilombo. Para melhor entendimento deste contexto, ver Pietrafesa de Godoi, 2023 . e as agricultoras familiares do leste de Minas Gerais. Nos dois primeiros casos, as práticas de cuidado relacionam-se a uma visão cosmológica que tem como princípio a sustentação de uma teia de relacionalidades que inclui os encantados. No contexto pankararu, o cuidado é compreendido como uma ação moduladora que pressupõe reciprocidade entre humanos e outros que humanos. Pessoas cuidam daquilo de que os encantados são donos – roupões, campiôs (cachimbo ritual), plantas – e estes protegem seus parentes humanos de ataques de forças malignas (bichos ruins, espíritos, encantados maus etc.). No contexto quilombola, encantados, também chamados de “o invisível”, e pessoas cuidam de porções do território – matas e águas. Além disso, os encantados ajudam a gerir, nos rituais de cura, as relações de proximidade entre parentes e vizinhos, que podem produzir “malfazejos”. No caso das mulheres agricultoras de três municípios da região leste de Minas Gerais, observamos suas movimentações por um mosaico de espaços – horta, pomar, roçado, quintal – nos quais elas protagonizam experimentações no campo de agroextrativismo, desenvolvendo uma relação de percepção aguçada e corpórea destes ambientes a partir dos seus fazeres. Neste outro modo de realizar a produção agrícola que algumas chamam de “agroecologia” 4 4 Agroecologia é uma proposta de um modelo de organização “sustentável” para a agricultura brasileira que vem sendo construída desde os meados dos anos 1990 por um conjunto de grupos e movimentos sociais compostos por agricultores/as, além de organizações de assessoria (técnicos/as e pesquisadores/ as), e que se contrapõe ao modelo da Revolução Verde, amplamente difundido no país a partir da década de 1960. Uma dimensão que se destaca é sua postura crítica perante o viés economicista que tem predominado nos estudos agronômicos, na tentativa de recuperar uma visão mais holística e sistêmica dos processos produtivos, que tem como base a perspectiva de “sistemas de produção” ou “agrossistemas”. , testemunhamos as nuances de uma relação de cuidado que costuram com as pessoas, a natureza e as instituições perante ameaças e perigos, como o uso de insumos enquadrados como nocivos – os “venenos” –, que são introduzidos nas plantações por seus maridos ou filhos na tentativa de “maximizar” a produção e se enquadrarem nos moldes tradicionalmente exigidos pelo regime mercantil.

Articulado à ideia de movimento, o cuidado emerge como uma forma de compreender as intencionalidades que intermedeiam relações entre os seres humanos e entre seres humanos e outros que humanos. De alguma maneira, constitui um aspecto que se encontra associado a mecanismos de controle, proteção e cura, como veremos adiante, fazendo e desfazendo relações. Além disso, o cuidado envolve perigo e disrupções, o que nos leva a questionar a concepção difundida de cuidado enquanto um conjunto de ações “afetivas e harmoniosas”, uma vez que a dissidência participa das relações (Bellacasa, 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis, University of Minnesota Press.: 16). O que estamos propondo é que as práticas das mulheres que reconhecemos como formas de cuidado constituem um eixo que organiza as relações sociais em seus contextos e se articula aos movimentos dos seus corpos dentro e fora de suas comunidades, sem, portanto, reforçar qualquer perspectiva que naturalize as práticas e o trabalho das mulheres como de boas cuidadoras. Com isso queremos dizer que acompanhamos as críticas feministas em relação às dimensões morais e afetivas do exercício de cuidado (vejam-se, entre outras autoras, Maizza e Cabral de Oliveira, 2022 MAIZZA, Fabiana & OLIVEIRA, Joana Cabral de. 2022. “Narrativas do cuidar: mulheres indígenas e a política feminista do compor com plantas”. Mana, 28(2). ( https://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n2a102 )
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; Bellacasa, 2012 BELLACASA, Maria Puig de la. 2012. “‘Nothing comes without its world’: thinking with care”. Sociological Review, 60(2): 197-216. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x.
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, 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis, University of Minnesota Press. ; Haraway, 2003HARAWAY, Donna. 2003. The companion species manifesto: dogs people and significant otherness. Chicago, Prickly Paradigm Press. e 2016HARAWAY, Donna. 2016. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham and London, Duke University Press. ; Stengers, 2015STENGERS, Isabelle. 2015. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo, Cosac Naify. e 2018 STENGERS, Isabelle. 2018. “A proposição cosmopolítica”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, RIEB, 69: 442-464. ( https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464 ).
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).

Destarte, veremos que as formas de cuidado exprimem diversas motivações, englobando ações que não apenas sinalizam aproximações e alinhamentos, mas também abrem espaço para afastamentos, fissuras e rompimentos. Assim sendo, nós nos alinhamos ao entendimento do “cuidado” que se distancia da naturalização desse conceito como um “impulso” de proteção que se acopla a uma ideia de “coesão interna” dentro das teias de relacionalidades costuradas com seres humanos, outros que humanos e forças da natureza. Nosso foco recai nas experiências do “saber fazer” das mulheres associadas ao cuidado, seja através da cura, do afeto ou até mesmo do controle 5 5 Faz-se necessário reconhecer a capilaridade das abordagens que têm sido adotadas para lidar com o tema de “cuidado” com base em diferentes abordagens feministas, tais como a fronteira difusa entre as manifestações de “cuidado” e o “trabalho” a partir do referencial teórico da Economia Feminista (Carrasco, 2006 ); a ressignificação de uma “ética de cuidado” a partir da óptica da reestruturação das relações natureza-cultura (Herrero, 2023 ; Federeci, 2014 ; e Guétat-Bernard, 2015 ) e a conexão construída entre “trabalho de cuidados” e o plano “afetivo-relacional, relativo ao bem-estar emocional” (Orozco, 2012 ). . A seguir, sinalizamos alguns pontos de conexão entre os caminhos analíticos que exploraremos com base em nossos dados etnográficos e os acúmulos trazidos pelas teorias e epistemologias feministas a partir desta porta de entrada: “cuidados”.

Embora não esteja no escopo desta empreitada efetivar um aprofundamento conceitual e empírico dos nexos entre categorias analíticas de “cuidado” e “movimento”, com as quais estamos trabalhando, e as abordagens da teoria feminista, é importante elucidar que temos a preocupação de não cairmos em uma armadilha epistemológica neste campo de estudos: o reforço do papel desempenhado pela mulher enquanto “cuidadora” como se fosse algo dado, inerente a uma suposta essência feminina 6 6 Este viés essencialista dentro do campo de estudos sobre o tema de “cuidado” se tornou mais conhecido desde o pensamento de Carol Gilligan (1983; 2021), que afirmou uma visão dicotômica sobre as duas formas de pensamento moral (masculina e feminina) a partir da noção da complementariedade. Reforçou a associação dos gestos de “cuidado” à essência feminina. . Primeiramente, adotamos uma abordagem sobre o “cuidado” enquanto um conjunto de gestos e práticas que estão imersos em uma teia de relacionalidade extensiva e elástica, que abarca pessoas e seres outros que humanos, e que encontra ressonância com as teorias feministas que desafiam uma interpretação estritamente biologizante das relações (Yanagisako & Collier, 1987YANAGISAKO, Sylvia Junko & COLLIER, Jane Fishburne (eds.). 1987. Gender and kinship: essays toward an unified analysis. Stanford, Stanford University Press, pp. 14-51. ; Yanagisako & Delaney, 1995YANAGISAKO, Sylvia Junko & COLLIER, Jane Fishburne. 1995. Naturalizing power: essays in feminist cultural analysis. New York, Routledge ). Endossamos uma visão assentada nos “modos de relacionalidade” 7 7 O trabalho de Carsten ( 1997 ; 2000 ) representou uma “virada” nos estudos de parentesco, a partir de uma concepção mais ampla dos “modos de relacionalidade”, que contempla práticas culturais como elementos chaves dentro da construção de relações, a exemplo da comensalidade. Tal visão introduziu um entendimento tanto da criação quanto da dissolução de vínculos com outros seres como um componente chave nos processos de construção do mundo vivido. (Carsten, 1997CARSTEN, Janet. 1997. The heat of the hearth: the process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Clarendon Press. , 2000CARSTEN, Janet. 2000. “Introduction: cultures of relatedness”. In: CARSTEN, Janet (org.). Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship. Cambridge, Cambridge University Press. ), que se exprimem nas diversas manifestações de mobilidade por parte das mulheres que protagonizam as práticas de agroextrativismo e da cura. Dentro desta óptica mais ampla das “relacionalidades”, reconhecemos as “relações sociais de gênero” como uma de suas expressões, que se concretizam a partir de formas de vigilância e controle das ações “dos outros”, que podem constituir forças de oposição, sedimentando dissonâncias, hierarquizações e assimetrias. Assim, concebemos a conceituação de gênero como uma perspectiva analítica, como sugere Scott ( 1995SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Revista Educação e Realidade, 20 (2), Porto Alegre, UFRGS, 1995. ) 8 8 A autora propõe gênero como expressão de “relações estruturadas por meio de símbolos e representações culturais, de normas e doutrinas, de instituições e organizações sociais, assim como de identidades subjetivas […]” (Scott, 1985: 18). .

Há um esforço em elicitar que os pontos convergentes sobre a relação movimento-cuidado nas três situações empíricas não têm como finalidade a busca por uma análise comparativa, numa proposta de compreensão dos nossos termos de forma totalizante ou homogênea. Certamente não seria uma proposição exitosa da perspectiva antropológica, pois não são contextos comparáveis. Ao contrário, pretendemos estabelecer as “conexões parciais” a partir das correlações dos nossos campos empíricos num exercício de compatibilidade e não de comparabilidade (Strathern, 1991STRATHERN, Marilyn. 1991. Partial connections. Lanham, AltaMira Press. ).

1. Movimentos, ritmos e diferenciações: experiências da mobilidade extensiva

A mobilidade é constitutiva do mundo de nossas interlocutoras e engendra efeitos sociopolíticos, pois é a partir dos deslocamentos espaçotemporais e nos modos de ação que elas dão sentidos às relações. Neste artigo, aproximamo-nos dos sentidos expressos da ideia de “movimento” a partir dos trabalhos que se articulam ao que vem sendo chamado “antropologia das mobilidades” (Guedes & Vidal e Souza, 2021GUEDES, André D. & VIDAL E SOUZA, Candice. 2021. “Introdução”. In: VIDAL E SOUZA, Candice & GUEDES, André D. (orgs.). Antropologia das mobilidades. Brasília, ABA Publicações. ), os quais questionam o modelo de representação de sociedade e espaço – preso a uma ideia de “fixidez espacial” –, e privilegiam o que pensam os sujeitos com base em suas práticas 9 9 Nessa empreitada, como pontuam Guedes & Vidal e Souza ( 2021 ), os trabalhos de Ingold ( 2007 , 2011 ) ganham destaque nessa mobilities turn (virada da mobilidade), a partir da sua “antropologia comparativa da linha” e em seu esforço em trazer a “antropologia de volta à vida”. . Nosso foco recai, então, em olhar para as práticas das mulheres indígenas, quilombolas e agricultoras situadas nos contextos apresentados, privilegiando a ligação estreita entre seus modos de se movimentarem e cuidarem.

A mobilidade contemporânea pankararu é compreendida como um “modo de produção de vida”, pois pessoas, encantados, plantas e bens circulam entre a aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco, e a cidade de São Paulo, como forma de manter uma terapêutica dos corpos (Lovo, 2017LOVO, Arianne Rayis. 2017. Lá, sendo o lugar deles, é também o meu lugar: pessoa, memória e mobilidade entre os Pankararu. Campinas, Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas. ). Assim como propõe Ingold ( 2011INGOLD, Tim. 2011. Being alive: essays on movement, knowledge and description. London, Routledge.: 12-13), as pessoas não habitam apenas lugares, mas “caminhos”, constituindo-se histórica e mutuamente numa paisagem, pois “o caminho, e não o lugar, é a condição primordial do ser, ou melhor, do tornar-se”. “Caminhos” são os lugares que, ao longo da história e da memória pankararu, constituíram-se como forças de interação entre seres e coisas, sendo também uma forma de compreender a dinâmica territorial a partir da coextensividade entre aldeia e cidade.

A partir de 1940, teve início um fluxo de deslocamento de homens e mulheres da TI Pankararu para a capital paulista, intensificando-se nas décadas subsequentes, motivado pela busca de trabalho na área da construção civil. Num primeiro momento, tal fluxo foi formado por homens para trabalhar em curtos períodos “sem se integrarem permanentemente na cidade”, e, num segundo momento, “as mulheres intensificam suas viagens e aparentemente passaram a servir de base para permanências mais estáveis” (Arruti, 1996ARRUTI, José Maurício. 1996. O reencantamento do mundo. Trama histórica e arranjos territoriais Pankararu. Rio de Janeiro, Tese de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 166-167). Assim, ao longo do tempo, uma rede de parentesco foi se consolidando na antiga “favela da mandioca”, nome dado ao lugar que hoje é conhecido como Real Parque, bairro localizado na região sul da capital paulista, onde habitam cerca de 180 famílias pankararu. Essa rede, formada por parentes – consanguíneos e afins –, ajudou a estabelecer os vínculos daqueles que foram “caindo” ou “se espraiando no mundo”, expressão nativa que informa o movimento das pessoas para “fora” da aldeia.

A trajetória da família Pereira será focada como uma exemplificação destas configurações da mobilidade que se dão entre aldeia e cidade enquanto “movimentos extensivos e intensivos”. Tal família é formada por Manoel Alexandre Sobrinho, conhecido como Bino, sua esposa Maria Senhorinha da Conceição, conhecida como Ninha, e seus filhos/as. O pai de Bino trabalhou na construção do estádio Cícero de Pompeu – o Estádio do Morumbi –, na década de 1950, em São Paulo. Anos depois, em 1977, Bino fez sua primeira viagem até essa cidade, acompanhado de seu irmão, para trabalhar em serviços na área da construção civil. Num primeiro momento, ele ficou hospedado na casa de parentes e, quando não conseguia viajar para a aldeia, enviava dinheiro e mercadorias ao seu núcleo familiar (Lovo, 2017LOVO, Arianne Rayis. 2017. Lá, sendo o lugar deles, é também o meu lugar: pessoa, memória e mobilidade entre os Pankararu. Campinas, Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas.: 78). Na década de 1980, a esposa e os/as filhos/as de Bino passam a habitar o Real Parque, com retornos sazonais à aldeia, sobretudo em épocas da Corrida do Embu, importante ritual que ocorre na TI Pankararu nos meses de outubro a março.

Em 2014, Bino e Ninha, junto a sua filha Dora, retornam à aldeia depois de terem vivido trinta anos no Real Parque. A partir de então, essa família passa a se deslocar da aldeia a São Paulo para receber tratamento médico oferecido pelos/as profissionais de saúde indígena da Unidade Básica de Saúde (UBS) do Real Parque 10 10 Esses profissionais constituem a Equipe de Saúde da Família Indígena (ESFI), composta por dois médicos da Saúde da Família, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem e duas Agentes Indígenas de Saúde (AIS), entre elas a rezadeira Maria Lídia, que possui um papel fundamental na articulação de saberes indígenas e da biomedicina. . Nessas visitas, não há suspensão do movimento, pois a permanência na cidade supõe novos giros na capital paulista e a ampliação de sua circulação, como ao fazer consultas médicas, visitar parentes ou comprar mercadorias. Importa destacar que, assim como pessoas, plantas e bens circulam entre aldeia e cidade, os encantados – seres que oferecem proteção – caminham junto às rezadeiras, em São Paulo, como veremos adiante. Contudo, conforme ressalta Maria Lídia, “aqui é só uma visita, pois eles não são daqui”. Visitar, neste caso, expressa os modos de caminhar desses seres que possuem uma potência movente e se territorializam em outros lugares, com o intuito de manter uma proximidade para cuidar de seus parentes humanos.

No caso da região leste de Minas Gerais, os “movimentos extensivos” representam um “pano de fundo” neste contexto sociocultural, pois se trata de uma região que se caracteriza por deslocamentos para os Estados Unidos desde os anos 1960, os quais têm sido protagonizados principalmente pelos homens das configurações familiares (maridos e filhos), que saem em busca de recursos, ora para qualificar sua produção agrícola, ora para melhorar suas condições de moradia. Esses fluxos iniciaram de forma incipiente na cidade de Governador Valadares e foram se alastrando gradualmente para as áreas rurais, ganhando intensidade na segunda metade da década de 1980 (Siqueira, 2009SIQUEIRA, Sueli. 2009. Sonhos, sucesso e frustrações na emigração de retorno. Brasil/Estados Unidos. Belo Horizonte, Argvmentvm. ) 11 11 É notável que a eclosão das idas e vindas para os Estados Unidos foi precedida por experiências de deslocamento para destinos dentro do território nacional: São Paulo, Belo Horizonte ou Rondônia. Quase todas as famílias das mulheres interlocutoras deste campo etnográfico tinham alguma história a ser contada sobre um parente que “gosta de andar” – filho, marido, sobrinho, tio – e que tinha estado ausente por períodos prolongados por causa de suas andanças. A maioria das interlocutoras alega que um parente “ia puxando os outros”, de modo que os deslocamentos tiveram um efeito crescente. .

Os/as interlocutores/as classificam esta “onda migratória” como uma “febre” que “começou” em Governador Valadares e “pegou”, o que demonstra a apreensão desta mobilidade como um fenômeno que contagia os outros e propaga seus efeitos sobre a região, ampliando seu raio de atuação de forma gradual e ascendente. Desde uma óptica de gênero, é possível vislumbrar os deslocamentos transnacionais enquanto um processo que afirma a construção da masculinidade, como Woortmann (1990) ilustra a partir do seu trabalho de campo em Sergipe entre sitiantes, uma vez que “fazer trecho” e “enfrentar o mundo” são práticas que fortalecem a construção do sujeito “homem” e garantem a aquisição de um determinado “capital social”, tornando estas pessoas “superiores a quem nunca saiu do lugar” (Woortmann, 1990: 37).

Embora as “mulheres que ficam” sejam representadas socialmente como as guardiãs da casa e da propriedade, que deveriam esperar passivamente a chegada dos seus maridos e/ou filhos, o que se nota é que, a partir da ausência desses familiares, as mulheres são representadas, nos seus próprios termos, não como aquela que “sofre e espera” (Rumstain, 2015: 284), mas como “mãe e pai”, “homem e mulher ao mesmo tempo” e “viúva do marido vivo”. As estratégias que elas empregam para lidar com tais ausências põem em descoberto um processo de reestruturação dos seus papéis no âmbito familiar e comunitário, uma vez que passam a desempenhar novas tarefas, como a administração de recursos financeiros e a negociação de produtos para venda, além de ampliar sua circulação por outros espaços, como os mercados e bancos.

No contexto quilombola, além dos movimentos das pessoas entre as comunidades e Alcântara, município ao qual os povoados pertencem, e São Luís, a capital do estado, observa-se um movimento mais extensivo para as metrópoles do Sudeste do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro. As pessoas se deslocam sobretudo em busca de melhores meios de vida, sem que isso implique rupturas com as comunidades, o que sinaliza não somente a interdependência entre os espaços, mas a existência de uma rede de relações que os conecta. O que vemos são movimentos de pessoas, estruturados em torno de uma “casa agregadora” (Pina-Cabral, 2011PINA-CABRAL, João. 2011. “Agnatas, vizinhos e amigos: variantes da vicinalidade em África, Europa e América”. ANPOCS, Caxambú, mimeo. ) da comunidade, que possui eixos de extensão a distância em bairros periféricos de São Paulo e Rio de Janeiro, formando uma espécie de crescimento em rede, por onde circulam pessoas, bens e cuidados. Entender como os movimentos das pessoas se organizam a partir de uma casa agregadora permite acompanhar a mobilidade de pessoas da comunidade quilombola a bairros da capital paulistana e problematizar a dicotomia “lugar de origem/lugar de destino”, tão associada ao conceito analítico de “migração”, como já advertiram Palmeira e Almeida ( 1977PALMEIRA, Moacir & ALMEIDA, Alfredo Wagner. 1977. “A invenção da migração”. Projeto Emprego e Mudança Socioeconômica no Nordeste. Relatório Final. Rio de Janeiro: UFRJ/Finep/Ipea/IBGE, Museu Nacional-UFRJ, mimeo. ). Tal conceito homogeneíza práticas bastante diferenciadas de movimento de pessoas e impede o entendimento da diversidade dos sentidos dos deslocamentos. A ideia de que as pessoas, homens e mulheres, se movimentam e carregam com elas as relações que as constituem tem maior potencial epistêmico do que os sentidos difundidos de migração, pois nos possibilita compreender as relações tecidas e os retornos dessas pessoas à comunidade após mais de duas décadas nas metrópoles do Sudeste.

O caso de Seu Irã e Dona Maria do Carmo é bastante revelador, nesse sentido. Eles saíram da comunidade São João de Cortes (doravante SJC) na década de 1970, no momento do maior fluxo de pessoas para São Paulo e também para o Rio de Janeiro. Seu Irã deixou o povoado em 1974, e Dona Maria do Carmo em 1978; apesar de ambos serem de SJC, “conheceram-se mesmo” no Rio de Janeiro, onde viveram 25 anos. Casaram-se, tiveram filhos e voltaram para SJC em 1999. Enquanto estiveram no Rio, sempre que podiam, voltavam para as festas de São João, ocasião, aliás, em que trouxeram para serem batizados por parentes dois de seus filhos. Disseram-nos que os maranhenses e os “cortenses” – como se autonomeiam os moradores da comunidade de SJC – que moram no Rio de Janeiro se concentram no bairro de Campo Grande, espaço no qual podemos testemunhar o prolongamento das relações de vicinalidade e coabitação. Seu Irã, no princípio, morou em casa de parentes; depois que conseguiu “alugar um lugar para viver”, chamou suas duas irmãs para o Rio. Assim, Seu Irã passou de pescador e agricultor a operário na indústria têxtil naquela cidade.

Fato diferente ocorreu com Juliana, que voltou de São Paulo para a comunidade depois de 21 anos, e hoje mora com seu marido numa extensão da casa de seus pais. Seu Irã acumulou recursos, construiu sua casa em SJC e hoje vive da pesca e da aposentadoria. Juliana, no entanto, acumulou outro tipo de recurso: adquiriu competências e habilidades que a fizeram representante da comunidade no Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara. Antes dela, seu pai era o representante sindical. Apesar de a representação sindical ser um “negócio de família” (Comerford, 2003COMERFORD, John. 2003. Como uma família. Sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro, Relume-Dumará/ Nuap. ), tal atribuição não foi passada a seu filho já adulto, que permanecia morando na casa dos pais, mas para a sua filha, que, ao longo de sua trajetória de deslocamento, adquiriu as competências para esse exercício. Foi ela que aprendeu a manejar a linguagem adequada, usada na mediação com o sindicato.

É interessante notar que, entre os autores clássicos que trabalharam com a noção de mediação, foi Wolf ( 1971WOLF, Eric. 1971. “Aspects of groups relations in a complex society: Mexico”. In: SHANIN, Theodor (ed.). Peasants and peasants societies: selected readings. Harmondsworth, Penguin Books. ) quem primeiro a colocou em relação com “mobilidade” e “conexão”. Para o autor, àquela altura questionando a existência de “comunidades isoladas” no contexto mexicano, as comunidades contam com pessoas ou grupos de pessoas que estabelecem “a relação local-nacional”, os brokers , e essa capacidade de mediação decorre em larga medida de sua mobilidade (Valle, 2016VALLE, Carlos Guilherme. 2016. “Etnicidade e mediação como política e cultura”. In: VALLE, Carlos Guilherme. Etnicidade e mediação. São Paulo, Annablume, pp. 13-59. ). É nesse sentido que Juliana estava mais qualificada do que o irmão para receber a atribuição de representante sindical. A representação sindical também pode ser lida, neste contexto, como um “trabalho de cuidado”, que deve ser capaz de gerir relações entre pessoas.

Efeito semelhante da mobilidade extensiva, que tange a uma dimensão propriamente política da vida dessas comunidades, foi constatado entre as agricultoras do leste de Minas Gerais. Novas posturas e modos de agir são adotados por algumas mulheres que se engajam em organizações locais ou regionais, como o movimento sindical. As mulheres agricultoras que assumem um lugar de liderança adquiriram competências em seus movimentos, que possibilitam inserções em diferentes espaços públicos, a partir do desenvolvimento de suas práticas discursivas – a fala “pública” 12 12 É importante pontuar que, para as mulheres que passam a exercitar seu potencial de liderança a partir dos novos lugares que ocupam, o modelo de liderança almejado se constrói graças ao manejo das práticas discursivas: ter um bom uso da palavra, com a capacidade de construir um argumento e defender seu ponto de vista com credibilidade, é uma capacidade que ganha valor dentro dessas instâncias organizativas. Revela um processo de avaliação social das capacidades das lideranças emergentes, que passa pela competência de “produzir discursos de uma modalidade considerada adequada a esse tipo de evento público, ou seja, saiba falar bem, falar bonito, fazer discurso, ou simplesmente saiba falar” (Comerford, 1999, p. 91). . Isso mostra o dinamismo do processo de mobilidade: a conquista de novos espaços acarreta modificações nos seus modos de subjetivação, como se percebe na trajetória de Teresinha, uma agricultora que se tornou a primeira mulher a assumir o cargo de presidente no sindicato dos/as trabalhadores/as rurais de Simonésia/ MG, no ano de 2010, e que também passou a desempenhar um papel de “mediação” a partir desse novo cargo, no sentido expresso por Wolf ( 1971WOLF, Eric. 1971. “Aspects of groups relations in a complex society: Mexico”. In: SHANIN, Theodor (ed.). Peasants and peasants societies: selected readings. Harmondsworth, Penguin Books. ). Assim, ela relata “a luta” que vivenciou para se adequar a um modelo de gestão organizacional em que a “fala bonita” é determinante no processo de tomada de decisões e em que as mulheres vão adentrando no “núcleo duro” a partir das beiradas, “ganhando respeito” gradativamente em espaços que historicamente foram estritamente reservados aos homens, enquanto “porta-vozes” das configurações familiares e comunitárias. Assim, “tornar-se” liderança no ambiente sindical envolveu a aprendizagem de novas destrezas – como a “diplomacia” para lidar com conflitos e um jeito singelo de construir uma linha argumentativa nos seus discursos –, dentro de instâncias de interlocução no campo político poroso e conflitante 13 13 Aqui alertamos para as ambiguidades inerentes à dicotomia entre “público” e “privado”, que vem sendo reforçada pelas teorias liberais dos processos políticos e que tem sido alvo das críticas dentro dos estudos feministas. (Okin, 2008 ; Zelizer, 2000 ). A entrada das mulheres nas esferas enquadradas como “públicas” é associada a um processo de “politização”, na medida em que elas ampliem suas formas de mobilidade a partir da conquista da autonomia e o desempenho dos cargos de liderança. No entanto, isso não significa que a esfera que compreende “o doméstico” seja alheia às práticas políticas, como se torna evidente nos trânsitos entre a cozinha, o quintal e outros espaços contíguos, que envolvem uma rede de relações e produzem efeitos sociopolíticos. . Também, percebe-se o surgimento de novas formas de gestão que envolvem o rodízio entre os cargos e a realização de reuniões de modo horizontal com a diretoria ampliada; podem ser compreendidos como modos de cuidado que desafiam hierarquizações cristalizadas e a estagnação dos fluxos de poder nas estruturas organizacionais.

Como aponta Vincent ( 1987VINCENT, Joan. 1987. “A sociedade agrária como fluxo organizado: processos de desenvolvimento passados e presentes”. In: FELDMAN-BIANO, Bela (ed.). Antropologia das sociedades contemporâneas: método. São Paulo, Global, pp. 375-402. ), a Antropologia tem dado atenção, classicamente, à mobilidade das mulheres, de modo especial por meio do casamento. Em seu artigo, a autora chama a nossa atenção para o fato de que as mulheres camponesas/ agricultoras também se movem para as cidades em busca de trabalho e, ainda, que são atores importantes em processos de mudança estrutural em muitas sociedades. O fato de grande parte dos estudos de migração serem focados nos movimentos dos homens, como protagonistas desses fluxos, invisibiliza os modos de se movimentar das mulheres, os quais ampliam a escala de sua atuação e trazem repercussões sobre a teia de relacionalidades no âmbito familiar e da comunidade.

Assim como a “mobilidade extensiva” define os fluxos a partir das suas variações e deslocamentos espaciais a distância, daremos destaque, a seguir, à “mobilidade intensiva”, que dimensiona, a seu turno, essa circulação em lugares que, embora pareçam “estáveis e fixos”, propulsionam a circulação de pessoas, plantas e seres outros que humanos.

2. “O Saber-fazer” nos gestos de cuidado nos quintais: experiências da mobilidade intensiva

Nesta seção, o foco recai sobre os acontecimentos no plano empírico que exprimem as várias manifestações dos deslocamentos que são circunscritos aos espaços coextensivos à casa, como os quintais 14 14 Observamos que os quintais interagem com outros espaços agrobiodiversos como a roça, que, nos contextos quilombola e das agricultoras mineiras, deve ser pensada para além de um espaço de cultivo e, portanto, de base para as práticas econômicas. Partimos de uma visão sistêmica da correlação entre distintos espaços, como os quintais, capoeiras, matas; portanto, é legítimo falar de um sistema de roça , pois em torno dela se elabora um modo de vida com relativa autonomia, que envolve uma temporalidade específica, expressa em calendários agrícola, extrativista e cerimonial, mas não só, é também um espaço de socialidade cotidiana. . No caso das mulheres trabalhadoras rurais da região leste de Minas Gerais, os modos de cuidar se revelam a partir da consolidação de um arcabouço de saberes que se amadurecem no “fazer”, com base na prática vivida – principalmente no espaço do quintal –, um espaço no qual elas exercem sua autonomia na dinamização das trocas de plantas e sementes, na introdução de novas espécies e propagação de mudas e na criação de arranjos produtivos diversificados.

Os quintais, historicamente vistos como mera extensão do espaço doméstico, não apenas mostram uma produção variada de alimentos de valor nutricional e medicinal, mas também são locais onde se manifesta um amplo leque de práticas agroflorestais, como plantios de árvores em meio aos cultivos agrícolas, consórcios de plantas, plantações com base na sucessão natural de espécies e plantio de frutíferas em torno das moradias 15 15 Trabalhos antropológicos como o de Lewitzki ( 2019 ) endossam uma visão mais ampla das múltiplas funções do quintal enquanto um espaço voltado para a preservação da saúde e expressões de cura, no qual também se observam diferentes formas de sociabilidade, como a troca intensa de recursos e insumos entre familiares e vizinhos/as, que transitam pelo quintal e pela mata nos arredores das propriedades. . As experimentações protagonizadas por mulheres agricultoras envolvem a ressignificação dos quintais, uma vez que o roçado – que é considerado produtivo por excelência e que tem se mantido sob o domínio dos homens – deixa de ser o único lugar cuja produção se destina ao escoamento “para fora” e que estabelece uma relação com os circuitos de comercialização. Assim, destaca-se a entrada da produção agroecológica dos quintais dentro do circuito do Mercado Institucional das Compras Públicas 16 16 Aqui fazemos referência às políticas de compras públicas – PAA, Programa de Aquisição de Alimentos, e PNAE, Programa Nacional de Alimentação Escolar –, que foram criadas respectivamente em 2003 e 2009. , cuja renda garantiu a sustentação econômica de algumas famílias camponesas nos momentos mais “críticos”, quando houve oscilações no preço dos principais alimentos que foram plantados nos roçados e vendidos na escala local e regional, como o café.

Este processo dinâmico de aprendizagem – o que essas interlocutoras nomeiam de “aprender fazendo” – está ancorado em distintas concepções dos fenômenos da natureza, além de outros usos do tempo, dos recursos e dos espaços. O “cuidado” pode ser caracterizado como uma dimensão do “saber-fazer” (Woortmann & Woortmann, 1997WOORTMANN, Klaas & WOORTMANN, Ellen. 1997. O trabalho da terra. Brasília, Editora UnB. ), uma vez que, no conjunto de atividades agrícolas que realizam, evidencia-se uma postura de afeto tanto com o/a outro/a quanto com as forças da natureza, o que confere um tom singular ao arcabouço de técnicas e métodos que utilizam no campo da produção agrícola. As expressões de “cuidado” encontram-se imbricadas com as dimensões dos afetos, o que traz para o centro de nossa análise uma dimensão fenomenológica e imaterial, a qual possui rebatimentos sobre a intersubjetividade (Orozco, 2012OROZCO, Amaia Pérez. 2012. “Ameaça tormenta: a crise dos cuidados e a reorganização do sistema econômico”. In: FARIA, Nalu & MORENO, Renata (orgs.). Análises feministas: outro olhar sobre a economia e a ecologia. São Paulo, SOF. ), como veremos a partir dos exemplos a seguir.

Dona Rose, agricultora da comunidade Santa Terezinha no município de Sobrália/MG, aponta para uma série de aprendizados que integram este “treino” de escuta atenta aos “sinais” da natureza, muitos dos quais eram repassados de pais para filhos, seja fazendo “a capina”, seja usando “esterco” para chamar “outra qualidade de mato”. A sabedoria sobre o “modo de plantar” se revela na seguinte narrativa: uma determinada planta alimentícia ficou dois anos no mesmo lugar e começou a estagnar porque “não crescia mais”; no entanto, a partir do momento em que a mudou “do lugar”, começou a crescer com “mais força” (Weitzman, 2016WEITZMAN, Rodica. 2016. Tecendo deslocamentos: Relações de gênero, práticas produtivas e organizativas entre trabalhadoras rurais. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, PPGAS/MN. ). Dona Rose, entre outras agricultoras da comunidade Santa Terezinha/MG, conta que, por causa dessa experiência, decidiram mudar as culturas de lugar entre um ano e outro. Ela também destaca as estratégias empregadas para lidar com as forças da natureza que integram movimentos cíclicos, alegando que se deve saber agir de acordo com as demandas que o contexto da roça apresenta durante “toda parte do ano”, justamente porque “não há tempo parado”, isto é, a roça está eternamente em movimento. O desenvolvimento do “saber-fazer” implica a observação atenta de movimentações, graus de intensidade e ritmos, a partir do momento no qual “se colocam as mãos na massa” e se abre para experimentar outros modos de construir conhecimento. É um fenômeno que vai além de um processo estritamente focado nos atos de plantar e colher alimentos, referindo-se a um sistema de percepção afetiva do meio ambiente que é vivenciado corporalmente e que se avista pelos seus sons e cheiros (Carvalhosa, 2021CARVALHOSA, Natália. 2021. “Sinestesias de uma resistência: mobilidade, terra e narrativas na expropriação minerária de comunidades rurais em Conceição do Mato Dentro”. In: COMERFORD, James; CARNEIRO, Ana et al. (orgs.). Casa, corpo, terra e violência: abordagens etnográficas. Viveiros de Castro Editora Ltda., Faperj, PPGAS/UFRJ. ; Tsing, 2019TSING, Anna L. 2019. Viver em Ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília, IEB Mil Folhas. ).

A capacidade de desempenhar uma boa gestão das terras, que envolve uma familiaridade com suas sinalizações a partir de qualquer possibilidade de descompasso ou ruptura – o que se manifesta em um plano supostamente “oculto” – revela uma profunda compreensão dos ciclos da natureza e das dinâmicas de revitalização e regeneração. Nesse sentido, Dona Rose enxerga o “descontrole” que se revela nas forças da natureza – por exemplo, o crescimento excessivo do mato – como um indício do afastamento de uma forma de cuidado. Assim, ela alega que as novas gerações não conseguem fazer uma análise das condições deste “mato que vem demais”, o qual, do seu ponto de vista, surge justamente porque “a terra está sem fortaleza” e “o agrotóxico já enfraqueceu ela” (Weitzman, 2016WEITZMAN, Rodica. 2016. Tecendo deslocamentos: Relações de gênero, práticas produtivas e organizativas entre trabalhadoras rurais. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, PPGAS/MN. ).

Constata-se também entre as mulheres quilombolas de Alcântara o “trabalho do cuidado” como parte de uma teia de relacionalidades que conecta humanos e outros que humanos, neste caso as plantas, e que envolve uma capacidade perceptiva sobre as funcionalidades de cada uma delas dentro das práticas exercidas e dos espaços onde se situam: os quintais. Embora usados por todos como espaço de circulação e de reparos de equipamentos como as redes de pesca – instrumentos pertencentes a um universo masculino –, os quintais são cuidados, sobretudo, pelas mulheres. Os quintais quilombolas são agrobiodiversos: neles se encontram, quase invariavelmente, um ou mais pés de palmeira babaçu ( Attalea speciosa ) e várias árvores frutíferas, como no quintal de dona Elza, onde estão presentes murici ( Byrsonima crassifolia ), carambola ( Averrhoa carambola ), tamarindo ( Tamarindus indica ), carnaúba ( Copernicia prunifera ), coqueiro ( Cocos nucifera ), canhambuca ou cujubeira ( Crescentia cujete ); esta, “árvore que dá cueira para fazer cuia”, como ela nos ensina, quando se abrem “as duas bandas”, ao receber alça e corda, transforma-se em balde, utensílio importante nos afazeres da casa. O quintal de dona Nôris ainda tem juçara (açaí), limão-verdadeiro, lima, limãozinho, acerola, manga, laranjão, goiaba, coqueiro e limão-tanja. Essa diversidade só é possível em função dos cuidados das mulheres no manejo das plantas dos quintais: são elas que as fertilizam com os resíduos de suas cozinhas e as cultivam, além de se envolverem nas práticas de reciprocidade por meio das doações e trocas de plantas e sementes com suas vizinhas.

Esses quintais são referidos pelos nomes das mulheres e, mais do que um “espaço produtivo”, são voltados para a saúde e a cura. Neles se encontra um “jirau de temperos” e que, além de pimenta, cebolinha, “hortelã de folha grossa” e manjericão, contém plantas terapêuticas, como o “trevo de macaquanim”, para estancar hemorragia, e o “paticholin”, para constipação, como nos ensina dona Nôris. Em outros cantos dos quintais manejados pelas mulheres se encontram capim-santo, santa-quitéria – recomendada para males do estômago como úlcera, gastrite e ainda “agonia” (dor no peito) e cansaço –, itaboquinha-roxa, usada no “desmantelo de barriga de criança”, abrandando a “criança manhosa” e a “barriga de criança”; quina, recomendada contra febre, infecção e banho de asseio; maravilha, “boa para o coração”; e pau-d’angola, usado no banho. Às mulheres cabem os cuidados cotidianos com a saúde dos corpos familiares e também de vizinhos, que acorrem à sua “ajuda”, categoria êmica que, no contexto quilombola e das agricultoras de Minas Gerais, remete à reciprocidade entre parentes e vizinhos, parceiros de muitas trocas.

Além disso, há aspectos eloquentes da relação entre humanos e plantas – elas podem indicar ao pai, à mãe ou aos avós, por exemplo, se uma criança será (ou não) bem-sucedida, no seu futuro, com os roçados: seu Antonio, esposo de dona Nôris, abriu roça para Mateus, seu neto, quando ele tinha apenas dois anos 17 17 Como me explicou, uma roça menor, próxima à casa, não no centro , local distante das moradas, onde abrem suas roças familiares e que pode se situar cerca de uma hora a pé ou de canoa, um pouco mais ou um pouco menos, conforme a localização. . Seu Antonio me explicou que “põe o nome da criança para ver se ela tem sorte na roça”. A roça de Mateus era cuidada por sua mãe, Juliana. Certo dia, ao ver seu Antonio chegar com mandioca da “roça de Mateus”, dona Nôris exclamou: “macaxeira do bebê!”. Assim como o cuidado do quintal, coube à mãe de Mateus o cuidado da “roça do bebê”, para que, como a criança, ela prosperasse. Digna de nota é a proximidade da “roça do bebê” com o quintal familiar, ambos cuidados principalmente pelas mulheres.

É importante observar que o quintal é um espaço que permite a circulação de crianças entre casas, pois não é separado por cercas, sobretudo nas casas de avós e suas filhas com netos, constituindo-se como um espaço de trocas de alimentos, de plantas e de cuidado. Este último aspecto vê-se atualizado na periferia paulistana nas casas com as quais a “casa agregadora” da comunidade quilombola SJC, isto é, de onde partiram e para onde voltam as pessoas que estão em São Paulo, estende as suas relações. No caso examinado, duas casas conjugadas foram construídas em um mesmo terreno por um par de irmãos casados com mulheres de SJC. Elas partilham um corredor-quintal, onde seus filhos brincam e recebem a atenção de suas mães – solução que coloca em curso as relações de vicinalidade que são gestadas em contextos de coabitação. Tal como na comunidade quilombola, a circulação de crianças entre as casas se mantém de forma intensa na metrópole paulistana – aqui está um aspecto da mobilidade intensiva, que se realiza a partir da mobilidade extensiva que ocorreu com o deslocamento de pessoas da comunidade de SJC para São Paulo.

Esses aspectos que evidenciam a socialidade e os afetos entre pessoas e plantas são encontrados no caso pankararu, em que o movimento intensivo é percebido em lugares como o quintal a partir da relação das rezadeiras e parteiras 18 18 As rezadeiras e parteiras são especialistas rituais que possuem o “dom”, capacidade para estabelecer uma intercomunicabilidade com os encantados. Além delas, podemos destacar pais e mães de praiás – quem zela e cuida do roupão (vestimenta ritual) – e as cantadeiras que participam das mesas de cura. . Na aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco, o quintal é o lugar onde se plantam frutos – banana, mamão, coco verde, caju etc. – e plantas consideradas “sagradas” 19 19 A noção de sagrado adquire uma concepção local, pois é considerado aquilo que está relacionado com o reino encantado, lugar de morada das entidades e que exerce controle e proteção dos recursos naturais, como serrotes, serras e rios. , como pião-roxo ( Jatropha gossypiifolia ), as folhas da quebra-faca ( Croton micans ), o alecrim-de-caboclo ( Baccharis sylvestris ) e o junco ( Cyperus esculentus ), usadas para o lambedouro – bebida à base de xarope, água e mel – e banhos rituais. Tais plantas, no entanto, não podem ser colhidas por qualquer pessoa, como ensina a rezadeira Josivete, pois “é preciso estar limpo”, noção que organiza a cosmologia pankararu e indica a importância de resguardos sexuais e alimentares para que o encantado fique próximo, oferecendo proteção, e não se vingue.

O quintal é o lugar onde pode ocorrer o prato, pagamento de promessa que participa de um sistema de prestação e contraprestação, realizado quando alguém fica doente e faz um pedido aos encantados para ajudar no processo da cura. Esse ritual foi realizado na casa da mãe de Josivete, “a dona do prato”, isto é, aquela que estava enferma e pediu cura às entidades. “O prato é uma alegria”, é uma festa em que participam parentes e encantados para “comer pirão, beber garapa e dançar toré”. Quando a pessoa se cura, ela fica na “obrigação” de oferecer um alimento – arroz, pirão (espécie de mingau feito à base de farinha de mandioca) e carne (proteína que pode ser caprina, bovina ou peixe) a seus parentes humanos e não humanos.

Durante a realização do prato, as mulheres precisam estar “preparadas”, ou seja, em resguardos sexuais e alimentares para poderem manusear os alimentos. Neste aspecto, podemos perceber uma divisão sexual e espacial entre mulheres e homens. Nessa ocasião do ritual, as mulheres cozinhavam o pirão num fogo no quintal, enquanto os homens permaneciam num cômodo da casa fumando o campiô, “se concentrando”. A fumaça do cachimbo ritual além de ser um elo de comunicação com os encantados, constitui-se uma malha de proteção contra forças ameaçadoras. Cabe ressaltar que essa diferenciação sexual não é compreendida – tal como advertido para os contextos das quilombolas de SJC e das agricultoras do leste mineiro – como se as mulheres fossem destituídas de agência, pois a domesticidade é produtora da política como dimensão intrínseca das dinâmicas sociais (Strathern, 2006STRATHERN, Marilyn. 2006. O gênero da dádiva. Campinas, Editora da Unicamp. ).

As relações de cuidado a partir das possibilidades de cura centralizadas no espaço do quintal se apresentam de várias maneiras. As parteiras possuem uma relação de cuidado com a terra 20 20 Essa relação de cuidado com a terra é também percebida em relação aos “tiradores de croá”, pessoas autorizadas para colher o croá ( Neoglaziovia variegata ), semente endêmica da região Nordeste e cujas fibras são utilizadas para a feitura do “roupão”. , uma vez que pedem autorização aos encantados para colher e manusear as plantas sagradas, como aquelas usadas no período de gestação, parto e pós-parto (Lovo, 2020 LOVO, Arianne Rayis. 2020. “‘Mulheres preparadas’: fazendo corpos e ‘caminhos’ a partir das rezadeiras pankararu”. Ruris, Campinas, SP, 12(2): 91-120, set. ( https://doi.org/10.53000/rr.v12i2.4249 ).
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). É comum elas colocarem ervas específicas no ventre da parturiente para que a “dona do corpo” não se vingue e “volte ao seu lugar”, pois essa entidade controla o funcionamento reprodutivo da mulher. É no quintal também onde se enterra a placenta da mulher, como explicou a parteira Maria das Dores, conhecida como Dora, que habita a aldeia Breja dos Padres: “Ela não pariu em casa? Então! A gente manda fazer um buraco e planta ela [a placenta] no quintal dela”, sinalizando uma relação de extensão entre terra e pessoa.

Dora conta que, embora os ensinamentos dessas práticas sejam de tradição familiar, pode ocorrer da menina “se tornar parteira por acaso” . Sobre isso, ela relatou uma situação em que foi chamada às pressas para fazer um parto. Na ausência de uma aprendiz, chamou a filha da gestante, de doze anos, para auxiliá-la. A menina, atenta, permaneceu ao seu lado, vendo, ouvindo e imitando os procedimentos que eram conduzidos e solicitados. Esse fato demonstra que o conhecimento não é produzido apenas pela tradição familiar, mas através da capacidade inventiva da pessoa, como vimos no “saber-fazer” das mulheres agroecológicas e quilombolas. Este processo dinâmico de aprendizagem nos remete às perspectivas analíticas de Ingold ( 2010INGOLD, Tim. 2010. “Da transmissão de representações à educação da atenção”. Educação, Porto Alegre, 33(1): 6-25, jan./abr. ), quando propõe que a cognoscibilidade humana também se dá por skills – habilidades em que a pessoa aprende imitando outra, numa “educação pela atenção”. Assim, a partilha dos conhecimentos gerados pelas mulheres se expressa a partir da troca de suas práticas, técnicas e experimentações no “saber-fazer” com a gestão da terra.

3. Cuidado como cura e controle: dimensões protetivas e disruptivas

As manifestações de cuidado, que, como vimos, não são estáticas, mas “se movimentam” no cerne das práticas agrícolas, extrativistas e terapêuticas, também evocam relações atravessadas por gestos de controle e proteção, que sinalizam o potencial disruptivo do cuidado (Bellacasa, 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis, University of Minnesota Press. ). Tal fato nos alerta para uma vertente significativa abordada nos estudos sobre o cuidado: o lugar das dissonâncias nas práticas concebidas como “de cuidado”, as quais evidenciam que situações conflitantes não são ausentes dos processos de “cuidar com” (Maizza, 2020 MAIZZA, Fabiana. 2020. “Especulações sobre pupunheiras ou cuidar com parentesplanta”. In: CABRAL DE OLIVEIRA, Joana et al. Vozes vegetais, diversidade, resistência, vozes da floresta. São Paulo, UBU( https://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n2a102 ).
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) humanos e não humanos, mas inerentes a eles. Nesse sentido, “cuidado” se expressa a partir de formas de proteção diante das ameaças oriundas da intervenção humana que acarretam efeitos nocivos nos processos orgânicos da natureza, como é o caso do uso dos “venenos” na região leste de MG. Manifesta-se também por meio do respeito a uma ordem de relações com entidades – donos e/ou encantados – para não provocar disrupções, como veremos a partir das experiências das mulheres quilombolas e indígenas.

No contexto da região leste de Minas Gerais, percebe-se que a contingência de uma desestabilização das forças da natureza a partir da interferência humana traz para cena a categoria chave de controle com um viés generificado. De acordo com as agricultoras da região leste de Minas Gerais, o padrão agrícola que seus maridos e filhos tendem a corroborar leva a um estado de descontrole , justamente porque prioriza resultados rápidos que possibilitam um retorno econômico, sem atentar para os efeitos perniciosos dos métodos utilizados. Assim, o cuidado aparece como uma força propulsora para se defenderem contra os perigos que possam levar à degradação ambiental ou à dissolução de laços familiares e comunitários. Exercer gestos de “cuidado” se vincula a uma tentativa de fazer uma boa gestão da terra, que possibilita não apenas defendê-la contra os perigos iminentes, mas também aumentar sua capacidade de resiliência e produtividade ao longo prazo.

O veneno representa um código acionado para falar das margens de agência e escolha. Aponta para os limites de uma postura de cuidado que se expressa por meio de um mecanismo de “controle”, pois não apenas os atos dos “outros” fogem do seu campo de governabilidade, mas os próprios insumos, ao se espalharem pelo ar, tornam-se vetores incontroláveis que ocasionam danos em diferentes graus aos seres vivos (pessoas e plantas). Os insumos químicos desestabilizam não somente a natureza 21 21 Cabe salientar que rege aqui uma visão idealizada da natureza, como um lugar inculcado de princípios de afluência, complementaridade e consonância, em que qualquer força que vem de fora é potencialmente maléfica justamente porque rompe a ordem preeminente. stricto sensu –, mas também representam uma ameaça iminente que potencialmente pode fomentar cisões entre universos distintos, uma vez que, no âmbito local, existe uma demarcação entre aqueles/as que fazem uso de agrotóxicos e aqueles/as que optam pela agroecologia, o que acarreta clivagens dentro da “comunidade moral” (Bailey, 1971BAILEY, Frederick George. 1971. Gifts and poisons: the politics of reputation. Oxford, Basil Blackwell. ).

Desempenhar gestos de “cuidado” com a natureza e construir um muro de proteção contra ameaças e perigos é um trabalho que exige esforço. Suas práticas acarretam formas distintas de conceber os fluxos da natureza e os modos de produzir alimentos e relações que não são consensuadas. São decorrentes de um processo de negociação constante com estes outros – a maior parte deles seres masculinos – maridos e filhos –, que muitas vezes exercem pressões para que o uso dos insumos químicos possam prevalecer na maior parte dos espaços da propriedade rural. Um dos desafios que elas enfrentam dentro de um jogo constante de negociação é o mito de que haveria um aumento na quantidade da produção a partir da ajuda destes produtos complementares, que juntamente constituem um tipo de pacote: adubo, biofertilizantes e agrotóxicos 22 22 Ressaltamos que, nesta região, há o uso de “roundup” nas plantações, mesmo de forma tímida. “Roundup” é um herbacida que chegou ao mercado há dez anos, e tem como principal função “matar o mato”. As pessoas que tendem a ser críticas do seu uso, especialmente as mulheres agricultoras, argumentam que “o mato é o esterco da terra”, e, ao “matar o mato”, a terra fica pobre, sem os microorganismos (minhocas etc.) que “dão vida” para as plantas. .

Também as noções de “proteção e controle” como formas de cuidado, embora em situações muito diferentes das descritas para o caso das agricultoras de Minas Gerais, são encontradas no contexto quilombola estudado. Neste campo etnográfico, as noções de proteção e controle estão associadas à noção de dono. Enquanto donos , as pessoas cuidam do lugar, assim como outros seres, o “invisível” ou “encantados” 23 23 Fausto argumenta que a categoria “dono” é “constituinte da socialidade amazônica e caracteriza interações entre humanos, entre não humanos, entre humanos e não humanos e entre pessoas e coisas” (2008: 329). Já Galvão (1976) chamava a atenção para a sua importância nos contextos ameríndios. Fausto explora as várias denotações dos termos vernaculares para a categoria “dono” entre diversos povos da Amazônia, concluindo que “em todas essas denotações, está se definindo a relação de um sujeito com um recurso: o dono seria o mediador entre esse recurso e o coletivo ao qual pertence” (Fausto, 2008: 330). . Sugerimos que existe uma gramática a orientar as relações entre as pessoas, mas também entre pessoas e lugares e entre humanos e outros que humanos, como pudemos observar em outro povoado quilombola, Itapuaua. Ali nos contaram que na Ponta Preta “não pode roçar porque tem o ‘dono’ lá”.

Os relatos recolhidos se referem a punições a abusos aos ambientes naturais, como, por exemplo, abrir roças onde não se deve. Um caso relatado foi o de um senhor que, acometido de um torpor por incursionar por um lugar que sabidamente tem dono, se perdeu na mata; tentou dia e noite voltar para a sua casa, sem sucesso. Ele foi encontrado numa situação de grande fadiga. Esse senhor infringiu uma gramática de relacionamentos entre pessoas, encantados e porções do ambiente. Para se curar completamente foi levado a um ritual de cura, no qual sua saúde se restabeleceu com a mediação dos encantados, agentes protetores que são a um só tempo agentes de “malfazejos” e de cura. Esse caso é um bom exemplo do potencial disruptivo do cuidado (Bellacasa, 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis, University of Minnesota Press. ), que, assim como no contexto pankararu que veremos adiante, demonstra a hostilidade e o afeto como elementos constitutivos das relações humanas e não humanas.

É importante mencionar que neste contexto etnográfico, os donos-encantados não são espíritos dos mortos; pertencem a outra categoria de seres espirituais. São protetores dos humanos, mas podem castigá-los severamente; protegem também lugares, como a Ponta Preta: “Lá a gente roça até um bocado [até a certa altura do lugar], lá tem um caminho que nunca suja, nunca entope!”. Ao dizerem que “nunca suja”, “nunca entope”, estão sugerindo que “alguém cuida”, isto é, tem dono . Apesar dos encantados terem por morada corpos d’água e matas, também caminham e participam dos modos de cuidar em suas relações com a terra e pessoas.

É através da lógica do “cuidado” e do “uso comum” que podemos entender a vigilância dos mais velhos da comunidade quilombola de SJC em relação às áreas de uso comum, como quando Seu Nelson foi verificar se “alguém de fora” estava “tirando areia do Mirinzal”, porção do território pertencente aos “filhos daquela terra” e de onde extraem areia para as necessidades das suas casas de morada e das casas de forno 24 24 O Mirinzal é um dos centros , onde roças são abertas. Para entender este episódio, é preciso ter em conta que as áreas de apropriação comum como os centros são de responsabilidade de todos, e, por isso mesmo, podem ser palco de contradições entre interesses de alguns indivíduos e os dos demais moradores. Sobre o mesmo episódio, uma quilombola comentou: “Ele [aquele que contratou o serviço] nem é filho daqui. Eu não acho certo”. O direito de acesso, exploração e controle dos recursos comuns do território são expressos, nesse caso, na linguagem do parentesco; decorrente disso, estabelece-se uma fronteira – movediça, há que se dizer – entre os “de dentro” e os “de fora”. . Estava ele a exercer a proteção e o controle, expressos através do verbo cuidar , como aparece nas falas dos nossos interlocutores: “a gente usa [a terra], a gente cuida”.

Entre as mulheres agroecológicas do leste de Minas Gerais, outra questão que se observa no cerne desta prática de cuidados é uma preocupação com as formas mais duradouras e sustentáveis de “cura” relativas às “más energias” que são desencadeadas nos espaços da produção agrícola. As agricultoras classificam os venenos como transmissores de uma “doença invisível e silenciosa”, justamente porque os efeitos não são facilmente perceptíveis e as pessoas não conseguem enxergar suas consequências de forma imediata. Como uma das agricultoras, Marilene, aponta: “Se jogasse roundup e as pessoas morressem rapidinho, todo mundo teria medo. Mas, como não é assim, e as pessoas vão morrendo aos poucos, ninguém acredita”.

A ação difusa dos agrotóxicos e dos outros insumos químicos – que debilitam não apenas as terras, mas também afetam as corporalidades – faz com que elas enxerguem as técnicas classificadas como “agroecológicas” enquanto caminhos possíveis para a afirmação de um outro projeto de desenvolvimento agrícola que esteja alinhado com o fortalecimento de processos que foram fragilizados. Desta maneira, ao fabricar um “remédio natural” para combater pragas que conseguem atacar e atingir “seu alvo” com mais facilidade em função das fragilidades ocasionadas por práticas convencionais, por exemplo, elas estão endossando um dispositivo de “cura”. Práticas que têm a intenção de fortificar a qualidade dos solos depois de um processo gradual de desgaste são estratégias de “cura” com repercussões sobre as temporalidades, uma vez que inegavelmente leva mais tempo para perceber os impactos de tais medidas perante o grau de agravamento dos danos.

O “remédio natural” que salva terras e corpos, como propõem as mulheres agricultoras agroecológicas do leste mineiro, nos evoca outras práticas de cura entre quilombolas, do Maranhão, e pankararu na cidade de São Paulo. As plantas têm lugar importante nos rituais de cura encontrados em alguns povoados do território étnico de Alcântara, e elas estão presentes desde o momento do “salvamento” do espaço, que consiste em lavar o chão com “mato cheiroso” para purificá-lo 25 25 Não cabe aqui a descrição do ritual de cura – brincadeira de cura ou pajelança , como a ele se referem – que acompanhamos, mas vale mencionar que, no ritual observado, foi realizada cura por sucção e com maracá, além do uso da fumaça e do preparo com ervas. Uma descrição completa encontra-se em Pietrafesa de Godoi ( 2023 ). . Neste universo é importante destacar a eficácia intrínseca de certos vegetais, as “ervas da feitiçaria”, que têm suas propriedades terapêuticas liberadas pelos pajés e “pajoas”, agentes qualificados para o preparo das plantas. Como foi dito pelo pajé certa vez: “se for pra curar, eu curo, se num for, eu falo: leva pro médico! De médico, se ele num der conta, vem cá”. Essa fala foi reiterada por sua filha, que passou a realizar os rituais de cura depois da morte do pai, em 2015. Destacamos um ritual de cura “com as ervas da feitiçaria”, no qual a suspeita era de que a pessoa havia “se ferido por coisa-feita”, isto é, por algo que um desafeto lhe havia causado – o rapaz tinha uma ferida no pé que não conseguiu tratar “com remédio da farmácia”. A consulta ao pajé é muito comum nesses casos para reparar, ainda que temporariamente, essas “desuniões” entre pessoas, pois acredita-se no poder destruidor do “feitiço”.

Pode-se dizer que o próprio feitiço faz parte de um sistema maior de trocas, que implica disputas e reparações. Nos rituais se processam reparações de relações postas em risco, através da ação e mediação dos encantados. Assim, no contexto quilombola, o ritual pode ser visto como um dispositivo de gestão da proximidade e da distância entre pessoas, parentes e vizinhos. As pessoas se utilizam dos serviços médicos fora de suas comunidades, e, às vezes, recomendados pelo pajé, mas isto se dá conjuntamente com as práticas de cuidado locais, entre as quais a cura xamânica tem lugar importante. Essas práticas não podem ser compreendidas fora de um sistema de relações de interconhecimento que envolve famílias e vizinhanças e que incorpora as relações entre pessoas e invisíveis.

No contexto pankararu, as práticas de cura informam modos de cuidar que envolvem os acordos estabelecidos entre os/as especialistas rituais e os encantados. Em São Paulo, há um protagonismo de mulheres que praticam algum tipo de cura – rezadeiras, benzedeiras, cantadeiras –, fato que as diferencia em suas técnicas e tipos de reza. Há aquelas que “rezam com ramo” ou “rezam com o maracá”, como explicou a rezadeira Maria Lídia. “A reza com ramo é diferente da reza do maracá. Rezando com o ramo você não tá chamando pelos encantados.” Essa distinção é importante, pois sinaliza quem pode chamar pelos encantados, ou seja, quem possui o “dom”, categoria êmica que indica que a pessoa foi escolhida e agraciada pelas entidades com habilidades específicas para realizar determinadas atividades.

As rezadeiras são chamadas para fazer o primeiro diagnóstico quando alguém fica doente. Em comunicação com os encantados, elas sinalizam se tal doença é “da ordem dos encantados” ou dos “homens da caneta” (médico), – prática que se aproxima do que foi visto no contexto quilombola. A visão da “doença” é compreendida como o resultado de um desequilíbrio cosmológico que envolve a relação com os encantados maus, bichos ruins, caiporas etc. Entre essas doenças, podemos citar a flechada – que é o caso mais grave –, pois pode levar a pessoa à morte caso não seja socorrida a tempo, como explicou a rezadeira Josivete. Ela conta que estava numa mesa de cura quando “teve a visão e viu que sua filha corria perigo”. Ao chegar em casa viu a bebê no chão com uma “rodela preta no umbigo”, fato que, segundo ela, indicava a flechada. Ela relata que a flechada “pegou em sua filha por ela ter o corpo aberto”, ou seja, suscetível às ameaças de seres malignos. Por isso que, ao longo do ciclo da vida da pessoa, é fundamental realizar os rituais para manter corpos fechados, isto é, protegidos pelas entidades.

Os encantados possuem desejos e vontades, e atender a essas necessidades evidencia um modo de ação, porque, nessa relação, hierarquizam posições, mas sem submetê-las a mando ou coerção. É a partir dessa lógica da consideração, em que “estar fora da consideração de alguém ou não manter uma relação de reciprocidade equivale a uma perda de humanidade” (Kelly & Matos, 2019 KELLY, José Antônio & MATOS, Marcos A. 2019. “Política da consideração: ação e influência nas terras baixas da América do Sul”. Mana, 25(2): 391-426. ( https://doi.org/10.1590/1678-49442019v25n2p391 ).
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, p 391-400) e de um “pensar no outro” (Maizza & Oliveira, 2022 MAIZZA, Fabiana & OLIVEIRA, Joana Cabral de. 2022. “Narrativas do cuidar: mulheres indígenas e a política feminista do compor com plantas”. Mana, 28(2). ( https://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n2a102 )
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), que o acordo com tais entidades acontece. A vingança desses seres pode causar um desequilíbrio no cosmos, na medida em que, afastando-se, deixa o corpo da pessoa suscetível a forças malignas que causam adoecimento. Esse aspecto ambivalente do cuidado apresenta a dimensão dissidente do cuidar (Bellacasa, 2017BELLACASA, Maria Puig de la. 2017. Matters of care. Speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis, University of Minnesota Press. ), pois o cuidado envolve uma relação de perigo, em que a hostilidade dessas entidades precisa ser amenizada com as “obrigações” e os resguardos.

Esse mecanismo de proteção e controle é também exercido aos elementos rituais (campiô, roupão), lugares (serrotes, cachoeiras etc.) e aos “recursos naturais” da mata. Utilizar tais “recursos” de forma desmedida pode provocar a ira das entidades, como a caipora, por exemplo, que pode lançar flechadas em crianças que “roubam as frutas de imbu e murici”. Tal entidade, assim como em outros contextos etnográficos, detém controle dos animais e da flora, fazendo uma gestão dos “recursos naturais” (Almeida, 2013 ALMEIDA, Mauro. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. Revista de Antropologia da UFSCar, 5(1): 7-28, jan.-jun. https://doi.org/10.52426/rau.v5i1.85
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: 18).

As rezadeiras relatam que é preciso “lembrar” dos encantados, agradando-os. Lembrar, no entanto, não remete a um ato de memória, mas a um dispositivo que aponta para um conjunto de ações que mantêm o acordo com a entidade. Esquecer deles coloca em risco a ciência pankararu, “enfraquecendo-a”. A “ciência pankararu” diz respeito ao conhecimento que é gerado a partir da comunicação com os encantados e outros seres intangíveis, podendo ser transmitida por sonhos e visões. Não enfraquecer a ciência, neste caso, envolve a tentativa de se alinhar espiritualmente com estas entidades, visando a evitar o agravamento de qualquer indício de hostilidade ou dissonância que acarreta em distanciamentos.

Considerações finais

Ao tratar da inter-relação entre “movimento” e “cuidado”, procuramos trazer uma nova perspectiva para os debates que têm sido realizados, por vezes de forma apartada e dissociada, sobre estas temáticas. Ao fazer isso, compreendemos os “modos de cuidar” como parte de uma teia de relacionamentos que é bastante extensiva e elástica, englobando pessoas e outros seres tangíveis, como as plantas e a terra, e intangíveis, como os encantados. Propusemos também que os modos de cuidar, embora não sejam restritos ao universo feminino, nele, são um eixo organizador das relações sociais entre indígenas, quilombolas e agricultoras, seja através do cultivo e usos das plantas, seja através dos gestos de vigilância e controle sobre lugares e ações entre humanos e outros que humanos.

Nas três situações etnográficas, destacamos como a mobilidade extensiva é produtora de efeitos sociopolíticos. Isso foi observado nos casos de mulheres quilombolas e agricultoras, em que os movimentos ampliam o escopo dos cuidados, estendendo-os a uma dimensão política importante como a da representação sindical, enquanto um modo de cuidar que exige habilidades nas relações entre atores distintos. No caso pankararu, o movimento extensivo é percebido entre pessoas e encantados que circulam entre aldeia e cidade, fazendo a gestão das relações através das práticas de cura.

Destacamos as práticas de cuidado das mulheres no e a partir do quintal, articuladas ao movimento que qualificamos de intensivo, inspiradas em Carneiro e Daianese ( 2015 CARNEIRO, Ana & DAINESE, Graziele. 2015. “Notas sobre diferenças e diferenciações etnográficas do movimento”. Ruris, 9(1), mar. ( https://doi.org/10.53000/rr.v9i1.2079 )
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). O cultivo, o manejo e o “controle” dos processos produtivos vão na contramão da assimilação de suas terras e plantas como meros recursos destinados ao mercado. Tais práticas engendram um conhecimento a partir do “saber-fazer” das mulheres quilombolas, indígenas e agricultoras e podem ser percebidas como formas contra-hegemônicas de saberes que confrontam o ideário convencional da racionalidade científica, em consonância com a crítica feita por Stengers (2002). A autora adverte que a consolidação da ciência moderna, como o saber legítimo, só foi possível através da deslegitimação de saberes considerados “não científicos”. Os três contextos desvelam formas de “contrapor” as lógicas da ordem hegemônica, a partir de outros modos de agir e de costurar a existência. Entendemos que este confronto não se dá de forma organizada, mas transparece nas práticas e saberes das mulheres, assemelhando-se ao que Scott ( 1985SCOTT, James C. 1985. Weapons of the weak: daily forms of peasant resistance. New Haven, Yale University Press. ) nomeia formas “cotidianas de resistência”. Tais formas se dão por meio das práticas de cura, que produzem parentes e que fazem a gestão da proximidade, da distância e das disrupções entre pessoas e outros que humanos, assim como por meio das relações tecidas com a terra e as plantas.

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    Utilizamos a expressão “outros que humanos” ( other-than-human ), cunhada por Marisol de la Cadena ( 2018 DE LA CADENA, Marisol. 2018. “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (69): 95-117. DOI: ( http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p95-117 ).
    http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901...
    ) para se referir à pluralidade de seres humanos e não humanos que participam da composição do cosmos. Assim como La Cadena, outros autores/as vêm apostando em noções que questionam a centralidade da agência e do protagonismo humano e que mostram a intercomunicabilidade entre humanos e não humanos (Descola, 2005DESCOLA, Philippe. 2005. Par de-lá nature e de-lá culture. Paris, Éditions Gallimard. ; Ingold, 2011INGOLD, Tim. 2011. Being alive: essays on movement, knowledge and description. London, Routledge. ; Haraway, 2003HARAWAY, Donna. 2003. The companion species manifesto: dogs people and significant otherness. Chicago, Prickly Paradigm Press. , entre outros/as).
  • 2
    Atualmente, o povo pankararu encontra-se localizado em sua maior parte na Terra Indígena Pankararu (TI Pankararu) e Terra Indígena Entre Serras (TI Entre Serras), em Pernambuco. A localização dessas TI’s é parte da configuração territorial dos antigos aldeamentos realizados pelas missões jesuíticas e que remete a um quarto aldeamento, chamado Brejo dos Padres, próximo às margens do rio São Francisco, que, segundo a memória ancestral compartilhada, foi uma “doação imperial” feita a uma “missão religiosa que aldeou seus antepassados durante os séculos XVIII e XIX” (Arruti, 1996ARRUTI, José Maurício. 1996. O reencantamento do mundo. Trama histórica e arranjos territoriais Pankararu. Rio de Janeiro, Tese de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 24-32). Em São Paulo, o grupo encontra-se concentrado, sobretudo, no bairro do Real Parque, zona sul da capital paulista, e em outros bairros da região metropolitana da capital paulista.
  • 3
    As comunidades quilombolas de Alcântara resultam em sua maioria da desagregação de antigas fazendas de algodão e de cana-de-açúcar, que se deu ao longo do século XIX. Ordens religiosas também possuíam fazendas na região, como a Companhia de Jesus, que fundou em 1722 um aldeamento ao fundo da Baía de Cumã, dando-lhe como padroeiro São João. No início da segunda metade dos setecentos, coloca-se em curso o projeto pombalino para o Estado do Maranhão e Grão-Pará, decretando o fim da escravidão dos índios e retirando, em 1757, o poder temporal dos missionários religiosos sobre os aldeamentos. Com isso, os antigos aldeamentos foram em sua grande maioria transformados em vilas de camponeses, como nos informa Karasch ( 1993KARASCH, Mary. 1993. “Catequese e cativeiro: política indigenista em Goiás – 1780- 1889”. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. ), ou em lugares, como nos informa Lopes ([ 1957LOPES, Antonio. [1957] 2002. Alcântara. Subsídios para a história da cidade. São Paulo, Siciliano. ] 2002). Naquele momento, o tráfico de escravizados africanos para a região foi intensificado. Nas terras do antigo aldeamento encontra-se uma das comunidades quilombolas tratadas aqui. Esse é o contexto em que índios desaldeados, ex-escravizados livres e quilombolas passam a construir a sua autonomia, configurando povoados, hoje reconhecidos como comunidades remanescentes de quilombo. Para melhor entendimento deste contexto, ver Pietrafesa de Godoi, 2023PIETRAFESA DE GODOI, Emília. 2023. Devir Quilombola na Terra do Santo: a tessitura de um mundo composto. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens Edições. .
  • 4
    Agroecologia é uma proposta de um modelo de organização “sustentável” para a agricultura brasileira que vem sendo construída desde os meados dos anos 1990 por um conjunto de grupos e movimentos sociais compostos por agricultores/as, além de organizações de assessoria (técnicos/as e pesquisadores/ as), e que se contrapõe ao modelo da Revolução Verde, amplamente difundido no país a partir da década de 1960. Uma dimensão que se destaca é sua postura crítica perante o viés economicista que tem predominado nos estudos agronômicos, na tentativa de recuperar uma visão mais holística e sistêmica dos processos produtivos, que tem como base a perspectiva de “sistemas de produção” ou “agrossistemas”.
  • 5
    Faz-se necessário reconhecer a capilaridade das abordagens que têm sido adotadas para lidar com o tema de “cuidado” com base em diferentes abordagens feministas, tais como a fronteira difusa entre as manifestações de “cuidado” e o “trabalho” a partir do referencial teórico da Economia Feminista (Carrasco, 2006CARRASCO, Cristina. 2006. “La economía feminista: una apuesta por otra economía”. In: VARA, María Jesús. Escritos sobre género y economía. Madrid, Akal. ); a ressignificação de uma “ética de cuidado” a partir da óptica da reestruturação das relações natureza-cultura (Herrero, 2023HERRERO, Yayo. 2023. Ecofeminismos: La sostentabilidad de la vida. Madrid, Icaria Editorial. ; Federeci, 2014FEDERECI, Silvia. 2014. “O feminismo e as políticas do comum em uma era de acumulação primitiva”. In: MORENO, Renata (org.). Feminismo, economia e política. São Paulo, Sof Sempreviva Organização Feminista. ; e Guétat-Bernard, 2015GUÉTAT-BERNARD, Hélène. 2015. “Travail, famille et agriculture. Enjeux de genre et de dévoloppment, perspective Nord-Sud”. In: VERSCHUUR, C. & GUÉRIN, I. (eds.). Sous le développement, le genre. Marseille, IRD Éditions, pp. 279-305. ) e a conexão construída entre “trabalho de cuidados” e o plano “afetivo-relacional, relativo ao bem-estar emocional” (Orozco, 2012OROZCO, Amaia Pérez. 2012. “Ameaça tormenta: a crise dos cuidados e a reorganização do sistema econômico”. In: FARIA, Nalu & MORENO, Renata (orgs.). Análises feministas: outro olhar sobre a economia e a ecologia. São Paulo, SOF. ).
  • 6
    Este viés essencialista dentro do campo de estudos sobre o tema de “cuidado” se tornou mais conhecido desde o pensamento de Carol Gilligan (1983; 2021), que afirmou uma visão dicotômica sobre as duas formas de pensamento moral (masculina e feminina) a partir da noção da complementariedade. Reforçou a associação dos gestos de “cuidado” à essência feminina.
  • 7
    O trabalho de Carsten ( 1997CARSTEN, Janet. 1997. The heat of the hearth: the process of kinship in a Malay fishing community. Oxford, Clarendon Press. ; 2000CARSTEN, Janet. 2000. “Introduction: cultures of relatedness”. In: CARSTEN, Janet (org.). Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship. Cambridge, Cambridge University Press. ) representou uma “virada” nos estudos de parentesco, a partir de uma concepção mais ampla dos “modos de relacionalidade”, que contempla práticas culturais como elementos chaves dentro da construção de relações, a exemplo da comensalidade. Tal visão introduziu um entendimento tanto da criação quanto da dissolução de vínculos com outros seres como um componente chave nos processos de construção do mundo vivido.
  • 8
    A autora propõe gênero como expressão de “relações estruturadas por meio de símbolos e representações culturais, de normas e doutrinas, de instituições e organizações sociais, assim como de identidades subjetivas […]” (Scott, 1985SCOTT, James C. 1985. Weapons of the weak: daily forms of peasant resistance. New Haven, Yale University Press.: 18).
  • 9
    Nessa empreitada, como pontuam Guedes & Vidal e Souza ( 2021GUEDES, André D. & VIDAL E SOUZA, Candice. 2021. “Introdução”. In: VIDAL E SOUZA, Candice & GUEDES, André D. (orgs.). Antropologia das mobilidades. Brasília, ABA Publicações. ), os trabalhos de Ingold ( 2007INGOLD, Tim. 2007. Lines: a brief history. London, Routledge. , 2011INGOLD, Tim. 2011. Being alive: essays on movement, knowledge and description. London, Routledge. ) ganham destaque nessa mobilities turn (virada da mobilidade), a partir da sua “antropologia comparativa da linha” e em seu esforço em trazer a “antropologia de volta à vida”.
  • 10
    Esses profissionais constituem a Equipe de Saúde da Família Indígena (ESFI), composta por dois médicos da Saúde da Família, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem e duas Agentes Indígenas de Saúde (AIS), entre elas a rezadeira Maria Lídia, que possui um papel fundamental na articulação de saberes indígenas e da biomedicina.
  • 11
    É notável que a eclosão das idas e vindas para os Estados Unidos foi precedida por experiências de deslocamento para destinos dentro do território nacional: São Paulo, Belo Horizonte ou Rondônia. Quase todas as famílias das mulheres interlocutoras deste campo etnográfico tinham alguma história a ser contada sobre um parente que “gosta de andar” – filho, marido, sobrinho, tio – e que tinha estado ausente por períodos prolongados por causa de suas andanças. A maioria das interlocutoras alega que um parente “ia puxando os outros”, de modo que os deslocamentos tiveram um efeito crescente.
  • 12
    É importante pontuar que, para as mulheres que passam a exercitar seu potencial de liderança a partir dos novos lugares que ocupam, o modelo de liderança almejado se constrói graças ao manejo das práticas discursivas: ter um bom uso da palavra, com a capacidade de construir um argumento e defender seu ponto de vista com credibilidade, é uma capacidade que ganha valor dentro dessas instâncias organizativas. Revela um processo de avaliação social das capacidades das lideranças emergentes, que passa pela competência de “produzir discursos de uma modalidade considerada adequada a esse tipo de evento público, ou seja, saiba falar bem, falar bonito, fazer discurso, ou simplesmente saiba falar” (Comerford, 1999, p. 91).
  • 13
    Aqui alertamos para as ambiguidades inerentes à dicotomia entre “público” e “privado”, que vem sendo reforçada pelas teorias liberais dos processos políticos e que tem sido alvo das críticas dentro dos estudos feministas. (Okin, 2008 OKIN, Susan. “Gênero: o público e o privado”. 2008. Revista Estudos de Gênero, Florianópolis, 16(2), maio-ago. ( https://doi.org/10.1590/S0104-026X2008000200002 )
    https://doi.org/10.1590/S0104-026X200800...
    ; Zelizer, 2000ZELIZER, Viviana. 2000. “Dualidades perigosas”. Mana, 15(1): 237-256. https://doi.org/10.1590/S0104-93132009000100009.
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200900...
    ). A entrada das mulheres nas esferas enquadradas como “públicas” é associada a um processo de “politização”, na medida em que elas ampliem suas formas de mobilidade a partir da conquista da autonomia e o desempenho dos cargos de liderança. No entanto, isso não significa que a esfera que compreende “o doméstico” seja alheia às práticas políticas, como se torna evidente nos trânsitos entre a cozinha, o quintal e outros espaços contíguos, que envolvem uma rede de relações e produzem efeitos sociopolíticos.
  • 14
    Observamos que os quintais interagem com outros espaços agrobiodiversos como a roça, que, nos contextos quilombola e das agricultoras mineiras, deve ser pensada para além de um espaço de cultivo e, portanto, de base para as práticas econômicas. Partimos de uma visão sistêmica da correlação entre distintos espaços, como os quintais, capoeiras, matas; portanto, é legítimo falar de um sistema de roça , pois em torno dela se elabora um modo de vida com relativa autonomia, que envolve uma temporalidade específica, expressa em calendários agrícola, extrativista e cerimonial, mas não só, é também um espaço de socialidade cotidiana.
  • 15
    Trabalhos antropológicos como o de Lewitzki ( 2019LEWITZKI, Taísa. 2019. A vida das benzedeiras: caminhos e movimentos. Curitiba, Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Paraná. ) endossam uma visão mais ampla das múltiplas funções do quintal enquanto um espaço voltado para a preservação da saúde e expressões de cura, no qual também se observam diferentes formas de sociabilidade, como a troca intensa de recursos e insumos entre familiares e vizinhos/as, que transitam pelo quintal e pela mata nos arredores das propriedades.
  • 16
    Aqui fazemos referência às políticas de compras públicas – PAA, Programa de Aquisição de Alimentos, e PNAE, Programa Nacional de Alimentação Escolar –, que foram criadas respectivamente em 2003 e 2009.
  • 17
    Como me explicou, uma roça menor, próxima à casa, não no centro , local distante das moradas, onde abrem suas roças familiares e que pode se situar cerca de uma hora a pé ou de canoa, um pouco mais ou um pouco menos, conforme a localização.
  • 18
    As rezadeiras e parteiras são especialistas rituais que possuem o “dom”, capacidade para estabelecer uma intercomunicabilidade com os encantados. Além delas, podemos destacar pais e mães de praiás – quem zela e cuida do roupão (vestimenta ritual) – e as cantadeiras que participam das mesas de cura.
  • 19
    A noção de sagrado adquire uma concepção local, pois é considerado aquilo que está relacionado com o reino encantado, lugar de morada das entidades e que exerce controle e proteção dos recursos naturais, como serrotes, serras e rios.
  • 20
    Essa relação de cuidado com a terra é também percebida em relação aos “tiradores de croá”, pessoas autorizadas para colher o croá ( Neoglaziovia variegata ), semente endêmica da região Nordeste e cujas fibras são utilizadas para a feitura do “roupão”.
  • 21
    Cabe salientar que rege aqui uma visão idealizada da natureza, como um lugar inculcado de princípios de afluência, complementaridade e consonância, em que qualquer força que vem de fora é potencialmente maléfica justamente porque rompe a ordem preeminente.
  • 22
    Ressaltamos que, nesta região, há o uso de “roundup” nas plantações, mesmo de forma tímida. “Roundup” é um herbacida que chegou ao mercado há dez anos, e tem como principal função “matar o mato”. As pessoas que tendem a ser críticas do seu uso, especialmente as mulheres agricultoras, argumentam que “o mato é o esterco da terra”, e, ao “matar o mato”, a terra fica pobre, sem os microorganismos (minhocas etc.) que “dão vida” para as plantas.
  • 23
    Fausto argumenta que a categoria “dono” é “constituinte da socialidade amazônica e caracteriza interações entre humanos, entre não humanos, entre humanos e não humanos e entre pessoas e coisas” (2008: 329). Já Galvão (1976) chamava a atenção para a sua importância nos contextos ameríndios. Fausto explora as várias denotações dos termos vernaculares para a categoria “dono” entre diversos povos da Amazônia, concluindo que “em todas essas denotações, está se definindo a relação de um sujeito com um recurso: o dono seria o mediador entre esse recurso e o coletivo ao qual pertence” (Fausto, 2008: 330).
  • 24
    O Mirinzal é um dos centros , onde roças são abertas. Para entender este episódio, é preciso ter em conta que as áreas de apropriação comum como os centros são de responsabilidade de todos, e, por isso mesmo, podem ser palco de contradições entre interesses de alguns indivíduos e os dos demais moradores. Sobre o mesmo episódio, uma quilombola comentou: “Ele [aquele que contratou o serviço] nem é filho daqui. Eu não acho certo”. O direito de acesso, exploração e controle dos recursos comuns do território são expressos, nesse caso, na linguagem do parentesco; decorrente disso, estabelece-se uma fronteira – movediça, há que se dizer – entre os “de dentro” e os “de fora”.
  • 25
    Não cabe aqui a descrição do ritual de cura – brincadeira de cura ou pajelança , como a ele se referem – que acompanhamos, mas vale mencionar que, no ritual observado, foi realizada cura por sucção e com maracá, além do uso da fumaça e do preparo com ervas. Uma descrição completa encontra-se em Pietrafesa de Godoi ( 2023PIETRAFESA DE GODOI, Emília. 2023. Devir Quilombola na Terra do Santo: a tessitura de um mundo composto. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens Edições. ).
  • Financiamento:

    Grande parte do material que foi analisada neste artigo no que diz respeito às situações vividas pelas agricultoras agroecológicas da região leste/MG recebeu apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), por meio da Bolsa Nota 10, durante o período do doutorado (2011-2016).
  • Financiamento:

    A parte do material concernente aos quilombolas, analisado neste artigo, recebeu apoio do CNPq, através da bolsa produtividade em pesquisa, para o projeto “Memória e violência: tempo e pessoa nas narrativas de expropriação, deslocamentos e errância” (2016-2019).
  • Financiamento:

    Parte do material analisado neste artigo referente ao povo Pankararu recebeu apoio da Fapesp no período do mestrado (2014-2016) e da Capes no período do doutorado (2017-2020).
  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2022
  • Aceito
    17 Out 2023
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