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Administradoras: primeiro round

NOTAS E COMENTÁRIOS

Administradoras: primeiro round* * Comentário sobre a dissertação de mestrado Administradoras suas trajetórias e os recortes do cotidiano, de Heloisa Maria Longo, apresentada à EAESP/FGV no primeiro semestre de 1985

Rosaura Maria de Oliveira

Aluna no Curso de Graduação em Administração de Empresas da EAESP/FGV. Analista de Organização da OPT Informática, Comercial, Exportadora e Importadora Ltda.

1. DADOS PRELIMINARES

A autora se propõe fazer um estudo exploratório sobre o tema, utilizando a técnica da entrevista em profundidade (discurso livre) numa amostra não-representativa constituída de 20 mulheres sorteadas entre 351 formadas pela EAESP/FGV a partir do ano em que aparece a primeira aluna entre os graduandos de administração de empresas (1966), até 1980, com a intenção de analisar o que leva mulheres a escolherem carreiras "masculinas", o que antecede essa escolha e como se dá a inserção dessas agentes no mercado de trabalho.

O estudo não se pretende conclusivo, mas uma primeira visão deste desconhecido mundo das mulheres que ousam se desviar, pelo menos parcialmente, daquilo que seu "destino" tradicional lhes reservaria.

2. SOBRE O TRABALHO

Embora já se tenha pesquisado as carreiras universitárias das mulheres, a tese é pioneira no tratamento específico da área de administração. A opção por um enfoque altamente compreensivo do tema (socialização, família, escola etc.) levou, necessariamente, a autora à consulta de extensa bibliografia multidisciplinar e a empenhar seu grande talento de investigadora em diversos níveis de análise: individual, psicossocial, organizacional e social.

Muito se tem comentado a respeito da grande vitória das mulheres, da sua entrada em todos os campos profissionais, enfim, de estarem hoje socialmente posicionadas em condições potencialmente iguais em relação aos homens: isto é, sua entrada e a ocupação de um certo espaço em campos anteriormente exclusivamente masculinos pode levar a se esperar, num futuro próximo, uma igualdade na distribuição de ocupações entre os sexos; mas muito pouco tem sido feito no sentido de estudar, de forma séria, essa "entrada". Parece pouco satisfatório considerar como "final feliz" a simples existência do elemento feminino em algumas atividades antes restritas ao mundo masculino.

No que consiste o espaço tradicional da atividade profissional feminina? Segundo muitos teóricos, essas atividades constituem, de certa forma, extensões do papel doméstico e materno, isto é, a mulher continua, no mercado de trabalho, a exercer as mesmas funções que já executava antes no domínio privado: educação, cuidados com doentes, costura etc. Podemos ainda observar que geralmente essas profissões colocam a mulher num papel de "coadjuvante" semi-invisível, no sentido de posicionar seu executante como auxiliar de outro profissional, como por exemplo na relação médico-paciente, reproduzindo o famoso "por trás de um grande homem existe sempre uma grande mulher" emprestado do âmbito da vida conjugal.

Por outro lado, é fato que, historicamente falando, em todo período de crise, seja ela financeira ou política, a mão-de-obra feminina tem sido muito bem-vinda para a execução de tarefas ligadas à produção, especialmente de bens de consumo. Foi assim que, durante a II Guerra Mundial, as mulheres tiveram a "grande chance" de ingressar, em massa, nas "magníficas" linhas de montagem fabris, enquanto aos homens cabia a execução do nobre esporte da guerra. Aliás, exagerando um pouco, sempre coube às mulheres a execução das tarefas que, aos olhos dos homens, parecessem menos dignas; assim, as índias plantam, enquanto os índios caçam; as espartanas cuidam da cidade, do comércio e das casas, enquanto os espartanos guerreiam; e assim por diante.

Ocorreu que, na "luta livre" do mundo, sem que ninguém esperasse, as mulheres venceram o primeiro round e se infiltraram no inatingível mundo profissional masculino. Ou será que isto é o que dizem as boas línguas? É aqui que se coloca a importância de se estudar a especificidade dessa "entrada", a que nos referimos acima. Se não se trata de um "final feliz", mas do começo de um novo filme, o que vamos encontrar neste?

Em primeiro lugar, para a mulher, formação acadêmica não significa profissionalização: uma mulher formada em engenharia pode nunca chegar a ser uma engenheira. Então, se o método de medição utilizado para aferir a participação feminina em um determinado campo estiver ligado à verificação da proporção de mulheres no respectivo mundo acadêmico, na realidade isso diz muito pouco.

Resta-nos, portanto, estudar as que se profissionalizaram. Mas como é, afinal, a vida dessas valentes heroínas que ousaram exercer, de fato e de direito, uma profissão masculina?

Antes de tecer longas considerações a respeito desta "estranha" combinação mulher versus profissão masculina, seria aconselhável fornecer, ao incansável leitor, algumas informações sobre o que antecede a escolha do curso universitário. A formação secundária, tanto com relação ao conteúdo, quanto no que diz respeito à forma, influencia sobremaneira a escolha de uma carreira a ser iniciada com um curso de nível superior. Ora, o secundário destinado exclusivamente às mulheres tem, via de regra, se dirigido a áreas denominadas ciências humanas, dando pouca, ou nenhuma ênfase, às chamadas ciências exatas, levando suas freqüentadoras e optarem por profissões nessa primeira área. Assim, as mulheres, cujo processo de socialização é voltado para a dependência, terminam por exercer sua escolha profissional entre atividades não-conflitantes com a socialização inicial. Essa afirmação se fundamenta no fato de a maioria das escolhas femininas recaírem sobre os cursos de ciências sociais e humanas. Heloísa Maria Longo classifica como "carreiras extremamente masculinas" aquelas nas quais menos de 20% dos candidatos são do sexo feminino, utilizando o critério adotado por Helena Lewin.1 1 . Lewin, Helena. Educação e força de trabalho feminina no Brasil Rio de Janeiro, Centro Unificado Profissional, 1978. mimeogr. Ou seja, são carreiras que, por certos aspectos de sua atuação, se qualificam como conflitantes com o quadro de características esperadas pela socialização feminina e é nesse grupo que se insere a profissão de administrador.

É conveniente notar, ou melhor, anotar algumas características que acabam por ser comuns a todas as entrevistadas, como por exemplo, o fato de todas pertencerem a famílias que se encontram num processo econômico ascensional; ademais, várias dessas famílias eram, num passado recente, detentoras de grande capital econômico e se utilizam hoje do capital cultural como forma de recuperação do primeiro.

Alguns estudos chegaram a concluir que as mulheres que ingressaram em cursos masculinos pertencem, em geral, a classes sociais de alta renda, e o fazem apoiadas na existência desses capitais: econômico e cultural. Essa mulher sente-se à vontade para alcançar para si o privilégio de pertencer ao grupo composto por indivíduos profissionalmente elitizados - os homens.2 2 . Id. ibid.

Outra característica importante, detectada por Heloísa Maria Longo é o fato de a metade de sua amostra provir de fratrias exclusivamente femininas. Entre as que pertencem a fratrias mistas, 50% são primogênitas.

É no seu processo de socialização familiar que essas moças aprendem que devem procurar elevar o seu padrão de vida econômico, seja pelo casamento, seja pela escolha de uma profissão. É aí que se vêem "obrigadas" a optar por profissões, tendo como restrições a possibilidade de inserção no mercado de trabalho e a preocupação com o retorno monetário; assim, as profissões masculinas tornam-se privilegiadas na escolha. O fato de serem primogênitas, pertencerem a fratrias femininas, e serem, de alguma forma, destituídas de patrimônio familiar, dá a estas mulheres a sensação de não poderem contar com um elemento do sexo masculino como provedor do seu enriquecimento. Então, conclui a pesquisadora, "percebendo a possibilidade de empobrecerem dada a ausência de um homem que se incumba de sustentá-las num nível econômico esperado, depois da morte do pai, elas se vêem na contingência de adquirir um capital cultural que redunde em capital econômico".

Optando pelo curso de administração, essas moças recebem uma formação que as capacita a ocupar posições de destaque dentro das empresas. Entretanto, não é isso que a realidade profissional lhes reserva: a grande maioria "estaciona" em posições medianas e experimenta uma grande sensação de ansiedade e angústia. Algumas consideram inexplicável o fato de terem sido muito melhores, enquanto alunas, e serem hoje subalternas de colegas homens que tiveram um desempenho acadêmico muito inferior ao delas. Continuam as mulheres, mesmo inseridas no domínio profissional masculino, a exercer atividades secundárias e do apoio; continuam a ser colocadas na posição de doação e "serviço", confinam a ser obrigadas a estender suas atividades "maternais" dentro do campo profissional.

Outra conclusão importante a que chega Heloisa é o fato de que essas moças, embora assumindo como sua a escolha profissional, "intuem-na" como não própria. Esse sentimento de que há algo errado leva freqüentemente a um estado de ansiedade generalizada. Muitas dessas moças, de certa forma, "brincam de Polyanna" quando assumem que o grupo familiar acabou por decidir grande parte de suas vidas, mas que esta seria a decisão que tomariam caso estivessem emocionalmente maduras para tal, e a consideram acertada; entretanto, foi constante nos discursos a queixa pela falta de participação própria nos processos decisórios que nortearam suas vidas. Essas moças, a quem coube o "privilégio" de receber concomitantemente valores de socialização femininos e masculinos, se vêem "sufocadas por contradições irreconciliáveis a nível intrapsíquico". Abandonando as próprias expectativas ("... eu queria fazer história. Mas, poxa, é um curso tão 'espera-marido'...") em prol do que lhes é externamente definido, acabam por fazer um balanço entre as "recompensas" que o diploma universitário obtido lhes confere e o que foi perdido.

Administradoras: suas trajetórias e os recortes do cotidiano traz a marca de ter sido realizado por uma mulher administradora, cujo nível de identificação com o universo pesquisado acaba por se revelar importante na sensibilidade com que soube desvendar sua problemática.

NOTA - O titulo correto do art. do Prof. Luiz Antonio de Oliveira Lima, publicado na RAE 2/85, p. 29-35, é Mark-up e determinação de preços no oligopólio - a microeconomia em busca de realismo.

  • 1. Lewin, Helena. Educação e força de trabalho feminina no Brasil Rio de Janeiro, Centro Unificado Profissional, 1978. mimeogr.
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    Comentário sobre a dissertação de mestrado
    Administradoras suas trajetórias e os recortes do cotidiano, de Heloisa Maria Longo, apresentada à EAESP/FGV no primeiro semestre de 1985
  • 1
    . Lewin, Helena.
    Educação e força de trabalho feminina no Brasil Rio de Janeiro, Centro Unificado Profissional, 1978.
    mimeogr.
  • 2
    . Id. ibid.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1985
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