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Bicho mau: notas sobre matanças de serpentes no norte e noroeste de Minas Gerais

resumo

A matança de serpentes é uma prática disseminada nos limites das regiões norte e noroeste de Minas Gerais. Um dos motivos que justificam os abates remete à associação estabelecida entre o animal e o mal. Neste artigo, pretendo entender o sentido dessa relação, descrever as matanças e discutir possíveis formas pacíficas de convivência entre pessoas e bichos.

palavras-chave
relações entre animais humanos e não humanos; reciprocidade; campesinato

abstract

The killing of snakes is a widespread practice in the north and northwest regions of Minas Gerais. One of the reasons used to justify the slaughtering refers to the association established between the animal and bad/evil. In this article, I intend to understand the meaning of this association, describe the ways snakes are killed and discuss possible ways of peaceful coexistence between people and animals.

keywords
relationships between human and non-human animals; reciprocity; peasantry

Durante este tempo, a cascavel e eu ficamos sozinhas. Totalmente sozinhas no mundo. Nós nos mantínhamos juntas por um vínculo comum de medo. Nós nos mantínhamos em transe encantado. Este tempo estava fora do tempo comum e fora dos sentimentos comuns; envolvia perigo para nós duas; envolvia um vínculo entre criaturas que normalmente não podem de maneira alguma se relacionar umas com as outras. Cada uma tentaria naturalmente não se relacionar – apenas fugir – ou matar em legítima defesa

Ursula K. Le Guin, “O primeiro contato” – tradução minha

Biólogos e ambientalistas lamentam o que parece ser um costume disseminado entre as populações rurais brasileiras: o de matar serpentes sempre que se tem a sorte de topar com elas. A prática predatória estaria relacionada ao desaparecimento de espécies endêmicas, colocando em risco a biodiversidade e a sobrevivência de biomas inteiros (Moura, Costa, São-Pedro, Fernandes & Feio, 2010 MOURA, Mário Ribeiro, COSTA, Henrique Caldeira, SÃO-PEDRO, Vinícios de Avelar, FERNANDES, Vítor, Dias, & FEIO, Ricardo Neves. 2010. “O relacionamento entre pessoas e serpentes no leste de Minas Gerais, sudeste do Brasil”. Biota Neotropica 10(4): 133-141. http://www.biotaneotropica.org.br/v10n4/en/abstract?article+bn02410042010 .
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; Marques, Eterovic, Nogueira & Sazima, 2015MARQUES, Otávio; ETEROVIC, André; NOGUEIRA, Cristiano, & SAZIMA, Ivan. 2015. Serpentes do cerrado: guia ilustrado. Ribeirão Preto, Holos. ; entre outros). Ainda de acordo com os especialistas, o hábito seria expressão de um “temor” quase atávico que, associado a um “imaginário” instituído ao longo período colonial, pode ser responsável pela consolidação e circulação de “lendas”, “mitos”, “crendices” e “superstições” que vinculam equivocadamente os animais ao mal, ao engano, à tentação e ao pecado (Vizotto, 2003VIZOTTO, Luiz Dino. 2003. Serpentes: lendas, mitos, superstições e crendices. São Paulo, Editora Plêiade. ; Auto, 2015AUTO, Hélvio. 2015. Animais peçonhentos. Maceió, Edufal. ; Cardoso, 2012CARDOSO, João Luiz Costa. 2012. “A Cobra-Grande, Boiuna, Boitatá (lendas brasileiras sobre grandes serpentes)”. In: HADDAD JR., Vidal (org.). Sucuris: biologia, conservação, realidade e mitos de uma das maiores serpentes do mundo. Rio de Janeiro, Technical Books Editora, pp. 29-39. ) 1 1| Para diversos pesquisadores, o medo e o fascínio despertados pelas serpentes estariam inscritos nos DNAs humano e de outros primatas. Um dos expoentes desta abordagem neoevolucionista é o biólogo indiano Balaji Mundkur ( 1983 ). No caso brasileiro, a associação entre as cobras e a maldade também seria, de acordo com alguns investigadores, uma herança do período colonial. A partir de meados do século XVI, o Novo Mundo deixaria de ser considerado um “Paraíso na Terra” para ser associado ao “Inferno”. Segundo Cardoso, nesse processo de “Satanização”, como é conhecido, os “animais venenosos, peçonhentos, perigosos, ou asquerosos, dentre eles, as cobras e o temor que elas difundiam, teriam papel relevante” (Cardoso, 2012: 29). . Na natureza, argumentam alguns pesquisadores, não existem valores morais 2 2| Era o que dizia, por exemplo, o geneticista britânico Adam Rutherford, em entrevista à Revista Galileu: “na natureza não existem valores morais, pelo menos não como os conhecemos” (Viggiano, 2020 ). A afirmação é uma crítica à antropomorfização, que atribui aos comportamentos dos animais características estritamente humanas e/ou sociais. . Apenas a educação e o trabalho de divulgação científica poderiam desmontar erros tão arraigados. “Para conservar é preciso conhecer; o conhecimento sólido é baseado na pesquisa científica” (Puorto, 2012PUORTO, Giuseppe. 2012. “Conservação”. In: HADDAD JR., Vidal (org.). Sucuris: biologia, conservação, realidade e mitos de uma das maiores serpentes do mundo. Rio de Janeiro, Technical Books Editora, pp. 23-27.: 27).

Os especialistas têm aparentemente alguma razão, pelo menos, se levarmos em conta comportamentos que pude observar nas zonas rurais de Urucuia e entorno, nos limites das regiões norte e noroeste do estado de Minas Gerais. Conquanto sempre se encontre quem diga que não gosta de matar, os abates de serpentes são bastante comuns. Os animais podem ser mortos atropelados, com pedaços de pau, armas de fogo e instrumentos cortantes ou perfurantes. Não há, ao que parece, nenhuma compaixão na atividade predatória – os cuidados que se têm durante o sacrifício de bovinos, suínos e aves de quintal não estão de modo algum atrelados à morte das cobras. Nem mesmo a sensação difusa de que órgãos municipais, estaduais ou federais de fiscalização ambiental podem punir os responsáveis serve para inibir a prática. “Tem que matar!” é o que muitos fazem questão de reafirmar. “A mentalidade da população é exterminar”, dizia o técnico de um dos escritórios do Instituto Estadual de Florestas (IEF) na região 3 3| O Instituto Estadual de Florestas (IEF) é uma autarquia responsável por planejar, coordenar, orientar, avaliar e monitorar a conservação e recuperação de ecossistemas no estado de Minas Gerais. Criado em 1962, o órgão está atualmente subordinado à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Ambiental (Semad). A estrutura administrativa do IEF se apoia em uma rede de unidades municipais associadas à catorze escritórios regionais. Os municípios de Urucuia, Arinos e Riachinho vinculam-se ao escritório de Unaí. Chapada Gaúcha, Pintópolis, São Romão e Januária estão sob a responsabilidade do escritório de Januária. . “Se pudesse, o povo ia querer que acabassem todas as cobras.”

Biólogos e ambientalistas ainda parecem corretos noutra coisa. Em Urucuia e entorno, as serpentes também costumam ser chamadas de “bicho mau” ou “bicho ruim”. A maldade seria realmente uma qualidade dos ofídios. “Esse trem não presta, não”, defendia um vaqueiro urucuiano, antes de completar: “Ele só faz o mal pra gente!”. A “ruindade” dos animais teria diversas faces. Agressivas, vingativas e traiçoeiras, algumas serpentes dormiriam com o “bote armado”. Em termos metafóricos, as coisas não são diferentes. Uma pessoa “maldosa” e “invejosa”, costumava dizer uma amiga de Urucuia, “tem um coração de cobra”. Nos relatos sobre pactos demoníacos, o diabo pode ser anunciado por serpentes ou se tornar presente na forma de uma coral-verdadeira que precisa ser capturada pelo eventual interessado (Pereira, 2012b PEREIRA, Luzimar Paulo. 2012b. “As vicissitudes da fama: os dons divinos e os pactos demoníacos entre os tocadores de viola de dez cordas do norte e noroeste mineiro”. Revista de Antropologia, 55(2): 1047-1083. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2012.59308 .
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). A associação com os poderes malignos, aliás, viria de longe. Na região, habitada predominantemente por gente que se identifica como “cristã”, “católica” ou “evangélica”, é conhecido o papel desempenhado pela serpente no episódio da expulsão de Adão e Eva do Paraíso. A cobra é bicho “danado”, dizem; ou da “danação”, alguém poderia objetar.

Os exemplos são legião, deixando evidente que, em Urucuia e entorno, a maldade pode de fato ser considerada um atributo das serpentes, capaz de dar forma aos temores das pessoas e ainda justificar a morte dos animais. O que não está claro, entretanto, são respostas a algumas perguntas que os cientistas e ambientalistas preocupados com as matanças de cobras ainda não parecem muito dispostos a formular: De que “mal” é este sobre o qual falam os produtores rurais? Qual é seu estatuto? O que ele pode evocar? Quais outros conceitos a ideia traz em seu encalço? Como a noção pode nos dar a compreender as histórias das mortes matadas das serpentes? A questão dos abates passa realmente pela associação equivocada de um atributo moral – ou seja, humano e social – ao mundo natural, como imaginam alguns especialistas?

Para responder a essas e outras perguntas, trato neste artigo da cobra como bicho mau ou bicho ruim , das práticas costumeiras de se matarem os animais, além das possibilidades de boa convivência entre eles e alguns seres humanos em Urucuia e entorno 4 4| A proposta de estudar as relações entre seres humanos e serpentes no que estou nomeando “Urucuia e entorno” está relacionada à minha experiência de campo na região. Para escrever este artigo, faço uso, em primeiro lugar, de relatos e observações dos mais variados encontros entre pessoas e cobras que recolhi ao longo de inúmeras visitas que realizei, desde 2006, nos municípios de Arinos, Chapada Gaúcha, Januária, Pintópolis, Riachinho, São Romão e, em especial, Urucuia, localizados nos limites das regiões norte e noroeste de Minas Gerais. Esse material emerge como subproduto de outras pesquisas etnográficas (sobre relatos de pactos com o diabo, sobre a realização de folias, sobre práticas de se construírem cercas em áreas rurais e urbanas etc.). Desde 2022, no entanto, a coisa mudou de figura. Com o início de um projeto de pesquisa especialmente dedicado a compreender os sentidos das relações entre pessoas e serpentes em algumas comunidades rurais da região, a maior parte do material aqui apresentado é oriunda de duas longas estadias em Urucuia, em março de 2023 e início de 2024. Daí a centralidade do município em minhas reflexões. Meus interlocutores são, em sua grande maioria, pequenos e médios agropecuaristas, cujas propriedades, tocadas em regime familiar, possuem entre 30 e 60 hectares. Uma pequena parcela é empregada em grandes fazendas, como “vaqueiros” ou “gerentes”, ou em ranchos de fim de semana, como “caseiros”. Outra parte é composta por ex-produtores rurais que trabalham atualmente no setor de serviços ou aposentados que vivem em áreas urbanas. . Diferente do que pensam os biólogos e os ambientalistas interessados no tema da maldade, defendo que a qualidade má atribuída às serpentes não evoca simplesmente, na perspectiva de meus interlocutores, “visão de mundo” que estende à natureza modelos de relações próprios à cultura ou sociedade humana. Pelo contrário. Partindo da premissa de que todas as formas de vida emergem no interior de emaranhados multiespécies (Tsing, 2018TSING, Anna. 2018. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília, IEB Mil Folhas. ; entre outros), argumento que os sentidos das noções de bicho mau e bicho ruim só podem ser alcançados através de cuidadosa atenção dada aos engajamentos mútuos ocorridos entre pessoas e animais. Os conceitos sugerem que as espécies companheiras (Haraway, 2022HARAWAY, Donna. 2022. Quando as espécies se encontram. São Paulo, Ubu. ) 5 5| Para Donna Haraway ( 2022 ), o conceito de espécies companheiras refere-se, em suma, à interconexão e à interdependência entre humanos e outros organismos, incluindo animais e tecnologias. A proposta da autora supõe a desestabilização de dicotomias consagradas no Ocidente moderno, como natureza e cultura, corpos e máquinas etc. A noção não evoca apenas relações que classificaríamos como harmônicas ou complementares, mas indica igualmente diversas formas de antagonismos interespecíficos. atualizam, enfim, certos “padrões entrelaçados de viver e morrer, de ser e tornar-se em um mundo maior” (Van Dooren, Kirskey & Munster, 2016 VAN DOOREN, Thom; KIRSKEY, Eben & MUNSTER, Ursula. 2016. “Multispecies studies: Cultivating arts of attentiveness”. Environmental Humanities, 8(1): 1-23. https://doi.org/10.1215/22011919-3527695 .
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: 2).

A proposta implica distinguir a natureza das interações que conectam homens e serpentes em Urucuia e entorno. Uma das premissas que sustentam os argumentos dos biólogos e ambientalistas preocupados com o destino das cobras é a ideia de que as matanças se fundamentariam numa concepção de “social” segundo a qual os animais fariam parte da sociedade enquanto sujeitos dotados de intenções, afetividades e cognições análogas às dos seres humanos. Ao tratarem os répteis como agentes conscientes da “maldade”, do “engano”, da “tentação” e do “pecado”, as populações rurais brasileiras, de acordo com os especialistas, interpretariam equivocadamente as relações interespecíficas a partir de um ponto de vista estritamente moral. Segundo o pesquisador Paulo Sérgio Bernarde, as serpentes são cercadas de “mitos” e “lendas” que dariam a elas “uma roupagem absurdamente pejorativa e que projeta estes répteis como seres malignos e muito perigosos, que sempre estão à espera de uma chance para atacar as pessoas” (2014: 5),

O “social” instituído a partir das interações que meus interlocutores de Urucuia e entorno mantêm com as serpentes não parece, entretanto, fazer referência apenas a um conjunto mais ou menos estável de representações e regras normativas que distinguem o “bem” e o “mal” – entendidos, aqui, como valores transcendentais a respeito do que é puro e impuro ou certo e errado. A partir dos relatos que escutei e dos encontros que testemunhei, entendo que os vínculos que conectam humanos e cobras na região também são construídos em torno de uma ética que opõe pragmaticamente o “bom” e o “mau” (ou “ruim”), aquilo que convém e não convém a todas as criaturas 6 6| Minha inspiração é Espinoza: “Bom e mau têm pois um primeiro sentido, objetivo, mas relativo e parcial: o que convém à nossa natureza e o que não convém. E, em consequência, bom e mau têm um segundo sentido, subjetivo e modal: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor (sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição de potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria impotência” (Deleuze, 2002: 29 – destaques do autor). . O bicho mau pode até fazer referência, em diversos momentos, a seres que meus interlocutores julgam ter intenções deliberadas de “fazer maldade”, que são malvados, maldosos ou maléficos. No entanto, a associação não esgota o alcance do conceito. A noção ainda emerge como uma tentativa de traduzir experiências com serpentes nos termos de uma ideia ainda mais fundamental: a de que existem no mundo viventes que, ao interagirem concreta e substancialmente conosco, podem causar infortúnios, tragédias, doenças, tristezas e morte. O “social” – definido pelos próprios atores ao longo das interações – implicaria, então, rastrear os efeitos, em uma ou outra criatura, dos encontros interespecíficos (Strum & Latour, 1987 STRUM, Shirley & LATOUR, Bruno. 1987. “Redefining the social link: from baboons to humans”. Social Science Information 26(4): 783-802. https://doi.org/10.1177/0539018870260040 .
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). A abordagem convidaria os produtores rurais (e o antropólogo) a uma descrição que coloca animais, pessoas e coisas no mesmo nível, suspendendo ou, pelo menos, minimizando a questão da intencionalidade (Candea, 2010 CANDEA, Matei. 2010. “‘I fell in love with the Carlos the meerkat’: engagement and detachment in human-animal relations”. American Anthropologist, 37(2): 241-158. https://doi.org/10.1111/j.1548-1425.2010.01253.x .
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).

O deslocamento de uma moral que se impõe sobre a natureza em direção a uma ética interespecífica que emerge no interior das interações entre seres humanos e bichos tem pelo menos duas consequências importantes. Em primeiro lugar, permite colocar sob suspeita suposta homogeneidade nos modos pelos quais se instituem e se conceitualizam os engajamentos entre pessoas e serpentes no norte e noroeste de Minas Gerais. Ao invés de imaginar um único sistema de crenças responsável por orientar performances individuais e coletivas, tento acompanhar meus interlocutores em atividades constantes de reflexão e avaliação (dos efeitos de suas ações e as dos animais) a partir de orientações que se moldam ao fluxo das próprias relações e a “múltiplos critérios, compromissos diversos e valores incomensuráveis” (Lambek, 2015: 7 – tradução minha). O objetivo é estar atento às potencialidades inventivas dos atores. Como argumenta Laidlaw ( 2002 LAIDLAW, James. 2002. “For an Anthropology of ethics and freedom”. The Journal of the Royal Anthropological Institute, 8(2): 311-32. https://doi.org/10.1111/1467-9655.00110 .
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), o estudo antropológico da ética implica novas maneiras de descrever “as possibilidades da liberdade humana” ( 2002 LAIDLAW, James. 2002. “For an Anthropology of ethics and freedom”. The Journal of the Royal Anthropological Institute, 8(2): 311-32. https://doi.org/10.1111/1467-9655.00110 .
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: 311 – tradução minha) e, talvez, não humana.

O deslocamento também permite enfatizar, em segundo lugar, a dimensão ordinária das interações entre pessoas e cobras. A literatura antropológica sobre serpentes é marcada pelo estudo sistemático de mitos e ritos de alguma forma associados aos animais, nos mais diversos contextos etnográficos (Loveland, 1976LOVELAND, Franklin. O. 1976. “Snakebite cure among the Rama Indians of Nicaragua”. In: GROLLING, F. X. & HALEY, H. B. (eds.). Medical Anthropology. Paris, Mouton Publishers – The Hague, pp. 81-102. , 1986LOVELAND, Frankilin O. 1986. “Snakes and the social order, a study of snakebite cure origin myths among the Rama Indians of Eastern Nicaragua”. In: MAGAÑA, E. & MASON, P. (eds.). Myth and imaginaty in the New World. Amsterdam, Center for Latin American Research and Documentation (Cedla), pp. 245-259. ; Drummond, 1981 DRUMMOND, Lee. 1981. “The serpent’s children: semiotics of cultural genesis in Arawak and Trobriand myth”. American Ethnologist, 8(3): 633-660. https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.3ª02a00130 .
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; Bletzer, 1991 BLETZER, Keith V. 1991. “Snakebites survivors and exchange relations in Ngawbe society”. Ethos, 9(2): 185-20. https://doi.org/10.1525/eth.1991.19.2.02a00030 .
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; entre outros). Sem deixar de reconhecer o valor analítico dessas abordagens (há casos em Urucuia e entorno que merecem investimento análogo), pretendo me inspirar, entretanto, no trabalho de Jorge Luan Teixeira e Dibe Ayoub ( 2016 TEIXEIRA, Jorge Luan & AYOUB, Dibe. 2016. “Cachorros que atacam criação: reflexões éticas sobre a mobilidade e a vida social dos animais em ambientes rurais”. Iluminuras, 17(42): 136-165. https://doi.org/10.22456/1984-1191.71041 .
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) sobre cachorros que atacam criações em determinadas comunidades rurais dos estados do Ceará e do Paraná. Ao abandonarem o tema da normatividade, em favor de uma perspectiva que enfatiza o julgamento prático de ações humanas e não humanas, os autores também jogam luz sobre o papel das relações cotidianas nos intermináveis processos de produção e eventual dissolução de comunidades rurais interespecíficas 7 7| É preciso, no entanto, fazer uma distinção. Enquanto Teixeira e Ayoub lidam com cães que se tornam eventualmente “maus”, por assim dizer, meu trabalho, como veremos adiante, precisa se haver com animais que são quase sempre entendidos como “maus”. . A observação e o cuidado com a circulação de cães e animais de criação revelariam, segundo Teixeira e Ayoub, a importância dos bichos “para a conformação do bom convívio entre familiares e vizinhos” ( 2016 TEIXEIRA, Jorge Luan & AYOUB, Dibe. 2016. “Cachorros que atacam criação: reflexões éticas sobre a mobilidade e a vida social dos animais em ambientes rurais”. Iluminuras, 17(42): 136-165. https://doi.org/10.22456/1984-1191.71041 .
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: 139).

Nos termos de uma ética ordinária ajustada aos vínculos sociais entre pessoas e serpentes, entendo que a emergência do conceito de bicho mau está associada à efetivação e ao questionamento de “formas supostamente apropriadas de agir e de viver” (Teixeira & Ayoub, 2016 TEIXEIRA, Jorge Luan & AYOUB, Dibe. 2016. “Cachorros que atacam criação: reflexões éticas sobre a mobilidade e a vida social dos animais em ambientes rurais”. Iluminuras, 17(42): 136-165. https://doi.org/10.22456/1984-1191.71041 .
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: 138) no interior de coletivos interespecíficos. Na perspectiva de meus interlocutores, as cobras são seres perigosos que rondam por perto e costumam resistir ao controle dos seres humanos. A presença dos animais contribui para a emergência de eventos inesperados, disruptivos e desestabilizadores. Ao se deslocarem sorrateiramente e aparecerem repentinamente nas casas, trilhas, roças, pastos e matas frequentados por famílias, vizinhos e criações, as serpentes problematizam a existência de conexões sociais entre criaturas que, parafraseando a escritora norte-americana Ursula Le Guin, não podem normalmente se relacionar umas com as outras. A suposição de que a convivência mútua entre pessoas e cobras é um fenômeno dado – e perigoso – da vida institui o fundo sobre o qual as matanças dos animais e o seu inverso, os benzimentos, colocam-se como meios necessários à produção de afastamentos (Candea, 2010 CANDEA, Matei. 2010. “‘I fell in love with the Carlos the meerkat’: engagement and detachment in human-animal relations”. American Anthropologist, 37(2): 241-158. https://doi.org/10.1111/j.1548-1425.2010.01253.x .
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; Kohn, 2013KOHN, Eduardo. 2013. How forests think: toward an anthropology beyond human. Berkeley & Los Angeles: University of California Press. ) 8 8| Em estudo sobre o modo como os runa, do Equador, se relacionam com seus cães, Eduardo Kohn ( 2013 ) destaca os dispositivos indígenas mobilizados na produção de distanciamentos entre os seres humanos e estes animais. A excessiva proximidade implicaria, na perspectiva de seus interlocutores, riscos ontológicos que precisam ser evitados. Reflexão análoga faz o antropólogo Matei Candea ( 2010 ) em torno das pesquisas realizadas por cientistas europeus com os suricatos do Kalahari, na África. A questão, nesse caso, passa pelo entendimento do caráter produtivo do distanciamento: os animais oscilam, em diferentes contextos, entre as condições de sujeitos de relações e objetos de conhecimento. .

As práticas de se criarem distanciamentos ainda têm implicações nos modos pelos quais se modelam as interações dos seres humanos entre si e com outros viventes. Assim como os tellers australianos (Rose, 2012) 9 9| Tellers [narradores], segundo Deborah Bird Rose aprendeu com alguns sábios aborígenes, na Austrália, são aquelas criaturas que fornecem informações e dão notícias do que está acontecendo no mundo. Por exemplo, “quando as cigarras cantam, os figos estão maduros e as tartarugas gordas” (Rose, 2013: 103 – tradução minha). e os “sinais” observados pelos caçadores do sertão cearense (Teixeira, 2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando em mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro. ) 10 10| Segundo Jorge Luan Teixeira ( 2019 ), a circulação motivada pela atividade da caça permite aos camponeses do Sertão do Ceará apreenderem o “conhecimento” que os bichos têm das matas e do meio ambiente como um todo. Uma rã, por exemplo, para quem sabe ler os “sinais” impressos em seus comportamentos, pode ensinar se vem ou não a chuva. Um besouro, por sua vez, a depender do lado em que faz sua morada num alpendre, indica ao observador de onde virá a chuva. , o aparecimento e o desaparecimento das serpentes podem dar notícias a respeito do que está acontecendo no mundo, em seus mais diferentes aspectos. Ao motivarem relatos, comentários e julgamentos de suas próprias ações, as cobras em Urucuia e entorno também conectam, informam e propõem reflexões sobre o clima, a dinâmica dos territórios, a circulação de doenças, os vínculos familiares e de vizinhança, a presença de instituições públicas de preservação ambiental, os fenômenos mágico-religiosos, além das mais diversas formas de comportamento humano e não humano. Os animais que circulam insidiosamente pelos lugares habitados pelas pessoas e suas criações, além de colocarem vidas em risco, atuam como agentes corresponsáveis pela institucionalização e funcionamento de um complexo arranjo social multiespécie.

“É cobra com borra!”

Em março de 2013, eu realizava visita a João de Dora e Maria do Socorro 11 11| Os nomes dos personagens e de alguns locais apresentados neste artigo são fictícios. , casal de agricultores que possuía uma pequena propriedade rural às margens do Ribeirão de Areia, nos limites dos municípios de Urucuia e Arinos 12 12| O casal tinha seis filhos. Em 2013, dois deles residiam na sede municipal de Urucuia, três em Belo Horizonte e uma filha em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. . Era fim de tarde. E João de Dora saiu para campear gado que deixara solto num trecho de cerrado perto da residência. Eu permaneci na casa com Maria do Socorro. Quando já estava escurecendo, a mulher seguiu da sala, onde estávamos, para um quarto que ficava ao lado, onde deixava sua máquina de costura. Pouco depois, ela me chamou, exasperada. Acorri para ver o que era. Quando cheguei à entrada do cômodo, Maria me mandou parar. “Entra não!”, disse, antes de completar, apontando para um canto do quarto, à minha esquerda: “Tem cobra aí!”. Parei, puxei lentamente a porta, estiquei o pescoço para ver e vi, encostada na parede, a serpente. O animal estava com o bote armado, ou “rodilhado”, como costumam dizer meus amigos urucuianos. Tinha manchas marrons sobre o corpo e não devia medir mais do que quarenta centímetros. Aos poucos, julguei identificar a espécie: jararaca. “Venenosa”, lembro também de ter pensado.

“Tô vendo”, disse, sem tirar os olhos da cobra. Do outro lado do quarto, a mulher falava: “Quando passei na entrada, ouvi tuh , assim!”. Era a serpente dando o bote. Por sorte, o animal acertou apenas a porta de ferro (daí o barulho). Perguntei, então, o que deveríamos fazer. Maria me disse que num outro cômodo, “do lado de lá da sala”, o marido costumava deixar guardado um “pau pra matá cobra”, que usa sempre quando uma delas resolve aparecer no interior da residência. Corri para pegar, sem deixar de pensar que aquele era realmente um nome engraçado para um pedaço de madeira. O artefato – o resto de uma velha enxada, inútil ao trabalho agrícola – estava encostado num canto da parede. Media pouco mais de um metro de comprimento, e meio palmo de largura.

João de Dora chegou quando eu retornava ao cômodo onde Maria aguardava. Contei o acontecido, e ele prontamente pegou o porrete da minha mão. “O que foi, mulher?”, gritou para a esposa. Da porta do quarto, ele viu Maria apontar: “Tá ali!”. Ligeiro, como quem sabe o que deve ser feito, puxou a serpente do canto e desferiu três pancadas, todas na cabeça. A cobra morreu com o crânio esmagado depois de se contorcer por alguns segundos. Com o mesmo pedaço de pau, João ainda levantou o cadáver do animal para carregá-lo até o terreiro da frente e deixá-lo pendurado numa cerca de arame farpado. “Por que isso?”, ainda perguntei. “Bicho pega”, respondeu, “gavião, urubu…”. Mais tarde, conversando sobre o acontecido, brinquei com o casal por causa do nome do porrete que estava guardado num dos cômodos da residência. João de Dora riu e explicou: “É que aparece muita cobra. Toda hora tem que matar. Outro dia, tinha uma aí, no canto do sofá, onde você tá sentado” 13 13| A descrição apresentada aqui tem algumas discrepâncias com o que estava anotado em meu caderno de campo, escrito em 2013. Tive que reconsiderar o relato depois de relembrar o caso com João e Maria em, pelo menos, duas ocasiões. Primeiro, em conversa telefônica com João, em 2019. Depois, em um encontro com o casal, no início de 2024. .

Na mesma semana, de volta à cidade, narrei o caso a alguns conhecidos e amigos de Urucuia. As reações foram diversas. Um de meus interlocutores, um pouco surpreso, queria saber se o casal não criava galinhas e cocás soltas no terreiro (as aves têm a reputação de conter as invasões de animais peçonhentos). Um outro, mais interessado em identificar a espécie, fazia perguntas sobre o tamanho e a cor do réptil invasor. Um terceiro, de modo mais jocoso, tentava imaginar e imitar minha reação no momento do encontro. Sem deixar de despertar espantos, comentários, questionamentos e até risos, o relato, no entanto, parecia aos olhos de meus amigos e conhecidos fazer referência a algo relativamente corriqueiro. Todos tinham histórias para contar sobre o aparecimento repentino de uma ou mais cobras dentro ou nas proximidades de suas casas. Da mesma maneira que João de Dó e Maria do Socorro tratavam com alguma naturalidade o constante aparecimento de serpentes em sua propriedade, a ponto de manterem guardado instrumento específico só para matá-las, meus interlocutores também entendiam que os encontros com os animais – embora perigosos – podem ser recorrentes. Ainda mais lá, onde o casal residia. “Na beira do Ribeirão”, me dizia um dos meus conhecidos, “é cobra com borra!”

“Quando pensei que não”

Nas zonas rurais de Urucuia e entorno, encontros com serpentes são, de fato, bastante comuns 14 14| O município de Urucuia e seu entorno – como Arinos, Chapada Gaúcha, Pintópolis, Riachinho, São Romão e Januária – estão situados na faixa de transição entre a depressão do Rio São Francisco e o Planalto Central. O clima é seco, com chuvas mal distribuídas ao longo do ano. A região possui rica rede hidrográfica. A vegetação típica é a do cerrado, com suas variações de “campos limpos”, “campos sujos”, “campos cerrados” e “cerradões”. A região também possui diversas nascentes localizadas em terrenos úmidos, cobertos por gramíneas, buritis e outras plantas semiaquáticas. Conhecidos como “veredas”, tais cursos d’água são habitats de araras, capivaras, pássaros diversos, além de serpentes como jararacas, cascavéis, sucuris, entre outras (nos últimos anos, boa parte destas nascentes estão “secas” ou com risco de “secar”). Em geral, a vida na roça ocorre em pequenas e médias “fazendas” (ou “sítios”) familiares. Em Urucuia, em particular, a economia rural gira em torno da pequena pecuária bovina de corte, associada a roças de feijão, mandioca, abóbora e cana. Na maioria das propriedades, também se observa a exploração de carvão vegetal a partir do corte de árvores do cerrado (o carvão é vendido e transportado para alguns polos siderúrgicos do estado). Há agroindústrias de café, soja, eucalipto e capim. Nas margens do rio Urucuia, que atravessa o município, podem-se encontrar inúmeros “ranchos” de pescaria e sítios de fim de semana. As propriedades, em grande parte, fazem parte de comunidades instituídas em torno de relações de parentesco e vizinhança (Pereira, 2011 ). . As roças – onde pessoas, famílias, vizinhos, cobras e outros bichos se engajam e se transformam mutuamente – podem ser definidas como verdadeiras zonas de contato interespecíficas (Haraway, 2022HARAWAY, Donna. 2022. Quando as espécies se encontram. São Paulo, Ubu. ) 15 15| Donna Haraway define zona de contato como lugar ou situação de “emaranhamentos naturais culturais, políticos, ecológicos e semióticos” ( 2022: 287). . Um olhar mais atento ao que está em volta é oportunidade para lembrar e narrar as diversas topadas entre pessoas e animais. “Aparecia muito”, dizia um agricultor urucuiano. “Aqui entrando no terreiro, tinha vezes que a gente matava treze num ano, dezessete! Tudo aqui no quintal!” Caminhando por uma trilha que levava a um pequeno açude, localizado nos fundos de uma comunidade rural, um jovem, também de Urucuia, apontava ao que dizia ser o rastro de uma serpente: “Ó, cascavel! Tem demais! Às vezes, a gente topa com uma”. Na mesma localidade, sua mãe me explicava: “Aqui na horta, elas [as cobras] roda e entra no meio [dos pés de alface]. Um dia, eu tirando folha, tinha uma bitela de uma jararaca lá dentro!”. A poucos quilômetros dali, nas margens do rio que dá nome ao município, o vaqueiro Geraldo Xampu me mostrava o entorno da fazenda onde trabalhava: “Tem demais aqui! Ontem mesmo, tinha uma [cascavel] atravessando bem perto desse pau lá. De tardinha”. No início de 2024, quando eu tentava explicar a outro morador de Urucuia que meu trabalho objetivava “estudar o aparecimento de cobras”, ouvi, de pronto: “É o que mais tem por aqui!”.

Embora recorrentes, os encontros com serpentes quase nunca são narrados de modo meramente informativo. As menções aos nomes de Deus, Jesus Cristo, de algum outro santo católico, o uso de exclamações, a gravidade no tom de voz ou os risos, às vezes, nervosos, conferem uma aura de dramaticidade aos relatos, comunicando o temor que emerge quando alguém se vê diante do animal ou em sua proximidade. “Nasci e cresci na roça, mas não gosto desse bicho de jeito nenhum! Tenho medo”, dizia-me um interlocutor de Urucuia. Edmílson, atualmente vereador em um dos municípios que visitei, contava a mim e a um casal de amigos esta história sobre seu encontro com uma cascavel:

Moço, lá em casa onde nós morava ali, ó, nós trabalhava de enxada e na hora do almoço ia pro rancho. Dentro do rancho tinha dois toco de aroeira, seco. Nasceu um pereiro, nós rancou e cortou ele reto. Era lugar de eu sentá pra almoçá. Naqueles três toco que eu sentava. Um dia a mãe veio tratá nós no rancho com almoço e o cachorrinho “quéu, quéu, quéu, quéu, quéu!”. Nós fomo e chegando lá, o cascavel rodeado bem no meio dos três toco que eu sentava. Não tem trem melhor que cachorro de roça, não, meu amigo! Ele que descobriu a cobra enrolada no meio dos três toco. “Quéu, quéu, quéu!”, ele ia e voltava, e [eu pensei] “tem um bicho bom ali” [risos]. Um mundo de cascavel, vixi! Só sobrou um caceta na cara dela. De medo! Daí pra frente tudo que triscava na frente eu dava cada pulo!

O temor não é por acaso. Na perspectiva de meus interlocutores, um encontro com uma serpente pode resultar em acontecimentos drásticos, como longos períodos de sofrimento ou mesmo a morte. A proliferação dos relatos equivale à proliferação de eventos trágicos. “Ficou morre-não-morre”, dizia uma mulher sobre a comadre picada por uma quatro-presas. “Ia pra Brasília, voltava. Um sofrimento.” “Pegou aqui [na mão]”, mostrava um jovem urucuiano o resultado da “mordida” de uma jararaca. “Arruinou… Dedo não mexe mais, não.” Um pequeno fazendeiro, que vivia às margens do Ribeirão da Gameleira, também em Urucuia, descrevia-me o dia em que a esposa morreu, vítima da ofensa de um bicho mau:

Eu tava debulhando um milho ali, sentado, junto com um filho meu. E ela passou aqui, quando pegou a lanterna pra botá o polvilho no giral. Aí, no pé dessa caixa [de água] ali, ó [apontava], […] ela pisou na cobra. […] Ela tinha muita varize, pegou a veia principal […]. Quando cheguei no pé de manga [para ligar, chamando a ambulância], ela morreu. Não entrou na cozinha, não bebeu água, não deu tempo de nada!

“Sofrimento”, “aleijamento”, “morte”. A sorte não é diferente no caso das “criações”. Equinos, bovinos e cães costumam ser as maiores vítimas. Na comunidade quilombola da Baixa Funda, em Urucuia, o cachorro de um dos moradores morreu picado de cascavel: “foi achar dentro do forno de fazer farinha”. Um outro jovem me falava da cabeça de gado do pai, que vivia em Pintópolis: “Pegou o bezerro. Matou, né? Quando foi procurar, [a cobra] tava debaixo do cupinzeiro”. Também em Urucuia, o vaqueiro Geraldo Xampu me narrava “causo” semelhante, mas de proporções ainda maiores, quando “um cascavel” teria matado diversos animais da fazenda onde trabalhava, entre setembro e outubro de 2023: “Só naquela região [apontava], dali até ali, você podia contar: de vinte em vinte metro tava uma [cabeça de gado] morta. Inchava tanto, chegava partir os peitos. E sangra, quando cobra pega, sangra pela venta […]. Foram dezenove vaca, um cabritão e uma égua, no dia de parir”.

Se questionadas, as pessoas parecem bastante certas de quando e onde é mais provável topar com esta ou aquela “qualidade” de serpente. A sazonalidade é evidente. “Cobra é na época da chuva [de novembro a março]”, contava um produtor de Januária. “No calorão”, dizia outro, “tem mais. A gente vê toda hora”. Um pequeno criador de gado de Urucuia explicava a mim e a um de seus conhecidos que “elas aparece mais é na Quaresma. Diz que é época de procriação”. No caso das espécies, as coisas se repetem. “Sucuriú”, ensinava-me um amigo urucuiano, “você vê de manhãzinha até umas dez horas, mais ou menos. Ele gosta de quentar no sol.” A distribuição dos animais pelos lugares é de conhecimento ainda mais generalizado. Algumas cobras habitam “buracos” ou “debaixo” de cupinzeiros. Outras, “a gente vê onde tem mais água”. Um produtor da Gameleira, também em Urucuia, descrevia-me os lugares onde há mais chances de encontrar duas das espécies mais conhecidas de serpentes. “Na beira de rio Urucuia dá muita cascavel”, dizia. Já a “jararaca da mata”, completava, “essa gosta é do cerrado”. Os animais ainda podem se singularizar ao particularizarem determinados lugares. “Na Vereda do Bonito mora um sucuriú”, costumavam divulgar alguns urucuianos. “Ali no brejo perto da mãe”, contava-me minha amiga da Baixa Funda, em Urucuia, “tem cascavel. […] Chega, fede!”.

O conhecimento compartilhado dos hábitos e das preferências dos animais certamente orienta os deslocamentos das pessoas e criações. Minha interlocutora da Baixa Funda, que também já foi picada por uma quatro-presas, explicava: “A gente precisa saber andar, né? De noite, ando alumiando tudo e quando tem mato fechado caço logo uma varinha e vou balançando os pau pra ver se sai alguma coisa. Tô esperta (risos)!”. Um dos seus vizinhos completava: “Tem que ter cuidado mesmo!”. Saber onde, quando e como caminhar não parece, contudo, ser o suficiente para evitar encontros indesejados. Segundo os relatos que ouvi, as cobras costumam surgir a qualquer momento, em qualquer lugar. Nas matas, nos campos, nos rios, nas veredas, nas trilhas, nas estradas, nos pastos, nas roças, nas hortas, nos terreiros e dentro das casas, os animais podem estar “escondidos” “atrás”, “no meio”, “debaixo”, “dentro” de moitas, folhas, pedras, paus, cupinzeiros, pneus, tijolos, telhas, roupas, portas, camas, sofás. A característica distintiva da serpente é sua habilidade de passar despercebida aos sentidos humanos. Num mundo em que a familiarização de territórios depende da atenção e da capacidade de se observarem os deslocamentos (Comerford, 2003COMERFORD, John. 2003. Como uma família: sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro, Relume-Dumará. ), as cobras não se deixam ver facilmente 16 16| Por “familiarização de territórios” entendo os processos intermináveis (e também reversíveis) de se vincularem determinadas pessoas, bichos, coisas e lugares a determinadas famílias e grupos de parentesco (e vice-versa), por meio de estratégias compartilhadas de observação e avaliação de movimentos (Comerford, 2003 ). .

Animal rastejante, imperceptível e indecifrável (Lowe & Munster, 2016 LOWE, Celia & MUNSTER, Ursula. 2016. “The viral creep: elephants and herpes in times of extinction”. Environmental Humanities, 8(1): 118-142. https://doi.org/10.1215/22011919-3527749 .
https://doi.org/10.1215/22011919-3527749...
) 17 17| Ao descreverem três experiências de cuidado com elefantes em meio a uma epidemia de herpes, Lowe e Munster ( 2016 ) introduzem o conceito de viral creep, usado para explorar a habilidade do vírus de se manter imperceptível e misterioso aos seres humanos. , a serpente pode emergir repentina e inesperadamente no interior das atividades mais corriqueiras. Um pequeno produtor do Ribeirão de Areia, em Urucuia, contava “causo” de quatro-presas a mim e a dois colegas de trabalho:

Um dia, tava vindo da roça, mais Tonho, [e] cheguei em casa ali de noite… [Estava] chegando, quando pensei que não, recebi uma paulada aqui na perna… bem na barra da calça. Aí eu fui pra riba e caí no chão e quando olha pra riba, a quatro-presa, João! Desse tamanho assim [mostra com a mão], jogou ni mim e enganchou os dente na barra da calça… Ah, moço, mas deu trabalho pra mim tirar, viu, Luiz… (risos).

A dramaticidade do encontro se sustenta no nítido contraste produzido pelo relato entre uma atividade ordinária, realizada em lugares conhecidos (o homem caminhava do roçado para a casa, depois do trabalho, usando caminhos desenhados por antigos deslocamentos), e o evento disruptivo ocasionado pela aparição repentina da quatro-presas (“quando pensei que não”). Ao ser associada ao “chão” em oposição ao “alto”, de onde o ser humano olha, a cobra se insere na história como um corte inesperado no fluxo da vida, capaz de promover conexões que projetam efeitos duradouros e bastante trágicos.

“Veneno de cobra”

A etnoherpetologia do norte e noroeste de Minas Gerais distingue diversas “qualidades” de serpentes. “Cascavel”, “quatro-presas”, “jararaca”, “jiboia”, “salamanta”, “sucuriú”, “coral-verdadeira”, “coral-falsa”, “cobra cipó”, “cobra d’água”, “jaracuçu”, “cainana”, “cobra de duas cabeças”, entre outros, são alguns dos nomes que identificam criaturas com características morfológicas, fisiológicas e etológicas específicas, distintas umas das outras. “A jiboia”, explicava-me uma pequena produtora rural, “tem umas mancha amarela nas costas”. “A salamanta”, acrescentava, “é vermelha por riba.” Em São Romão, um conhecido rezador destacava o comportamento característico da sucuriú: “O povo diz que pega na traição”. Um morador, agora de Urucuia, apontava um traço morfológico distintivo de outra serpente: “A jararaca do rabo de enxofre tem o cabo amarelo”. No mesmo município, um produtor rural explicava a etologia e a fisiologia da temida cascavel: “[A cobra] fica na paciência, mas também é difícil pegar [picar] e [a pessoa] escapar”. Ao contrário da jararaca, que, segundo outro agricultor, é “braba”. “Quando vê a pessoa”, continuava, “arma o bote, esperando.”

Embora disseminada, a distribuição nominal das serpentes não parece totalmente estabilizada. As cobras nem sempre são conhecidas ou nomeadas. Depois de citar as sempre temidas cascavéis e quatro-presas, um de meus interlocutores em Januária concluiu dizendo: “Tem outras aí, mas eu não sei o nome, não”. Há igualmente muitas controvérsias e contradições. Em certa ocasião, um morador de Urucuia me explicava o quão equivocadas podiam estar as pessoas quando distinguiam duas espécies de cascavéis pela cor: “O povo diz que tem o cascavel mais preto e outro mais dourado. Não é assim, não, moço! É o mesmo bicho, mas que trocou de pele”. Algumas cobras poderiam ainda se “misturar” umas com as outras, instituindo porosidades entre as categorias classificatórias. A quatro-presas, por exemplo, seria fruto do “cruzamento” de uma jararaca com uma cascavel, defendia veementemente um rezador de Januária (quando eu apresentava a teoria aos meus interlocutores, poucos pareciam concordar, a maioria discordar, e outros nem sabiam opinar). As serpentes também conseguiriam, elas mesmas, se metamorfosear. A jararaca, que normalmente possui veneno menos potente do que a cascavel e a quatro-presas, quando vítima de agressão, costuma se vingar. Nessa condição, o animal deixa de comer e beber enquanto suas toxinas se tornam cada vez mais concentradas. “Fica forte!”, dizia um criador de Urucuia. “Se pegar, mata na hora”, afirmava outro.

As serpentes também são classificadas como “não venenosas” e “venenosas”. Os animais não peçonhentos são maioria na região. Em geral, as pessoas entendem que eles não representam maiores riscos, com exceção da sucuriú, que pode matar, por contrição, criações e – diz-se – até seres humanos (jiboias, salamantas e cainanas podem dar algum prejuízo econômico, quando predam pequenos animais das casas, como cães, pintos e galinhas). As serpentes venenosas, por sua vez, são descritas como extremamente “perigosas”. As mais lembradas são as cascavéis, as quatro-presas, as jararacas e as corais-verdadeiras – as duas primeiras, tidas como as mais peçonhentas e mortais dentre elas (“É as de mais veneno aqui. É as cobra de mais respeito”). Existe igualmente alguma controvérsia em relação a estas classificações. Há quem diga, por exemplo, que, ao contrário do que se fala, “a jiboia tem veneno, sim!”, que pode espalhar pelo “bafo” (“se jogar na gente, onde pegar a pele fica com aquela mancha”). A cobra de duas cabeças, explicava certa vez um amigo de Urucuia, “quase ninguém sabe”, mas ela consegue inocular toxinas por meio dos ferrões que teria em ambas as extremidades. Também não foram poucas as vezes em que meus interlocutores me perguntavam se a coral-falsa não tinha mesmo veneno, como se diz, ou se a cainana era de fato não peçonhenta. Alguns ainda costumavam me dizer que, “para eles”, “todas as cobras têm veneno!”. E que, por isso, devem ser mortas quando encontradas.

O veneno é a principal razão pela qual as serpentes são conhecidas, ao lado de escorpiões, aranhas e lacraias, como “bichos maus” ou “ruins”. Portadores de toxicidade, os animais peçonhentos seriam como pragas ou criaturas de perturbação (Sordi & Lewgoy, 2017; Tsing, 2018). Associada à agressividade, a ideia de veneno evoca conflitos e relações agonísticas. Na agropecuária, herbicidas são usados para “combater” ou “matar” pragas em lavouras e pastos. Formicidas fazem o mesmo com as formigas. No universo das intrigas e questões, que envolvem pessoas e bichos, soluções drásticas podem ser alcançadas com o uso de estricnina: “Ali no Nelson, ê, cachorro e gato não passava de lá”, dizia-me uma velha senhora urucuiana. “Era só chegar que ele punha veneno e morria.” À semelhança dos Karitiana (Vander Velden, 2011), os produtores rurais de Urucuia e entorno ainda associam as toxinas a substâncias “amargas”, como o fel, ou “quentes”, como as pimentas. O “estriquinino”, usado para matar animais indesejados e até pessoas, “é amargoso”. Uma mulher me explicava que para saber se alguém foi realmente picado por cobra é preciso ingerir um pouco de pimenta. Se a pessoa comer e sentir a ardência do alimento, ela não foi picada; se não sentir, está envenenada (o calor da toxina a torna insensível ao ardor da pimenta). O fogo também é bastante utilizado para qualificar eventos que acabam, ou podem acabar, em conflitos abertos ou generalizados 18 18| Um dos meus interlocutores de Urucuia contava a história de uma folia de reis que terminou em briga, destacando que o artefato ritual de um dos foliões (sua “toalha”) “pegou fogo”. .

No caso das cobras, os vínculos entre toxicidade, agressividade, sofrimento e morte remetem evidentemente à figura do diabo (que também pode ser nomeado de “Coisa Ruim”). Segundo o relato de um rezador de São Romão, a serpente é a própria figura do Tentador, ao oferecer a “pinha” que provoca a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, condenando os seres humanos ao pecado e ao suplício do trabalho como única forma de sobreviverem. A proximidade com os répteis é ainda mais significativa porque, além de disseminar o mal, o diabo também é criatura insidiosa e difícil de detectar (Pereira, 2012b PEREIRA, Luzimar Paulo. 2012b. “As vicissitudes da fama: os dons divinos e os pactos demoníacos entre os tocadores de viola de dez cordas do norte e noroeste mineiro”. Revista de Antropologia, 55(2): 1047-1083. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2012.59308 .
https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
; 2018 PEREIRA, Luzimar Paulo. 2018. “O diabo da dúvida: histórias de pactos com o demônio no norte e no noroeste de Minas Gerais”. Rev. Mus. Antropol., 11(1): 26-34. http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1852-48262018000200004⟨=pt .
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). O vínculo com poderes demoníacos parece dar sustentação a alguns comentários que atribuem às cobras intenções deliberadas de “fazer maldade”. Se, por exemplo, Deus garante a todos os “viventes” os direitos de “matar para comer” e também “se defenderem”, as serpentes promoveriam uma verdadeira insubordinação: “A jararaca mordeu o rato e nunca precisou de comer! Bicho danado!”, dizia-me um amigo urucuiano. Em Januária, um pequeno criador me falava, indignado, de uma cobra que atacava seu gado sem a desculpa de se proteger: “O cascavel batia no último [bezerro] da fila. Não tinha perigo de[ele] pisá nela, não!”.

A agressividade e a proximidade com o demônio não devem, contudo, nos enganar. Não é consensual entre meus interlocutores a ideia de que as serpentes possuem a “intenção” de “fazer maldade” – como se imagina que o diabo tem. Enquanto bicho , a cobra também compartilha com outros animais domésticos e silvestres a condição de ser bicho bruto , cujas ações (muitas vezes, violentas e mortais) devem ser compreendidas como atos irrefletidos de uma “criatura de Deus” (ao contrário do que se fala do cristão , o ser humano, capaz de refletir sobre suas próprias ações). A inocência presumida das serpentes implica a exclusão de suas atividades enquanto objetos de avaliação moral, na medida em que evoca a ignorância do que é o bem e do que é o mal (Teixeira, 2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando em mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro. ). “Às veiz”, dizia um produtor urucuiano, “ela tá só se defendendo.” “Foi assim que Deus fez”, completaria outro. Um rezador de São Romão me explicava com mais detalhes e exemplos:

Deus deixou porque é a defesa dela [da cobra]. Mas tudo quanto é vivente… Você pisa no pé de um cachorro, ele te morde. Um gato tá na beira do fogão pra lá, pra cá, você pisa nele e ele morde. Os cristão, um pro outro, você passa daqui pra lá, ele tropica no seu pé e vai lá. Quando torna a volta, ele […] torna a tropicá. Daí você fala: “Você tá me insultando! Cê tá cego? Cê não tá me vendo?”. Já tem conversa! […]. Você pega uma piranha: se você facilitou e entra na água, ela morde. Até um mandi, ele bota espora. Cada um [dos viventes] tem uma defesa.

Mais do que ter a intenção de “fazer o mal”, as serpentes parecem, em diversos relatos, instanciar a maldade nos modos como se engajam com o mundo ao seu redor 19 19| Teixeira e Ayoub ( 2016 ) argumentam que, para os pequenos produtores do sertão cearense e dos faxinais paranaenses, cada criatura tem uma “natureza”. A noção não evoca uma essência, mas indica o modo como os seres se engajam com outros seres. A “natureza” de uma criatura é sempre relacional. Em Urucuia e região, a proposição também pode se referir aos humanos. Há pessoas que possuem “olho-ruim” (a capacidade de disseminar ou fazer o mal apenas pelo olhar). E é muito comum ouvir coisas como “ele tem olho-ruim, mas é bonzinho”, o que acentua a avaliação de que não há intenções malignas em suas ações, ao mesmo tempo que destaca sua natureza má, enquanto criatura que faz mal, ainda que sem querer. Uma pessoa também pode ser “prosa-ruim” porque não combina comigo, mas pode eventualmente combinar com outra – o que demonstra mais uma vez que a qualidade “ruim” é sempre relacional (ver, neste sentido, Carneiro, 2015 ). . No início de 2024, Zé de Totonho, um dos meus principais interlocutores em Urucuia, explicava como as cobras conseguem fabricar suas peçonhas. Eu havia contado a ele que seu falecido pai me disse, certa vez, que as serpentes retiravam do “ar” a maldade que então transformavam em veneno. Ele se lembrou e ainda acrescentou que muitos de seus parentes mais velhos não faziam referência a um tipo qualquer de coisa ruim, mas ao que é conhecido em Urucuia e entorno como “vento mau”:

O pai contava, a mãe, a vó… que a cobra apanha o veneno do vento mau. Ela pula e pega com a língua [com o dedo indica a língua saindo da boca do animal]. Na hora, a cobra até pia, “piu, piu”. De noite, a gente tava em casa e ouvia o piado, lá longe… “piu! piu!”. Então, né?, o bicho é bom porque pega o vento mau, mas daí ele também faz o veneno que ofende a gente…

“Mal” da atmosfera, transformado e alojado no corpo dos animais, os venenos das cobras emergem, nas reflexões de Zé de Totonho e de outros moradores, como substâncias efeitos de um trabalho permanente de purificação. A atividade seria até benéfica aos seres humanos 20 20| Os camponeses franceses de Haute Provence dizem que as serpentes são benéficas à agricultura porque fabricam seu veneno extraindo as impurezas do solo, garantindo a fertilidade da terra (Musset, 2004 ). Em Bela Vista, Goiás, Zetinho, um benzedor de cobras, também dizia que os animais retiram as “impurezas” do ar para elaborarem suas toxinas (Alves & Araújo, 2005 ). . Dona Ernestina (mãe de meu interlocutor), a quem, depois, fui pedir mais explicações sobre o que seria o “vento mau” (“é doença”, ela me dizia, “que vem pelo ar”), lamentava a matança indiscriminada de serpentes: “Agora não tá tendo mais esses bicho, que nem cobra… Aí vem essa tal de covid que quase arrasa o povo, Ave Maria!, porque os bicho que devia pegá, matou tudo, acabou” (Em outras ocasiões, vale colocar um parêntese, a mulher não fazia nenhuma questão de esconder sua aversão aos animais). Associadas ao diabo (o Coisa Ruim) e agentes da maldade, ao mesmo tempo que podem ser “criaturas de Deus”, que não teriam intenção de fazer ruindade, as serpentes ajudam a conter o fluxo indiscriminado do mal e também corporificam a própria toxicidade. Em Urucuia e entorno, é comum se dizer que o ferimento causado por um “espinho de cobra” (seu esqueleto) envenena. Por isso, o hábito de enterrar os animais mortos em buracos no chão ou deixá-los em cima de cercas e galhos, de onde serão recolhidos por gaviões, corujas ou urubus.

“Ofensa de cobra”

O “mal” por excelência de uma serpente é a ofensa . O vocábulo evoca ato cujo resultado é a inoculação de veneno no sangue da vítima por meio de uma “mordida” ou “picada”. A ofensa pode ser entendida como uma forma de violação, o resultado violento de um encontro entre corpos induzido pela cobra (o “bote”) 21 21| A ofensa implica, claro, relação moral. Uma pessoa pode “ofender” outra quando parece desrespeitá-la. No entanto, o vocábulo também se refere ao ato de machucar com faca ou outro instrumento cortante. “Fulano foi ofendido de enxada”, alguém poderia falar. Num sentido geral, portanto, o vocábulo indica uma espécie de violação, seja moral (da honra das pessoas) ou física (de seus corpos). . A colisão é analogicamente associada a um “tapa”, uma “fisgada”, uma “batida”, um “baque”, uma “lapada”, uma “porrada” ou uma “pancada”. Zé de Totonho, meu amigo de Urucuia citado logo acima, descrevia o momento em que – ainda jovem – foi ofendido por uma jararaca quando trabalhava com o pai e o irmão na limpeza de uma cerca.

E aí gente foi, eu, meu pai e Léozin [o irmão]. Nós só roçava de um lado e de outro. Nós pegamos, eu, pro lado de fora, Léozin, para o lado de dentro. Aí fomo, né? Chegamos numa moita fechada, tinha um pé de sambaíba e um cipoal. E fomos, do lado de dentro, do lado de fora. Aí surgiu aquelas formigas de ferrão – a gente chama elas de Negra Mina. Começou a atacar a gente, mas até aí nunca tinha atacado, não. Aí eu senti aquele baque assim no dedo, aqui assim. E aí eu olhei na hora, né, porque [se] foi com a formiga Negra Mina, você não sente ela caminhar [sobre a pele], né? Aí eu só senti aquele baque. E aí, quando eu olhei, e aí quando eu olhei aqui, a cobra ia saindo ali. Aí eu falei “pai, a cobra me mordeu”. Eu tava do lado dele, mais Léozin. Daí Léozin bateu logo a foice nela, matou.

Em geral, os efeitos de uma ofensa de cobra começam a ser sentidos tão logo o veneno é introduzido na corrente sanguínea, podendo causar dores, inchaços, enjoos, vômitos, sede, sudoreses, empanzinamento, palpitações, tonturas, falta de ar, alterações da visão, arrepios, aquecimento do corpo, sangramentos pelos poros e gengivas, paralisias, perda de membros e até a morte. “Daí a pouco”, continuava Zé de Totonho, “a perna parece que foi, tipo, adormecendo e doendo, e doendo, doendo, doendo, aquela dor assim… imensa mesmo!” Um rezador de São Romão me explicava: “Dói. E aquela dor dá angústia nas pessoas. Ele entreva. Se é uma perna, entreva a perna. Não consegue caminhar. Se é uma criação, entreva aquele lado que ela mordeu. A criação não consegue pisá, firmá”. Uma mulher descrevia o que o pai sentiu depois de ser ofendido por uma jararaca. Enquanto o veneno se espalhava pelo corpo da vítima, dizia, “o calor ia subindo na perna dele. Subia um pouco aqui. Depois, mais pra cima”. E concluía: “E o sangue! A boca ficava tudo vermelha”.

Diferente do que fazem os biólogos e os profissionais da medicina, os pequenos e médios produtores de Urucuia e região não costumam distinguir os efeitos dos ataques por espécie de serpente 22 22| Um pequeno produtor de Urucuia distinguia a peçonha da jararacuçu de outras cobras. Ele dizia que o veneno do primeiro animal f ica parado no local da picada, causando paralisia e perda do membro atingido, enquanto o das demais cobras circula pelo corpo todo da vítima. . Na perspectiva de meus interlocutores, todos os envenenamentos são processos de composição espúria. Ao ser introduzida na corrente sanguínea e se espalhar através do sangue, a toxina da cobra, à semelhança do “mau” espinoziano, destrói “a relação do nosso corpo” (Deleuze, 2002DELEUZE, Gilles. 2002. Spinoza: filosofia prática. São Paulo, Escuta.: 28): ela o desmembra, o degrada 23 23| Para Espinoza, o “bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um alimento. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso, ainda que se componha com as nossas partes, mas sob outras relações que aquelas que correspondem à nossa essência: por exemplo, como um veneno que decompõe o sangue” (Deleuze, 2002: 28). . “Daí pra cá”, dizia Zé Totonho, “minhas vistas diminuiu, precisava de usar óculos.” “Era só chegar na lua nova, que é a lua forte”, acrescentava, “eu sentia dor na cana do osso, aqui assim, ó, aquela dor fina, tipo no dia que eu fui mordido de cobra. E, às vezes, engrossava. Até pouco tempo ainda inchava o pé.” Sobre a ofensa de cascavel, costuma-se dizer que “quando não mata, aleija!”. Não só ela. “Levou pra Arinos, de Arinos pra Brasília, mas cortou a perna dele”, lembrava urucuiano o caso de um parente, ofendido por jararaca. “Não teve jeito. […]. O tio tinha que usar perna de pau. No Urucuia, cê perguntava ‘Cê conhece o Miguel Perna de Pau?’, o povo mais velho tudo conhecia.” No limite, a própria morte deve ser entendida como o desmembramento total do organismo, quando a alma se separa do corpo 24 24| “Sangrar” desfaz a integridade corporal. Quando uma cabeça de gado é morta para se transformar em comida, o ato precede o momento em que o animal é esquartejado e transformado em “carne” (Pereira, 2012a ). Circulando no ser vivo, o sangue parece garantir a integridade do corpo, da mesma medida em que, fora dele, contribui para sua dissolução. . “O vivente vai entrevando, entrevando, vai endurecendo e morre.”

A ofensa de uma cobra venenosa não afeta apenas o indivíduo vítima da picada. A degradação e o desmembramento fisiológico dos corpos correspondem à degradação e ao desmembramento dos agrupamentos domésticos, quando famílias constituídas em torno das casas (as unidades efetivas e afetivas de produção e consumo) podem se desarticular com a perda de seus membros devido à morte ou ao aleijamento. Em geral, a vítima de uma picada é uma pessoa em idade produtiva 25 25| No Brasil, em 2022, os “acidentes ofídicos”, na linguagem dos profissionais da biomedicina, vitimaram principalmente homens na faixa dos vinte aos sessenta anos (Governo Federal, 2024 ). . Leia, de Urucuia, narrava causo de uma comadre, com quase cinquenta anos, vítima de uma quatro-presas que praticamente imobilizou sua perna direita: “Atrapalhou a vida dela, né? A mulher era trabalhadeira […]. Mas, aí, depois disso parou de trabalhar. Na casa dela, ela era um asseio na casa, os filhos não ajudava, aí já não fazia mais nada. E ela inquieta: ‘Ah, não aguento mais vê minha casa nesse tipo não [bagunçada]’”. Belisário, da Chapada Gaúcha, relatava-me preocupado o caso de um cunhado seu, com pouco mais de quarenta anos, picado por cascavel: “Como vai sustentar a família agora, moço?”, perguntava. Segundo sua descrição, o homem capinava pasto quando foi atingido na mão:

É difícil salvá, quando não morre, fica aleijado… [O] cunhado que ela mordeu, faz dois mês, virou aleijado, perdeu a mão. Ficou em Brasília, internado, mais de mês, mexeu e virou, endureceu a mão. A mão direita. Ele é motorista. Ainda tá inflamado ainda, aquelas pereba. Foi a cascavel. Ele lascou a mão, partiu.

Os relatos e as reflexões de meus interlocutores ganham contornos mais dramáticos quando se nota que a maior parte das ofensas ocorre nos momentos em que as vítimas estavam trabalhando 26 26| É importante deixar claro que as reflexões e emoções desencadeadas pelas ofensas de cobra podem variar a depender da vítima: homem adulto, mulher ou criança, por exemplo. . Os ataques de cobra ocorrem durante as atividades que, paradoxalmente, asseguram a existência e a continuidade das pessoas, individualmente e em família. O “trabalho na roça” – que inclui o “trabalho na casa” – é entendido por muitos dos meus interlocutores como condição sine qua non para o afastamento dos “bichos do mato” e de outras ameaças que constituem perigos aos seres humanos e suas propriedades. A atividade é pensada como uma peleja , uma forma de luta contra certas criaturas (plantas, animais, pessoas) para que se “vinguem” e “rendam” outras (plantações, criações, famílias). Maria do Socorro, com quem tive a experiência de encontrar a jararaca no cômodo de sua residência, narrada mais acima, explicava-me como foram os primeiros anos na beira do Ribeirão de Areia, no tempo em que ali “era um cerradão grosso”:

Tinha onça, cascavel, guará… Eu vinha mais os meninos e dormia tudo dentro desses forno de fazer carvão. Cortei os pau no braço até levantar um rancho ali. Daí, a gente foi ficando. Um dia, as formigas – esses formigão vermelho – pegou na casa toda. Tava eu e os menino… O marido tava trabalhando mais um fazendeiro lá… apartar o gado. A gente correu pra fora no meio da noite. E aqui cheio de onça, cascavel, guará…

É, portanto, o trabalho , enquanto peleja e, consequentemente, sofrimento , que transforma o “cerrado grosso”, dominado por criaturas não humanas, num território habitado por famílias e agrupamentos de vizinhança. A luta ainda garante que, após realizada a ocupação, os “bichos do mato” não “tomem de conta” daquilo que foi duramente criado e precisa ser zelosamente mantido pelos humanos e seus parceiros animais. Os corpos, principalmente as mãos e as pernas (significativamente, os membros mais atingidos pelas picadas de cobra), não são apenas os instrumentos da atividade do pequeno produtor e da dona de casa, mas testemunhos de seu engajamento com o ambiente 27 27| Como indicado pelo/pela parecerista (a quem agradeço desde já), meu argumento aponta para dois temas intimamente relacionados que mereceriam reflexões posteriores. Por um lado, a linguagem cristã do trabalho, como atividade penosa, remete diretamente ao mito da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, em que a serpente desempenha papel central, ao ofertar a maçã/pinha/veneno, o qual tem como resultado a condenação dos seres humanos ao “sofrimento do trabalho” (o que, por outro lado, também transforma a atividade laboral em fonte de prestígio e honra) (ver Woortmann & Woortmann, 1997 ; Brandão, 1999 ; entre outros). Por outro lado, a ideia de “trabalho” como “peleja” encontra ressonância em pesquisas que tratam da noção de “luta” em diversos planos de significação, como “luta pela terra”, “luta política” ou como expressões de “relações agonísticas” entre famílias e vizinhos (Comerford, 1999 , 2003 ; entre outros). . Por meio deles, familiarizam-se os territórios onde se vive, se procria e se rende. O contrário é o veneno, que destrói, degrada e desmembra. A boa relação, na qual o engajamento corporal promove a vida, se contrapõe à má relação, que produz a morte 28 28| Poder-se-ia explorar um contraste análogo, entre “comida” e “veneno”, coisa que parece bastante forte no pensamento e nos atos dos meus interlocutores (inclusive, há interditos alimentares quando uma pessoa é ofendida). O valor existencial do alimento é constantemente reforçado, como algo que remete à vida, à força, à alegria, em contraposição às toxinas e às doenças, quase sempre associadas à fraqueza e à morte (“a pessoa tá doente, não come quase nada…”). Não se excluem, aliás, casos de corrupção alimentar, como o envenenamento da comida, coisa que já ouvi algumas vezes como algo comum de se acontecer. .

“Tem que matar!”

Embora sejam criaturas de má relação, as serpentes não são costumeiramente perseguidas ou caçadas pelos seres humanos. As cobras, em geral, são mortas apenas quando acontecem os encontros. Não se observam nos abates cuidados especiais para não se “judiar” dos bichos, o que parece ser comum nas matanças de galinhas, porcos, bezerros, vacas e bois destinados ao negócio ou à alimentação (quando se faz de tudo para que as vítimas não sofram em demasia). Não se notam igualmente, entre aqueles que matam ou testemunham as mortes, sentimentos de “dó” ou “pena”, que poderiam atrapalhar as atividades e indicar alguma empatia com as cobras, como se vê com frequência nas “matações” de animais de criação (Brandão, 1999BRANDÃO, Carlos Rodrigues. 1999. O afeto da terra: imaginários, sociabilidades e motivações de relacionamentos com a natureza e o meio ambiente entre agricultores e criadores sitiantes do bairro dos Pretos, nas encostas paulistas da serra da Mantiqueira, em Joanópolis. Campinas, Editora da Unicamp. ; Pereira, 2012a PEREIRA, Luzimar Paulo. 2012a. “Os sacrifícios da carne: a morte do gado e a produção dos banquetes nas folias de Urucuia, MG”. Religião e Sociedade, 32(1): 71-96. https://doi.org/10.1590/S0100-85872012000100004 .
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). As serpentes podem ser mortas com pauladas que esmagam suas cabeças ou quebram suas colunas, cortadas em pedaços por artefatos afiados, afixadas ao chão com pregos e marretas, dilaceradas por pneus de automóveis, caminhões e ou motos, ou perfuradas a tiros de revólver ou espingarda. Há cobras que são “mais difíceis” de matar. Umas são muito “ligeiras”, como a caninana; algumas, à semelhança da jararacuçu, reagem e avançam sobre os matadores; outras ainda, tal qual a sucuriú, parecem mais resistentes às pancadas, às perfurações e aos cortes.

Não há artefatos especialmente fabricados para os abates. Os instrumentos utilizados nas matanças são ferramentas do trabalho agrícola e pecuário, madeiras encontradas nas matas ou dentro das casas, armas de caça ou defesa pessoal, veículos automotores úteis aos deslocamentos de pessoas, animais e mercadorias, entre outros. O uso dos equipamentos cotidianos contra as cobras pode comprometer seu funcionamento. Uma espingarda utilizada para matar uma serpente precisa ficar pendurada numa parede com o cano apontado para baixo durante, pelo menos, três dias. Do contrário, dizem meus interlocutores, a arma “molha” e se torna inutilizável (incapaz de “queimar” a pólvora). A bricolagem em torno dos instrumentos do dia a dia reafirma o caráter ocasional das matanças. Associado ao aparecimento repentino das cobras, o abate também ocorre de modo não planejado. Uma mulher de Urucuia me contava um “causo”, ao lado do marido. Dizia ela:

Eu tava aqui na cozinha e escutei a pancada (puf!). Toda vez que ouço uma coisa cair, mesmo se eu tiver deitada, eu pego a lanterna e venho cá pra ver o que é. Aí eu fui olhá. Quando cheguei lá, ela tava na sala. Tinha caído lá e tava lá. Aí eu vim aqui [para cozinha] correndo, panhei um pau e matei. [Bateu na cabeça, né?, perguntei]. Não, você tem que dividi no meio e quebra o espinhaço dela. Aí acaba a reação, né?

Os instrumentos das matanças devem ser “pesados”, “duros” ou “afiados”, capazes de destroçar, quebrar, esmagar ou violar os corpos de criaturas consideradas “leves”, “ligeiras” e “moles”. Como uma inversão do envenenamento que, por dentro , combina o veneno ao sangue para degradar e desmembrar o organismo da vítima, o abate, por fora , põe em contato serpente e objeto material com o objetivo de comprometer a integridade física do animal. A morte acontece quando a cobra cessa totalmente seus movimentos (“acaba a reação”). O corpo mutilado e sem vida do réptil é a anulação de sua habilidade de se deslocar de modo ligeiro, insidioso e difícil de rastrear ou pegar. A serpente se torna, então, praticamente inofensiva às pessoas e às criações. Com o abate, a descontinuidade da vida implica a descontinuidade dos modos pelos quais ocorrem os engajamentos mútuos – e indesejados – que unem os animais aos demais viventes.

Ao demonstrar meu interesse pelo tema das serpentes, muitos dos meus interlocutores, principalmente aqueles com os quais tinha pouca ou nenhuma intimidade, suspeitavam (“Pode matá ou não pode matá? Porque, às vezes, eu falei que matei e você quer saber se eu tô matando…”). Eles temiam que eu os denunciasse por causa do seu hábito de matar os animais. A cisma que por vezes minha presença despertava não impedia, no entanto, que muitos deles abatessem as cobras ou me relatassem os abates. O que me parecia significativo não era apenas o gesto estrito de matar, mas a necessidade de justificá-lo. “Se eu ver no cerrado, não mexo não”, falava um produtor, “deixo ir embora. Agora, se tiver perto de moradia de gente…” Numa ocasião, um agricultor de Urucuia conversava sobre o assunto comigo e um companheiro de trabalho:

Uma vez, foi na sexta-feira da paixão… […] [a mulher, a esposa,] tava com as galinha… Debaixo do pneu lá, tinha uma quatro-presa… desse tamanho assim, ó. Quase pegou ela. [“Matou?”, perguntou o colega]. Matei. […] É o lugar onde os menino mais fica, debaixo do pé de acerola.

O abate das cobras é defendido como um gesto profilático: o animal deve ser morto antes que possa atacar pessoas ou criações. Há lugares em que se pode até transigir a presença dos répteis (“matas”, “cerradões” e “cabeceiras de veredas”, por exemplo), mas existem outros de onde eles devem ser totalmente banidos. A casa – conceito que parece englobar a habitação propriamente dita e também roças e pastos associados – é o local por excelência onde a presença das serpentes é considerada inadmissível. Exceção feita a alguns poucos “benzedores de cobra” – de quem falaremos mais adiante –, praticamente nenhum dos meus interlocutores cogitava aceitar a presença do animal venenoso no interior ou nas proximidades das residências 29 29| As cainanas não peçonhentas são exceções. A espécie é tolerada por muitos moradores porque ela se alimentaria das serpentes peçonhentas, como jararacas, cascavéis e quatro-presas. . “Antes do cara benzer [o lote do Projeto de Assentamento]”, dizia-me um agricultor urucuiano, “tinha uma ali dentro de casa. Já de noite, saí pra urinar, quando olho pro lado, lá ela! Era um mundo de cascavel! Matei!” As referências, nos relatos, aos lugares onde “passa a criação”, onde se está “trabalhando”, onde “brincam os meninos”, onde “tava a mulher”, onde se “come o almoço”, em meio a quartos, salas, alpendres, quintais, terreiros, banheiros, pomares, hortas, lavouras, pastos, trilhas e estradas, parece indicar o sentido mais profundo do abate: afastar dos lugares familiarizados os “perigos” associados ao mal . “Se não matar”, explicava um técnico do IEF, “o povo chama de louco, bobo. Que [ele] pode ser ofendido, se o animal for venenoso. E se não for, ainda pode pegar galinha e pintinho.” 30 30| Logo nos meus primeiros dias de pesquisa no norte e noroeste de Minas Gerais, não pude deixar de notar a presença constante de amuletos afixados na frente das casas, em locais específicos no interior das moradias, em currais, nas roças ou nos pastos, cujas funções primordiais eram “afastar” ou “proteger”, do “mau-olhado”, da “inveja”, da “fofoca”, do “feitiço”, tudo que, ao entrar em contato, pode destruir, desmembrar, degradar, adoecer ou matar. Eixo de incessantes fluxos de pessoas, bichos, coisas e substâncias diversas (Comerford, Carneiro & Dainese, 2015 ), as residências e locais específicos em seu interior e entorno estão sujeitos a inúmeras invasões indesejadas. Assim como os ninhos de marimbondo, crânios ou chifres de boi, vidros com pimenta malagueta, imagens de santo, trechos de rezas, ramos de alho, entre outros, que podem ser vistos pendurados em alpendres, janelas, portas, telhados, troncos de pequenas árvores numa horta, estacas ou cercas, entendo que o abate de serpentes também parece servir como dispositivo capaz de afastar o mal.

A matança profilática de serpentes não se restringe apenas a uma única casa (a do próprio matador). O ato é extensivo ao conjunto de sítios, fazendas, trilhas e estradas de um determinado território habitado por diversas famílias e vizinhos. “Tem que matar”, dizia-me um agricultor de Januária, “senão pode pegar alguém” – e ele se referia a qualquer um dos que moravam nas imediações. Em conversas com membros da Polícia Militar Ambiental, ouvi que não há registro de ações oficiais para coibir as matanças de serpentes em Urucuia e entorno. Na verdade, o que escutei foi justamente o oposto. Em um dos municípios que visitei, fui informado de que pelo menos um policial da corporação concordava com os abates (as cobras, para ele, seriam “muito perigosas”). O técnico do IEF, citado mais acima, também me dizia que a matança de animais silvestres só é punida na região quando há alguma denúncia. “A pessoa faz sozinha”, pontuava, “e ninguém vai se vangloriar disso.” No caso das serpentes, meu interlocutor ainda acrescentava que somente os vizinhos dos matadores poderiam testemunhar os abates, mas eles também matavam. “Como é da cultura matar as cobras”, concluía, “ninguém denuncia.” Ademais, ele destacava: “ Matar é ajudar os outros ” (destaques meus).

Ao prometerem proteção generalizada, as matanças informam que a “peleja” associada aos processos de familiarização de terras sempre em risco de se desfamiliarizarem não é vivida como algo restrito aos limites de um único agrupamento doméstico 31 31| Não se exclui a possibilidade de alguém, em função de desavenças ou malquerências, deixar de abater uma serpente para prejudicar outra pessoa, embora eu nunca tenha ouvido caso a respeito. A eventualidade, no entanto, é até lógica. Se, como veremos adiante, é possível enviar cobras, por meio de “rezas” e “feitiços”, para prejudicar inimigos, por que não simplesmente deixar os animais por ali, perto de quem não se gosta? . Os abates operariam, assim, um importante e significativo deslocamento. Ao serem executados, eles não evocam apenas a ruptura das relações agonísticas que vinculam homens e cobras, mas também dão ensejo à produção e à qualificação das interações que conectam os seres humanos entre si e com outros animais 32 32| A matança de serpentes ainda pode ser executada por ou com a ajuda de outros animais, silvestres ou de criação. Em uma rede social, um amigo urucuiano me enviou uma mensagem, junto da qual estava anexada a imagem de uma cascavel: “Então, a gente tava aqui em pé, na área do fundo do rancho, e aí escutamos um barulho de shiiiiiii [imitando uma cascavel], esse barulhinho que a cascavel fazia ali, né? Tava próximo ao carro. Daí eu falei assim: ‘Será que é o pneu do carro?’. E aí eu fui caminhar pra perto, pra mim ver – e tinha dado uma chuva aqui, sabe? – e aí eu fui caminhar pra perto pra ver, quando eu vi os gatinho tava todo arisco, olhando ela. Então, foi os gatinhos que atiçaram ela e ela ficou fazendo esse barulho, né?, shiiiii. E aí, nessa posição, a gente afastou os gatinho e o dono da casa matou ela. Pra mais emoção ainda, a gente tava sentado na área, mais à noitizinha, passou uma outra na área, seguindo pelo mesmo caminho que a outra tinha passado. E aqui eles falaram que a cascavel anda o casal, né? Então, essa provavelmente tava indo procurar a outra. E aí o pessoal matou também. Porque é uma área que tem criança e eles ficaram com medo e tal. Foi isso”. Gatos, cães, galinhas, cavalos, burros, bois, seriemas, saruês, entre outros, incluindo uma ou outra cobra não peçonhenta, como a cainana, são frequentemente entendidos como extensões dos próprios seres humanos, servindo como linhas de separação e proteção, atacando, predando ou enviando sinais de alerta contra a invasão de serpentes e outras criaturas “más”. A atividade pode garantir a alguns animais privilégios no interior do sistema de considerações que produz famílias e territórios. “Não tem trem melhor que cachorro de roça, não, meu amigo! Ele que descobriu a cobra enrolada no meio dos três toco.” . As vidas das pessoas e de inúmeras outras criaturas estão intimamente atreladas ao fatídico destino das serpentes. Enquanto a “ofensa de cobra” se aproxima da noção de tragédia, cujos efeitos mais drásticos, vimos, são desmembramentos de corpos individuais e coletivos, o abate profilático promove – através de uma lógica análoga à do sacrifício (Lévi-Strauss, 1976LÉVI-STRAUSS, Claude. 1976. O pensamento selvagem. São Paulo, Editora Nacional. ) – a continuidade, o bem comum e a união do povo . As matanças convertem o veneno em dom. Realizadas, elas são interpretadas como demonstrações pública s da consideração que se tem por parentes e vizinhos 33 33| Louis Marcelin ( 1999 ) argumenta que a consideração é, ao lado do sangue, um dos princípios que definem a proximidade no Recôncavo Baiano. A ideia “sugere um conjunto de proposições compartilhadas pelos agentes sobre o que eles entendem como obrigações contidas nas noções de parente e família” (1999: 46). . Ao produzirem descontinuidades nos corpos das serpentes e nas relações que as conectam aos seres humanos, os abates também acionam um princípio de aproximação que ajuda a constituir famílias e territórios.

O sentido das matanças não se encerra com a morte do animal. Muitos de meus interlocutores entendem que há partes dos corpos das serpentes que possuem algumas utilidades 34 34| As pessoas não demonstram “nojo” ao verem as partes destruídas e expostas do cadáver de uma cobra. A morte do animal não desperta nenhum tipo de sentimento de aversão, que se observa, por exemplo, no abate de uma vaca (quando as mulheres não conseguem sequer ver, quanto mais tocar, o sangue). O “nojo”, na verdade, se revela com muito mais frequência diante da serpente viva. Conheci pessoas em Urucuia e no entorno, por exemplo, que sequer conseguiam olhar a imagem de uma cascavel no meu celular. . A gordura da sucuriú, transformada em óleo engarrafado, é usada no tratamento do reumatismo, em seres humanos, e da antrogripose, em bezerros. O guizo da cascavel – torrado e moído – ajuda a curar as ofensas do animal e a minimizar possíveis sequelas. Alguns violeiros colocam o “chocalho”, como também é nomeado, no bojo de suas violas para garantir proteção contra “feitiços”. Os produtos do abate circulam como “agrados”, “presentes” ou “mercadorias” entre famílias, vizinhos e amigos. “Finado Antônio sempre pedia pro pai mandar chocalho de cascavel pra ele”, dizia Zé de Totonho. “Ele torrava e colocava moído na comida dele. Diz que melhorava a dor, né?” Uma amiga também me falava: “O Noca tem óleo de sucuriú na casa dele. Se você pedir, capaz dele dá um poco procê”. Deixar o cadáver de uma serpente à disposição de aves carniceiras ou enterrá-lo em um buraco no chão também é forma de demonstrar consideração pelos outros, humanos e não humanos. Alimentados, os gaviões, os urubus e as corujas são reconhecidos pelos seus papéis de “lixeiros do mundo”. Aos parentes e vizinhos, os gestos demonstram cuidado e preocupação com “os outros”. Como me foi várias vezes explicado, o “espinho de cobra”, quase tão perigoso quanto um bote, “ofende quem pisá em riba dele”.

As matanças t ê m ainda mais significado porque envolvem riscos aos matadores. Além de se depararem com algumas espécies agressivas e difíceis de matar, meus interlocutores comentam que uma cobra pode se vingar de uma tentativa malsucedida de abate. “Eu vi o cascavel lá”, dizia-me um amigo urucuiano, “mas não tive coragem de pegar não. Se ela não morre, vem atrás da gente depois.” A serpente, em termos nativos, espia. O vocábulo evoca uma tocaia, ou a ação de ocultar-se para observar e atacar um inimigo ou um animal de caça. Irineu, também morador de Urucuia, contava história de uma serpente cascavel que espiou um de seus vizinhos, tempos atrás:

Tinha um outro que morava do outro lado ali. Aí, ele evém pro Ribeirão um dia, uma cascavel jogou nele e ele meteu o facão nela, cortou um bocado do rabo dela. Passou uns dois mês – morava lá do outro lado do ribeirão –, passou uns dois mês, ele tava deitado, aí levantou, tava dentro de casa, e quando ele abriu a porta, tava a cobra rodeada na entrada da porta. A mesma com rabo cortado! Passou a mão na espingarda, matou ela… A mesminha!

O destaque dado aos ferimentos da serpente (“A mesma com rabo cortado!”) explicita a singularização do animal. A cobra, por assim dizer, ganha uma pequena biografia, que se confunde com o tempo que ela vai dedicar à execução de sua vingança. Não se trata de uma mera passagem do registro da espécie para o do indivíduo. O gesto de espiar está inscrito no rol de comportamentos virtuais de todas as serpentes, mas sua efetiva realização implica o engajamento do animal em uma relação singular com um outro igualmente singularizado. A questão da serpente com o ser humano passa a ser, nesse sentido, “pessoal”. As marcas que a cobra carrega no corpo são como os rastros de um encontro violento que precisa ser vingado. Para meus interlocutores, no período que se segue à tentativa de abate, a serpente deixa de comer e beber. Como resultado, ela “seca”, e, ao secar, seu veneno fica ainda mais forte. “Se pegar, mata na hora”, dizia um conhecido. Assim, se a morte do animal leva à sua transformação em coisas que se jogam fora ou circulam na forma de presentes ou mercadorias, a “espiação” evoca a transformação física e social animal, que se torna, então, um poderoso inimigo de um único ser humano.

“Benzimento para tirar cobra”

No início de 2022, visitei a comunidade rural do Quilombo, localizada no distrito de Olhos d’Água, nas proximidades do Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu, em Januária. Fui a convite de Antônia, moradora e guia na unidade de conservação, a quem eu tinha conhecido, dias antes. Segundo ela havia me contado, entre 2018 e 2020, um número muito grande de serpentes, acima do que se considera normal, apareceu nas propriedades de seus pais e tios (que eram vizinhos). As cobras surgiam em todos os lugares, inesperadamente. Nos pastos, nos entornos das casas, nos quintais, nas varandas, nos tetos das residências: “Onde você olhava, você via”. “A gente ficava com medo, cismada mesmo.” Razão, aos seus olhos, não faltava. Na ocasião, o pai perdeu um bezerro, um garrote e uma vaca, sem falar no poldro, todos picados por cobra. “Graças a Deus”, completava, “ninguém de casa [pessoa] foi ofendido.”

Antônia não sabia indicar a razão dos aparecimentos, mas dizia que a única coisa que deu um jeito no “problema” foi a ação de um “benzedor de cobra”, responsável por “mandar embora” do lugar os animais. Como pude ouvir de Dona Luzia, sua mãe, já durante os dias em que permaneci no Quilombo, a família tomou conhecimento do rezador depois de uma parente ter relatado um benzimento “bem-feito”, cujo resultado foi a expulsão de todas as cobras que estavam infestando a propriedade do pai. Ela contava:

No começo, essa Josefa [a parente de Dona Luzia] não acreditava. “O que tira cobra é pau, tiro. Não é reza, não!” O benzedor, diz que ouviu e ficou desafiado. Então, ela [a parente] disse que ele foi na caixa d’água e começou a rezar. De repente, um monte de cobra começou a aparecer e ir embora.

A partir do que foi relatado, Dona Luzia, por meio da própria Josefa, entrou em contato com o benzedor (também chamado por ela de “o homem das cobras”). O especialista vivia em Inhaúmas, distrito de Montalvânia, também no norte de Minas Gerais. Foi combinado que o rezador viesse ao Quilombo num dia e fosse embora no outro. Segundo Antônia, o “homem das cobras” veio com um sobrinho, na garupa de uma moto. Durante a visita, ele e o acompanhante ganharam almoço, janta e pouso na casa de Luzia e do marido. Não consta que tenha pedido dinheiro em troca da realização do “serviço”.

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. Diagrama da benzeção. O “x” representa os lados “fechados” pela reza

De acordo com minhas interlocutoras, o benzedor deu início às suas atividades logo que chegou 35 35| Segundo o depoimento de um rezador, antes de se encaminhar ao local onde será realizado o benzimento, o especialista precisa fazer uma oração contra “insetos venenosos”, “porque”, dizia, “você pode ser ofendido”. “Você tá com o corpo aberto. Você tem que se benzer primeiro, pra chegar naquele local.” . O benzimento começou quando o especialista rezou um Pai Nosso no terreno onde apareciam as serpentes, para, em seguida, proferir orações dedicadas a São Bento em três “cantos” e no “centro” de um quadrilátero que englobava a propriedade dos pais de Antônia e de seus tios (ver Imagem 1 ). As preces ainda introduziram os nomes dos donos das terras invadidas pelas cobras 36 36| Uma das diversas orações dedicadas a São Bento utilizadas nos benzimentos de propriedades rurais: “Jesus, Maria, José e São Bento/ são quatro grandes nomes/ Faz com que as cobras da chácara do Dr. Gontijo desaparecem/Em nome de Nossa Senhora do Desterro/ Amém” (Alves & Araújo, 2005 ). . Segundo me diria, depois, um rezador de Januária que vive às margens do rio Pandeiros, em cada um dos três lados onde são proferidas as orações, o benzedor precisa fazer um sinal da cruz utilizando-se de um ramo (“pode ser de qualquer planta”) e também dar um nó no cordão que carrega consigo (até o término da reza, portanto, serão dados três nós: “primeiro, na ponta cordão; depois, no meio; depois, na outra ponta”). Para “fechar o benzimento”, o especialista deposita o barbante no centro do polígono abençoado, alinhando-o ao caminho que o sol faz ao longo do dia (“uma ponta pro lado de onde sai, a outra pra onde entra”). No final, ele ainda reza o Santíssimo Soberano Deus, oração na qual atribui “toda a graça”, “toda a bênção” e “todo bem” ao Criador 37 37| Segundo Bauzino, a oração do Santíssimo Soberano Deus é utilizada para finalizar qualquer tipo de benzimento. “Ela é longa, bem longa.” Segue o seu encerramento: “Omnipotente, santíssimo e soberano Deus, sumo bem, todo o bem, bem completo, a Ti que só és bom, rendamos todo o louvor, toda a glória, toda a graça, toda a honra, toda a bênção, e todo o bem a Ti atribuamos para sempre”. .

A ideia era fechar , com a reza, os três “cantos” do polígono formado pelas propriedades, para que as cobras saíssem pelo quarto lado, deixado aberto , e que seguia em direção ao Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu, vazio de gente e criação. O cuidado era importante: as serpentes não poderiam ser expulsas em direção a lugares onde havia pessoas e animais domésticos; do contrário, alguém poderia suspeitar que as famílias estariam enviando as cobras de propósito (“Um vizinho até brincou”, dizia Dona Luzia: “‘Vê se não vai mandar elas pro lado lá de casa, não, hein?’”). Alternando preces propiciatórias e gestos que visam fechar parcialmente o terreno invadido, o “benzimento” era duplamente orientado. Se, por um lado, foi uma súplica a Deus e a alguns de seus santos, em especial a São Bento, “para ajudar” o rezador “a mandar os bichos sair”, por outro, ele também se dirigia às serpentes. “A gente”, dizia um benzedor, “fala pros bichos ir embora.” O objetivo último era “amansar” as cobras para tirá-las, em segurança, do lugar. Após o benzimento realizado no Quilombo, as serpentes, contava dona Luzia, saíram das propriedades calmas e até meio abobadas. Dias depois, exemplificava, apareceram três cascavéis que andavam lenta e despreocupadamente em sua fazenda. Uma delas foi encontrada no quintal; as outras duas, nas imediações do curral. A pedido do benzedor, nenhuma delas foi morta. “A gente acredita no trabalho dele, né?”

“Benzedor de cobra”

O que me foi relatado no Quilombo, em Januária, é algo que se repete com bastante frequência em diversos municípios localizados nos limites das regiões norte e noroeste de Minas Gerais. O aparecimento extraordinário de serpentes em determinadas propriedades e o aumento acentuado de ofensas em pessoas ou criações mobilizam inúmeras interações. As pessoas podem ou não explicar as causas das invasões e dos ataques. Há quem simplesmente diga que “não sabe” por que ocorrem os eventos; há ainda aqueles que especulam algum desmate ou incêndio perto, responsável por expulsar os animais para dentro das habitações humanas; assim como há quem desconfie que a presença dos répteis pode ser resultado de “feitiço” lançado por alguém “invejoso” ou com alguma “malquerência” (“Parece até mandado”). Seja qual for a circunstância ou o motivo alegado pelo interlocutor, o que parece ser consensual é a ideia de que a solução do “problema” com as cobras só pode ser alcançada com a intervenção de um benzedor (ou benzedeira , caso seja uma mulher).

O rezador – como também pode ser chamado – é o especialista que faz uso de preces e substâncias com o objetivo de realizar curas ou combater determinadas pragas que atacam animais, pastos ou lavouras 38 38| Há outras rezas que objetivam “mandar embora” outros bichos que também ameaçam criações, pastos e roças, como, por exemplo, o “benzimento” contra a “berne” que “pega no gado” ou contra as “lagartas” que atacam plantações. De um lado, as serpentes se aproximariam, então, mais uma vez, da noção de “praga”. De outro, os casos permitem que se possa interpretar a “reza” como um importante meio de produção para a realização das atividades agropastoris. . Da mesma maneira que ocorre em outras localidades de Minas Gerais (Pereira & Gomes, 2018PEREIRA, Edimilson de Almeida & GOMES, Núbia Pereira de Magalhães. 2018. Assim se benze em Minas Gerais: um estudo sobre a cura através da palavra. Belo Horizonte, Mazza Edições. ), os habitantes de Urucuia e entorno entendem que a eficácia do benzimento depende do proferimento correto das “palavras” que compõem as “orações”, tidas como poderosas em si mesmas e capazes de transformar as coisas ao seu redor. No caso das serpentes, as rezas devem ser realizadas “em nome de” – o que significa que se é obrigado a citar os nomes de – Deus, Jesus Cristo, Virgem Maria, um ou outro personagem sagrado e, principalmente, São Bento, o “santo que comanda as cobras”, segundo me dizia um falecido benzedor de Chapada Gaúcha 39 39| Dizia José Erotides: “Aquilo [o benzimento] é usado nas hora de grande precisão, quando a pessoa procura, né? Mas aquilo tem as palavra. Tem as palavra que fala naquilo. E as pessoa têm um santo. O santo que comanda as cobra, na época de Cristo, é São Bento. Cê tem que chamar primeiro Deus e a Virgem Maria, fala o nome de São Bento e de Deus e da Virgem Maria para curar os males…”. .

O benzimento é entendido como uma “ajuda” que se dá a quem “precisa” (“nos momentos de grande precisão”). O compromisso do rezador é fundamental. Um benzedor nunca pode negar auxílio a um necessitado. O especialista também não deveria pedir dinheiro pelo seu “serviço – a ele seria permitido somente receber”agrados” diversos, como alimentos, materiais de construção, roupas e artigos religiosos (“uma vela pra queimar”, “uma imagem de santo”). Há, no entanto, casos de rezadores que costumam “cobrar” por suas atividades. A prática pode dar o que falar, estimulando reflexões e eventuais julgamentos. Quando no Quilombo, mostrei surpresa ao saber que um benzedor havia pedido dinheiro para uma família de produtores em troca de um trabalho. Minha reação acabou desencadeando um pequeno debate. Antônia e Dona Luzia discutiam se um rezador podia ou não podia “ter lucro” com os benzimentos. A jovem dizia que não via problema na cobrança. A mãe, num primeiro momento, também argumentava que não tinha nenhuma “questão” com esse assunto. “Padre”, completava, “cobra para fazer missa, casamento… Por que benzedor não pode cobrar?” Depois de refletir um pouco, contudo, Dona Luzia ponderou: “O padre estudou para fazer o que faz, para aprender a fazer uma missa, um casamento”; já “o benzedor, não”. O especialista reza por causa de um “dom dado por Deus”. “De graça”, concluía, “Ele [Deus] dá; de graça, ele [o benzedor] cura.”

A natureza pública das atividades de um rezador assegura que ele esteja sempre sob o escrutínio das comunidades. Um benzedor de “boa fama” – personagem de relatos de sucesso – é bem quisto (e temido), tendo seu nome indicado para outras pessoas por aqueles que puderam beneficiar-se de seu trabalho. Há rezadores – como aquele que atuou no Quilombo – que são conhecidos para além dos limites de sua vizinhança, bairro, distrito ou cidade (“‘Onde é que fulano mora?’ A pessoa ia perguntando até chegar na casa dele”). A “boa fama” de um benzedor também pode ajudá-lo a criar laços de amizade, compadrio e parentesco. Um dos meus amigos em Urucuia, por exemplo, era muito próximo de um falecido rezador. Por causa de um trabalho bem realizado, eles se tornaram amigos e depois compadres. Ao terem suas atividades permanentemente avaliadas pelo público em geral, os benzedores podem, é claro, adquirir “má fama”. Os relatos de insucessos – cobras que não saem dos pastos, pessoas que morrem após reza malsucedida – marcam a carreira de alguns especialistas. Eles se tornam alvos de brincadeiras e chacotas que colocam em dúvida o poder de seu benzimento. “Diz que ele faz reza pra tirá cobra lá”, brincava uma mulher de Urucuia, “mas ele não acha o bicho nem se tiver debaixo da cama dele (risos).”

O que distingue um rezador, para além dos benzimentos que só ele parece saber realizar, é sua habilidade de perceber a presença das cobras sem precisar utilizar nenhum dos cinco sentidos conhecidos (coisa que as outras pessoas normalmente não podem). Adelino, meu amigo urucuiano que se tornou próximo de um benzedor, dizia que, certa vez, chamou seu compadre para retirar serpentes de sua propriedade. Os animais, ressaltava, foram responsáveis pela morte de duas cabeças de gado. O “prejuízo” foi grande. O relato de Adelino reforçava a “boa fama” do rezador. O especialista fez o benzimento e depois falou ao meu interlocutor que haveria vinte e três cobras no pasto. Ele ainda disse que, no dia seguinte, os bichos sairiam pelo mandiocal. “Avisa seu povo para não trabalhar na roça amanhã porque vai tudo pra lá.” O velho benzedor contou, no entanto, que uma cascavel não iria deixar o pasto. “Tá pisado de gado”, explicava. “Mas tá vivo. Se procurar, você vai achar.” Dias depois, completava Adelino, o animal foi encontrado: “O cascavel tava lá, direitinho!” 40 40| Zetinho, benzedor de Bela Vista, Goiás, dizia: “Já aconteceu comigo, de eu andar no meio do mato… Na verdade, eu não sinto dor de cabeça. Mas eu sei quando a cobra me viu, e eu não vi ela. Dá uma dorzinha de cabeça. Esse é um caso real. É um caso antigo, mas é real. Quando cê vê uma cobra venenosa… Cê não vê ela, e ela te vê… Dá uma dorzinha de cabeça” (Alves & Araújo, 2005 ). “. .

Na experiência dos meus interlocutores, o controle que os rezadores possuem sobre as cobras está relacionado à existência de formas interespecíficas de sociabilidade. Josias, um conhecido benzedor de São Romão, permite que algumas serpentes vivam e circulem pelo terreiro de sua propriedade 41 41| Agradeço a Luis Felipe Benites e Lucas Parreira Álvares – que pesquisam em São Romão – por me falarem do benzedor. A Lucas Álvares, em especial, por ter me apresentado a Josias. . Quando eu o conheci, no início de 2024, ele me falava de uma cainana e duas quatro-presas que “moravam” no seu quintal. “Elas vêm aí, e volta”, dizia. “As quatro-presas”, continuava, “eu saio folia de reis, às vezes, quando termina, […] eu chego, encontro deitada aqui, enrolada, e a outra na porta da sala. Parece que ela sabe! E eu chego, pego a chave, abro a porta, acendo a luz e as duas vai pra lá dormir.” 42 42| Suspeito que a prática de deixar as serpentes habitarem as proximidades das casas oferece a alguns benzedores a oportunidade de conhecer mais detalhadamente o comportamento e a fisiologia dos animais, coisa que parece desinteressante e vedada às demais pessoas. Josias me dizia: “Já vi muita gente falá que cobra, ela vai beber água, quando ela chega no lugar de beber água, ela põe o veneno lá numa folha, bebe água e depois ela torna pegar. Eu já prestei atenção e elas bebe, fica muito tempo envolvendo, banha. Eu nunca vi ela cuspindo veneno em lugar nenhum”. Josias também contava que dá nome aos animais, além de lhes oferecer alimento (“rato que aparece aqui”, “passarinho”) e alguma conversa. Certa vez, uma das quatro-presas que vive em seu terreiro chegou muito perto da cozinha, onde o benzedor estava jantando com o filho (que “não gosta de cobra”). “Eu falei, ‘ô Xaninha, vem aqui, não. Volta pra trás que aqui tem gente que não quer vê ocê’ (risos). E ela ficou assim, ela entendeu! Peguei a lanterna, alumiei ali e ela foi e entrou no paiol.”

A sociabilidade interespecífica e o intercâmbio comunicativo garantem que o rezador tenha “voz pra mandar” nos animais. “Se eu disser pra ir embora”, explicava um outro especialista, “tem que ir.” Bauzino, benzedor de Januária, com quem conversei em 2022, relatava que após “decorar” as orações utilizadas nos benzimentos, teve que aprender com o falecido tio – também rezador – a perder o medo das serpentes, manter relações de confiança com elas e ainda comandar os bichos usando a própria fala 43 43| A rigor, também foi o tio que ensinou a Bauzino os benzimentos. No entanto, como todos os meus interlocutores da região costumavam me dizer, ele também me explicava que as orações nunca podem ser ensinadas de homem para homem ou de mulher para mulher. Do contrário, elas perderiam a “força”. O poder dos benzimentos se mantém intacto apenas se eles forem transmitidos de um homem para uma mulher ou de uma mulher para um homem. No caso de Bauzino, o tio ditava as orações para a esposa do sobrinho escrever. Depois, ela lia o que estava escrito em voz alta para que o marido pudesse guardar as palavras (“decorar”). :

Apareceu uma [coral-verdadeira] lá, e ele me disse: “Tá na hora de você pegar essa aqui”. Eu fiquei receoso de pegar, mas ele falou: “Pode pegar sem medo!”. Aí eu fui lá e peguei no pescocinho dela […] e ela enrolou no meu braço aqui. E eu queria soltar, e ele: “Não, segura aí!”. Depois ele falou: “Solta ela aí!”. Soltei. Aí, ele foi, pegou ela e enrolou no meu pescoço. Gelada igual picolé (risos). Aí, eu querendo ficar com medo, e ele falava: “Não, pode ficar tranquilo!”. E ela com a cabeça aqui do lado. Ele falava: “Não fica com medo, não!”. Daí, dicumpoco, ele tirou do meu pescoço e botou no bolso da jaqueta. Mais pra frente, ele pegou, botou no chão e me falou: “Manda ela embora aí!”. E eu falei: “Vai embora, cobra, não perturba ninguém!”. E ela se mandou e saiu. Aí eu fiquei nessa de fazer os benzimentos, né?

O controle sobre os animais pressupõe, claro, a possibilidade de haver alguma resistência. Caso ela ocorra, o rezador pode intensificar as vozes de comando, ameaçar o animal, fazer uso de violência física e até matar a serpente, como ensinamento ou forma de punição. O mesmo acontece quando produtores, donas de casa, vaqueiros e carreiros se veem diante da “desobediência” de seus cães, gatos, galinhas, cavalos e bois (Andriolli & Pereira, 2016). Josias, de São Romão, contava causo de outra cainana que também habitava em seu terreiro, com quem, anos atrás, teve um “estranhamento”. O animal estava no interior do paiol no momento em que o rezador entrou para pegar um pouco de milho. “Quando eu abri a porta prá entrá pra dentro”, dizia, “ela olhou assim [desconfiada].” A cainana sinalizou mais hostilidades: “Ela fofou, pôs o cabo [rabo] pro lado e prararrrr [bateu no chão]”. Josias continuava:

Falei: “Xaninha, é eu, Xaninha!”. Ela não dominou, e eu peguei, fechei a porta. […] Quando tornei a abrir a porta, ela tornou mudá o esquema dela. Eu falei com ela, assim, ó: “Aqui é meu e cabe nós dois aqui, morano junto. Mas o dia que você me destratá e não deixá eu entrar aqui, eu te mato. Eu vou te matar”. Falei com ela assim. E ela fofou e eu fechei a porta. Depois na ideia, eu falei assim: “Os bicho entende. Ela pode me dar um pega aí uma hora porque é cobra. Eu prometi ela e ela que vai cumprir”. Eu falei assim: “Vou chegar lá em casa, vou pegar a espingarda e vou matar ela” […]. Quando ajeitei tudo, peguei a espingarda, cheguei lá, só tava o ninho. Nunca mais eu vi ela.

As relações estabelecidas entre rezadores e serpentes precisam ser pontuadas por algumas demonstrações de cuidado e respeito mútuo. Em primeiro lugar, o especialista deve zelar pela vida das cobras. Era o que me explicava José Erotides, um falecido benzedor de Chapada Gaúcha. Numa certa ocasião, um fazendeiro, a quem ele ajudou com um benzimento, fazia questão de ver e matar a serpente que atacara seu gado. O rezador, no entanto, foi enfático: a cobra não poderia ser morta. Ele me falava:

Tá isolada, nunca mais ela volta. Se ela tem olho, não vai enxergar, se tem a boca, não vai abrir, se tem os dentões, não vai ofender. Vamo deixar ela viver a vida dela lá, só unicamente ela pega a alimentação e pronto. Deixa pra lá.

O compromisso com a vida das serpentes, segundo alguns especialistas, teria de fato implicações práticas na atividade do benzedor. A atitude seria um dos atributos do seu poder sobre os animais. Um rezador de Januária que, por “acidente”, matou uma cobra contou que, logo após o acontecido, acabou se “esquecendo” da oração dedicada a São Bento (o que tornaria ineficaz o seu benzimento). Reciprocamente, o cuidado dos benzedores mobiliza o respeito que os répteis precisam ter pelo especialista. Um “causo” bastante conhecido na região dizia que, nas margens do Rio Acari, em Pintópolis, vivia um rezador excepcional. Quando morreu, o velório foi realizado em sua residência na “roça”. A surpresa dos participantes do funeral se deu no momento em que todos perceberam que, durante a noite de vigília, o terreiro estava cercado de serpentes. De alguma maneira, as pessoas concluíram, as cobras também prestavam suas homenagens ao benzedor.

A ideia segundo a qual o benzedor deve sempre zelar pela vida das cobras não é, contudo, consensual. Há relatos que descrevem os especialistas como os mais eficientes matadores de serpentes da região. Depois de me contar como foi feita a reza que curou um amigo vítima da mordida de uma quatro-presas durante uma empreitada de caça, um benzedor concluía a história dizendo que precisou abater o animal. “Eu cortei o pau, fui lá e matei a cobra, e pendurei de ponta-cabeça. Porque, quando a cobra morde um vivente, sempre pendura ela de cabeça pra baixo, pro veneno, na pessoa, não subir também não.” Uma de minhas principais interlocutoras em Urucuia me dizia que o avô, um conhecido e poderoso rezador, era capaz de “fazer amolecer”, com suas preces, os “dentes” das serpentes que porventura estivessem nos pastos atacando pessoas e criações. Ao se tornarem incapazes de “ofender”, os animais poderiam ser mortos sem grande dificuldade. “Mas por que matar, se as cobras podiam ir embora?”, cheguei a lhe perguntar. “Às veiz”, ela me respondeu, “não tem pra onde mandar os bicho sair, né? Vai deixar ir pro terreno de alguém?” Também parece importante levar em conta a ideia segundo a qual as serpentes que “pegam” pessoas e criações “tomam gosto” pelos ataques. Assim como os cachorros “viciam” quando comem ovos e galinhas de terreiro, explicava um produtor urucuiano, os animais também tendem a repetir as ofensas depois das primeiras investidas contra humanos e criações. Da mesma maneira que os cães “ladrões” devem ser sacrificados, as cobras também precisavam ser mortas.

O cuidado, o direito sobre a vida e a morte das serpentes e, às vezes, o compartilhamento de moradia parecem indicar, ao lado do respeito que os animais precisam demonstrar, que os répteis são como criações dos rezadores: criaturas vinculadas aos seus “donos” por meio de relações de poder e de reciprocidade (Andriolli & Pereira, 2016 ANDRIOLLI, Carmen Silvia & PEREIRA, Luzimar Paulo. 2016. “Os dilemas da criação: as ambiguidades dos relacionamentos entre humanos e não humanos em dois municípios mineiros”. Teoria e Cultura 11(2): 93-106. https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/12322 .
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). “É criatório dele, moço!”, teria dito um policial ambiental a outro, ao se referir às quatro-presas de Josias, o benzedor de São Romão. De fato, não é exagero dizer que, na experiência de meus interlocutores, as cobras são literalmente amansadas pelos rezadores da mesma forma que cavalos, éguas, burros e mulas precisam ser familiarizados por (ou para) seus proprietários. O processo transformaria os animais de modo que as disposições agonísticas que distinguem as relações interespecíficas ficassem atenuadas (pelo menos, temporariamente) 44 44| É do conhecimento de todos meus interlocutores que animais de criação que não recebem os cuidados de seus donos humanos podem se tornar selvagens novamente. Assim acontece, por exemplo, com os bois que se tornam “marrueiros”, livres e ameaçadores. . Há uma conhecida oração dedicada a São Bento que se deve utilizar sempre que se precisa atravessar caminhos onde existe o risco de se topar com serpentes venenosas: “Santo Bento/ Água Benta/ Jesus Cristo no altar/ Bicho mau/ Que tá nesse caminho/ Abaixa cabeça/ Pro filho de Deus passar/ Amém”. A reza explicita a ideia de que as cobras podem ser “amansadas”. Se “levantada”, a cabeça do animal indica o ataque eminente; “abaixada”, ela é o índice de obediência e submissão aos seres humanos em nome de São Bento.

“Parece até mandado”

As serpentes são “bicho mau” ou “ruim” também porque não parece haver qualquer possibilidade de os produtores rurais de Urucuia e entorno estabelecerem com elas alguma forma de boa relação. Inimigos próximos, os animais só permitiriam a tessitura de vínculos não agonísticos através da figura dos benzedores – as únicas pessoas capazes de se familiarizarem com eles. O trabalho dos rezadores, entretanto, não tem por objetivo inventar relações amistosas onde há conflitos interespecíficos. O que se pretende com a atividade é, antes de tudo, produzir evitações mútuas. O horizonte do benzedor é estabelecer mediações entre demandas divergentes, mas que, no final, se equilibrariam através da instituição de afastamentos. As pessoas e as cobras precisam se manter distantes umas das outras. Claro, é preciso notar uma assimetria fundamental. Na perspectiva dos produtores que ocupam e familiarizam territórios (como uma espécie de direito divino 45 45| Segundo vários produtores, a terra destinada ao trabalho no pasto e no roçado é um dom de Deus feito aos homens (Pereira, 2011 ; ver também Brandão, 1999 , entre outros). ), as serpentes devem, de qualquer jeito, ser mandadas embora; e o benzedor é o especialista de confiança capaz de fazê-las se deslocarem. No entanto, na perspectiva dos répteis, apenas parcialmente revelada às pessoas a partir do reconhecimento de seus direitos à alimentação e de se defenderem, o que lhes resta é “abaixar a cabeça” e sair, ou morrer; e é o rezador quem parece garantir o armistício necessário à fuga dos animais.

Se, por um lado, amansa as cobras por meio das trocas assimétricas que mantém com elas, por outro, o rezador também pode, inversamente, ser acusado de “mandar os bichos” para realizar vinganças pessoais contra seus desafetos ou a pedido de outros 46 46| Não é muito fácil conversar com um benzedor sobre sua atividade. Conheci rezadores e rezadoras que se recusavam a falar do assunto. Alguns, inclusive, diziam nada saber da prática (“Não conheço essa história, não”), a despeito de terem seus nomes citados por muitos de meus amigos e conhecidos. As reticências dos especialistas parecem ter relações com a ambiguidade que cerca a personagem, principalmente quando associada às serpentes. Um rezador de Januária me explicava que “fazer benzimento de cobra” tem, pelo menos, dois efeitos na vida do especialista: por um lado, ele não consegue acumular gado em seu próprio rebanho (“nunca tive mais que oito cabeça de gado”); por outro, ele pode ter “problemas de coluna” (“fica aquela dor, né?). Um importante aspecto que também parece cercar a figura do especialista é a suposição generalizada de que, se ele pode”mandar nas cobras” para tirá-las dos lugares, também pode enviá-las para outros, se quiser. Por isso, além de necessário, o benzedor é igualmente perigoso. . Uma das minhas interlocutoras, em Urucuia, suspeitava que a ofensa que sofreu, anos atrás, foi ocasionada por um “feitiço” lançado contra ela. O caso não é o único. Em São Romão, Josias me contava a história de um benzedor que, “de brincadeira”, mandou uma serpente à casa de um amigo. Noutro dia, perguntou, gavando de seu poder: “Você deu café pra visita que mandei procê? (risos)”. Também em Urucuia, a filha de uma de minhas interlocutoras contava causo de “cobra mandada” por uma mulher para atacar seu vizinho devido a um desentendimento em torno da compra e venda de alguns bezerros:

O povo comentou que foi coisa feita, né? Diz que homem falou pro menino dele: “Moço, tem uma cobra aqui braba demais!”. Ele chamou e o menino dele atirou na cobra. Diz que ela não queria morrer, não. Batia na cobra com o pau e o trem chiava assim, sabe? Uma cascavel, assim desse tamanho. Eles matou, mas deu trabalho!

Em contraponto à natureza agonística das relações entre pessoas e serpentes, o rezador propõe, por meio da linguagem da dádiva, dois conjuntos complementares de mediações: de um lado, com os demais seres humanos, aos quais deve “ajudar”, muitas vezes sem exigir nenhuma forma de pagamento em dinheiro; de outro, com as cobras, a quem precisa proteger ao mesmo tempo que tem por objetivo mantê-las longe das casas, roças e pastos. Movido pela malquerência , pela inveja ou pela vingança , no entanto, o benzedor reverte a qualidade dos laços que ele mesmo constrói. Ao invés de “amansar” a serpente, como demonstra o “exemplo” de São Bento, o especialista se torna uma espécie de instrumento da maldade, transformando-se em bicho mau ou sendo capaz de mobilizá-lo com a intenção de prejudicar as pessoas (da mesma maneira que o próprio diabo agiu contra Adão e Eva, no Paraíso). A dádiva que relaciona o benzedor às cobras se converte, então, em veneno, que a personagem envia aos outros seres humanos para fazê-los “sofrer”.

Considerações finais

Ao me dedicar ao estudo dos relatos sobre a realização de pactos demoníacos entre tocadores de viola do norte e noroeste de Minas Gerais (Pereira, 2012b PEREIRA, Luzimar Paulo. 2012b. “As vicissitudes da fama: os dons divinos e os pactos demoníacos entre os tocadores de viola de dez cordas do norte e noroeste mineiro”. Revista de Antropologia, 55(2): 1047-1083. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2012.59308 .
https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
; 2018 PEREIRA, Luzimar Paulo. 2018. “O diabo da dúvida: histórias de pactos com o demônio no norte e no noroeste de Minas Gerais”. Rev. Mus. Antropol., 11(1): 26-34. http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1852-48262018000200004⟨=pt .
http://www.scielo.org.ar/scielo.php?scri...
), uma das questões que mais me intrigavam era um aparente paradoxo que marcava os comentários das pessoas todas as vezes em que o assunto era tratado. Quando indagados, meus interlocutores prontamente iniciavam suas respostas afirmando categoricamente que não “acreditavam” no diabo, para logo em seguida reafirmarem suas intenções de “não querer assunto com ele”, além de uma fervorosa “devoção” a algum santo católico, a Jesus ou ao próprio Deus Pai. Soava-me bastante contraditório, naquele momento, que as pessoas pudessem dizer que o demônio não existe (“não acredito nele”) para, em ato contínuo, sustentarem que não desejavam ter nenhum tipo de contato com a entidade (“Não quero assunto”). Por que, eu me perguntava, haveria de alguém ter o desejo de manter distância de algo inexistente?

Aos poucos, contudo, pude perceber que a minha pergunta era bastante equivocada. Fazendo uso da noção maussiana de crédito, compreendi que um pacto – ou parte – só pode ser realizado se houver relações de confiança entre a pessoa e o diabo. Na perspectiva daqueles com quem eu conversava, “não acreditar” na entidade não era, portanto, a mesma coisa que afirmar a inexistência ontológica do demônio, mas revelava uma indisposição pragmática de se realizar qualquer tipo de acordo com ele. A expressão poderia significar, afinal, “não dar crédito” ou “desconfiar”. Não se tratava de interpretar as falas de meus interlocutores como enunciados a respeito da natureza do mundo e dos seres que o habitam. O que elas me diziam tinha na verdade um valor propriamente performativo, cujo objetivo principal era o de produzir afastamentos em relação ao diabo, ao mesmo tempo que tentavam se aproximar de Deus, de Jesus e outras entidades católicas. “Sou mais é devoto de Nossa Senhora da Aparecida”, alguém me disse uma vez, enquanto olhava para o céu e tirava ritualmente o chapéu em reverência à santa 47 47| Claro, há momentos em que a existência do diabo é colocada em dúvida em termos ontológicos. Não se trata aqui, no entanto, de um uso alternativo da mesma noção de crença. Quando se quer colocar em questão a existência de uma coisa ou entidade, usa-se com muito mais frequência a ideia de ilusão. “Isso [do diabo], pode ser uma inlusão do povo, né?”. O conceito nos levaria aqui a considerações bastante sofisticadas a respeito da condição própria de quem vive: a indeterminação ontológica. Nunca se pode saber ao certo como este mundo é ou pode ser. .

A pequena digressão em direção ao tema dos pactos se justifica porque entendo ser rentável seguir o exemplo de meus interlocutores mais uma vez para tratar das conexões entre homens e serpentes. O deslocamento da noção de acreditar tem efeito decisivo no modo como se podem imaginar tais interações e seus efeitos na constituição de mundos possíveis em Urucuia e entorno. Em um ensaio sobre a importância do corpo em processos de afetações interespecíficas, Vinciane Despret ( 2004 DESPRET, Vinciane. 2004. “The body we care for: Figures of anthropo-zoo-genesis”. Body and Society, 10(2-3): 111-134. https://doi.org/10.1177/1357034X04042938 .
https://doi.org/10.1177/1357034X04042938...
) argumenta que a “crença” [ belief ] é dispositivo fundamental para se conectarem animais humanos e não humanos em relações de domesticação recíprocas. Segundo a autora, a ideia deve ser entendida não em termos ontológicos, mas pragmáticos, como algo da ordem do “estar disponível”. Escreve:

Se você define uma crença nos termos do “o que é”, você sempre corre o risco de abraçar a noção de erro, de engano: o mundo é cheio de pessoas acreditando que outros (errônea e passivamente) creem. Em contraste, se você define “crenças” em termos pragmáticos, não em termos de “o que eles são”, mas no de “o que eles fazem”, a cena é completamente alterada: ela se torna um lugar cheio de entidades novas e ativas que se articulam de modo diferente. Esta será a definição pragmática que guiará nosso trabalho: a crença é o que faz as entidades “disponíveis” aos eventos

( 2004 DESPRET, Vinciane. 2004. “The body we care for: Figures of anthropo-zoo-genesis”. Body and Society, 10(2-3): 111-134. https://doi.org/10.1177/1357034X04042938 .
https://doi.org/10.1177/1357034X04042938...
: 122 – tradução minha).

Não acreditar é uma maneira de se fazer indisponível ao outro. Em Urucuia e entorno, a ideia parece central aos processos ordinários de observar e avaliar as interações entre pessoas e serpentes. Com exceção dos benzedores, ninguém deseja ou é capaz de manter relações de confiança com um animal venenoso. A excessiva proximidade interespecífica é experienciada como uma condição dada em um mundo criado por Deus e entregue aos homens. No entanto, ela também exige a instituição de afastamentos. A expulsão das cobras dos locais onde se fazem parentes, criações, lavouras e pastos é, do ponto de vista de meus interlocutores, pré-condição para a estabilização dos territórios onde se vive e trabalha 48 48| A proposição, certamente, poderia ser elaborada a partir do ponto de vista dos animais. As cobras devem achar o mundo excessivamente humano e, por isso mesmo, perigoso, segundo seus próprios termos. Esconder, mimetizar o ambiente, emitir sinais de alerta, fugir e ofender seriam, então, as estratégias de afastamento mobilizadas pelos animais. . Enquanto alguns biólogos e ambientalistas vêm ignorância e desconhecimento na forma como as populações rurais brasileiras se relacionam com as serpentes, os pequenos e médios produtores de Urucuia e entorno parecem mais preocupados com os dilemas associados à criação da vida em um ambiente onde o perigo pode irromper de encontros imprevistos e indesejados com criaturas estranhas, indecifráveis, difíceis de rastrear e resistentes a qualquer tipo de controle profano. Ao produzirem distanciamentos, os abates e os benzimentos garantiriam segurança em um mundo repleto de ameaças. As práticas teriam funções análogas às cercas de arame ou aos amuletos que traçam as fronteiras e os limites indispensáveis ao controle físico e cognitivo dos movimentos realizados por pessoas, animais, criaturas sobrenaturais, objetos e diversas substâncias 49 49| “Matar” e “benzer”, como tentei demonstrar, são as técnicas mais comuns para se produzir o afastamento das cobras. No entanto, há outras tecnologias disponíveis, ainda que emergentes. Alguns de meus interlocutores cogitavam a realização de “manejos” – com equipamento adequado – para a retirada dos animais de suas propriedades. Muitas vezes, em campo, recebi mensagens telefônicas de pessoas que me chamavam para ir buscar serpentes que apareciam em suas casas (eles pensavam que meu trabalho também incluía proteger os animais). Um deles ainda me indagou se a pesquisa que eu estava fazendo visava a ensinar os produtores a “mexer com cobras”, sem precisar abatê-las. .

Ao serem realizados, os abates e os benzimentos ainda estimulam, cada um à sua maneira, a criação de vínculos que conectam os seres humanos entre si e com inúmeras outras criaturas. O veneno transformado em consideração , através do abate das cobras, contribui decisivamente para a familiarização de lugares, coisas, bichos e gentes. Os animais são mortos como uma “ajuda” que se dá aos outros, em prol da “união do povo”, de uma casa ou comunidade rural. No benzimento, as coisas se passam de modo ligeiramente diferente. Ao ter seu potencial destrutivo anulado por meio de intervenções mágico-religiosas, a toxina da serpente dá lugar a um conjunto de associações que não exclui os animais, mas deve reclassificá-los como “criações” dos rezadores – aqueles que, em nome de São Bento, tornam-se capazes de “amansar” e “comandar” os répteis 50 50| Os cientistas e ambientalistas preocupados com o destino das cobras talvez devessem olhar com mais atenção ao personagem, um potencial e improvável aliado em projetos destinados à diminuição das matanças. A ideia não é de todo disparatada. Felipe Sussekind ( 2014 ) observou que fazendeiros e vaqueiros envolvidos em um projeto de conservação no Pantanal entendiam que os ambientalistas eram como “donos” das onças pintadas que eles deveriam proteger e marcar com uma coleira GPS. Ao serem tidos como proprietários dos bichos, cientistas e protetores também eram responsabilizados pelos eventuais ataques que os felinos pudessem realizar. . Em contraponto aos abates e às rezas, no entanto, o feitiço , a inveja , a vingança e a malquerência subvertem as operações de afastamento, aproximando os animais das pessoas e multiplicando os efeitos nefastos de seus venenos. Associando-se à praga, ao conflito e à própria figura do diabo, a substância contribui para fomentar relações cujos resultados são o desmembramento e a decomposição de corpos individuais e coletivos, suscitando ou acelerando dolorosos processos de desfamiliarização.

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  • Financiamento:
    O artigo foi escrito no âmbito de um projeto (CSO APQ 004433/18) financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais/Fapemig.
  • 1|
    Para diversos pesquisadores, o medo e o fascínio despertados pelas serpentes estariam inscritos nos DNAs humano e de outros primatas. Um dos expoentes desta abordagem neoevolucionista é o biólogo indiano Balaji Mundkur ( 1983MUNDKUR, Balaji. 1983. The cult of the serpent: An interdisciplinary survey of its manifestations and origins. Albany, State University of New York Press. ). No caso brasileiro, a associação entre as cobras e a maldade também seria, de acordo com alguns investigadores, uma herança do período colonial. A partir de meados do século XVI, o Novo Mundo deixaria de ser considerado um “Paraíso na Terra” para ser associado ao “Inferno”. Segundo Cardoso, nesse processo de “Satanização”, como é conhecido, os “animais venenosos, peçonhentos, perigosos, ou asquerosos, dentre eles, as cobras e o temor que elas difundiam, teriam papel relevante” (Cardoso, 2012CARDOSO, João Luiz Costa. 2012. “A Cobra-Grande, Boiuna, Boitatá (lendas brasileiras sobre grandes serpentes)”. In: HADDAD JR., Vidal (org.). Sucuris: biologia, conservação, realidade e mitos de uma das maiores serpentes do mundo. Rio de Janeiro, Technical Books Editora, pp. 29-39.: 29).
  • 2|
    Era o que dizia, por exemplo, o geneticista britânico Adam Rutherford, em entrevista à Revista Galileu: “na natureza não existem valores morais, pelo menos não como os conhecemos” (Viggiano, 2020 VIGGIANO, Giuliana. 2020. Adam Rutherford: “A natureza não dá a mínima para o que pensamos”. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2020/09/adam-rutherford-natureza-nao-da-minima-para-o-que-pensamos.html . Acesso em: 6 jan. 2024.
    https://revistagalileu.globo.com/Ciencia...
    ). A afirmação é uma crítica à antropomorfização, que atribui aos comportamentos dos animais características estritamente humanas e/ou sociais.
  • 3|
    O Instituto Estadual de Florestas (IEF) é uma autarquia responsável por planejar, coordenar, orientar, avaliar e monitorar a conservação e recuperação de ecossistemas no estado de Minas Gerais. Criado em 1962, o órgão está atualmente subordinado à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Ambiental (Semad). A estrutura administrativa do IEF se apoia em uma rede de unidades municipais associadas à catorze escritórios regionais. Os municípios de Urucuia, Arinos e Riachinho vinculam-se ao escritório de Unaí. Chapada Gaúcha, Pintópolis, São Romão e Januária estão sob a responsabilidade do escritório de Januária.
  • 4|
    A proposta de estudar as relações entre seres humanos e serpentes no que estou nomeando “Urucuia e entorno” está relacionada à minha experiência de campo na região. Para escrever este artigo, faço uso, em primeiro lugar, de relatos e observações dos mais variados encontros entre pessoas e cobras que recolhi ao longo de inúmeras visitas que realizei, desde 2006, nos municípios de Arinos, Chapada Gaúcha, Januária, Pintópolis, Riachinho, São Romão e, em especial, Urucuia, localizados nos limites das regiões norte e noroeste de Minas Gerais. Esse material emerge como subproduto de outras pesquisas etnográficas (sobre relatos de pactos com o diabo, sobre a realização de folias, sobre práticas de se construírem cercas em áreas rurais e urbanas etc.). Desde 2022, no entanto, a coisa mudou de figura. Com o início de um projeto de pesquisa especialmente dedicado a compreender os sentidos das relações entre pessoas e serpentes em algumas comunidades rurais da região, a maior parte do material aqui apresentado é oriunda de duas longas estadias em Urucuia, em março de 2023 e início de 2024. Daí a centralidade do município em minhas reflexões. Meus interlocutores são, em sua grande maioria, pequenos e médios agropecuaristas, cujas propriedades, tocadas em regime familiar, possuem entre 30 e 60 hectares. Uma pequena parcela é empregada em grandes fazendas, como “vaqueiros” ou “gerentes”, ou em ranchos de fim de semana, como “caseiros”. Outra parte é composta por ex-produtores rurais que trabalham atualmente no setor de serviços ou aposentados que vivem em áreas urbanas.
  • 5|
    Para Donna Haraway ( 2022HARAWAY, Donna. 2022. Quando as espécies se encontram. São Paulo, Ubu. ), o conceito de espécies companheiras refere-se, em suma, à interconexão e à interdependência entre humanos e outros organismos, incluindo animais e tecnologias. A proposta da autora supõe a desestabilização de dicotomias consagradas no Ocidente moderno, como natureza e cultura, corpos e máquinas etc. A noção não evoca apenas relações que classificaríamos como harmônicas ou complementares, mas indica igualmente diversas formas de antagonismos interespecíficos.
  • 6|
    Minha inspiração é Espinoza: “Bom e mau têm pois um primeiro sentido, objetivo, mas relativo e parcial: o que convém à nossa natureza e o que não convém. E, em consequência, bom e mau têm um segundo sentido, subjetivo e modal: será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor (sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição de potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as consequências, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria impotência” (Deleuze, 2002DELEUZE, Gilles. 2002. Spinoza: filosofia prática. São Paulo, Escuta.: 29 – destaques do autor).
  • 7|
    É preciso, no entanto, fazer uma distinção. Enquanto Teixeira e Ayoub lidam com cães que se tornam eventualmente “maus”, por assim dizer, meu trabalho, como veremos adiante, precisa se haver com animais que são quase sempre entendidos como “maus”.
  • 8|
    Em estudo sobre o modo como os runa, do Equador, se relacionam com seus cães, Eduardo Kohn ( 2013KOHN, Eduardo. 2013. How forests think: toward an anthropology beyond human. Berkeley & Los Angeles: University of California Press. ) destaca os dispositivos indígenas mobilizados na produção de distanciamentos entre os seres humanos e estes animais. A excessiva proximidade implicaria, na perspectiva de seus interlocutores, riscos ontológicos que precisam ser evitados. Reflexão análoga faz o antropólogo Matei Candea ( 2010 CANDEA, Matei. 2010. “‘I fell in love with the Carlos the meerkat’: engagement and detachment in human-animal relations”. American Anthropologist, 37(2): 241-158. https://doi.org/10.1111/j.1548-1425.2010.01253.x .
    https://doi.org/10.1111/j.1548-1425.2010...
    ) em torno das pesquisas realizadas por cientistas europeus com os suricatos do Kalahari, na África. A questão, nesse caso, passa pelo entendimento do caráter produtivo do distanciamento: os animais oscilam, em diferentes contextos, entre as condições de sujeitos de relações e objetos de conhecimento.
  • 9|
    Tellers [narradores], segundo Deborah Bird Rose aprendeu com alguns sábios aborígenes, na Austrália, são aquelas criaturas que fornecem informações e dão notícias do que está acontecendo no mundo. Por exemplo, “quando as cigarras cantam, os figos estão maduros e as tartarugas gordas” (Rose, 2013 ROSE, Deborah Bird. 2013. “Val Plumwood’s Philosophical Animism: attentive interactions in the sentient world”. Environmental Humanities 3(1): 93-109. https://doi.org/10.1215/22011919-3611248 .
    https://doi.org/10.1215/22011919-3611248...
    : 103 – tradução minha).
  • 10|
    Segundo Jorge Luan Teixeira ( 2019TEIXEIRA, Jorge Luan. 2019. Caçando em mata branca: Conhecimento, movimento e ética no Sertão Cearense. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro. ), a circulação motivada pela atividade da caça permite aos camponeses do Sertão do Ceará apreenderem o “conhecimento” que os bichos têm das matas e do meio ambiente como um todo. Uma rã, por exemplo, para quem sabe ler os “sinais” impressos em seus comportamentos, pode ensinar se vem ou não a chuva. Um besouro, por sua vez, a depender do lado em que faz sua morada num alpendre, indica ao observador de onde virá a chuva.
  • 11|
    Os nomes dos personagens e de alguns locais apresentados neste artigo são fictícios.
  • 12|
    O casal tinha seis filhos. Em 2013, dois deles residiam na sede municipal de Urucuia, três em Belo Horizonte e uma filha em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.
  • 13|
    A descrição apresentada aqui tem algumas discrepâncias com o que estava anotado em meu caderno de campo, escrito em 2013. Tive que reconsiderar o relato depois de relembrar o caso com João e Maria em, pelo menos, duas ocasiões. Primeiro, em conversa telefônica com João, em 2019. Depois, em um encontro com o casal, no início de 2024.
  • 14|
    O município de Urucuia e seu entorno – como Arinos, Chapada Gaúcha, Pintópolis, Riachinho, São Romão e Januária – estão situados na faixa de transição entre a depressão do Rio São Francisco e o Planalto Central. O clima é seco, com chuvas mal distribuídas ao longo do ano. A região possui rica rede hidrográfica. A vegetação típica é a do cerrado, com suas variações de “campos limpos”, “campos sujos”, “campos cerrados” e “cerradões”. A região também possui diversas nascentes localizadas em terrenos úmidos, cobertos por gramíneas, buritis e outras plantas semiaquáticas. Conhecidos como “veredas”, tais cursos d’água são habitats de araras, capivaras, pássaros diversos, além de serpentes como jararacas, cascavéis, sucuris, entre outras (nos últimos anos, boa parte destas nascentes estão “secas” ou com risco de “secar”). Em geral, a vida na roça ocorre em pequenas e médias “fazendas” (ou “sítios”) familiares. Em Urucuia, em particular, a economia rural gira em torno da pequena pecuária bovina de corte, associada a roças de feijão, mandioca, abóbora e cana. Na maioria das propriedades, também se observa a exploração de carvão vegetal a partir do corte de árvores do cerrado (o carvão é vendido e transportado para alguns polos siderúrgicos do estado). Há agroindústrias de café, soja, eucalipto e capim. Nas margens do rio Urucuia, que atravessa o município, podem-se encontrar inúmeros “ranchos” de pescaria e sítios de fim de semana. As propriedades, em grande parte, fazem parte de comunidades instituídas em torno de relações de parentesco e vizinhança (Pereira, 2011PEREIRA, Luzimar Paulo. 2011. Os giros do sagrado: uma etnografia sobre folias em Urucuia, MG. Rio de Janeiro, 7Letras. ).
  • 15|
    Donna Haraway define zona de contato como lugar ou situação de “emaranhamentos naturais culturais, políticos, ecológicos e semióticos” ( 2022HARAWAY, Donna. 2022. Quando as espécies se encontram. São Paulo, Ubu.: 287).
  • 16|
    Por “familiarização de territórios” entendo os processos intermináveis (e também reversíveis) de se vincularem determinadas pessoas, bichos, coisas e lugares a determinadas famílias e grupos de parentesco (e vice-versa), por meio de estratégias compartilhadas de observação e avaliação de movimentos (Comerford, 2003COMERFORD, John. 2003. Como uma família: sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro, Relume-Dumará. ).
  • 17|
    Ao descreverem três experiências de cuidado com elefantes em meio a uma epidemia de herpes, Lowe e Munster ( 2016 LOWE, Celia & MUNSTER, Ursula. 2016. “The viral creep: elephants and herpes in times of extinction”. Environmental Humanities, 8(1): 118-142. https://doi.org/10.1215/22011919-3527749 .
    https://doi.org/10.1215/22011919-3527749...
    ) introduzem o conceito de viral creep, usado para explorar a habilidade do vírus de se manter imperceptível e misterioso aos seres humanos.
  • 18|
    Um dos meus interlocutores de Urucuia contava a história de uma folia de reis que terminou em briga, destacando que o artefato ritual de um dos foliões (sua “toalha”) “pegou fogo”.
  • 19|
    Teixeira e Ayoub ( 2016 TEIXEIRA, Jorge Luan & AYOUB, Dibe. 2016. “Cachorros que atacam criação: reflexões éticas sobre a mobilidade e a vida social dos animais em ambientes rurais”. Iluminuras, 17(42): 136-165. https://doi.org/10.22456/1984-1191.71041 .
    https://doi.org/10.22456/1984-1191.71041...
    ) argumentam que, para os pequenos produtores do sertão cearense e dos faxinais paranaenses, cada criatura tem uma “natureza”. A noção não evoca uma essência, mas indica o modo como os seres se engajam com outros seres. A “natureza” de uma criatura é sempre relacional. Em Urucuia e região, a proposição também pode se referir aos humanos. Há pessoas que possuem “olho-ruim” (a capacidade de disseminar ou fazer o mal apenas pelo olhar). E é muito comum ouvir coisas como “ele tem olho-ruim, mas é bonzinho”, o que acentua a avaliação de que não há intenções malignas em suas ações, ao mesmo tempo que destaca sua natureza má, enquanto criatura que faz mal, ainda que sem querer. Uma pessoa também pode ser “prosa-ruim” porque não combina comigo, mas pode eventualmente combinar com outra – o que demonstra mais uma vez que a qualidade “ruim” é sempre relacional (ver, neste sentido, Carneiro, 2015CARNEIRO, Ana. 2015. O povo parente dos buracos. Sistema de prosa e mexida de cozinha. Rio de Janeiro, E-Papers/Faperj. ).
  • 20|
    Os camponeses franceses de Haute Provence dizem que as serpentes são benéficas à agricultura porque fabricam seu veneno extraindo as impurezas do solo, garantindo a fertilidade da terra (Musset, 2004 MUSSET, Danielle. 2004. “Serpents: représentations et usages multiples”. Ethnologie Française, 34(3): 427-434. https://www.cairn.info/revue-ethnologie-francaise-2004-3-page-427.htm?try_download=1 .
    https://www.cairn.info/revue-ethnologie-...
    ). Em Bela Vista, Goiás, Zetinho, um benzedor de cobras, também dizia que os animais retiram as “impurezas” do ar para elaborarem suas toxinas (Alves & Araújo, 2005 ALVES, Raimundo & ARAÚJO, Vinícios Berger. 2005. O rezador de cobras. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=2fZuuv9Salg . Acesso em: 5 jan. 2024.
    https://www.youtube.com/watch?app=deskto...
    ).
  • 21|
    A ofensa implica, claro, relação moral. Uma pessoa pode “ofender” outra quando parece desrespeitá-la. No entanto, o vocábulo também se refere ao ato de machucar com faca ou outro instrumento cortante. “Fulano foi ofendido de enxada”, alguém poderia falar. Num sentido geral, portanto, o vocábulo indica uma espécie de violação, seja moral (da honra das pessoas) ou física (de seus corpos).
  • 22|
    Um pequeno produtor de Urucuia distinguia a peçonha da jararacuçu de outras cobras. Ele dizia que o veneno do primeiro animal f ica parado no local da picada, causando paralisia e perda do membro atingido, enquanto o das demais cobras circula pelo corpo todo da vítima.
  • 23|
    Para Espinoza, o “bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um alimento. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso, ainda que se componha com as nossas partes, mas sob outras relações que aquelas que correspondem à nossa essência: por exemplo, como um veneno que decompõe o sangue” (Deleuze, 2002DELEUZE, Gilles. 2002. Spinoza: filosofia prática. São Paulo, Escuta.: 28).
  • 24|
    “Sangrar” desfaz a integridade corporal. Quando uma cabeça de gado é morta para se transformar em comida, o ato precede o momento em que o animal é esquartejado e transformado em “carne” (Pereira, 2012a PEREIRA, Luzimar Paulo. 2012a. “Os sacrifícios da carne: a morte do gado e a produção dos banquetes nas folias de Urucuia, MG”. Religião e Sociedade, 32(1): 71-96. https://doi.org/10.1590/S0100-85872012000100004 .
    https://doi.org/10.1590/S0100-8587201200...
    ). Circulando no ser vivo, o sangue parece garantir a integridade do corpo, da mesma medida em que, fora dele, contribui para sua dissolução.
  • 25|
    No Brasil, em 2022, os “acidentes ofídicos”, na linguagem dos profissionais da biomedicina, vitimaram principalmente homens na faixa dos vinte aos sessenta anos (Governo Federal, 2024 GOVERNO FEDERAL. Situação epidemiológica. Disponível em: www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/a/animais-peconhentos/acidentes-ofidicos/situaçao-epidemiologica # Acesso em: 5 jan. 2024.
    www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de...
    ).
  • 26|
    É importante deixar claro que as reflexões e emoções desencadeadas pelas ofensas de cobra podem variar a depender da vítima: homem adulto, mulher ou criança, por exemplo.
  • 27|
    Como indicado pelo/pela parecerista (a quem agradeço desde já), meu argumento aponta para dois temas intimamente relacionados que mereceriam reflexões posteriores. Por um lado, a linguagem cristã do trabalho, como atividade penosa, remete diretamente ao mito da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, em que a serpente desempenha papel central, ao ofertar a maçã/pinha/veneno, o qual tem como resultado a condenação dos seres humanos ao “sofrimento do trabalho” (o que, por outro lado, também transforma a atividade laboral em fonte de prestígio e honra) (ver Woortmann & Woortmann, 1997WOORTMANN, Ellen & WOORTMANN, Klass. 1997. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília, Editora UnB. ; Brandão, 1999BRANDÃO, Carlos Rodrigues. 1999. O afeto da terra: imaginários, sociabilidades e motivações de relacionamentos com a natureza e o meio ambiente entre agricultores e criadores sitiantes do bairro dos Pretos, nas encostas paulistas da serra da Mantiqueira, em Joanópolis. Campinas, Editora da Unicamp. ; entre outros). Por outro lado, a ideia de “trabalho” como “peleja” encontra ressonância em pesquisas que tratam da noção de “luta” em diversos planos de significação, como “luta pela terra”, “luta política” ou como expressões de “relações agonísticas” entre famílias e vizinhos (Comerford, 1999COMERFORD, John Cunha. 1999. Fazendo a luta: Sociabilidade, falas e rituais na construção de organizações camponesas. Rio de Janeiro, Relume-Dumará. , 2003COMERFORD, John. 2003. Como uma família: sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural. Rio de Janeiro, Relume-Dumará. ; entre outros).
  • 28|
    Poder-se-ia explorar um contraste análogo, entre “comida” e “veneno”, coisa que parece bastante forte no pensamento e nos atos dos meus interlocutores (inclusive, há interditos alimentares quando uma pessoa é ofendida). O valor existencial do alimento é constantemente reforçado, como algo que remete à vida, à força, à alegria, em contraposição às toxinas e às doenças, quase sempre associadas à fraqueza e à morte (“a pessoa tá doente, não come quase nada…”). Não se excluem, aliás, casos de corrupção alimentar, como o envenenamento da comida, coisa que já ouvi algumas vezes como algo comum de se acontecer.
  • 29|
    As cainanas não peçonhentas são exceções. A espécie é tolerada por muitos moradores porque ela se alimentaria das serpentes peçonhentas, como jararacas, cascavéis e quatro-presas.
  • 30|
    Logo nos meus primeiros dias de pesquisa no norte e noroeste de Minas Gerais, não pude deixar de notar a presença constante de amuletos afixados na frente das casas, em locais específicos no interior das moradias, em currais, nas roças ou nos pastos, cujas funções primordiais eram “afastar” ou “proteger”, do “mau-olhado”, da “inveja”, da “fofoca”, do “feitiço”, tudo que, ao entrar em contato, pode destruir, desmembrar, degradar, adoecer ou matar. Eixo de incessantes fluxos de pessoas, bichos, coisas e substâncias diversas (Comerford, Carneiro & Dainese, 2015COMERFORD, John; CARNEIRO, Ana & DAINESE, Graziele. 2015. “Giros etnográficos em Minas Gerais: casa, comida, prosa, festa, política, briga e o diabo”. In: COMERFORD, John; CARNEIRO, Ana & DAINESE, Graziele (orgs.). Giros etnográficos em Minas Gerais: casa, comida, prosa, festa, política, briga e o diabo. Rio de Janeiro, 7Letras, pp. 9-28. ), as residências e locais específicos em seu interior e entorno estão sujeitos a inúmeras invasões indesejadas. Assim como os ninhos de marimbondo, crânios ou chifres de boi, vidros com pimenta malagueta, imagens de santo, trechos de rezas, ramos de alho, entre outros, que podem ser vistos pendurados em alpendres, janelas, portas, telhados, troncos de pequenas árvores numa horta, estacas ou cercas, entendo que o abate de serpentes também parece servir como dispositivo capaz de afastar o mal.
  • 31|
    Não se exclui a possibilidade de alguém, em função de desavenças ou malquerências, deixar de abater uma serpente para prejudicar outra pessoa, embora eu nunca tenha ouvido caso a respeito. A eventualidade, no entanto, é até lógica. Se, como veremos adiante, é possível enviar cobras, por meio de “rezas” e “feitiços”, para prejudicar inimigos, por que não simplesmente deixar os animais por ali, perto de quem não se gosta?
  • 32|
    A matança de serpentes ainda pode ser executada por ou com a ajuda de outros animais, silvestres ou de criação. Em uma rede social, um amigo urucuiano me enviou uma mensagem, junto da qual estava anexada a imagem de uma cascavel: “Então, a gente tava aqui em pé, na área do fundo do rancho, e aí escutamos um barulho de shiiiiiii [imitando uma cascavel], esse barulhinho que a cascavel fazia ali, né? Tava próximo ao carro. Daí eu falei assim: ‘Será que é o pneu do carro?’. E aí eu fui caminhar pra perto, pra mim ver – e tinha dado uma chuva aqui, sabe? – e aí eu fui caminhar pra perto pra ver, quando eu vi os gatinho tava todo arisco, olhando ela. Então, foi os gatinhos que atiçaram ela e ela ficou fazendo esse barulho, né?, shiiiii. E aí, nessa posição, a gente afastou os gatinho e o dono da casa matou ela. Pra mais emoção ainda, a gente tava sentado na área, mais à noitizinha, passou uma outra na área, seguindo pelo mesmo caminho que a outra tinha passado. E aqui eles falaram que a cascavel anda o casal, né? Então, essa provavelmente tava indo procurar a outra. E aí o pessoal matou também. Porque é uma área que tem criança e eles ficaram com medo e tal. Foi isso”. Gatos, cães, galinhas, cavalos, burros, bois, seriemas, saruês, entre outros, incluindo uma ou outra cobra não peçonhenta, como a cainana, são frequentemente entendidos como extensões dos próprios seres humanos, servindo como linhas de separação e proteção, atacando, predando ou enviando sinais de alerta contra a invasão de serpentes e outras criaturas “más”. A atividade pode garantir a alguns animais privilégios no interior do sistema de considerações que produz famílias e territórios. “Não tem trem melhor que cachorro de roça, não, meu amigo! Ele que descobriu a cobra enrolada no meio dos três toco.”
  • 33|
    Louis Marcelin ( 1999 MARCELIN, Louis. 1999. “A linguagem da casa entre os negros no recôncavo Baiano”. Mana 5(2): 31-60. https://doi.org/10.1590/S0104-93131999000200002 .
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313199900...
    ) argumenta que a consideração é, ao lado do sangue, um dos princípios que definem a proximidade no Recôncavo Baiano. A ideia “sugere um conjunto de proposições compartilhadas pelos agentes sobre o que eles entendem como obrigações contidas nas noções de parente e família” (1999: 46).
  • 34|
    As pessoas não demonstram “nojo” ao verem as partes destruídas e expostas do cadáver de uma cobra. A morte do animal não desperta nenhum tipo de sentimento de aversão, que se observa, por exemplo, no abate de uma vaca (quando as mulheres não conseguem sequer ver, quanto mais tocar, o sangue). O “nojo”, na verdade, se revela com muito mais frequência diante da serpente viva. Conheci pessoas em Urucuia e no entorno, por exemplo, que sequer conseguiam olhar a imagem de uma cascavel no meu celular.
  • 35|
    Segundo o depoimento de um rezador, antes de se encaminhar ao local onde será realizado o benzimento, o especialista precisa fazer uma oração contra “insetos venenosos”, “porque”, dizia, “você pode ser ofendido”. “Você tá com o corpo aberto. Você tem que se benzer primeiro, pra chegar naquele local.”
  • 36|
    Uma das diversas orações dedicadas a São Bento utilizadas nos benzimentos de propriedades rurais: “Jesus, Maria, José e São Bento/ são quatro grandes nomes/ Faz com que as cobras da chácara do Dr. Gontijo desaparecem/Em nome de Nossa Senhora do Desterro/ Amém” (Alves & Araújo, 2005 ALVES, Raimundo & ARAÚJO, Vinícios Berger. 2005. O rezador de cobras. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=2fZuuv9Salg . Acesso em: 5 jan. 2024.
    https://www.youtube.com/watch?app=deskto...
    ).
  • 37|
    Segundo Bauzino, a oração do Santíssimo Soberano Deus é utilizada para finalizar qualquer tipo de benzimento. “Ela é longa, bem longa.” Segue o seu encerramento: “Omnipotente, santíssimo e soberano Deus, sumo bem, todo o bem, bem completo, a Ti que só és bom, rendamos todo o louvor, toda a glória, toda a graça, toda a honra, toda a bênção, e todo o bem a Ti atribuamos para sempre”.
  • 38|
    Há outras rezas que objetivam “mandar embora” outros bichos que também ameaçam criações, pastos e roças, como, por exemplo, o “benzimento” contra a “berne” que “pega no gado” ou contra as “lagartas” que atacam plantações. De um lado, as serpentes se aproximariam, então, mais uma vez, da noção de “praga”. De outro, os casos permitem que se possa interpretar a “reza” como um importante meio de produção para a realização das atividades agropastoris.
  • 39|
    Dizia José Erotides: “Aquilo [o benzimento] é usado nas hora de grande precisão, quando a pessoa procura, né? Mas aquilo tem as palavra. Tem as palavra que fala naquilo. E as pessoa têm um santo. O santo que comanda as cobra, na época de Cristo, é São Bento. Cê tem que chamar primeiro Deus e a Virgem Maria, fala o nome de São Bento e de Deus e da Virgem Maria para curar os males…”.
  • 40|
    Zetinho, benzedor de Bela Vista, Goiás, dizia: “Já aconteceu comigo, de eu andar no meio do mato… Na verdade, eu não sinto dor de cabeça. Mas eu sei quando a cobra me viu, e eu não vi ela. Dá uma dorzinha de cabeça. Esse é um caso real. É um caso antigo, mas é real. Quando cê vê uma cobra venenosa… Cê não vê ela, e ela te vê… Dá uma dorzinha de cabeça” (Alves & Araújo, 2005 ALVES, Raimundo & ARAÚJO, Vinícios Berger. 2005. O rezador de cobras. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=2fZuuv9Salg . Acesso em: 5 jan. 2024.
    https://www.youtube.com/watch?app=deskto...
    ). “.
  • 41|
    Agradeço a Luis Felipe Benites e Lucas Parreira Álvares – que pesquisam em São Romão – por me falarem do benzedor. A Lucas Álvares, em especial, por ter me apresentado a Josias.
  • 42|
    Suspeito que a prática de deixar as serpentes habitarem as proximidades das casas oferece a alguns benzedores a oportunidade de conhecer mais detalhadamente o comportamento e a fisiologia dos animais, coisa que parece desinteressante e vedada às demais pessoas. Josias me dizia: “Já vi muita gente falá que cobra, ela vai beber água, quando ela chega no lugar de beber água, ela põe o veneno lá numa folha, bebe água e depois ela torna pegar. Eu já prestei atenção e elas bebe, fica muito tempo envolvendo, banha. Eu nunca vi ela cuspindo veneno em lugar nenhum”.
  • 43|
    A rigor, também foi o tio que ensinou a Bauzino os benzimentos. No entanto, como todos os meus interlocutores da região costumavam me dizer, ele também me explicava que as orações nunca podem ser ensinadas de homem para homem ou de mulher para mulher. Do contrário, elas perderiam a “força”. O poder dos benzimentos se mantém intacto apenas se eles forem transmitidos de um homem para uma mulher ou de uma mulher para um homem. No caso de Bauzino, o tio ditava as orações para a esposa do sobrinho escrever. Depois, ela lia o que estava escrito em voz alta para que o marido pudesse guardar as palavras (“decorar”).
  • 44|
    É do conhecimento de todos meus interlocutores que animais de criação que não recebem os cuidados de seus donos humanos podem se tornar selvagens novamente. Assim acontece, por exemplo, com os bois que se tornam “marrueiros”, livres e ameaçadores.
  • 45|
    Segundo vários produtores, a terra destinada ao trabalho no pasto e no roçado é um dom de Deus feito aos homens (Pereira, 2011PEREIRA, Luzimar Paulo. 2011. Os giros do sagrado: uma etnografia sobre folias em Urucuia, MG. Rio de Janeiro, 7Letras. ; ver também Brandão, 1999BRANDÃO, Carlos Rodrigues. 1999. O afeto da terra: imaginários, sociabilidades e motivações de relacionamentos com a natureza e o meio ambiente entre agricultores e criadores sitiantes do bairro dos Pretos, nas encostas paulistas da serra da Mantiqueira, em Joanópolis. Campinas, Editora da Unicamp. , entre outros).
  • 46|
    Não é muito fácil conversar com um benzedor sobre sua atividade. Conheci rezadores e rezadoras que se recusavam a falar do assunto. Alguns, inclusive, diziam nada saber da prática (“Não conheço essa história, não”), a despeito de terem seus nomes citados por muitos de meus amigos e conhecidos. As reticências dos especialistas parecem ter relações com a ambiguidade que cerca a personagem, principalmente quando associada às serpentes. Um rezador de Januária me explicava que “fazer benzimento de cobra” tem, pelo menos, dois efeitos na vida do especialista: por um lado, ele não consegue acumular gado em seu próprio rebanho (“nunca tive mais que oito cabeça de gado”); por outro, ele pode ter “problemas de coluna” (“fica aquela dor, né?). Um importante aspecto que também parece cercar a figura do especialista é a suposição generalizada de que, se ele pode”mandar nas cobras” para tirá-las dos lugares, também pode enviá-las para outros, se quiser. Por isso, além de necessário, o benzedor é igualmente perigoso.
  • 47|
    Claro, há momentos em que a existência do diabo é colocada em dúvida em termos ontológicos. Não se trata aqui, no entanto, de um uso alternativo da mesma noção de crença. Quando se quer colocar em questão a existência de uma coisa ou entidade, usa-se com muito mais frequência a ideia de ilusão. “Isso [do diabo], pode ser uma inlusão do povo, né?”. O conceito nos levaria aqui a considerações bastante sofisticadas a respeito da condição própria de quem vive: a indeterminação ontológica. Nunca se pode saber ao certo como este mundo é ou pode ser.
  • 48|
    A proposição, certamente, poderia ser elaborada a partir do ponto de vista dos animais. As cobras devem achar o mundo excessivamente humano e, por isso mesmo, perigoso, segundo seus próprios termos. Esconder, mimetizar o ambiente, emitir sinais de alerta, fugir e ofender seriam, então, as estratégias de afastamento mobilizadas pelos animais.
  • 49|
    “Matar” e “benzer”, como tentei demonstrar, são as técnicas mais comuns para se produzir o afastamento das cobras. No entanto, há outras tecnologias disponíveis, ainda que emergentes. Alguns de meus interlocutores cogitavam a realização de “manejos” – com equipamento adequado – para a retirada dos animais de suas propriedades. Muitas vezes, em campo, recebi mensagens telefônicas de pessoas que me chamavam para ir buscar serpentes que apareciam em suas casas (eles pensavam que meu trabalho também incluía proteger os animais). Um deles ainda me indagou se a pesquisa que eu estava fazendo visava a ensinar os produtores a “mexer com cobras”, sem precisar abatê-las.
  • 50|
    Os cientistas e ambientalistas preocupados com o destino das cobras talvez devessem olhar com mais atenção ao personagem, um potencial e improvável aliado em projetos destinados à diminuição das matanças. A ideia não é de todo disparatada. Felipe Sussekind ( 2014SUSSEKIND, Felipe. 2014. No rastro da onça: relações entre humanos e animais no Pantanal. Rio de Janeiro, 7Letras. ) observou que fazendeiros e vaqueiros envolvidos em um projeto de conservação no Pantanal entendiam que os ambientalistas eram como “donos” das onças pintadas que eles deveriam proteger e marcar com uma coleira GPS. Ao serem tidos como proprietários dos bichos, cientistas e protetores também eram responsabilizados pelos eventuais ataques que os felinos pudessem realizar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2023
  • Aceito
    06 Dez 2023
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