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Autoridade e organização na emprêsa moderna: perspectivas sôbre o poder econômico

ARTIGOS

Autoridade e organização na emprêsa moderna: perspectivas sôbre o poder econômico

John Kenneth Galbraith

"... nos últimos duzentos anos passamos da idade da terra, pela idade do capital, do empresário capitalista e do administrador, para atingirmos afinal a idade da moderna organização colegiada para realizar o planejamento e a tomada de decisões de maneira científica..."

O objetivo dêste artigo é examinar a localização e as fontes de autoridade na moderna emprêsa industrial e determinar o efeito das mudanças na localização dessa mesma autoridade com relação à sociedade em sua totalidade.

Por "exercício da autoridade" não se pretende designar nada que seja complexo e obscuro. Significa simplesmente o poder para estabelecer os objetivos da emprêsa - pelo menos na medida em que êsses não são estabelecidos por organismos exteriores à própria emprêsa - e o poder para tomar as decisões que conduzem à consecução dos objetivos. Concordamos que tal poder esteja associado com os que participam do processo produtivo. Desta forma, uma maneira de responder à questão colocada seria perguntar qual o elemento responsável pela associação do poder com um fator de produção.

As questões concernentes às relações entre os fatores produtivos não têm sido menosprezadas pelos economistas. Muito pelo contrário, poucos assuntos têm merecido tanta atenção. Até bem pouco tempo o problema da eficiência na produção era visto quase inteiramente como o da busca da melhor combinação entre capital, trabalho, mãode-obra, e o talento empresarial reuniria os vários fatores, administrando o seu emprêgo de forma adequada. A elucidação dessas soluções, por meio de diagramas, ainda continua sendo o rito fundamental da pedagogia econômica. Concede-se que a evolução tecnológica é mais importante do que a alocação na determinação do que pode ser obtido de um determinado conjunto de fatores de produção. Mas não existe em contrapartida uma reserva igualmente adequada de boas teorias sôbre o assunto. Conseqüentemente, os manuais de economia, muitas vêzes concedendo maior importância à tecnologia, continuam a tratar exaustivamente assuntos para os quais o cabedal teórico disponível é maior.

Os economistas têm se preocupado igualmente com a maneira pela qual fatores como preços, aluguéis, salários, juros e lucros são determinados. Na tradição clássica, o objeto da economia era visto como subdividindo-se em duas partes:

• o problema do valor relacionado com a determinação dos preços dos bens; e

• o problema da distribuição relacionado com a maneira pela qual a renda resultante da venda de produtos e serviços estava dividida entre donos de terras, operários, capitalistas e empresários.

A INFLUÊNCIA ECONÔMICA DO PODER

Não foi ainda estudada com o devido cuidado a maneira de o poder se associar a um fator de produção. À primeira vista não deixa de ser uma omissão intrigante, pois o poder é sempre um assunto interessante. Tratando-se de qualquer forma de atividade organizada - igreja, pelotão, escritório governamental, engrenagem política, multidão ou casa de tolerância - nosso instinto leva-nos a inquirir sôbre quem está no comando. Desejamos então saber das qualificações ou das credenciais que justificam o exercicio do cargo. O que foi responsável, no passado, pela concessão de maior poder ao homem que contribuia com o capital do que o homem que contribuia com a força trabalho? Tal poder é permanente e imutável? Ou tenderá a ceder caminho aos que contribuem com o trabalho? Ou será transferível àquele que administra o capital e o trabalho? Ou poderia ser ainda o caso, como eventualmente afirmaríamos, de ir para as mãos daqueles que prestam outros serviços?

Todavia, permanece revestido de fundamental importância o fato de que se existe o poder, pressupõe-se que pertença natural e inevitàvelmente aos proprietários do capital. Tal pressuposto é verdadeiro tanto no interior da emprêsa como fora dela. A emprêsa constitui primeiramente prerrogativa de seus proprietários. As exigências dos demais fatores de produção são intrinsecamente subordinados. Na pressuposição de que o poder pertence ao capital como matéria evidente, podemos afirmar que todos os economistas são marxistas. Pode-se fazer tal concessão?

O PODER TRANSFERE-SE DOS PROPRIETÁRIOS AOS ADMINISTRADORES

Nas três últimas décadas, a maioria dos observadores concordaria que houve uma transferência do poder de proprietários para administradores na grande sociedade anônima. Não são muitos os acionistas que se consideram participantes da atividade empresarial. Uma minoria de acionistas se reúne anualmente, a maioria envia suas procurações que ratificam as decisões da administração inclusive as escolhas feitas para o provimento do Conselho de Administração, que no caso é o órgão que representa formalmente os acionistas. Poderá haver alguma sensibilização se a administração não conseguir obter bons lucros. Mas em 1964 nenhuma das cem maiores emprêsas norte-americanas e apenas sete das quinhentas maiores tiveram prejuízo. Ainda é verdade que, para a maioria dos economistas e advogados, estas tendências são de legitimidade questionável. Alguns, de acordo com uma reação costumeira à tôda verdade que seja inconveniente, buscaram a manutenção do mito do poder dos acionistas. Acionistas votam, e voto representa poder, mesmo que os votos não tenham nenhuma importância. Outros, inclusive os marxistas, afirmam a superficialidade da mudança, e sustentam com firmeza a tese do poder do capital, que no caso chega a revestir-se de um caráter místico.

Outros ainda concedem que houve mudança, mas alegam ser ainda cedo demais para que se possa passar um julgamento definitivo sôbre o seu significado. E outros se mostram alarmados. Ninguém, que tenhamos conhecimento, jamais contestou as credenciais do capital para o exercício do poder, ou sugeriu que o direito conferido pelo capital pudesse ser longamente eclipsado. Se existe o poder, o capital deve possui-lo.

A TERRA COMO FONTE DE PODER

Por longo tempo o poder sôbre a emprêsa produtiva sofreu transformações tão radicais como as anteriormente mencionadas sôbre a mudança na composição e importância dos fatores de produção. A eminência do capital é, de fato, assunto relativamente nôvo. Há dois séculos nenhum observador qualificado duvidaria que o fator decisivo para a produção era a terra. E a riqueza, poder militar e a autoridade sanguinária sôbre a vida e a liberdade das demais pessoas estavam acopladas à propriedade da terra, assegurando ao seu possuidor uma posição de destaque na comunidade e de poder no Estado.

Os privilégios concedidos à propriedade da terra foram responsáveis por todo um curso de ação assumido pela história. Durante cêrca de duzentos e cinqüenta anos, e até cem anos anteriores à descoberta da América, foi a inspiradora dos movimentos militares em direção ao Oriente, conhecidos como Cruzadas. O socorro à Bizâncio que havia sido sitiada pelos infiéis, e a redenção de Jerusalém que havia sido tomada, serviram inquestionavelmente como estímulo para o ardor religioso. Mas os filhos mais jovens da nobreza franca tinham necessidade absoluta de conquistar novas terrras. Urbano II, pregando a Cruzada, fêz sempre referência às terras como recompensa aos vencedores. Portanto, sob a cruz pulsavam corações em harmônica sincronia com o valor econômico da terra. Balduíno, jovem irmão de Godofredo de Bulhões, teve que enfrentar no seu caminho, em direção à Cidade Sagrada, a cruciante alternativa de prosseguir com os exércitos libertadores ou de estabelecer-se numa atraente área nas cercanias de Edessa. Sem hesitar optou pela propriedade. Apenas depois da morte de seu irmão abandonou seu feudo pela coroa de Jerusalém.

DEMOCRACIA PARA OS SENHORES DA TERRA

Durante os quatro séculos que se sucederam à descoberta da América, a terra desempenhou um papel estratégico talvez o mais importante na história. A América foi povoada com as estepes da Ásia e da Europa: mais uma vez a religião e a conquista de terras se deram as mãos, freqüentemente a religião dissimulando a conquista. Os espanhóis consideravam-se comissionados por Deus para redimir as almas dos índios; os puritanos acreditavam estar obrigados à acumulação. Para os católicos e cavaleiros o Senhor abençoaria as grandes propriedades com a permissão para que se utilizasse o trabalho indígena no seu cultivo, e na falta dêsse, o de escravos africanos. Para os puritanos e protestantes em geral, os méritos encaminhavam-se para a pequena propriedade familiar. Mas estas várias formas constituem apenas minúcias. No Nôvo Mundo, bem como no Velho, era um pressuposto, que o poder e a responsabilidade pertenciam, de direito, aos homens que possuíssem terra. A democracia, no seu significado moderno, começou como um sistema no qual só possuíam direito de voto os proprietários de terra e mais ninguém.

Os fundamentos econômicos de tal importância da terra, e o incentivo para a sua aquisição, eram bastante sólidos.

Até pouco tempo, a produção agrícola - a previsão de alimentos e de matérias-primas - era responsável pela maior parte da produção total. Esta situação ainda se mantém em muitos países subdesenvolvidos de nossos dias, sendo exemplo mais significativo o da índia. O poder para iniciar um empreendimento agrícola dependia exclusivamente da propriedade da terra, razão por que os proprietários de terra detinham a maior parte da atividade econômica.

Os outros fatores de produção não tinham importância decisiva. A tecnologia agrícola era estável e pequeno uso era feito de fôrça mecânica ou outros bens de capital; conseqüentemente, até o século XVI o escasso capital ofertado, encontrava poucas oportunidades de aplicação. Este ponto de grande importância, tem sido freqüentemente negligenciado pelos estudiosos. Se implementos, mãode-obra, estoques ou sementes fossem perdidos, isto não tinha grande importância, pois poderiam ser repostos sem maiores problemas.

O mesmo raciocínio era verdadeiro para a mão-de-obra Sua tendência histórica tem sido a de manter-se em estado de relativa abundância. David Ricardo, observando as tendências de sua época, observou em 1817 que "nenhum ponto é menos controvertido do que a afirmação de que a oferta de trabalhadores estará sempre, em última instância, em proporção com os meios de sustentá-los". Em outras palavras, todo trabalho que possa ser necessário seria sempre remunerado e próximo ao nível de subsistência. O número de trabalhadores poderia ser igualmente aumentado ou substituído. Mas obter mais terra era algo diferente: uma vez perdida, dificilmente seria substituída. A terra era, portanto, estratégica. Nem mesmo os filósofos, cujas idéias conduziram os passos da Revolução Industrial - Smith e particularmente Ricardo e Malthus - podiam vislumbrar uma sociedade onde as coisas fossem diferentes.

A PASSAGEM DO PODER DA TERRA PARA O CAPITAL

No século passado a terra foi destronada em todos os países que hoje são considerados desenvolvidos. Sobre tal afirmação eremos existir unanimidade. A busca de terra, explicada pelo seu papel estratégico, acabou por conduzir à descoberta de áreas imensas. A América, a África do Sul e a Austrália, eram dotadas de terras excelentes e não utilizadas, constituindo-se, portanto, numa grande oferta utilizável a longo prazo.

Ao mesmo tempo, as invenções mecânicas e o crescimento da metalurgia e dos conhecimentos sôbre engenharia expandiam-se de forma prodigiosa, aumentando as oportunidades para o emprêgo do capital. Do uso maior e mais intenso do capital resultou uma produção também maior e desta produção resultaram maiores rendas e poupanças. Não está ainda claro se no último século a demanda de capital aumentou mais rápidamente que a oferta. Nos países novos, incluindo os Estados Unidos, o capital era geralmente escasso e seu custo elevado. Mas na Inglaterra, por mais de um século, as taxas de juro eram baixas. Contudo, uma proporção decrescente da produção em expansão consistia de produtos agrícolas e por isso dependia da terra. Ferro e aço, navios, locomotivas, equipamento têxtil, edifícios e pontes dominavam de maneira crescente a composição do Produto Nacional. Para a produção dêsses bens o domínio do capital, não o da terra, era o que importava. A mão-de-obra continuava a ser abundante em quase todos os piases. Na nova situação o homem que detivesse o capital possuía o fator estratégicamente importante de produção. A autoridade sôbre a emprêsa, conseqüentemente, passou às mãos do capitalista.

Para o detentor do capital passaram igualmente o prestígio na comunidade e o poder político. No comêço do século XIX o Parlamento Britânico ainda era dominado pela aristocracia agrária; em meados do mesmo século havia cedido às pressões dos industriais para que se concedesse salários baixos e alimentos mais baratos; ao final do século sua mais importante figura era o industrial de Birmingham e pioneiro fabricante de parafusos Joseph Chamberlain. No início do século passado o governo dos Estados Unidos era dominado pelos cavalheiros da Virgínia; ao final do século era profundamente influenciado, chegando a depender dos pontos de vista, dos ho mens de emprêsa ou dos ma/e factors de grande riqueza. O Senado chegou a ser chamado de Clube de Homens Ricos.

Esta mudança, o que é muito importante, não pareceu natural. George Washington, Thomas Jefferson e James Madison, pareciam ter mais condições para o exercício do poder público do que Jay Gould, Collis P. Huntington, J. P. Morgan, Elbert H. Cary e Andrew Mellon. Os proprietários de terra recebiam o crédito de capacidade de ação, independentemente de seus próprios interêsses e de agirem em função dêles. A defesa da escravidão, por exemplo, pareceu de certa forma legítima. Os capitalistas não eram tolerados quando agissem em causa própria e seus interêsses pareciam menos legítimos. Esta impressão contrastante ainda não foi totalmente exorcizada das atitudes públicas ou dos livros de história utilizados no ensino primário. Podemos enunciar uma regra pela qual quanto mais antigo fôr o exercício do poder, mais benigno êle parecerá, e quanto mais nôvo, sempre parecerá mais perigoso.

O PODER E A ESTRUTURA DA ORGANIZAÇÃO

Na medida em que o capital não era escasso no século passado, pelo menos nos grandes centros industriais, não chegava a ser excessivo. Mas em nossos dias, podemos afirmar que o capital é usualmente fator abundante. A primordial tarefa da moderna política econômica, freqüentemente definida em tempo de paz, é o de j assegurar que tôda a poupança, a um alto nível de produção, seja transformada em investimento. Esta é a chamada política econômica keynesiana. O fracasso no investimento da totalidade da poupança significa desemprêgo, ou seja, um excesso de mão-de-obra. Desta forma capital e trabalho têm uma tendência conjunta à abundância.

Por detrás dessa tendência de poupança excessiva está uma sociedade que enfatiza de maneira crescente, não a necessidade de austeridade, mas a necessidade de consumo. Poupar, longe de ser penoso, reflete um fracasso nos esforços, tanto por parte da indústria como do Estado para promover o consumo adequado. A poupança é também o resultado de uma estratégia pela qual a emprêsa industrial procura libertar-se de uma grande dependência com relação ao mercado de capitais. Êsse esforço normalmente tem levado a grande sucesso. Aproximadamente três quartos do investimento de capital no último ano tiveram como fonte a poupança interna das sociedades anônimas.

O capital, da mesma forma que a terra anteriormente, deveu seu poder sôbre a atividade empresarial à dificuldade de ser substituído ou aumentado. Que ocorre com tal poder quando a oferta é não apenas abundante, mas em certas épocas excessivas? Que acontecerá quando um importante objetivo social fôr contrabalançar a poupança com o consumo e dessa maneira assegurar-se contra a redundância nas fontes de capital? Que acontecerá quando um objetivo fundamental, e que vem sendo atingido com sucesso pelas emprêsas, obtiver o controle sôbre suas fontes de capital e dessa forma tornar-se independente da autoridade exercida pelos fornecedores de capital?

A resposta plausível é que o capital perderá seu poder como fator de maior importância estratégica, e que investe seu possuidor de grande poder de barganha.

A TRANSFERÊNCIA DO PODER DO CAPITAL PARA O TALENTO

O poder passou para as mãos do que poderia ser caracterizado de um nôvo fator de produção por todos aquêles que buscam uma nova designação para definir a situação vigente. O nôvo fator de produção não é constituído apenas pela administração; mais adequadamente poderia ser caracterizado como a estrutura total da organização - incluindo tôda a gama de conhecimentos técnicos, talento e experiência que a moderna emprêsa industrial exige - abarcando cientistas, engenheiros, especialistas em vendas-e-propaganda, outras especializações técnicas e talentos diversos, bem como a liderança convencional da emprêsa industrial. O sucesso da emprêsa depende, como a maioria das pessoas hoje concederia, da eficiência dessa mesma estrutura. Se algo acontecer a esta organização, sua substituição é difícil. Se novas tarefas devem ser empreendidas, a expansão sempre causa preocupação. Comparando-se tal situação com as etapas passadas do desenvolvimento da atividade empresarial, podemos afirmar que o poder passou para as mãos da organização.

O nôvo fulcro do poder não se encontra mais no indivíduo, passando para o colégio administrativo, ou para a equipe dirigente. Tal afirmação está fadada a encontrar uma resistência quase instintiva, pois o indivíduo em nossa cultura tende a ser mais valorizado que o grupo. Êle se acha dotado de audácia para realizar, enquanto se acredita que uma comissão está destinada à inércia. Os indivíduos têm almas; as emprêsas seriam fundamentalmente inanimadas. O empresário, individualista, inquieto, dotado de visão, de versatilidade e coragem, acabou por transformar-se no herói exclusivo dos economistas. A grande organização empresarial não desperta os mesmos sentimentos de afeição. A admissão à vida eterna se faz por indivíduos, quando muito por famílias; a alta administração de uma emprêsa, mesmo que essa possua uma imagem extremamente favorável, só pode ser vista como um grupo. Exige-se, a bem da busca da verdade, que se afirme a superioridade do grupo sôbre o indivíduo na realização de grandes tarefas sociais.

A moderna sociedade econômica só pode ser entendida como um esforço, notadamente bem sucedido, para sintetizar, por meio da organização, uma personalidade em muito superior para a consecução dos objetivos sociais do que uma pessoa e com a vantagem adicional de ser dotada de imortalidade.

A necessidade dessa personalidade sintética inicia-se pelo fato de que na indústria moderna um grande número de decisões, tôdas as vêzes que são dotadas de importância, exigem informações que só podem ser encontradas em vários indivíduos. Tais decisões baseiam-se no conhecimento especializado, de natureza técnico-científica, no acúmulo de informações e de experiência, na reação artística ou intuitiva de várias pessoas, tomando-se a decisão final apenas no momento em que estiver baseada em informações relevantes. Uma exigência posterior é que a informação seja adequadamente ponderada a fim de ser aferida sua relevância e grau de confiabilidade. Deve existir, em outras palavras, um mecanismo para:

• apoiar-se nas informações de vários indivíduos;

• mensurar a importância e testar a confiabilidade daquilo que cada um tem a oferecer.

A necessidade de se apoiar em informação de numerosos indivíduos origina-se nas exigências tecnológicas da indústria moderna. Êsses indivíduos nem sempre são desordenadamente sofisticados em seus pensamentos e recomendações. Um homem de moderado talento poderia muito provàvelmente prover-se com o conhecimento dos vários ramos da química e da metalurgia, da engenharia, da administração da produção, do controle de qualidade, relações industriais, estilização e mercadização que estão envolvidas no desenvolvimento de um moderno automóvel. Entretanto, mesmo o talento moderado tem uma oferta altamente imprevisível, e para manter-se atualizado em todos os setores importantes da ciência, da engenharia e da arte, seria necessário um tempo superior à duração da existência humana.

A solução exige a utilização de maior número de pessoas com talentos comuns e com resultados mais fácilmente previsíveis, homens que se qualificariam de maneira suficiente e que tivessem a experiência correspondente em cada área limitada de conhecimento especializado ou da arte. As informações fornecidas por êsses homens de talento comum serão combinadas para projetar e finalmente produzir o veículo. A impressão comum, não desencorajada por cientistas, engenheiros e industriais, de que as realizações modernas da engenharia, da indústria e da ciência constituem o trabalho de uma nova e notável categoria de homens não passa de pura vaidade. Se tal fôsse verdade, não teríamos projetos de voar para a Lua e muito poucos aviões decolariam para Los Angeles. A verdadeira e notável realização é tomar homens comuns, informá-los estreitamente, em profundidade, para então criar uma organização que combine o conhecimento dêsses homens comuns para obtenção de um desempenho altamente previsível.

O segundo fator que exige a combinação de talentos especializados deriva do grande emprêgo de capital juntamente com uma tecnologia complexa. Tal situação torna imperativo que se planeje e se controle o meio ambiente. O mercado é, de maneira geral, uma instituição desprovida de exigências intelectuais. O fazendeiro de Wisconsin não precisa antecipar suas necessidades de fertilizantes, pesticidas ou mesmo de peças e acessórios para seu equipamento porque são supridos pelo mercado. O custo é o mesmo para o homem de inteligência e para o vizinho que submetido a exame médico revela possuir vários espaços vazios em sua caixa craniana. Não há necessidade de estratégia de vendas; o mercado absorve todo o leite produzido ao preço estabelecido. A sedução que o mecanismo do mercado exerce sôbre muitos, pelo menos na opinião de alguns colegas economistas, resultou de sua possibilidade de simplificação da realidade.

A ATIVIDADE EMPRESARIAL COMO CONJUNTO DE COMISSÕES

A tecnologia e o planejamento exigem em nossos dias uma combinação extensa e a verificação de informações. Grande parte dêsse esforço é realizado na prática, por homens que conversam entre si. Alguns poderão discordar que a atividade empresarial seja um conjunto de comissões. Administrar consiste no recrutamento e na designação das qualificações adequadas para a comissão certa, em intervir oportunamente a fim de forçar a tomada de uma decisão, e ao anunciar a decisão ou ao implementá-la como fato consumado, partir para uma nova decisão na comissão seguinte.

Nem se deve argumentar da ineficiência de tal procedimento. Uma comissão permite que indivíduos reúnam informações nas mesmas circunstâncias que permitem a discussão e a verificação imediata para se aferir a importância e a confiabilidade da informação oferecida. O que normalmente se apresenta como trabalho de comissões são as discussões impertinentes e vagas, ou simplesmente o clima de incerteza que predominaria no interior das comissões; mas há também que considerar o grande estímulo para o esforço mental que surge como conseqüência de participar de uma comissão. Aquêles que se acreditam profundamente envolvidos em reflexões pessoais freqüentemente não chegam a nada de concreto. As comissões são condenadas, por aquêles que são vítimas do estereótipo da superioridade do esforço individual; pelos que suspeitam que a maioria das pessoas prefere o trabalho grupai à penosa atividade individual; pelos que não vêem o processo de busca e, em particular de verificação da informação como necessàriamente não dirigidas e que as reuniões conduzidas num clima de aspereza invariàvelmente decidem sobre matéria já anteriormente decidida; e por aquêles que não conseguem perceber que homens que recebem altos salários, quando tomam assento ao redor de uma mesa, constituindo uma comissão, não estão necessàriamente desperdiçando mais tempo em conjunto, do que cada um desperdiçaria individualmente.

Esta tomada de decisões em grupo infiltra profundamente suas raízes na vida da emprêsa, indo além do grupo normalmente chamado de administradores. O poder na verdade não está estreitamente relacionado com a posição ocupada por alguém na hierarquia da emprêsa. Sempre temos em mente um organograma para a emprêsa. No tôpo está o Conselho de Administração e o seu presidente; logo abaixo, vem o presidente da emprêsa; a seguir, o diretorsuperintendente e a seguir os diretores, responsáveis pelos vários setores. Supõe-se que o poder se origine no alto e desça pelas linhas formais de autoridade.

Isto só é possível numa organização que exerce tarefas rotineiras, como nos exercícios de treinamento de um pelotão em tempo de paz. Nos demais casos o poder está com o indivíduo que possui conhecimento. Se seu conhecimento fôr particular e estratégico, seu poder será muito grande. ENRIC O FERM I pedalava uma bicicleta quando se dirigia ao trabalho em Los Alamos. LESLIE GROVES comandava todo o distrito de Manhattan. FERM I e seus colegas e não o General GROVES, em tôda a sua pompa, tomaram as decisões de importância.

Porém, a tomada de decisões em grupos não está limitada à tecnologia nuclear e à mecânica espacial. Hoje em dia, mesmo os produtos mais simples são fabricados, embalados e mercadizados por métodos bastante sofisticados. Por causa dêsses fatores o poder também passa a centrar-se na organização, na maioria das emprêsas, mesmo as que se dedicam à fabricação e mercadização de produtos relativamente simples. Com objetivos didáticos, tenho freqüentemente usado o exemplo de um produto de pequena complexidade, que por motivos que ignoro ainda não foi colocado no mercado, seja pela General Electric, seja pela Westinghouse. Orgulho-me profundamente de tal produto e devo ser perdoado por recorrer a êle no momento de trabalhar com um exemplo. Trata-se de um torrador de pão com desempenho padronizado, exceto pelo fato de imprimir na superfície da fatia de pão, em prêto, um conjunto de mensagens também padronizadas com as gravuras correspondentes. Para os hóspedes elegantes, poder-seia imprimir um monograma, ou mesmo um brasão; para o devoto, no desjejum seria ofertada uma torrada com alguma citação apropriada, extraída das obras do reverendo BILLY GRAHAM; para o patriota, ou simplesmente para o preocupado com os problemas nacionais, um aforismo de J. EDGARD HOOVER, clamando por vigilância; finalmente, para os artistas e economistas um motivo abstrato. Uma versão para uso em restaurante poderia vender propaganda, ou simplesmente apelar para a aceitação pacífica da integração racial nos recintos públicos.

A FUNÇÃO DOS ESCALÕES INFERIORES DAS ORGANIZAÇÕES

Seria muito provável que a idéia para fabricação de nosso torrador de pão fôsse apresentada pelo próprio presidente da General Electric. Mas o aparecimento ordenado de tais idéias é a função estabelecida de pessoas que se encontram em posições inferiores da hierarquia organizacional, encarregados do desenvolvimento de novos produtos. Num estágio anterior do desenvolvimento do torrador de pão, especialistas em estilização, arte, ortografia, e sem dúvida alguma, filosofia, receberiam tarefas específicas. Ninguém que tivesse autoridade para aprovar o produto, fá-lo-ia sem o parecer dos especialistas sobre o estilo, a maneira de impressão a ser adotada no torrador de pão, e qual seria o custo correspondente. Qualquer decisão seria tomada com todo o cuidado. Tôda ação dependeria do trabalho dos especialistas em testes e análises de mercado que determinariam da conveniência e dos meios pelos quais deveriam ser vendidos os torradores e qual o custo, bem como das quantidades a serem produzidas e mercadizadas. Os vários especialistas funcionariam como parte de uma equipe que incluiria encarregados de mercadização, propaganda e relações com os revendedores. Qualquer parecer contrário ao produto que partisse dêsses homens implicaria no abandono definitivo do projeto. Nem sequer a possibilidade de perda de uma oportunidade para colocação de um nôvo produto no mercado seria fator suficientemente forte para levar a uma decisão favorável. É evidente que quase todo o poder - iniciativa, desenvolvimento, rejeição ou aceitação - seja exercido em todos os níveis da empresa.

Portanto, duas grandes tendências acabam por convergir:

• Em conseqüência da avançada tecnologia, a produção passou a envolver grande investimento em capital, e grande capacidade de planejamento que permita controlar os lucros para reinvestimento na própria emprêsa, fazendo com que o capital se torne o fator abundante.

• Os imperativos da tecnologia avançada e do planejamento fizeram com que o poder de decidir passasse do indivíduo para a organização.

Quais têm sido as conseqüências de tôdas essas modificações?

PERDAS DE DIREITOS DOS ACIONISTAS

O fato mais importante é que o poder passou para a própria organização na emprêsa moderna. A perda dos direitos por parte dos acionistas é um fato consumado. Jamais recuperarão o seu poder na moderna emprêsa, plenamente desenvolvida, exceto, talvez, na eventualidade de uma emprêsa sucumbir sob determinada administração. No caso das grandes emprêsas o sucesso tem sido a regra e o fracasso é bastante raro.

O poder também abandonou os grandes credores. No passado os nomes dos grandes banqueiros, JAY COOKE, JAY GOULD, O velho MORGAN, ANDREW MELLON, eram parte do folclore americano. Atualmente, nenhum banqueiro tem seu nome conhecido além das fronteiras da própria comunidade financeira, e muito poucos chegam a ser conhecidos de tôda a comunidade financeira. A fama, no moderno mundo das finanças, exige, exceção feita para os grandes "golpes", que um banqueiro colecione obras de arte moderna, ofereça um espetáculo de lutadores japonêses no saguão do banco ou que patrocine gincanas.

À medida que o poder se incorpora à estrutura da organização, a autoridade e a importância dos que ocupam as posições elevadas na emprêsa também entram em declínio. Jamais uma pessoa medianamente informada conhecerá o nome do presidente da Standard Oil Company of New Jersey ou da Ford Motor Company, tendo que apresentar um documento de identidade quando efetuar seus pagamentos com cheque.

O poder dos sindicatos também está em decadência. A posição dos sindicatos repousa num fator de produção que é relativamente abundante e que padece da competição com o capital abundante e com o avanço tecnológico. O declínio absoluto e relativo no número de trabalhadores sindicalizados nos últimos anos está relacionado com o declínio no número de trabalhadores diretamente vinculados à produção que é conseqüência da substituição de mãode-obra por equipamento, o qüe se tornou possível graças à abundância de capital. O sindicato partilha com o capitalista o destino que lhes foi traçado pelo declínio do capital.

A NOVA ELITE

Que engenheiros, cientistas e técnicos no interior das empresas estejam exigindo seja-lhes conferida importância e influência, é o resultado evidente de tôdas as mudanças que viemos de assinalar. Cresce o número dos que ascendem às posições mais elevadas. O presidente ou presidente do Conselho de Administração que tinha como sua qualificação principal as boas relações com a comunidade financeira, já se constituiu num anacronismo, e está sendo substituído por homens cujas habilidades estão relacionadas com organização, recrutamento, sistemas de informação e outras exigências para consecução de ação grupai efetiva. Tais homens sofrem a desvantagem política, diversamente do velho empresário capitalista que não estava comprometido com o comportamento grupai. Mas tal desvantagem não é completa, não interferindo, por exemplo, com a íntima associação que pode desfrutar junto aos quadros de técnicos altamente especializados do Govêrno Federal, que para a moderna emprêsa industrial passou a ser um grupo de grande importância.

A atual expansão no número de matrículas a todos os níveis do sistema educacional, bem como o aumento de recursos destinados à educação não é o resultado de uma nova Idade das Luzes, mas de pressões geradas pelas novas relações entre os fatores de produção e do nôvo papel estratégico de homens qualificados. Da mesma maneira que a escassez de capital nos tempos vitorianos levou a que se aumentasse a poupança e se insistisse na austeridade, hoje a escassez de homens qualificados leva a uma ênfase semelhante no valor da educação. Tanto nos afazeres nacionais como internacionais sente-se uma nova nota de confiança na voz da comunidade acadêmica e entre os que discordam, outra de lástima deveria ser ouvida. As mesmas coisas foram ouvidas dos senhores de terra quando uma classe média industrial desabrochava há um século e meio. Distamos apenas uma geração do dia em que os sindicatos eram aconselhados por empresários "sensatos" para se aterem aos dissídios coletivos e abandonar a atividade política. Imaginamos que a comunidade científica e acadêmica, nos anos vindouros, receberão o mesmo tipo de aconselhamento.

O problema do poder na moderna emprêsa industrial é importante, mas as manifestações fundamentais do poder econômico devem ser abordadas a partir do pressuposto da mudança. Nos últimos duzentos anos, passamos da idade da terra para a idade do capital e do empresário capitalista, para atingirmos a do administrador, e em nossos dias temos a organização colegiada, voltada para o planejamento das decisões nas emprêsas. Se não estivermos preparados para aceitar essa mudança, entenderemos muito pouco a respeito do exercício do poder na sociedade moderna.

  • Traduzido do inglês por CARLOS OSMAR BERTERO. Originalmente publicado no Stanford Graduate School of Business Bulletin, vol. 35, n.ş 3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2015
  • Data do Fascículo
    Mar 1968
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