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Pesquisa Contábil: O Falso Dilema entre a Consistência Metodológica e a Relevância Prática

A pesquisa acadêmica em contabilidade tem permitido que progressos sejam feitos no desenvolvimento de relatórios que visam a informar a posição patrimonial e o desempenho das organizações. Mais especificamente, no caso brasileiro pudemos acompanhar nas décadas de 70 a 90 o desenvolvimento de uma profícua produção de conhecimento alinhada às demandas informacionais dos usuários dos reportes financeiros. Exemplos são: (a) o modelo de correção monetária integral; (b) a propositura da demonstração do valor adicionado; e (c) o modelo de gestão econômica (Gecon).

Todavia, se por um lado o desenvolvimento de estudos contábeis que se retroalimentam da experiência prática tem sido algo usual no histórico dos pesquisadores e produtores de conhecimento em contabilidade no Brasil, nos parece que essa trilha está fora do gosto contemporâneo. Parece que temos nos entretido muito mais com a busca pela consistência do método do que com a análise da relevância do objeto pesquisado. Ou até mesmo vivido uma crise de identidade que nos afasta da produção central do conhecimento em contabilidade com um olhar sobre a prática profissional. Como se existisse um dilema entre a qualidade prática dos trabalhos e a sua consistência conceitual e metodológica.

Barth (2015Barth, M. E. (2015). Financial accounting research, practice, and financial accountability. ABACUS, 51(4), 499 - 510. https://doi.org/10.1111/abac.12057
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) ressalta que a pesquisa contábil, sobretudo envolvendo a temática da contabilidade financeira, é uma atividade fundamental para o desenvolvimento dos relatórios corporativos essenciais para o direcionamento das tomadas de decisões econômicas e intrínsecas à formação de uma sociedade próspera.

De antemão é importante estabelecer que as reflexões propostas neste material não se tratam de provocações ou apontamentos a trabalhos específicos. Referem-se a ponderações sobre o diapasão que tem se estabelecido entre a pesquisa contábil e a prática contábil, sobretudo porque o afastamento entre ambas as atividades torna a pesquisa em contabilidade dotada de baixa relevância fora da academia, bem como torna a prática contábil pobre de entendimento acerca do porquê de serem empregados e conduzidos determinados procedimentos para elaboração dos relatórios financeiros na ordem do dia.

Em suma, perdem os acadêmicos e perdem os profissionais com o distanciamento entre a pesquisa e a prática contábil.

Cremos que uma análise mais aprofundada do porquê de a pesquisa contábil ter cada vez mais se distanciado da prática profissional possa advir de ao menos três explicações: (a) o entrincheiramento acadêmico; (b) atributos de formação dos contadores; e (c) a atração pelo método acima do objeto de pesquisa. Passaremos para análise detida de cada um desses potenciais vetores explicativos, sem a pretensão de exauri-los ou mesmo de inibir a busca por outras razões para explicar o fenômeno em questão.

Tomamos aqui o conceito de entrincheiramento acadêmico como um traço razoavelmente natural de alguns pesquisadores de não se interessarem ou de não comparecerem a fóruns em que são discutidas pautas de caráter pragmático, quer seja pela indisponibilidade de tempo, quer seja pelo desestímulo que alguns possuem de tomar contato com temas materiais. Fato é que tal distanciamento nos torna cada vez mais reféns de nossas próprias citações e reflexões, à espécie de um viés de autoconfirmação, e incapazes de percebermos que há uma dinâmica muito mais ativa acerca dos problemas que se apresentam e para os quais não se tem solução proposta na prática empresarial.

No caso da pesquisa em contabilidade, o problema do entrincheiramento ganha relevos ainda mais drásticos porque expressiva parte da literatura que seguimos tem origem internacional e quando formulada não levou em consideração o desenvolvimento de soluções para problemas contábeis de um país igual ao Brasil. Por exemplo, assumimos que a demanda por informação no mercado brasileiro de capitais é similar à encontrada nos EUA, onde a estrutura de propriedade das companhias é bem diversa da brasileira. Outro exemplo: no Brasil, a carga tributária afeta uma série de procedimentos relativos à contabilidade financeira, mas pressupomos que as escolhas contábeis aqui são neutras de efeitos que não o estrito julgamento técnico. Isto posto, corremos o risco de seguir entrincheirados recomendando prognósticos de tratamentos de mercados desenvolvidos para problemas contábeis mais comuns nos trópicos.

Aqui, não estamos pregando o isolacionismo da pesquisa, mas sim que os pesquisadores em contabilidade se aproveitem de seu conhecimento institucional para dar cores e um viés mais prático e aplicável aos trabalhos desenvolvidos. Queremos evitar que, dado um eventual diagnóstico errado dos problemas que acreditamos permear a contabilidade brasileira no dia a dia, venhamos a tecer prognósticos igualmente equivocados do ponto de vista da pesquisa.

A questão dos atributos de formação afeta de maneira mútua pesquisadores e profissionais de contabilidade, especialmente porque nos priva de uma formação ampla e não nos dá conhecimentos suficientes para um desenvolvimento multidisciplinar, o qual é essencial para o adequado exercício tanto da pesquisa quanto das atividades profissionais.

Problemas clássicos da ausência de uma formação robusta no mundo contábil se apresentam quando temos de dialogar com profissionais de outras áreas e nos damos conta de que nos falta um vocábulo básico de outros campos do conhecimento para que possamos tornar a interação útil para o desenvolvimento de nossas tarefas.

Todos os pesquisadores - não é diferente para os autores deste texto - podem se beneficiar de uma formação acadêmica mais ampla que considere as várias disciplinas inter-relacionadas. Não somente as disciplinas tradicionais de economia e finanças, mas também aquelas que tratam mais diretamente do funcionamento de nosso mercado, como o direito societário e tributário. A contextualização da contabilidade em seu ambiente institucional e social pode, da mesma forma, trazer uma riqueza de conhecimentos variados acerca do seu efetivo papel, bem como de seu protagonismo como elemento de legitimação.

Por fim, mas não menos importante, devemos evitar o apaixonamento pelos métodos em detrimento do objeto pesquisado, tornando parte das pesquisas em contabilidade exímias na execução da abordagem metodológica para problemas de questionável relevância.

Com o perdão do clichê: o método é um meio para o atingimento de uma determinada finalidade; todavia, sem a clareza da importância do que se pesquisa ou até mesmo de qual é a finalidade do estudo, corremos o risco de nos perdermos na jornada, de modo a apresentarmos achados robustos para problemas de menor importância. Legítimos cativos da abordagem metodológica irrefletida.

A bem da verdade, é preciso dizer que em alguma medida a tendência das publicações retroalimenta a priorização do método em dano do propósito; contudo, nenhum movimento quebra o seu trajeto sem que haja alguma força contrária. Portanto, é necessário que nós, pesquisadores em contabilidade, lembremos que nossa área do conhecimento se situa na interposição entre a academia e a prática, de forma que o apartamento entre ambas implica perda mútua.

No sentido de apresentar alguma contribuição para estudos futuros, sobretudo no âmbito da contabilidade financeira de onde somos originários, sugerimos:

  • o acompanhamento das agendas dos projetos das organizações que normatizam as práticas e a profissão contábil (e.g., CFC, FASB e IASB), pois certamente esse será um oportuno guia para que se verifique quais são os temas mais atuais que podem servir como roteiro para pesquisa em contabilidade;

  • a leitura das cartas enviadas por stakeholders de todo o mundo, quando o IASB coloca uma norma em audiência pública, pode trazer provocações interessantes - exemplo nítido disso é a norma sobre seguros recentemente emitida que gerou um grande debate internacional; e

  • outra fonte de inspiração para pesquisa contábil são os próprios relatórios dos analistas de mercado (sell-side), bem como da própria imprensa e fornecedores de informação especializada, os quais frequentemente tratam de assuntos contábeis.

Vale lembrar que um pesquisador contábil que se atém a assuntos de caráter prático não se confunde com consultores empresariais, os quais, inclusive, desenvolvem trabalhos de inquestionável relevância. Somente torna os pesquisadores atentos ao que se passa no mundo real, tirando-os do isolamento no qual se assentam muitas vezes, em que se esquecem que a contrapartida da academia para a sociedade advém em boa parte da capacidade de reflexão dos acadêmicos materializada por meio de estudos úteis.

A nosso ver, um dos principais traços de um bom pesquisador é compreender a moral do Conto da Ilha Desconhecida de Saramago, o qual induz ao entendimento de que para compreender a ilha é necessário sair dela. Dessa feita, se permanecermos fechados em nossas salas de pesquisa, voltando as costas para o mundo prático, continuaremos a perpetuar pesquisas de pouca relevância.

Novamente, o propósito dos comentários ora apresentados não é diminuir a importância dos estudos contábeis ou especificar o que é ou não uma boa pesquisa. Limitamo-nos às anotações que consideramos úteis para que a produção desses estudos possa ser mais alinhada a questões práticas, buscando contribuir para a legitimação da pesquisa contábil como atividade oportuna para o desenvolvimento da profissão nas suas mais variadas perspectivas.

Esperamos assim contribuir para esse debate não como observadores independentes, mas como participantes ativos. Sabemos das dificuldades das questões aqui expostas e sabemos que muitas vezes é mais cômodo fingir que os problemas não existem. Preferimos, no entanto, buscar a reflexão ativa e crítica em prol da evolução da nossa área de conhecimento e nesse processo, quem sabe, contribuir para a sociedade.

REFERENCES

  • Barth, M. E. (2015). Financial accounting research, practice, and financial accountability. ABACUS, 51(4), 499 - 510. https://doi.org/10.1111/abac.12057
    » https://doi.org/10.1111/abac.12057
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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