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Padrão de Dados Abertos em Compras e Contratações Públicas: Uma Construção Colaborativa

RESUMO

Objetivo:

o artigo analisa a construção colaborativa da proposta de um padrão para publicação de dados abertos em compras e contratações públicas, baseado na composição de iniciativas regionais e internacionais. Pressupõe-se que tal padrão, uma vez difundido, pode otimizar a disponibilização de dados por municípios para cidadãos e órgãos de controle, em conformidade com os princípios de dados abertos.

Método:

partiu-se de um problema concreto vivenciado em um município, envolvendo uma rede de atores com perspectivas e conhecimentos diversos em relação ao problema e sua solução, para desenvolver uma proposta de solução, testar em um município piloto e gerar potencial para interoperabilidade e escalabilidade para outros municípios e órgãos públicos.

Resultado:

além do padrão em si, contemplando três classes de dados (edital, adjudicação e contrato), houve outros dois produtos: o desenvolvimento e sistematização da metodologia de coprodução em resposta a um problema público e o projeto de constituição de uma rede estadual para a padronização de dados abertos.

Conclusão:

a construção do padrão envolveu vários conhecimentos, recursos e atores. O processo incluiu desafios, mudanças e aprendizagens. Um dos destaques é o foco na resolução de problemas, a construção colaborativa a partir dos municípios, com academia, sociedade civil e órgãos de governo. Construído de forma colaborativa, o padrão tem potencial de replicabilidade, sendo recomendado para outras organizações que desejem utilizá-lo para gerar dados abertos. As características do processo, de natureza tecnopolítica e ontológica, bem como as perspectivas e os desafios para sua continuidade, contribuem para o conhecimento e a prática da governança colaborativa.

Palavras-chave:
construção colaborativa; padrão; dados abertos; compras e contratações públicas; municípios

ABSTRACT

Objective:

this research examines the collaborative development of a standard for publishing open data in public procurement and contracting, drawing on regional and international initiatives. The study posits that disseminating such a standard can potentially enhance the municipalities’ ability to disclose data for citizens and control agencies, complying with open data principles.

Method:

the study started with an examination of a specific issue encountered within a municipality, engaging a network of stakeholders possessing diverse perspectives and insights into the problem and potential solutions. A proposal to resolve the issue was formulated and subjected to a pilot test in a municipality, evaluating its capacity for interoperability and scalability to other municipalities and public agencies.

Result:

alongside the proposal for an open data standard comprising three classes of data - public notice, adjudication, and contracting -, the study yielded two additional outcomes: the development and systematization of a co-production methodology to address public issues, and the initiation of a project to establish a statewide network for open data standardization.

Conclusion:

the development of the open data standard involved the integration of diverse knowledge, resources, and stakeholders. In addition, it encountered challenges, underwent iterations, and imparted valuable lessons. The emphasis on problem-solving and collaborative engagement among municipalities, academia, civil society, and government agencies was an aspect that stood out. Constructed collaboratively, the open data standard demonstrated potential for replication and is recommended for adoption by other organizations seeking to promote open data initiatives. The technopolitical and ontological aspects of the process, along with the perspectives and challenges for its sustainability, contribute to advancing knowledge and enhancing the practice of collaborative governance.

Keywords:
collaborative construction; standard; open data; public procurement and contracting; municipalities

INTRODUÇÃO

As temáticas de governo aberto, dados abertos e contratação aberta vêm sendo abordadas em debates e práticas relacionados à transparência e à accountability da administração pública e ao aprimoramento dos serviços públicos. Organizações internacionais como a Open Government Partnership (OGP, 2017), a Open Contracting Partnership (OCP, 2019; 2022), a Organisation for Economic Co-operation and Development (OCDE, 2013; 2022) e o Banco Mundial (Fagan et al., 2022Fagan, J., Piga, G., Trepte, P.-A; Tiwana, O. H., Sharma, V., & Mozammel, M. (2022). A global procurement partnership for sustainable development: An international stocktaking of developments in public procurement: Synthesis report (English). World Bank Group. http://documents.worldbank.org/curated/en/173331642410951798/Synthesis-Report
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; World Bank Institute [WBI], 2012) vêm estimulando governos, empresas e demais envolvidos com a gestão pública a se tornarem mais abertos tanto no sentido da disponibilização de informações como no da participação de cidadãos e usuários de serviços, em colaboração com governos, para a melhoria dos serviços públicos.

No Brasil, iniciativas relativas à transparência e à interação entre governo e cidadãos com foco em dados abertos vêm sendo conduzidas. Um exemplo é a Operação Serenata de Amor (2023), que usa dados abertos disponibilizados pelo Congresso Nacional sobre diárias para analisar os padrões de gastos. O estado do Espírito Santo (Dados abertos do Espírito Santo, 2023) vem se destacando em rankings relativos à transparência (Transparência Internacional Brasil, 2023). O projeto Querido Diário (Open Knowledge Brasil, 2023), que promove a disponibilização de dados abertos, utiliza inteligência artificial para análise de dados de diários oficiais. Em paralelo, estudiosos se debruçam sobre o tema buscando compreender os processos ontológicos e tecnopolíticos de abertura de dados e seus condicionantes (Distinto et al., 2016Distinto, I., d’Aquin, M., & Motta, E. (2016). LOTED2: An ontology of European public procurement notices. Semant, 7(3), 267-293. https://doi.org/10.3233/SW-140151
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; Muñoz-Soro et al., 2016Muñoz-Soro, J. F., Esteban, G., Corcho, O., & Serón, F. (2016). PPROC, an ontology for transparency in public procurement. Semantic Web, 7(3), 295-309. https://doi.org/10.3233/SW-150195
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; Schommer et al., 2022Schommer, P. C., Raupp, F. M., Salm, J. F., Jr., Guerzovichet, F., & Pereira, R. S. (2022). Abertura de dados em compras e contratações públicas como um processo tecnopolítico e ontológico. Estadão. https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/abertura-de-dados-em-compras-e-contratacoes-publicas-como-um-processo-tecnopolitico-e-ontologico/
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; Soylu et al., 2019Soylu, A., Elvesaeter, B., Turk, P., Roman, D., & Corcho, O. (2019). Towards an ontology for public procurement based on the open contracting data standard. 18th Conference on e-Business, e-Services and e-Society (I3E). Trondheim, Norway. https://hal.inria.fr/hal-02510144/
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), o uso dos dados e suas aplicações práticas (Angélico, 2023Angélico, F. (2023). Open government data as an anticorruption intervention in global cities: Do local level accountability actors actually use data? [Tese de doutorado]. Fundação Getulio Vargas, São Paulo, Brasil.).

A legislação brasileira vem abordando o tema (Decreto n. 7.724, 2012; Decreto n. 8.777, 2016; Decreto n. 10.332, 2020; Lei n. 12.527, 2011), buscando promover a cultura da transparência e dos dados abertos, o que favorece que os governos sejam mais abertos à sociedade. Mas nem sempre o faz de modo completo e claro, como ocorre com a previsão da Lei de Acesso à Informação (LAI), Lei n. 12.527 (2011), que em seu artigo 8º, § 3º, III, prevê que os sítios devem possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina, porém não há especificação de um padrão para tal. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Lei n. 13.709 (2018), por sua vez, regulamenta os procedimentos de tratamento de dados pessoais, tanto por entes públicos quanto privados. Especificamente na área de compras públicas, a nova Lei de Licitações e Contratos, Lei n. 14.133 (2021b), em seu art. 5º, por exemplo, traz a transparência como princípio. Mesmo com o conjunto de leis e iniciativas mencionadas, não há, no Brasil, a definição de um padrão para a geração de dados sobre compras e contratações públicas seguindo critérios de dados abertos.

Para além de cumprir exigências legais, a abertura de dados pode ser considerada um valor democrático e um aliado da melhoria da gestão e dos serviços públicos (Schommer et al., 2022Schommer, P. C., Raupp, F. M., Salm, J. F., Jr., Guerzovichet, F., & Pereira, R. S. (2022). Abertura de dados em compras e contratações públicas como um processo tecnopolítico e ontológico. Estadão. https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/abertura-de-dados-em-compras-e-contratacoes-publicas-como-um-processo-tecnopolitico-e-ontologico/
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). Todavia, há também resistências que podem ser explicadas por fatores estruturais, culturais e organizacionais (Meijer, 2015Meijer, A. (2015). E-governance innovation: Barriers and strategies. Government Information Quarterly, 32(2), 198-206. https://doi.org/10.1016/j.giq.2015.01.001
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; Ritter et al., 2017Ritter, O., Pinho, B., Reis, L. C. D., & Vilar, T. B. (2017, julho). Transparência das políticas públicas de renúncia fiscal: uma análise sob a ótica de dados abertos. Anais do Congresso CONSAD de Gestão Pública, 10., 2017, Brasília, DF, Brasil.). De modo específico, alguns obstáculos podem ser identificados para a abertura de dados públicos: dependência de recursos financeiros; equilíbrio entre abordagens colaborativas e tomada de decisão; e dificuldades em demonstrar o impacto (Bartolomucci, 2023Bartolomucci, F. (2023, May 9). 3 barriers to successful data collaboratives. The Data Values Digest. https://datavaluesdigest.substack.com/p/3-barriers-to-successful-data-collaboratives?sd=pf&utm_content=buffer639ee&utm_medium=social&utm_source=linkedin.com&utm_campaign=buffer
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).

A divulgação de dados abertos nos processos de compras e contratações, em particular, pode contribuir para um aumento da concorrência nas licitações, ao reduzir riscos nos processos e chances de corrupção (Bahur et al., 2020Bahur, M., Czibik, A., Fazekas, M., & Licht, J. F. (2020). Lights on the shadows of public procurement: Transparency in government contracting as an antidote to corruption? In A. Czibik, M. Fazekas, M. Bahur, J. F. Licht. (Org.), The digital whistleblower: Fiscal transparency, risk assessment and the impact of good governance policies assessed (pp. 1-39). https://digiwhist.eu/wp-content/uploads/2017/09/D3.2-Light-on-the-Shadows-of-Public-Procurement_corr.pdf
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), para aprimorar a gestão de custos e os controles internos, além de facilitar o atendimento a demandas de órgãos de controle. Em termos globais, as compras e contratações públicas correspondem, aproximadamente, a 12% do produto interno bruto (PIB) de um país (Bosio & Djankov, 2020Bosio, E., & Djankov, S. (2020). How large is public procurement? https://blogs.worldbank.org/developmenttalk/how-large-public-procurement
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). De acordo com a Open Contracting Partnership, as contratações públicas representam um mercado global de 13 trilhões de dólares, sendo que um em cada três dólares gastos pelos governos são destinados para contratos com empresas (OCP, 2023). Melhorias nas contratações públicas podem ter efeito no equilíbrio fiscal, no aumento da disponibilidade de recursos e na adição de valor público, contribuindo para objetivos como a sustentabilidade socioambiental, o incentivo a novos negócios e a proteção de grupos vulneráveis da sociedade (Fagan et al., 2022Fagan, J., Piga, G., Trepte, P.-A; Tiwana, O. H., Sharma, V., & Mozammel, M. (2022). A global procurement partnership for sustainable development: An international stocktaking of developments in public procurement: Synthesis report (English). World Bank Group. http://documents.worldbank.org/curated/en/173331642410951798/Synthesis-Report
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).

Do ponto de vista acadêmico, há um expressivo campo para estudos futuros relacionados à capacitação e profissionalização dos técnicos que atuam nesta área, estratégias que podem ser utilizadas para as compras públicas, legislação relacionada ao tema, além dos desafios aplicados à gestão pública relativos à transparência, inovação, coprodução e cocriação (Silva et al., 2023Silva, S. S., Oliveira, M. A. M., & Lopes, A. V. (2023). Panorama da produção científica sobre compras públicas no Brasil: Agenda de pesquisa e perspectivas de investigação. GESTÃO.Org - Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, 21(1), 1-23. https://doi.org/10.51359/1679-1827.2023.248824
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).

Neste cenário, os municípios brasileiros dedicam boa parte da sua capacidade administrativa à gestão dos processos de compras e contratações e à prestação de contas sobre tais processos, sobretudo para órgãos de controle. Ao focalizar o atendimento a obrigações legais e demandas de órgãos de controle, que dependem de fornecedores de software de gestão (sistemas de compras e licitações, contábeis, gestão de materiais/almoxarifado etc.), a definição e execução de ações estratégicas acabam não sendo prioridades, o que acontece também com inovações em áreas como transparência e controle social, e no caso, dados abertos. Assim, raramente os municípios disponibilizam os dados sobre seus processos em formato aberto, o que limita seu potencial de utilização por mais interessados e para usos que vão além do cumprimento de exigências formais. Órgãos de controle, como os Tribunais de Contas, por sua vez, demandam e recebem dados dos municípios, mas não os disponibilizam em formato aberto para o público.

Mas por onde começar? Como um município pode gerar dados abertos, se não há um padrão definido a seguir? A experiência em iniciativas específicas pode gerar aprendizagens a serem consideradas em outros contextos. Assim, o artigo analisa a construção colaborativa de um padrão para publicação de dados abertos em compras e contratações públicas, baseado na composição de iniciativas regionais e internacionais. Para tanto, é detalhada a metodologia de construção da proposta de padrão e é feita uma análise sobre o processo e suas perspectivas em dois eixos: construção colaborativa e composição de iniciativas regionais e internacionais.

A oportunidade e relevância da proposta estão no fato de que não faz sentido que cada município divulgue os dados em formato aberto segundo seus próprios critérios, sem seguir um padrão, o que prejudicaria a comparabilidade e outras análises possíveis. Portanto, é oportuno que uma rede possa desenvolvê-lo de maneira colaborativa, tendo por base iniciativas regionais e internacionais, e que possa futuramente aprimorá-lo. Têm-se aqui dois pontos essenciais que representaram fios condutores do processo: o protagonismo dos municípios; e a colaboração estabelecida com a academia e diversos atores, por meio de metodologia colaborativa, desenvolvida a partir de um problema concreto. Pressupõe-se que tal padrão pode otimizar a disponibilização de dados por municípios para cidadãos e órgãos de controle externo, em conformidade com os princípios de dados abertos.

CONTEXTO E CONCEITOS BASILARES

Contexto em que se originou a demanda

Visando a responder às demandas sociais, legais e burocráticas de transparência e abertura de dados, e aprimorar o desempenho das compras e contratações públicas, gestores de uma prefeitura de um município brasileiro de porte médio firmaram parceria com uma universidade pública, envolvendo também o governo estadual e uma organização da sociedade civil. Mesmo com um diferencial em relação a outros municípios, por contar com setor próprio para desenvolvimento e gestão de sistemas de dados e investimentos em inovações em transparência, o município foi surpreendido em 2020 com uma ação civil pública (ACP) por não cumprir requisitos da LAI, em especial o art. 8º, § 3º, III que dispõe: “possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina”. A equipe técnica do município não encontrou referências ou consenso entre os órgãos de controle para um padrão de estrutura de dados comum. Por outro lado, não havia segurança por parte da equipe para definir uma estrutura própria que pudesse atender aos requisitos mínimos solicitados por esses órgãos. Assim, a partir de um projeto de pesquisa aplicada, iniciado em 2021, foi alinhada e concebida uma Comunidade e uma Rede de Padronização, que vem sendo ampliada com a participação de outros municípios e diversos parceiros (Universidade do Estado de Santa Catarina [UDESC], 2021).

A prefeitura de tal município vem se destacando por sua abertura e investimentos em transparência e melhoria da qualidade dos serviços, por meio da tecnologia da informação e envolvimento de cidadãos, organizações da sociedade civil, OSCs, academia e empresas na construção de soluções para problemas coletivos (Rocha et al., 2019Rocha, A. C., Schommer, P. C., Debetir, E., & Pinheiro, D. M. (2019). Transparência como elemento da coprodução na pavimentação de vias públicas. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 24(78), 1-22. https://doi.org/10.12660/cgpc.v24n78.74929
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). A prefeitura teve suas práticas reconhecidas e premiadas em duas edições de um Prêmio de Boas Práticas em Gestão Pública, promovido desde 2016, envolvendo uma rede ampla de parceiros, sendo o tema central ‘transparência com cidadania’ (UDESC, 2020).

Na academia, no mesmo estado, professores, pesquisadores, mestrandos e doutorandos têm realizado pesquisas e projetos relacionados à transparência, à accountability, ao governo aberto, a finanças públicas e a contratações abertas (Bayestorff Duarte, 2019Bayestorff Duarte, K. S. (2019). Transparência como elemento de accountability nas compras públicas: Uma proposta para o poder executivo do estado de Santa Catarina [Dissertação de mestrado]. Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil., Raupp, 2016Raupp, F. M. (2016). Realidade da transparência passiva em prefeituras dos maiores municípios brasileiros. Revista Contemporânea de Contabilidade, 13(30), 34-52.; Raupp & Pinho, 2013; Rocha et al., 2019Rocha, A. C., Schommer, P. C., Debetir, E., & Pinheiro, D. M. (2019). Transparência como elemento da coprodução na pavimentação de vias públicas. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 24(78), 1-22. https://doi.org/10.12660/cgpc.v24n78.74929
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; Schommer et al., 2015Schommer, P. C., Rocha, A. C., Spaniol, E. L., Dahmer, J. & Sousa, A. D. (2015). Accountability and co-production of information and control. Revista da Administração Pública, 49(6), 1375-1400. https://doi.org/10.1590/0034-7612115166
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). Uma das iniciativas das quais participaram foi como apoiadores e parceiros do governo estadual na edição 2020/2022 do programa OGP Local (OGP, 2023). No âmbito do OGP Local, foi elaborado o primeiro Plano de Ação de Governo Aberto do estado, contemplando compromissos relativos à abertura de compras e contratações e à elaboração de planos municipais de governo aberto. O município em questão, dada sua trajetória em transparência e governo aberto, é um dos líderes no engajamento dos municípios, em articulação com associações de municípios e organizações da sociedade civil local.

As iniciativas destacadas são convergentes em certos objetivos, com potenciais de contribuição para a melhoria dos serviços públicos e para a democratização da gestão pública. Porém, as previsões legais e as iniciativas diversas nem sempre ocorrem de modo articulado e coerente entre si, o que gera dúvidas e demandas sobrepostas aos municípios. Portanto, diante desse problema, uma solução que viesse a ser desenvolvida a partir da perspectiva de um município poderia alcançar escalabilidade para outros municípios, em articulação com governos estaduais e federais, órgãos de controle e parceiros nacionais e internacionais.

Antes de prosseguir para o detalhamento do diagnóstico da situação-problema, cabe apresentar alguns dos conceitos que foram relevantes durante o processo.

Conceitos basilares

Entre os conceitos basilares para o desenvolvimento do trabalho, estão: governo aberto; governança; governança colaborativa; governança de rede; contratação aberta; dados abertos; transparência pública; comunidade de padronização.

Para melhorar a governabilidade e solucionar desafios públicos, um governo aberto pode orientar-se por princípios, como os definidos pela OGP (2017): acesso público à informação governamental (com divulgação de dados abertos, publicação proativa ou reativa de informações, e mecanismos legais para fortalecer o direito à informação); participação cidadã (mobilizando os cidadãos para debater, colaborar e propor contribuições, por meio de canais de diálogo constantes, levando a governos mais efetivos e responsivos); accountability (processo contínuo de prestação de contas, justificativa e responsabilização dos governantes por atos e omissões); e tecnologia e inovação (tecnologias que ofereçam oportunidades para o intercâmbio de informação, a participação cidadã e a colaboração).

O conceito de ‘governança’, segundo Ansell e Torfing (2016Ansell, C., & Torfing, J. (2016). Introduction: Theories of governance. In C. Anseel, & J.Torfing, Handbook on theories of governance (pp. 1-18). Edward Elgar Publishing. https://doi.org/10.4337/9781782548508.00008
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), relaciona-se a um conjunto de ferramentas analíticas para refletir e construir regras que auxiliam na organização da sociedade, que se apresenta cada vez mais complexa, fragmentada e dinâmica. Essa abordagem dos autores sobre a governança reconhece a natureza interconectada e interdependente de muitos problemas contemporâneos, exigindo respostas colaborativas e coordenadas. Reconhece o papel central do Estado como facilitador da colaboração entre diferentes partes interessadas. Em vez de adotar uma abordagem tradicional de comando e controle, o setor público é visto como um facilitador que cria condições propícias para a colaboração entre governos, OSCs e setor privado (Torfing et al., 2019).

A ‘governança colaborativa’ também pode ser considerada na formação de uma rede. Emerson et al. (2012Emerson, K., Nabatchi, T., & Balogh, S. (2012). An integrative framework for collaborative governance. Journal of Public Administration Research & Theory, 22(1), 1-29.) definem governança colaborativa como “o processo e as estruturas de decisão e gestão de políticas públicas que engaja pessoas de maneira construtiva através das fronteiras entre agências públicas, níveis de governo e/ou as esferas pública, privada e cívica, a fim de alcançar um propósito público que não seria possível alcançar de outro modo” (p. 2). Para Schommer e Guerzovich (2023Schommer, P. C., Raupp, F. M., Araújo, V. M., & Salm Jr., J. F. (2023). Construção colaborativa de um padrão para a geração de dados abertos em compras e contratações públicas a partir dos municípios. Estadão. https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/construcao-colaborativa-de-um-padrao-para-a-geracao-de-dados-abertos-em-compras-e-contratacoes-publicas-a-partir-dos-municipios/
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), governança colaborativa é “um processo por meio do qual múltiplas partes interessadas engajam-se mutuamente e negociam valores, significados e recursos para responder a problemas ou realizar um propósito público que não seriam capazes de alcançar atuando isoladamente” (p. 1).

A ‘governança de rede’ refere-se à forma como uma rede é estruturada e organizada, seus mecanismos regulatórios e de tomada de decisão, para garantir os interesses dos membros e assegurar que as normas estabelecidas sejam definidas e seguidas pelos coordenadores e participantes (Roth et al., 2010Roth, A. L., Wegner, D., Antunes, J. A. V. Júnior, & Padula, A. D. (2010). Diferenças e inter-relações dos conceitos de Governança e Gestão de Redes Interorganizacionais: contribuições para o campo de estudos. Anais do Encontro da ANPAD.). Roth et al. (2010) definem três aspectos característicos da governança de redes: (a) natureza transitória e/ou reversibilidade; (b) ausência de autoridade central; e (c) barganha e consenso. A natureza transitória refere-se à opção de saída que as organizações participantes da rede possuem. A ausência de autoridade caracteriza-se pela permanência da autonomia geral da organização e a não submissão desta a uma autoridade central da rede. Diretamente relacionado à característica anterior, o processo decisório da rede é baseado na negociação e busca de consenso entre as organizações participantes.

Uma das áreas cuja abertura de dados e processos pode contribuir para reduzir corrupção e aprimorar a gestão e os serviços públicos é a de compras e contratações públicas. A chamada ‘contratação aberta’ consiste na publicação e utilização de informações abertas, acessíveis e úteis sobre contratações públicas com o objetivo de envolver cidadãos e empresas na resolução de problemas e entrega de melhores resultados (OCP, 2024). Entre os princípios de contratação aberta estão a divulgação proativa e a máxima abertura de informação (dados abertos) sobre o funcionamento de todo o processo, permitindo visão integral da contratação pública (do planejamento à entrega do bem ou serviço e sua auditoria), por meio da divulgação das contratações através de dados estruturados (OCP, 2019).

‘Dados abertos’, por sua vez, são dados acessíveis ao público, representados em meio digital, estruturados em formato aberto, processáveis por máquina, referenciados na internet e disponibilizados sob licença aberta que permita sua livre utilização, consumo ou tratamento por qualquer pessoa, física ou jurídica (Lei n. 14.129, 2021a). Podem também ser definidos como dados produzidos pelo governo e colocados à disposição das pessoas de forma a tornar possível não apenas sua leitura e acompanhamento, mas também sua reutilização em novos projetos, sítios e aplicativos; seu cruzamento com outros dados de diferentes fontes; e sua disposição em visualizações interessantes e esclarecedoras (World Wide Web [W3C], 2011, p. 4). Neste trabalho, quando nos referimos a dados abertos, os consideramos como dados que seguem os oito princípios de dados abertos, definidos internacionalmente: completos, primários, atuais, acessíveis, compreensíveis por máquinas, não discriminatórios, não proprietários, e livres de licenças (OKBR, 2015).

Esses temas estão associados à ‘transparência pública’. Segundo a Lei de Acesso à Informação (LAI), “É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas” (Lei n. 12.527, 2011, art. 8º, caput). De acordo com o regulamento do Prêmio de Boas Práticas em Gestão Pública de Santa Catarina (art. 2º, § 2º), transparência com cidadania, tema central do prêmio, é “entendida como práticas que promovem o engajamento de governantes e cidadãos na construção da transparência pública, contribuindo para facilitar processos, otimizar recursos, aprimorar o desempenho e democratizar o controle da administração pública (UDESC, 2020).

Considerando que o objetivo e práticas da comunidade avaliada nessa pesquisa focam a padronização da estrutura de dados e sua semântica, utiliza-se o conceito de Springer e Cooper (2019Springer, R., & Cooper, D. (2019). Data communities: Empowering researcher-driven data sharing in the sciences. International Journal of Digital Curation, 15(1). https://doi.org/10.2218/ijdc.v15i1.695
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), em que uma ‘comunidade de dados’ é um grupo de especialistas, não necessariamente relacionados, que trabalham com um contexto específico de dados, muitas vezes ligados por relações profissionais através de múltiplos graus de separação. Esses especialistas geralmente têm interesse em compartilhar dados entre si e em usar os dados uns dos outros. Complementarmente, existem processos que apoiam diferentes práticas realizadas pelos membros da Comunidade de Padronização, sempre com o objetivo comum de melhora da qualidade da representação dos dados e sua estruturação, mantendo como objetivo a interoperabilidade, que precisa de padrões adequados para viabilizar o compartilhamento de conteúdos, respeitando a legislação e demais requisitos de segurança e privacidade.

DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO PROBLEMA

Em uma primeira etapa do projeto, buscou-se identificar iniciativas nacionais e internacionais que já existiam, na interface entre dados abertos e compras e contratações públicas, que poderiam auxiliar na solução do problema que se buscava resolver. O foco de cada uma delas e os aspectos que não abordam estão sintetizadas na Tabela 1.

Tabela 1
Iniciativas existentes na interface entre dados abertos e compras e contratações públicas

Foi realizada também uma revisão bibliográfica focalizando a busca por ontologias para compras e contratações públicas que pudessem contribuir para o problema do projeto. Consideradas as iniciativas existentes, a lacuna identificada foi a falta de consenso sobre a estrutura e a semântica dos dados de compras e contratações públicas a serem gerados e publicados em formato aberto, servindo a órgãos de controle, ao executivo municipal e estadual e aos interessados nos dados, como cidadãos, empresas, academia e OSCs. A solução proposta, portanto, foi a de facilitar o processo e criar meios para a construção de tal consenso, por meio da governança colaborativa e da composição de iniciativas regionais e internacionais.

Pressupõe-se a necessidade de uma estratégia de consenso sobre os descritores dos dados a serem publicados. Esses descritores permitem que tanto os depositantes dos dados abertos quanto aqueles que irão consumi-los para análise ou com outros objetivos possam entender sua estrutura e domínios. Nesse contexto, os desafios de padronização de descritores de dados decorrem de uma variedade de fatores que abrangem: (1) vocabulário na linguagem, (2) fatores sociais e (3) requisitos e protocolos de padrões. É importante ter uma compreensão de como esses fatores afetam a padronização desses descritores, considerando que essas etapas incluem o processo de consenso.

A solução proposta buscou considerar visões paradigmáticas distintas: do ente que deve disponibilizar dados, neste caso as prefeituras; dos órgãos de auditoria e/ou controle (interno ou externo) - controladorias municipais, Tribunais de Contas, CGU, Ministério Público; e de cidadãos, empresas e sociedade civil organizada, como observatórios sociais e outras organizações. Ademais, a padronização representa um ganho que extrapola municípios com a possibilidade de comparar dados de todos os entes federados. Por meio da Tabela 2, são apresentados potenciais benefícios da padronização de dados abertos de compras e contratações públicas, considerando diferentes usuários ou interessados.

Tabela 2
Potenciais benefícios da padronização de dados abertos de compras e contratações públicas.

Identificadas as iniciativas existentes, a lacuna que persiste e o potencial de uso da solução a ser desenvolvida, descreve-se a seguir o caminho percorrido na sua construção colaborativa.

MÉTODO

O método contempla a construção colaborativa da proposta do padrão para a geração de dados relativos aos processos de compras e contratações públicas que otimize a disponibilização desses dados por municípios para cidadãos e órgãos de controle externo, em conformidade com os princípios de dados abertos. Envolve aspectos tecnopolíticos e ontológicos, alguns previstos desde o início, outros desenvolvidos a partir do problema, na interação e relações que foram construídas ao longo do processo.

A proposta do padrão considerou o desenvolvimento de um alinhamento de conceitos e uma estrutura comum, baseada em legislação e melhores práticas administrativas e contábeis, e ontologias existentes de dados em compras e contratações públicas, articulando conhecimentos de: (1) gestores e técnicos envolvidos com os processos de compras e contratações e tecnologia da informação na prefeitura; (2) pesquisadores acadêmicos com experiência nas áreas envolvidas; (3) parceiros do governo estadual (das áreas de gestão de licitações e contratos e controladoria, em articulação com a OGP Local), órgãos de controle da administração pública, como Ministério Público, CGU e Tribunal de Contas, organizações da sociedade civil local e internacional; e (4) potenciais usuários dos dados abertos, de diferentes perfis, entre eles: integrantes de OSCs, pesquisadores e cidadãos usuários de serviços públicos.

Os princípios que orientaram o trabalho na Comunidade de Padronização, baseados em iniciativas anteriores, literatura, discussão e acordo entre os membros da Comunidade, foram: (1) abertura; (2) inclusão; (3) consenso; (4) equilíbrio; (5) harmonização; (6) orientado pela comunidade; (7) sem fins lucrativos; e (8) simplicidade.

Uma iniciativa anterior (Salm, 2020Salm, J. F., Jr. (2020). Relatório do Projeto da Rede Nacional de Padronização de Dados Científicos da Pós-graduação. Zenodo. https://doi.org/10.5281/zenodo.10566356
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), que foi referência para este trabalho, foi o projeto para criação de uma rede nacional de compartilhamento de informações sobre a pós-graduação, a Rede de Integração da Comunidade Acadêmico-Científica da Pós-Graduação - RICAPG (RICAPG, 2024). A Rede foi estabelecida por representantes de instituições de ensino superior (IES) brasileiras, incluindo IESs públicas federais, públicas estaduais e privadas, além da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão do Ministério da Educação (MEC). A atuação da Rede concentrou esforços na definição de padrões semânticos através de um processo contínuo de consenso entre seus membros, apoiados pelo modelo de governança, normas, regimento e engajamento das instituições conselheiras da Comunidade RICAPG. Os princípios da Rede apoiaram a formação do Programa Go-PG da Diretoria da Avaliação da Capes, assim como a discussão no âmbito da Rede sobre a maturidade de infraestrutura de dados e o apoio às IESs na governança de dados.

No caso em tela neste trabalho, partiu-se de um problema comum aos membros da Comunidade, que envolve uma rede de atores com perspectivas e conhecimentos diversos em relação ao problema e sua solução, para desenvolver uma proposta de solução, testar em um caso piloto, e gerar potencial para interoperabilidade e escalabilidade para outros municípios e órgãos públicos. Foram articulados conhecimentos das áreas: (1) administração pública (processos de governo aberto, compras e contratações públicas, governança pública e design de serviços com foco no usuário, em seus diferentes perfis); (2) tecnologia da informação; (3) contabilidade, finanças públicas e legislação relativa aos processos de compras e contratações públicas. Foram percorridas as seguintes fases ou etapas:

  • Fase 1 - Mapeamento e análise de alternativas existentes para abertura de dados em compras e contratações públicas e revisão bibliográfica de ontologias (Ontologia T) como artefatos para representar conceitos e seus relacionamentos;

  • Fase 2 - Identificação e contato com atores interessados em integrar Comunidade e Rede de Padronização;

  • Fase 3 - Constituição da Comunidade, definição de seus princípios, procedimentos e regras de participação e consenso;

  • Fase 4 - Definição das estruturas de alinhamento conceitual e marcadores usados pelos partícipes da Comunidade para fazerem anotações sobre diferenças, inconsistências e proposições de mudança. Essas estruturas e marcadores auxiliaram durante as reuniões de revisão da proposta de padrão para sinalizar pontos de discussão necessários no processo de consenso;

  • Fase 5 - Discussão e reuniões de consenso da Comunidade em relação aos marcadores propostos de mudança e debate em relação ao padrão de interoperabilidade semântica, envolvendo especialistas de órgãos de controle, organizações da sociedade civil;

  • Fase 6 - Consolidação e transcrição do protótipo de padrão de publicação de dados abertos em uma linguagem (JSON-LD). Seguindo um dos processos da Comunidade de padronização, essa foi a linguagem escolhida pelos representantes para a serialização dos dados;

  • Fase 7 - Desenvolvimento de uma aplicação piloto por parte de uma das prefeituras participantes da Comunidade para uso do padrão proposto para fins de validação em rotinas de extração de dados abertos e para nortear possíveis ajustes ao padrão proposto.

  • Fase 8 - Discussão por grupo de apoiadores de estratégias para a difusão do padrão e a sustentabilidade da Rede de Padronização, incluindo a elaboração de projeto para constituição de ‘Rede Catarinense de Padronização de Dados Abertos com ênfase em governos municipais e suas relações’.

  • Fase 9 - Sistematização final dos resultados compartilhados com parceiros e definição conjunta dos próximos passos.

Além da proposta do padrão em si e seu uso pela prefeitura piloto, houve outros dois produtos: o desenvolvimento e sistematização da metodologia de coprodução em resposta a um problema público e o projeto de constituição da Rede Catarinense de Dados Abertos.

ANÁLISE DA SITUAÇÃO-PROBLEMA E PROPOSTAS DE COMPOSIÇÃO DE INICIATIVAS

Governança da Rede

A Rede de Padronização foi concebida com a representação do poder executivo de municípios, governo do estado e governo federal, além de órgãos de controle externo, OSCs, academia e organismos internacionais, os quais se envolveram nas discussões e atividades de definição do padrão. Para organização dos trabalhos, a governança da Rede foi estruturada em três grupos: coordenadores, conselheiros e apoiadores.

Os coordenadores, do grupo instituidor do projeto, formado pela universidade e pela prefeitura, com apoio de um órgão do executivo estadual e uma OSC, foram responsáveis por organizar e garantir o andamento dos fluxos de atividades definidas em conjunto, além de articular o trabalho dos conselheiros com a contribuição dos apoiadores e promover o desenvolvimento da Rede.

A Comunidade de Padronização foi estabelecida no âmbito da Rede. O objetivo da constituição da Comunidade foi servir de grupo de especialistas para o design e a cocriação de uma representação semântica capaz de auxiliar na publicação de dados abertos sobre compras e contratações públicas. Com esse objetivo, a Comunidade contribuiria para construir uma estrutura de interoperabilidade semântica para uso em conjunto com os dados abertos trocados entre órgãos de controle estadual e organizações do executivo municipal. Dentre as responsabilidades dos representantes dessas organizações participantes estava: (1) a discussão sobre o espaço do problema comum entre eles, (2) a avaliação de estrutura e padrões internacionais e nacionais e (3) o uso de uma estrutura de alinhamento conceitual, entre outros instrumentos.

As organizações integrantes da Comunidade indicaram dois representantes, chamados de conselheiros, que tivessem conhecimento complementar em dados abertos e dos processos de compras e contratações públicas. Os conselheiros são responsáveis por participar e executar os procedimentos de definição do padrão. Após as análises individuais, foram realizadas reuniões de trabalho para a definição conjunta do padrão por todos os membros da Comunidade.

Já o grupo de apoiadores foi responsável por apoiar o desenvolvimento do padrão e planejar a sustentabilidade da Rede de Padronização. Os apoiadores foram consultados durante os fluxos de trabalho da coordenação do projeto e da Comunidade de Padronização e discutiram as estratégias de difusão e sustentabilidade. A Figura 1 representa de forma sintética a estrutura de governança da Rede.

Figura 1
Estrutura de governança da Rede de Padronização.

Nesta estrutura, os membros da Rede compartilham objetivos comuns, mas apresentam diferenças em relação ao seu papel, porte e poder.

Procedimentos da comunidade para a composição das iniciativas regionais e internacionais

Com a proposta de otimizar e organizar os trabalhos e proposições feitos pelos representantes da Comunidade, estabeleceu-se um conjunto de procedimentos, que foram discutidos e aprovados pelos representantes. Esses procedimentos auxiliaram na organização das pautas de trabalho, na otimização e valorização do tempo dos representantes (i.e., cada conselheiro(a) contribui de forma voluntário com seu tempo) e na resolução de divergências de estruturas de conceitos, e potencializou o reaproveitamento de estruturas internacionais e nacionais.

A definição iniciou com a discussão e o alinhamento semântico a respeito dos vocabulários pertencentes aos processos de compras e contratações públicas tendo como referência os vocabulários das ontologias Public Procurement Ontology (PPROC) e Open Contracting Data Standard (OCDS) (OCP, 2022) e do Sistema de Fiscalização Integrada de Gestão (e-Sfinge) (TCESC, 2023), com objetivo de propor uma ontologia própria que fizesse sentido para a realidade dos municípios, incluindo seus diversos perfis.

As entidades e atributos do OCDS (OCP, 2022) foram usados para a construção da planilha de acordo com sua proximidade com a realidade brasileira e excluindo atributos internos relativos a identificadores. Em segundo lugar, foram utilizadas as tabelas do e-Sfinge. O e-Sfinge é um sistema do Tribunal de Contas estadual, no qual os gestores públicos devem preencher e fornecer informações relativas à gestão dos municípios e do estado. Sendo a estrutura de dados do sistema e-Sfinge amplamente utilizada pelos entes estaduais e municipais e um modelo compartilhado entre alguns estados, parte de seus atributos foi usada para que houvesse uma referência para os agentes públicos estaduais, evitando assim impactos entre conceitos e estruturas já adotadas. Essa foi uma estratégia para reduzir o impacto sobre os envolvidos, garantindo assim maior disponibilidade de dados na extração. Além dessas referências, utilizou-se outra referência internacional para alinhamento da estrutura, pois entendeu-se necessário complementar alguns conceitos relativos aos elementos de contratação pública e, para tal, utilizou-se como referência o PPROC, que também agrega tecnologias semânticas nos softwares utilizados pelas autoridades públicas nos procedimentos de licitação (Muñoz-Soro et al., 2014Muñoz-Soro, J. F., Esteban, G., Bernal, M. A., Serón, F. (2014). Public Procurement Ontology (PPROC). http://contsem.unizar.es/def/sector-publico/pproc.html
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).

Nessa fase do projeto, foram priorizadas três classes de dados para criação de um protótipo de padrão, comuns em processos de compras e contratações públicas, nomeadamente: edital, adjudicação e contrato (UDESC, 2021).

O processo de criação do vocabulário foi composto por um ciclo de discussões realizadas pelos conselheiros a partir de uma estrutura de alinhamento conceitual e mecanismos de sinalização criada pela coordenação, que selecionou os atributos das classes de dados definidas em conjunto dos padrões de referência OCDS, e-Sfinge e PPROC.

Com a estrutura de alinhamento conceitual criada, foi estabelecido um fluxo de atividades composto por cinco etapas principais: (1) definição conjunta de cada classe de dados em reunião com todos os membros; (2) levantamento dos atributos da classe de dados escolhida pela coordenação; (3) análise e revisão dos atributos de forma individual com cada organização; (4) consolidação das discussões dos atributos pela coordenação; (5) definição conjunta do padrão por meio de reunião com todos os membros.

As reuniões de trabalho, com a presença de todos os membros, são a instância máxima de deliberação dos conselheiros, em que as decisões são tomadas. Nas reuniões periódicas dos conselheiros, a coordenação recolhia informações e solicitações para delinear as classes de dados a serem debatidas nas reuniões de trabalho. Cada reunião de trabalho possuía uma agenda previamente definida e acordada, com a apresentação inicial das atividades, a planilha de trabalho preenchida com o compilado das análises prévias, a separação em grupos menores para a avaliação das entidades e seus atributos, e, por fim, a junção de todos os membros para o compartilhamento das análises dos grupos menores e discussão final. Com o objetivo de facilitar a análise final, apenas os pontos divergentes entravam para a pauta do fórum principal, permitindo assim mais objetividade na discussão com os conselheiros, acelerando o processo de consenso.

Durante as atividades, os representantes analisavam os atributos e suas definições de forma crítica, com a possibilidade de alteração dos textos e retirada ou inclusão de atributos. Tal fato possibilitou que a listagem ficasse mais alinhada à realidade de cada instituição e atendesse às suas necessidades. O fluxograma das atividades, que descreve visualmente o fluxo de trabalho, é apresentado na Figura 2.

Figura 2
Fluxograma das atividades da Comunidade.

Além disso, para o preenchimento da estrutura compartilhada, contemplou-se um espaço na estrutura para o registro da perspectiva de cada integrante da Comunidade, com o objetivo de estabelecer a memória das contribuições de cada um e ter uma forma de registro das análises, contribuindo assim para a compatibilização dos resultados. A Tabela 3 apresenta uma forma de classificação das proposições de mudança.

Tabela 3
Forma de classificação das proposições de mudança.

Durante o momento de reunião dos grupos, os conselheiros puderam compartilhar suas opiniões e analisar de forma detalhada os campos da planilha, bem como discutir e entrar em acordos para definirem a análise do grupo.

Após a realização das reuniões em que foram definidos o alinhamento conceitual das entidades e seus atributos, fez-se a transcrição do padrão proposto para uma linguagem (JSON-LD) capaz de orientar a estruturação da extração dos dados. Depois, seguiu-se para a etapa de desenvolvimento da aplicação capaz de extrair os dados em uma prefeitura e avaliar a viabilidade de uso do padrão proposto. Para tal, o projeto contou com um desenvolvedor para implementar a tradução das estruturas do vocabulário capaz de extrair instâncias em um formato que obedeceu a proposta feita pela Comunidade. Esta rotina foi testada no ambiente operacional da prefeitura piloto e ajudou a validar a proposta da Comunidade no quesito de exequibilidade do padrão e disponibilidade de atributos na fonte. Fica agora disponível o padrão e inicia-se a fase de difusão para outras prefeituras.

Decorrências e aprendizagens

A construção da proposta do padrão, dos procedimentos da Comunidade de Padronização e da estruturação da Rede de Padronização envolveu variados conhecimentos, recursos e contou com a contribuição, na sua maioria, de voluntários e voluntárias. O processo foi repleto de desafios, mudanças, flexibilidade e aprendizagens (Schommer et al., 2023Schommer, P. C., Raupp, F. M., Araújo, V. M., & Salm Jr., J. F. (2023). Construção colaborativa de um padrão para a geração de dados abertos em compras e contratações públicas a partir dos municípios. Estadão. https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/construcao-colaborativa-de-um-padrao-para-a-geracao-de-dados-abertos-em-compras-e-contratacoes-publicas-a-partir-dos-municipios/
https://www.estadao.com.br/politica/gest...
).

Entende-se que a constituição da Rede e de seus procedimentos potencialmente contribui para a consolidação da proposta e para que o modelo tenha potencial de replicabilidade, podendo ser uma referência para as organizações que desejem promover uma estratégia para publicação de dados abertos com interoperabilidade semântica. Um dos destaques da iniciativa foi a proatividade na resolução de problemas, com predisposição para construção colaborativa, a partir dos municípios, da academia, das organizações estaduais do executivo e dos órgãos de controle, com a sociedade civil.

Além dos resultados referentes ao foco finalístico do projeto (i.e., modelo de processos, estrutura de alinhamento, proposta do padrão semântico), promoveu-se a aprendizagem sobre a metodologia de coprodução de um padrão e a necessidade de um perfil para liderança e gestão de projetos que seja de systems conveners (Systems Convening, 2023), capaz de convocar e manter o engajamento de diferentes atores em torno de um propósito comum, por longo prazo, com flexibilidade e incorporando as aprendizagens no processo.

Ficou evidente a natureza tecnopolítica e ontológica de processos de abertura de dados (Schommer et al., 2022Schommer, P. C., Raupp, F. M., Salm, J. F., Jr., Guerzovichet, F., & Pereira, R. S. (2022). Abertura de dados em compras e contratações públicas como um processo tecnopolítico e ontológico. Estadão. https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/abertura-de-dados-em-compras-e-contratacoes-publicas-como-um-processo-tecnopolitico-e-ontologico/
https://www.estadao.com.br/politica/gest...
), envolvendo recursos e conhecimentos técnicos, financeiros e institucionais e o desenvolvimento de uma governança colaborativa capaz de sustentar o engajamento de diversos atores, alcançando resultados concretos que sejam úteis e valorizados pelos diferentes envolvidos (Schommer et al., 2023).

A proposta de institucionalização da ‘Rede Catarinense de Padronização de Dados Abertos com ênfase em governos municipais e suas relações’ possibilitará a continuidade da Rede criada no projeto, a partir de agosto de 2023, sob a liderança do Consórcio Ciga (Ciga, 2023) e da Associação dos Municípios e participação dos demais. A Rede poderá desenvolver de modo colaborativo padrões para geração de dados abertos não apenas na área de compras e contratações públicas, mas também em áreas como educação, saúde e assistência, por exemplo. Outros potenciais parceiros conheceram a iniciativa e estão dispostos a se envolver na difusão para outros contextos, capacitação e promoção do uso do padrão, entre elas a OCP, a Controladoria-Geral da União, o Ministério Público Estadual e a Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado.

CONCLUSÕES E CONTRIBUIÇÃO TECNOLÓGICA

O artigo analisou a construção colaborativa da proposta de um padrão para publicação de dados abertos em compras e contratações públicas, baseado na composição de iniciativas regionais e internacionais. O problema ou lacuna identificada na origem do projeto descrito e analisado foi a falta de consenso sobre a estrutura e a semântica dos dados de compras e contratações públicas a serem gerados e publicados em formato aberto, servindo a órgãos de controle, ao executivo municipal e estadual e aos interessados nos dados, como cidadãos, empresas, academia e organizações da sociedade civil. A solução construída foi a de facilitar o processo e criar meios para a construção de tal consenso, por meio da governança colaborativa e da composição de iniciativas regionais e internacionais.

O trabalho detalhou a metodologia de construção da proposta de padrão e analisou o processo e suas perspectivas em dois eixos: construção colaborativa e composição de iniciativas regionais e internacionais. Além do padrão em si, contemplando três classes de dados (edital, adjudicação e contrato), houve outros dois produtos: o desenvolvimento e sistematização da metodologia de coprodução em resposta a um problema público e o projeto de constituição de uma rede estadual de padronização de dados abertos.

A construção do padrão envolveu vários conhecimentos, recursos e atores, em processo marcado por desafios, mudanças, flexibilidade e aprendizagens. Um dos destaques foi o foco na resolução de um problema real vivenciado por municípios, com disposição para construção colaborativa, a partir dos municípios, com academia, sociedade civil e outros órgãos de governo. Por ter sido construída de forma colaborativa por representantes de organizações com diferentes perfis, a proposta de padrão desenvolvida tem potencial de replicabilidade e difusão, sendo recomendada para outras organizações que desejem utilizá-lo para gerar dados abertos. A proposta de constituição de uma ‘Rede Catarinense de Padronização de Dados Abertos com ênfase em governos municipais e suas relações’ poderá ser levada adiante, uma vez incorporadas as aprendizagens e recursos mobilizados, ampliadas as parcerias e recursos e reconhecida a natureza tecnopolítica e ontológica do processo. As perspectivas e desafios para sua continuidade contribuem para o conhecimento e a prática da governança colaborativa.

Como contribuição tecnológica, este estudo apresenta como foi realizada a formação de um padrão de estrutura para apoiar o processo de extração e publicação de dados sobre contratos e contratações públicas, tendo decorrido de um processo de alinhamento e reengenharia de recursos não ontológicos, combinando tanto referências internacionais quanto regionais. A criação de rotinas de extração e estruturação de dados seguindo o padrão criado pela comunidade poderá apoiar os membros da Comunidade que desejam incluir esses artefatos em sua rotina operacional.

Sugere-se como tema de novas pesquisas a proposição de um modelo de sustentabilidade da Comunidade de Padronização para a geração e o uso de dados abertos na área de compras e contratações e a evolução do padrão proposto, bem como o desenvolvimento da governança e da sustentabilidade da Rede e sua ampliação para outros tipos de dados e esferas. Vislumbra-se também a possibilidade de estudos que possam realizar análises de processos de abertura de dados sob uma perspectiva tecnopolítica e ontológica.

REFERENCES

  • Financiamento

    Os autores agradecem a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina pelo suporte financeiro para a realização deste trabalho.
  • Método de Revisão por Pares

    Este conteúdo foi avaliado utilizando o processo de revisão por pares duplo-cego (double-blind peer-review). A divulgação das informações dos pareceristas constantes na primeira página e do Relatório de Revisão por Pares (Peer Review Report) é feita somente após a conclusão do processo avaliativo, e com o consentimento voluntário dos respectivos pareceristas e autores.
  • Verificação de Plágio

    A RAC mantém a prática de submeter todos os documentos aprovados para publicação à verificação de plágio, mediante o emprego de ferramentas específicas, e.g.: iThenticate.
  • Disponibilidade dos Dados

    Os autores afirmam que todos os dados utilizados na pesquisa foram disponibilizados publicamente, e podem ser acessados por meio da plataforma Harvard Dataverse:
    Salm Junior, José Francisco; Araujo, Victoria Moura de; Schommer, Paula Chies; Raupp, Fabiano Maury, 2024, "Replication Data for: "Open data standards for public procurement and contracting: A collaborative construction” published by RAC (Revista de Administração Contemporânea)", Harvard Dataverse, V1. https://doi.org/10.7910/DVN/NBFH4I
    A RAC incentiva o compartilhamento de dados mas, por observância a ditames éticos, não demanda a divulgação de qualquer meio de identificação de sujeitos de pesquisa, preservando a privacidade dos sujeitos de pesquisa. A prática de open data é viabilizar a reproducibilidade de resultados, e assegurar a irrestrita transparência dos resultados da pesquisa publicada, sem que seja demandada a identidade de sujeitos de pesquisa.
  • Classificação JEL:

    L38.
  • Relatório de Revisão por Pares:

    O Relatório de Revisão por Pares está disponível neste link externo.

  • # de revisores convidados até a decisão:

Editado por

Editor-chefe:

Marcelo de Souza Bispo (Universidade Federal da Paraíba, PPGA, Brasil) https://orcid.org/0000-0002-5817-8907

Editor Associado:

Gustavo da Silva Motta (Universidade Federal Fluminense, Brasil) https://orcid.org/0000-0003-1393-143X

Disponibilidade de dados

Os autores afirmam que todos os dados utilizados na pesquisa foram disponibilizados publicamente, e podem ser acessados por meio da plataforma Harvard Dataverse:

Salm Junior, José Francisco; Araujo, Victoria Moura de; Schommer, Paula Chies; Raupp, Fabiano Maury, 2024, "Replication Data for: "Open data standards for public procurement and contracting: A collaborative construction” published by RAC (Revista de Administração Contemporânea)", Harvard Dataverse, V1. https://doi.org/10.7910/DVN/NBFH4I

A RAC incentiva o compartilhamento de dados mas, por observância a ditames éticos, não demanda a divulgação de qualquer meio de identificação de sujeitos de pesquisa, preservando a privacidade dos sujeitos de pesquisa. A prática de open data é viabilizar a reproducibilidade de resultados, e assegurar a irrestrita transparência dos resultados da pesquisa publicada, sem que seja demandada a identidade de sujeitos de pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2023
  • Revisado
    01 Abr 2024
  • Aceito
    10 Abr 2024
  • Publicado
    02 Maio 2024
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