Acessibilidade / Reportar erro

Discurso sobre o Método em Finanças: Entre uma Dominância Epistemológica e Possíveis Estratégias de Resistência

RESUMO

Objetivo e Provocação:

trabalhos em finanças têm historicamente uma grande afinidade com as abordagens positivistas e funcionalistas, bem como um alinhamento com ideologias utilitaristas e neoliberais. O objetivo desta pensata é refletir sobre as epistemes predominantes no campo de finanças, bem como as limitações de tais enfoques para o desenvolvimento dos estudos na área, apontando a emergência de um movimento que vem estabelecendo uma estratégia de resistência, que pode alterar o status quo da área.

Conclusão:

busca-se assim trazer novas abordagens epistemológicas e metodológicas, além de se apontar recortes mais críticos e alternativas solidárias, sustentáveis e cooperativas para as questões financeiras e econômicas.

Palavras-chave:
finanças; epistemologia; estratégias de resistência

ABSTRACT

Objetive and Provocation:

work in finance has historically had a great affinity with positivist and functionalist approaches, as well as alignment with utilitarian and neoliberal ideologies. The objective of this provocation is to reflect on the predominant epistemes in the field of finance, as well as the limitations of such approaches for the development of studies in the area, provoking about the emergence of a movement that has been establishing resistance strategies that can change the status quo of the finance field.

Conclusion:

bringing new epistemological and methodological approaches, in addition to pointing out more critical approaches and supportive, sustainable and cooperative alternatives to financial and economic issues.

Palavras-chave:
finance; epistemology; resistance strategies

INTRODUÇÃO

Finanças é uma das disciplinas que compõem o arcabouço da administração, a qual é caracterizada por Fabozzi e Drake (2009Fabozzi, & Drake, P. (2009). Finance: Capital markets, financial management, and investment management. (1st edição). John Wiley & Sons.) como sendo a arte e a ciência de gerenciar o dinheiro. Em geral, os trabalhos publicados recorrem a métodos quantitativos, se alinhando às abordagens positivistas e funcionalistas, sendo que o escopo dos estudos consiste em testar modelagens matemáticas para compreender relações de causalidade dos fenômenos de interesse dessa área (Sultana, 2020Sultana, F. (2020). Paradigm shift and diversity in finance. Journal of Finance and Accounting Research, 2(1), Artigo 1. https://doi.org/10.32350/JFAR/0201/04
https://doi.org/10.32350/JFAR/0201/04...
), que costuma ter em vista a maximização da eficiência e a superação da concorrência.

Embora essa perspectiva seja cientificamente válida, de acordo com o exposto por Paes de Paula (2016Paes de Paula, A. P. (2016). Para além dos paradigmas nos Estudos Organizacionais: O Círculo das Matrizes Epistêmicas. Cadernos da EBAPE, 14(1), 24-46. https://doi.org/10.1590/1679-395131419
https://doi.org/10.1590/1679-395131419...
), ela se limita a um interesse técnico, excluindo os interesses prático e emancipatório, reforçando visões utilitaristas e neoliberais das questões financeiras, econômicas e públicas, impossibilitando investigações sobre outras possíveis abordagens para a área, que tragam um enfoque mais crítico, bem como alternativas mais solidárias, cooperativas e sustentáveis.

Dessa forma, a literatura acadêmica acaba por reproduzir essa miopia nos estudos financeiros, tanto em suas teorias quanto em suas modelagens. Corroborando essa posição, o estudo de Keasey e Hudson (2007Keasey, K., & Hudson, R. (2007). Finance theory: A house without windows. Critical Perspectives on Accounting, 18(8), 932-951. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2006.06.002
https://doi.org/10.1016/j.cpa.2006.06.00...
) caracteriza os estudos de finanças como construtores de quebra-cabeças artificiais para a manutenção de um modus operandi positivista de fazer ciência e Zingales (2015Zingales, L. (2015). Does Finance Benefit Society? Chicago Booth Research Paper, 15-09, paper 2585194. https://doi.org/10.2139/ssrn.2585194
https://doi.org/10.2139/ssrn.2585194...
) reconhece que esse viés reforça as limitações acerca das contribuições sociais que a área de finanças poderia oferecer.

Partindo desta constatação da dominância de uma perspectiva positivista, funcionalista e neoliberal na área de finanças, esta pensata busca refletir sobre o status quo da literatura financeira, suas epistemes predominantes e as limitações desses enfoques nos estudos do campo, bem como sobre possíveis alternativas de ação e estratégias de resistência por parte de pesquisadores e pesquisadoras.

UMA DOMINÂNCIA EPISTEMOLÓGICA E IDEOLÓGICA NOS ESTUDOS EM FINANÇAS

Mramor e Lonèarski (2002Mramor, D., & Lonèarski, I. (2002). Traditional, modern and new approach to finance. In 6th Conference on Alternative Perspectives on Finance, Hamburg, Germany.) e McLean e Brian (2007McLean, P. A., & Brian, J. D. G. (2007). Edward Sherwood Mead (1874‐1956): A pioneer in finance education. European Business Review, 19(2), 118-128. https://doi.org/10.1108/09555340710730083
https://doi.org/10.1108/0955534071073008...
) firmam que os estudos em finanças surgiram como um ramo da economia, baseados em experiências práticas dos gestores e tendo uma finalidade prescritiva no que tange à tomada de decisão. Em meados dos anos 1950, as pesquisas financeiras passaram a ter um maior compromisso com a elaboração de teorias positivistas para os mercados e agentes financeiros, tendo como referência a economia neoclássica, que busca maximizar resultados e estabelecer estratégias concorrenciais, sendo denominada de moderna teoria de finanças (Iquiapaza et al., 2009Iquiapaza, R. A., Amaral, H. F., & Bressan, A. A. (2009). Evolução da pesquisa em finanças: Epistemologia, paradigma e críticas. Organizações & Sociedade, 16(49), 351-370. https://doi.org/10.1590/S1984-92302009000200008
https://doi.org/10.1590/S1984-9230200900...
).

No entanto, a partir do contraste encontrado entre as expectativas teóricas e o comportamento empírico do mercado e seus agentes, novas teorias passaram a ser analisadas para compreender as anomalias encontradas, a partir da psicologia comportamental. Assim, no final da década de 1970, tem-se a gênese das finanças comportamentais, com grande destaque para as ideias de Tversky e Kahneman (1992Tversky, A., & Kahneman, D. (1992). Advances in prospect theory: Cumulative representation of uncertainty. Journal of Risk and Uncertainty, 5(4), 297-323. https://doi.org/10.1007/BF00122574
https://doi.org/10.1007/BF00122574...
)

Tal corrente contradiz sobretudo o pressuposto de racionalidade dos agentes presente na moderna teoria de finanças. Reconhece-se que a racionalidade dos agentes não ocorre de forma plena, corroborando a teoria da racionalidade limitada de Simon (1947Simon, H. (1947). Administrative behavior: A Study of Decision-making Processes in Administrative Organization (1st ed). The Macmillan Company.). Dessa forma, heurísticas, questões emocionais, dependência de contexto, dentre outras, são tomadas como variáveis que agem para imprimir um viés comportamental na tomada de decisão dos agentes financeiros. Mais recentemente, com o advento dos avanços da neurociência no campo das ciências sociais aplicadas, pode-se perceber uma aceitação por parte da academia em integrar tais teorias no arcabouço das finanças comportamentais. A partir deste movimento emergem outras subáreas, tais como neurofinanças e finanças evolutivas.

Apesar de deslocarem o foco das abordagens mais ortodoxas, esses trabalhos do ramo comportamental prosseguem em uma tendência positivista, pois possuem como referência de qualidade metodológica a utilização de (quase) experimentos (Kumar et al., 2022Kumar, S., Rao, S., Goyal, K., & Goyal, N. (2022). Journal of Behavioral and Experimental Finance: A bibliometric overview. Journal of Behavioral and Experimental Finance, 34, 100652. https://doi.org/10.1016/j.jbef.2022.100652
https://doi.org/10.1016/j.jbef.2022.1006...
), que é o ápice da aproximação de métricas das ciências naturais para o campo das ciências sociais, com raras inclusões de discussões que envolvam outras abordagens da psicologia, para além do behaviorismo, como, por exemplo, a psicanalítica.

Por fim, há uma terceira corrente de estudos financeiros que envolve o uso de inteligências artificiais e mineração de dados, com a utilização de ferramentas de machine learning para gerar modelos matemáticos complexos de previsão (Nazareth & Ramana Reddy, 2023Nazareth, N., & Ramana Reddy, Y. V. (2023). Financial applications of machine learning: A literature review. Expert Systems with Applications, 219, 119640. https://doi.org/10.1016/j.eswa.2023.119640
https://doi.org/10.1016/j.eswa.2023.1196...
). O principal diferencial desta corrente em relação à moderna teoria de finanças reside no fato de que as técnicas de machine learning, diferentemente das econométricas clássicas, apresentam facilidade para lidar com altos volumes de dados em suas modelagens, bem como não necessitam de modelos teóricos prévios para geração de previsões, uma vez que a base para isso decorre de um processo de treinamento a partir dos próprios dados empíricos (Mitchell et al., 1997Mitchell, T. M., Mitchell, T., & Thomas, M. (1997). Machine Learning (1st ed). McGraw-Hill Science/Engineering/Math). Dessa forma, considerando a finalidade destes estudos, constata-se também a manutenção de um teor positivista.

Por outro lado, é fundamental destacar que, mesmo com esta guinada sobre a percepção da racionalidade dos agentes e esta tentativa de trazer abordagens menos ortodoxas, tal movimento não foi acompanhado por uma guinada epistemológica, ou um questionamento da imposição do pensamento neoliberal, que é tomado como ‘natural’ no campo (Gaulejac, 2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social. Ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Ideias e Letras). A predominância do enfoque neoliberal nesse campo tem contribuído para dificultar a ampliação de suas contribuições sociais devido ao seu viés em favor das necessidades de mercado, que coloca em segundo plano ações mais sustentáveis e redutoras de desigualdades.

Vale destacar que quando nos referimos ao neoliberalismo, estamos enfatizando-o como uma racionalidade que generaliza a concorrência como norma de conduta e toma a empresa como modelo de subjetivação. Em outras palavras, definimos o neoliberalismo conforme Dardot e Laval (2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo), como um conjunto de discursos, práticas e dispositivos que estabelecem o governo da sociedade de acordo com o princípio universal da concorrência e que produz certos tipos de relações sociais que moldam subjetividades segundo o modelo da empresa.

GARGALOS E (AUTO)SUFOCAMENTO DO CAMPO

Conforme exposto anteriormente, a dominância de uma mentalidade positivista e neoliberal está enraizada na academia da área financeira. É importante destacar que, além de escassos, estudos em finanças que optam por realizar uma análise não positivista ocupam um lugar marginal no campo. Essa análise, a qual corrobora a reflexão postulada por Gendron e Smith-Lacroix (2015Gendron, Y., & Smith-Lacroix, J.-H. (2015). The global financial crisis: Essay on the possibility of substantive change in the discipline of finance. Critical Perspectives on Accounting, 30, 83-101. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2013.09.002
https://doi.org/10.1016/j.cpa.2013.09.00...
), reflete por sua vez o elitismo da academia de negócios, na qual um conjunto limitado de periódicos é considerado como fonte de conhecimento mais prestigiada. Salvo alguns casos particulares de temas específicos, o núcleo das pesquisas em finanças é composto basicamente por três periódicos (Journal of Finance, Journal of Financial and Quantitative Analysis e Journal of Financial Economics), que não aderem a uma diversificação epistemológica.

Dessa forma, pode-se dizer que estes três periódicos ditam o que é uma pesquisa financeira de qualidade, a qual se traduz como estudos positivistas e quantitativistas. A partir do poder simbólico que tais journals possuem, os demais periódicos visam a mimetizar estes parâmetros de qualidade, gerando uma ideologia de desvalorização de estudos que não sigam este padrão.

Além disso, os estudos financeiros publicados em periódicos mainstream apresentam uma baixa diversificação, tanto em termos das abordagens metodológicas quanto em sua cobertura geográfica (Brooks et al., 2019Brooks, C., Fenton, E., Schopohl, L., & Walker, J. (2019). Why does research in finance have so little impact? Critical Perspectives on Accounting, 58, 24-52. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2018.04.005
https://doi.org/10.1016/j.cpa.2018.04.00...
). Nesse sentido, os estudos acabam se pautando em uma ontologia idealista, gerando assim abstrações da realidade que atribuem às suas conclusões um caráter pouco prático. Além disso, as pesquisas se concentram em analisar mercados desenvolvidos, sobretudo o americano ou o europeu, além de aderirem à ideologia neoliberal predominante.

Assim, percebe-se que não há apenas uma dominância ideológica no campo, mas também que seu mainstream acadêmico, por ser restrito a três grandes periódicos, delimita focos temáticos para as pesquisas de finanças. Ou seja, eles determinam o que é um objeto relevante para estas pesquisas, limitando sua expansão para outros objetos e enfoques que possam gerar questionamentos dessa dominância e proposições alternativas para questões financeiras e econômicas. O estudo bibliométrico de Khan et al. (2022Khan, A., Goodell, J. W., Hassan, M. K., & Paltrinieri, A. (2022). A bibliometric review of finance bibliometric papers. Finance Research Letters, 47, 102520. https://doi.org/10.1016/j.frl.2021.102520
https://doi.org/10.1016/j.frl.2021.10252...
) corrobora esta posição, na medida em que sinaliza os seguintes tópicos como os mais relevantes: finanças sustentáveis, criptomoedas, literacia financeira, supply chain, gestão de risco, finanças comportamentais, mercados financeiros, governança corporativa e eficiência de mercado.

As ideias de Markides (2007Markides, C. (2007). In search of ambidextrous professors. Academy of Management Journal, 50(4), 762-768. https://doi.org/10.5465/amj.2007.26279168
https://doi.org/10.5465/amj.2007.2627916...
) e Brooks et al. (2019Brooks, C., Fenton, E., Schopohl, L., & Walker, J. (2019). Why does research in finance have so little impact? Critical Perspectives on Accounting, 58, 24-52. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2018.04.005
https://doi.org/10.1016/j.cpa.2018.04.00...
) complementam as críticas a essa dominância, pois analisam a falta de diálogo entre a academia e os profissionais do mercado, gerando dois tipos distintos de saber: um partindo rigorosamente de teorias e pressupostos, ao passo que outro se baseia nos conhecimentos do dia a dia. Desta forma, outro gargalo se forma, que é a delimitação de fronteiras entre o conhecimento acadêmico e o de mercado, contribuindo assim para uma desvalorização das pesquisas científicas e da possibilidade de novos enfoques epistemológicos no campo.

Considerando os gargalos mencionados, faltam originalidade e desenvolvimento teórico para as pesquisas na área financeira, além de haver baixa influência no que se refere às mudanças sociais (Coleman, 2014Coleman, L. (2014). Why finance theory fails to survive contact with the real world: A fund manager perspective. Critical perspectives on accounting, 25(3), 226-236. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2013.02.001
https://doi.org/10.1016/j.cpa.2013.02.00...
; Van Dijk, 2014Van Dijk, M. (2014). The Social Value of Finance. Inaugural Adress Research in Management Series. Erasmus Research Institute of Management- ERIM). Dessa forma, o atual modus operandi na academia incentiva estudos que apenas reforçam a manutenção do status quo existente, sem uma devida preocupação em propor reflexões críticas, ou rotas alternativas ao modelo neoliberal vigente (Fine, 2012Fine, B. (2012). Financialization on the rebound? Actuel Marx, 51(1), 73-85. https://doi.org/10.3917/amx.051.0073
https://doi.org/10.3917/amx.051.0073...
; Zhang & Andrew, 2014Zhang, Y., & Andrew, J. (2014). Financialisation and the conceptual framework. Critical perspectives on accounting, 25(1), 17-26. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2012.11.012
https://doi.org/10.1016/j.cpa.2012.11.01...
).

A EMERGÊNCIA DE ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA

Parafraseando Foucault (1977Foucault, M. (1977). Discipline and Punish: The birth of the prison (1st ed.). Pantheon Books), onde existem relações de poder, há também potencialidade de resistência. O campo de finanças não é uma exceção. O trabalho de Gippel (2013Gippel, J. K. (2013). A revolution in finance? Australian Journal of Management, 38(1), 125-146. https://doi.org/10.1177/0312896212461034
https://doi.org/10.1177/0312896212461034...
) comenta sobre as transformações ao longo dos anos, destacando o surgimento de novas teorias à medida que o campo se tornou mais multidisciplinar, abrangendo a psicologia (finanças comportamentais), a biologia (finanças evolucionistas e neurofinanças) e a sociologia (finanças sociológicas).

Neste estudo, Gippel (2013Gippel, J. K. (2013). A revolution in finance? Australian Journal of Management, 38(1), 125-146. https://doi.org/10.1177/0312896212461034
https://doi.org/10.1177/0312896212461034...
) reforça que mesmo com a inclusão de vertentes interdisciplinares, tendo em vista um avanço nas teorias financeiras, poucas alterações ocorreram no que tange à utilização de modelos dedutivos quantitativos. O único destaque decorre da vertente das finanças sociológicas, a qual apresenta uma tendência de inclusão de métodos qualitativos, tais como etnografia e fenomenologia. No entanto, o autor reconhece que tal subdisciplina ainda é pouco explorada e mesmo desconhecida por boa parte da academia.

Quanto aos trabalhos que criticam a predominância positivista em finanças, podem-se destacar Ardalan (2003Ardalan, K. (2003). Theories and controversies in finance: A paradigmatic overview. International Journal of Social Economics, 30(1-2), 199-208. https://doi.org/10.1108/03068290310453682
https://doi.org/10.1108/0306829031045368...
) e Sultana (2020Sultana, F. (2020). Paradigm shift and diversity in finance. Journal of Finance and Accounting Research, 2(1), Artigo 1. https://doi.org/10.32350/JFAR/0201/04
https://doi.org/10.32350/JFAR/0201/04...
). Além de enfatizarem as limitações do positivismo para a produção científica, estes autores sinalizam também a potencial aplicabilidade de abordagens interpretativistas e pragmáticas em temas de estudos financeiros. Corroborando esta posição, podem-se identificar estudos que realizam o emprego de alternativas ao positivismo, como o estudo de Ardalan (2004), que traz uma abordagem marxista e questiona interesses pessoais e ideológicos nas práticas financeiras; o trabalho de Langley (2006Langley, P. (2006). Securitising suburbia: The transformation of Anglo-American mortgage finance. Competition & Change, 10(3), 283-299. https://doi.org/10.1179/102452906X114384
https://doi.org/10.1179/102452906X114384...
), que discute o financiamento hipotecário anglo-americano com base na teoria ator-rede e em Foucault; a abordagem de Toporowski (2018Toporowski, J. (2018). Marx, Finance and Political Economy. Review of Political Economy, 30(3), 416-427. https://doi.org/10.1080/09538259.2018.1496549
https://doi.org/10.1080/09538259.2018.14...
), que analisa o financiamento de longo prazo em uma perspectiva marxista; o artigo de Höllerer et al. (2018Höllerer, M. A., Jancsary, D., & Grafström, M. (2018). ‘A picture is worth a thousand words’: Multimodal sensemaking of the global financial crisis. Organization Studies, 39(5-6), 617-644. https://doi.org/10.1177/0170840618765019
https://doi.org/10.1177/0170840618765019...
), que aborda diferentes narrativas de crises financeiras, a partir da análise semiótica e de discurso; e o artigo de Gerlach e Lutz (2019Gerlach, J. M., & Lutz, J. K. T. (2019). Evidence on usage behavior and future adoption intention of fintechs and digital finance solutions. The International Journal of Business and Finance Research, 13(2), 83-105. https://ssrn.com/abstract=3461852
https://ssrn.com/abstract=3461852...
) sobre as mudanças institucionais e estruturais de sistemas bancários via fintechs.

Apesar de romperem com a dominância epistemológica, trazendo inclusive uma abordagem mais crítica e questionamentos sobre a visão neoliberal, esses estudos não ocupam lugares mainstream do campo, conforme a análise feita anteriormente sobre a imposição do que é uma pesquisa científica de qualidade pelos top journals. Ademais, é evidente a escassez destes estudos, corroborando as reflexões sobre a restrição em relação a epistemes não positivistas. Entretanto, tais pesquisas comprovam a existência de um movimento de resistência ao status quo do campo, bem como a real possibilidade de elaboração de trabalhos acadêmicos em finanças para além do positivismo, do funcionalismo e do pensamento neoliberal.

Vale destacar que este movimento de resistência também está presente no cenário nacional. Uma sinalização recente disso na academia brasileira foi a promoção de uma mesa redonda denominada ‘Impacto da Pesquisa em Finanças: Academia e Prática’, que ocorreu no XLVII Encontro da ANPAD em 2023. Nesta sessão, foram discutidos alguns gaps nas pesquisas em finanças, como a falta de estudos sobre micro e pequenas empresas, ou mesmo empresas não listadas na B3. Constata-se que a dificuldade de acesso às informações de organizações nesta situação gera limitações amostrais que tornam as métricas estatísticas tradicionais ineficazes.

Ademais, foram debatidos também alguns desafios para enriquecer o caráter prático dos resultados acadêmicos, reconhecendo-se sobretudo que os estudos nacionais necessitam identificar e propor soluções para problemas específicos do Brasil, ou de suas regiões. Além disso, foi levantada a questão da falta de parcerias entre o setor privado e o acadêmico, tanto no que diz respeito ao acesso de informações como nos financiamentos para tais estudos.

A partir do exposto nesta mesa redonda, portanto, pôde-se identificar que os próprios membros da comunidade científica nacional reconhecem limitações nas pesquisas de finanças. Não obstante, é preciso reconhecer que a comunidade científica, por pactuar de uma dominância positivista, acaba por manter padrões de publicações que não vão além do que é comumente feito, obliterando enfoques mais críticos, bem como outras abordagens epistêmicas ou metodológicas.

Apesar das limitações serem reconhecidas, os periódicos de maior impacto ainda se demonstram bastante estáticos para a aceitação destas mudanças, reforçando a manutenção das dinâmicas de poder que favorecem essa dominância. Dessa forma, é preciso manter e reafirmar as forças de resistência para que se possa criar uma ruptura que viabilize uma alteração das configurações epistemológicas e ideológicas do campo.

Para aqueles que estão iniciando sua jornada acadêmica, talvez seja difícil, se não impossível, tentar escapar da verificada dominância que age no campo. Essa dificuldade dar-se-á sobretudo por dois fatores. Primeiramente, porque a falta de contato com outras vertentes de análise em estudos financeiros pode gerar a falsa impressão de que finanças não podem ser vistas a partir de outras epistemes. Na verdade, este aspecto permeia membros do campo e, com o tempo, solidificou barreiras psíquicas que agem como principais forças de resistência às mudanças.

Por outro lado, a naturalização de finanças como funcional por parte de docentes da área limita, direciona e restringe a disseminação de ideias aos alunos e alunas, mesmo quando estes assumem o papel de professor e professora. Todavia, este estreitamento epistêmico se torna ainda mais evidente no papel de orientação, pois é nesse momento que as ideias de produção acadêmica e temas de pesquisa são calibrados para se manterem dentro de um escopo alinhado com a ótica do positivismo.

É importante destacar, que não se trata aqui de desconsiderar a importância, a validade e as contribuições das abordagens positivistas e funcionalistas, mas de ampliara visão e buscar outras epistemes como forma de ir além de interesses técnicos, abrangendo também interesses práticos e emancipatórios, como sugere Paes de Paula (2016Paes de Paula, A. P. (2016). Para além dos paradigmas nos Estudos Organizacionais: O Círculo das Matrizes Epistêmicas. Cadernos da EBAPE, 14(1), 24-46. https://doi.org/10.1590/1679-395131419
https://doi.org/10.1590/1679-395131419...
). Em outras palavras, é possível a composição de pesquisas que abranjam mais deuma epistemologia, combinando por exemplo funcionalismo e interpretativismo, interpretativismo e crítica, e assim por diante.

Diante desse quadro, fica evidente a necessidade de uma estratégia plural para conseguir efetivamente entrar nesse campo de disputa, para em um segundo momento, intentar uma reconfiguração de poder. É, primeiramente, preciso que os pesquisadores e pesquisadoras de finanças tenham um maior contato com múltiplas correntes de pensamento, para que entendam a atual configuração e as relações de poder que guiam o campo de finanças e, posteriormente, possam pensar em alternativas epistemológicas e metodológicas.

Em um campo ‘(auto)sufocado’ como o de finanças, indivíduos sem condições de exercer influência no campo precisam identificar formas de trazer novas ideias epistêmicas que não sejam necessariamente o conflito direto. Uma maneira diferente de analisar os resultados, de focalizar problemas que envolvam o bem-estar social, ou mesmo de propor questionamentos às produções na área de finanças, são estratégias válidas de resistência, que também têm potencial para publicação.

Já para docentes que possuem relevância no campo, caso se identifiquem com essa resistência à dominância constatada, é interessante um movimento mais ousado. Dado o poder simbólico que costumam ter, propor trabalhos e novos enfoques que desafiem o positivismo/funcionalismo e a ideologia neoliberal é uma potencialidade. Outra forma de exercer a resistência seria levar estas reflexões para a sala de aula e para suas orientações e parcerias de pesquisa, não de uma forma impositiva, mas sim como outra possibilidade para se trabalhar. Sob um outro aspecto, considerando a dimensão sóciopolítica das ações, seria importante mapear a instituições e grupos alinhados com essas perspectivas para enfatizar a formação de alianças e redes de pesquisadores, além de inserir essas temáticas na agenda do campo em eventos, congressos, lives e outras formas de divulgação que fomentem esse debate. Por fim, a criação de periódicos na área de finanças que sejam mais flexíveis quanto às epistemologias e métodos de análise também seria uma tentativa válida para alterar o status quo do campo.

Portanto, torna-se claro que este combate à dominância positivista, funcionalista e neoliberal não pode ser empreendido com apenas uma frente desordenada de combate. Assim como qualquer disputa de poder, são necessários movimentos múltiplos para que se consiga elucidar a naturalização e a reificação da ideologia, identificando o local de fala deste discurso, isto é, os interesses particulares que estão por detrás dele e a quem este discurso visa a oprimir e silenciar, possibilitando que novas alternativas para se pensar o campo financeiro e econômico sejam desenvolvidas, indo além da visão neoliberal para trazer perspectivas que pactuem com um enfoque mais solidário, cooperativo, sustentável e transformador sobre essas questões.

REFERENCES

  • Ardalan, K. (2003). Theories and controversies in finance: A paradigmatic overview. International Journal of Social Economics, 30(1-2), 199-208. https://doi.org/10.1108/03068290310453682
    » https://doi.org/10.1108/03068290310453682
  • Ardalan, K. (2004). On the theory and practice of finance. International Journal of Social Economics, 31(7), 684-705. https://doi.org/10.1108/03068290410540882
    » https://doi.org/10.1108/03068290410540882
  • Brooks, C., Fenton, E., Schopohl, L., & Walker, J. (2019). Why does research in finance have so little impact? Critical Perspectives on Accounting, 58, 24-52. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2018.04.005
    » https://doi.org/10.1016/j.cpa.2018.04.005
  • Coleman, L. (2014). Why finance theory fails to survive contact with the real world: A fund manager perspective. Critical perspectives on accounting, 25(3), 226-236. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2013.02.001
    » https://doi.org/10.1016/j.cpa.2013.02.001
  • Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo
  • Fabozzi, & Drake, P. (2009). Finance: Capital markets, financial management, and investment management. (1st edição). John Wiley & Sons.
  • Fine, B. (2012). Financialization on the rebound? Actuel Marx, 51(1), 73-85. https://doi.org/10.3917/amx.051.0073
    » https://doi.org/10.3917/amx.051.0073
  • Foucault, M. (1977). Discipline and Punish: The birth of the prison (1st ed.). Pantheon Books
  • Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social. Ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Ideias e Letras
  • Gendron, Y., & Smith-Lacroix, J.-H. (2015). The global financial crisis: Essay on the possibility of substantive change in the discipline of finance. Critical Perspectives on Accounting, 30, 83-101. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2013.09.002
    » https://doi.org/10.1016/j.cpa.2013.09.002
  • Gerlach, J. M., & Lutz, J. K. T. (2019). Evidence on usage behavior and future adoption intention of fintechs and digital finance solutions. The International Journal of Business and Finance Research, 13(2), 83-105. https://ssrn.com/abstract=3461852
    » https://ssrn.com/abstract=3461852
  • Gippel, J. K. (2013). A revolution in finance? Australian Journal of Management, 38(1), 125-146. https://doi.org/10.1177/0312896212461034
    » https://doi.org/10.1177/0312896212461034
  • Höllerer, M. A., Jancsary, D., & Grafström, M. (2018). ‘A picture is worth a thousand words’: Multimodal sensemaking of the global financial crisis. Organization Studies, 39(5-6), 617-644. https://doi.org/10.1177/0170840618765019
    » https://doi.org/10.1177/0170840618765019
  • Iquiapaza, R. A., Amaral, H. F., & Bressan, A. A. (2009). Evolução da pesquisa em finanças: Epistemologia, paradigma e críticas. Organizações & Sociedade, 16(49), 351-370. https://doi.org/10.1590/S1984-92302009000200008
    » https://doi.org/10.1590/S1984-92302009000200008
  • Keasey, K., & Hudson, R. (2007). Finance theory: A house without windows. Critical Perspectives on Accounting, 18(8), 932-951. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2006.06.002
    » https://doi.org/10.1016/j.cpa.2006.06.002
  • Khan, A., Goodell, J. W., Hassan, M. K., & Paltrinieri, A. (2022). A bibliometric review of finance bibliometric papers. Finance Research Letters, 47, 102520. https://doi.org/10.1016/j.frl.2021.102520
    » https://doi.org/10.1016/j.frl.2021.102520
  • Kumar, S., Rao, S., Goyal, K., & Goyal, N. (2022). Journal of Behavioral and Experimental Finance: A bibliometric overview. Journal of Behavioral and Experimental Finance, 34, 100652. https://doi.org/10.1016/j.jbef.2022.100652
    » https://doi.org/10.1016/j.jbef.2022.100652
  • Langley, P. (2006). Securitising suburbia: The transformation of Anglo-American mortgage finance. Competition & Change, 10(3), 283-299. https://doi.org/10.1179/102452906X114384
    » https://doi.org/10.1179/102452906X114384
  • Markides, C. (2007). In search of ambidextrous professors. Academy of Management Journal, 50(4), 762-768. https://doi.org/10.5465/amj.2007.26279168
    » https://doi.org/10.5465/amj.2007.26279168
  • McLean, P. A., & Brian, J. D. G. (2007). Edward Sherwood Mead (1874‐1956): A pioneer in finance education. European Business Review, 19(2), 118-128. https://doi.org/10.1108/09555340710730083
    » https://doi.org/10.1108/09555340710730083
  • Mitchell, T. M., Mitchell, T., & Thomas, M. (1997). Machine Learning (1st ed). McGraw-Hill Science/Engineering/Math
  • Mramor, D., & Lonèarski, I. (2002). Traditional, modern and new approach to finance. In 6th Conference on Alternative Perspectives on Finance, Hamburg, Germany.
  • Nazareth, N., & Ramana Reddy, Y. V. (2023). Financial applications of machine learning: A literature review. Expert Systems with Applications, 219, 119640. https://doi.org/10.1016/j.eswa.2023.119640
    » https://doi.org/10.1016/j.eswa.2023.119640
  • Paes de Paula, A. P. (2016). Para além dos paradigmas nos Estudos Organizacionais: O Círculo das Matrizes Epistêmicas. Cadernos da EBAPE, 14(1), 24-46. https://doi.org/10.1590/1679-395131419
    » https://doi.org/10.1590/1679-395131419
  • Simon, H. (1947). Administrative behavior: A Study of Decision-making Processes in Administrative Organization (1st ed). The Macmillan Company.
  • Sultana, F. (2020). Paradigm shift and diversity in finance. Journal of Finance and Accounting Research, 2(1), Artigo 1. https://doi.org/10.32350/JFAR/0201/04
    » https://doi.org/10.32350/JFAR/0201/04
  • Toporowski, J. (2018). Marx, Finance and Political Economy. Review of Political Economy, 30(3), 416-427. https://doi.org/10.1080/09538259.2018.1496549
    » https://doi.org/10.1080/09538259.2018.1496549
  • Tversky, A., & Kahneman, D. (1992). Advances in prospect theory: Cumulative representation of uncertainty. Journal of Risk and Uncertainty, 5(4), 297-323. https://doi.org/10.1007/BF00122574
    » https://doi.org/10.1007/BF00122574
  • Van Dijk, M. (2014). The Social Value of Finance. Inaugural Adress Research in Management Series. Erasmus Research Institute of Management- ERIM
  • Zhang, Y., & Andrew, J. (2014). Financialisation and the conceptual framework. Critical perspectives on accounting, 25(1), 17-26. https://doi.org/10.1016/j.cpa.2012.11.012
    » https://doi.org/10.1016/j.cpa.2012.11.012
  • Zingales, L. (2015). Does Finance Benefit Society? Chicago Booth Research Paper, 15-09, paper 2585194. https://doi.org/10.2139/ssrn.2585194
    » https://doi.org/10.2139/ssrn.2585194
  • Financiamento

    Os autores agradecem o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais pelo apoio financeiro para este trabalho.
  • Verificação de Plágio

    A RAC mantém a prática de submeter todos os documentos aprovados para publicação à verificação de plágio, mediante o emprego de ferramentas específicas, e.g.: iThenticate.
  • Método de Revisão por Pares

    Este conteúdo foi avaliado utilizando o processo de revisão por pares duplo-cego (double-blind peer-review). A divulgação das informações dos pareceristas constantes na primeira página e do Relatório de Revisão por Pares (Peer Review Report) é feita somente após a conclusão do processo avaliativo, e com o consentimento voluntário dos respectivos pareceristas e autores.
  • Disponibilidade dos Dados

    A RAC incentiva o compartilhamento de dados mas, por observância a ditames éticos, não demanda a divulgação de qualquer meio de identificação de sujeitos de pesquisa, preservando a privacidade dos sujeitos de pesquisa. A prática de open data é viabilizar a reproducibilidade de resultados, e assegurar a irrestrita transparência dos resultados da pesquisa publicada, sem que seja demandada a identidade de sujeitos de pesquisa.
  • Classificação JEL:

    MO, M2, P1, N2.
  • Relatório de Revisão por Pares:

    A disponibilização do Relatório de Revisão por Pares não foi autorizada pelos revisores.

  • # de revisores convidados até a decisão:

Editado por

Editor-chefe:

Marcelo de Souza Bispo (Universidade Federal da Paraíba, PPGA, Brasil) https://orcid.org/0000-0002-5817-8907

Disponibilidade de dados

A RAC incentiva o compartilhamento de dados mas, por observância a ditames éticos, não demanda a divulgação de qualquer meio de identificação de sujeitos de pesquisa, preservando a privacidade dos sujeitos de pesquisa. A prática de open data é viabilizar a reproducibilidade de resultados, e assegurar a irrestrita transparência dos resultados da pesquisa publicada, sem que seja demandada a identidade de sujeitos de pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2024
  • Revisado
    18 Abr 2024
  • Aceito
    23 Abr 2024
  • Publicado
    05 Maio 2024
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração Av. Pedro Taques, 294,, 87030-008, Maringá/PR, Brasil, Tel. (55 44) 98826-2467 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: rac@anpad.org.br