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A institucionalização de tipologias organizacionais: um estudo de caso: a autogestão na Iugoslávia

ARTIGO

A institucionalização de tipologias organizacionais. Um estudo de caso: a autogestão na Iugoslávia* * Trabalho apresentado na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisas em Ciências Sociais, no grupo de trabalho "Organizações e Sociedade", Friburgo, 21 a 23 de outubro de 1981.

Roberto Venosa

Professor no Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV

Mais, quand'un passé ancien rien na subsiste, après la mort des êtres, après la destruction des choses, seules plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles, l'odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des âmes à se rappeler, â attendre, à espérer, sur la ruine de tout le reste, à porter sans fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l'édifice immense du souvenir (Proust, Marcel.

Du côté de chez Swann).

NOTA PRELIMINAR

Este trabalho sucede e tem profundas ligações com o trabalho sobre a evolução da participação nas organizações autogeridas iugoslavas, apresentado no Congresso de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais de 1980 e publicado na Revista de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (v. 21, n.º 1,jan./mar. 1981).

Partimos da premissa que os fenômenos organizacionais ocorrem na confluência de quatro vetores:

e que as teorias das organizações na maioria das vezes tratam esses fenômenos sob a ótica do binômio evolução/função.

Neste artigo procuramos introduzir alguns dados que salientam a pertinência do outro binômio cultura/sentido.

No seu conjunto, sentido, evolução, função, cultura compõem uma tentativa de abordagem fenomenológica para o estudo das organizações complexas na qual os agentes sociais atribuem sentido à ação social e, portanto, as organizações existem tal qual estes agentes as percebem.

Neste trabalho, acreditamos ser razoável iniciar pela apresentação dos dados sobre as práticas sociais na Iugoslávia agrária (itens 2 e 3) para depois "alinhavar" â corrente teórica à qual nos filiamos (item 4), o que não impede que a leitura seja feita ao inverso.

1. INTRODUÇÃO

Muito tem sido dito sobre a autogestão na Iugoslávia ultimamente. Na maior parte das vezes, a "palavra de ordem" autogestão, no discurso sobre democracia industrial, é invocada como aglutinadora de uma "força subjetiva" capaz de remover montanhas. Inegavelmente, é acentuado o conteúdo profético-redentor dos que enxergam na participação uma nova proposta de ordem social em que a dominação, por fim, atingiria a exaustão. Em geral, a catálise do processo participativo seria obra de agentes da conscientização.

Difícil, no entanto, não reconhecer na "conscientização" implicações autoritárias nas quais uma nova ordem - porém sempre ordem - seria imposta àqueles que não possuem a "verdadeira" consciência; ou, se a possuem, não percebem.

Uma postura menos otimista, mais "mefistofélica", nos levaria a vislumbrar a participação como um "sorriso enigmático no rosto severo do destino dos nossos tempos".

Esta postura menos otimista deriva de uma observação do cotidiano das organizações. Em parte, porque podemos identificar no cotidiano a presença de três aspectos: ordem, trivialidade e continuidade;1 1 A ênfase na análise do cotidiano das organizações advém da corrente fenomenológica que se instalou na sociologia e que sê autodenominou sociologia do conhecimento. Os pilares desta tradição são Max Weber, Alfred Schutz, Max Scheller e mais recentemente Peter Berger e Thomas Luckmann. Os escritos de Schutz influenciaram também a etnometodologia, em particular Harold Garilnkel, Aaron Qcourel, Erving Goffman. em parte, porque não se atingiu participação plena em lugar algum;2 2 Cf. Venosa, Roberto. A evolução da participação nas organizações autogeridas iugoslavas. Revista de Administração de Empresas. Rio de Janeiro, FGV. 21(47-54), jan./mar. 1981. e, finalmente, em parte, porque existe uma grande distância entre a prática participativa e o discurso participativo.3 3 Cf. Venosa, Roberto. Organização e a panacéia participativa ou participação e a panacéia organizacional. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, FGV, 8 (4): 80-102, out./dez. 1974.

Destes três aspectos, o primeiro merece atenção especial.4 4 As considerações que fazemos aqui estão fortemente influenciadas por: Berger, Peter. Sociology and freedom. In: Facing up to modernity, p. 11-26. A sociologia nos leva à convicção de que a ordem é um dos imperativos primários que as sociedades constroem. Por trás desta afirmação existe a suspeita antropológica de que os homens experimentam uma enorme dificuldade em viver num espaço e num tempo desordenados. A sociedade seria, em sua essência, a imposição de ordem na experiência humana. Lembremos que não estamos falando somente de controle social, de imposição coercitiva. Não se trata somente disto; cada instituição social, desde a mais coercitiva até a mais consensual, é uma imposição arbitrária de sentido, a começar pela linguagem que entre as instituições é a básica. No limite poderíamos até, eventualmente, admitir que as sociedades abominam a desordem da mesma maneira que a natureza abomina o vácuo. As implicações políticas seriam que, exceto em raras ocasiões e em períodos curtos, as forças de ordenação foram sempre mais poderosas que as da desordem, ainda mais que existem limites muito estreitos para a tolerância à desordem na vida em sociedade.

Se, de um lado, toda ordem social é precária, de outro, é exatamente por esta precariedade que as sociedades reagem instintiva e violentamente à ameaça "a sua perenidade". As transformações sociais só foram bemsucedidas quando conseguiram estabelecer novas estruturas, novos parâmetros de ordenação, através dos quais os indivíduos puderam sentir-se social e psicologicamente seguros.

O segundo imperativo, trivialidade, pode ser atribuído a uma baixa capacidade antropológica de os seres humanos experimentarem uma "excitação" constante. A vida social seria um pandemônio se tivéssemos que manter uma "vigilância epistemológica perene" e não pudéssemos ter o mínimo de intersubjetividade. A trivialidade é um dos requisitos fundamentais da vida em sociedade? Talvez. É sociológica, antropológica e, muito provavelmente, biologicamente necessário para nós "comuns mortais" que uma grande parte de nossas relações sociais sejam experimentadas "numa boa", num estado de sonolência epistemológica, sem o qual não existiriam interações sociais. É precisamente por esta razão que se objetivam instituições e organizações, as quais impõem programas para as atividades humanas (acasalar, discutir negócios, conspirar, divertir-se, etc).

A sociedade "protege" nossa sanidade pelo preenchimento de um grande número de espaços da nossa vida. As atividades rotineiras e desprezíveis são aquelas que mantêm o mundo da vida em pé, o arbitrário experimentado como objetividade real.

O terceiro imperativo, continuidade, não se separa dos dois anteriores. Quando se tem filhos, "explica-se" o passado para eles e relaciona-se o passado ao presente. Constroem-se paradigmas de felicidade, sejam eles "ir à missa" ou "uma educação livre". Em suma, do ponto de vista da história das ideologias organizacionais, uma geração é refém das gerações precedentes.

Em vista do que foi colocado até agora, o surgimento de um formato participativo para a organização do trabalho na Iugoslávia constitui problema.

Neste país se conseguiu harmonizar o esforço de industrialização, acelerada com a introdução de uma estrutura organizacional participativa.

Para alguns5 5 Venosa, Roberto. O modismo da autogestão. In: Folha de São Paulo, 18.05.80, p. 34. esta superposição - industrialização e organização participativa - levaria a um "curto-circuito", uma vez que são esforços incompatíveis.

Com efeito, o processo de industrialização na Iugoslávia não divergiu basicamente das tipologias de industrialização acelerada adotadas em países do Terceiro Mundo. Porém, não se pode, à primeira vista, compreender como surge e se implanta, num "piscar de olhos", o modelo de democracia industrial introduzido na Iugoslávia por volta de 1950. As razões atribuídas, a saber:

a) ruptura com Stalin;

b) diversidade étnica;

c) escritos marxistas, por si só não são convincentes.

Embora Tito tenha rompido com Stalin em 1948 e como conseqüência da expulsão da Iugoslávia do Komin-form, jamais os iugoslavos deixaram de se proclamar socialistas. Isto quer dizer que eles poderiam perfeitamente romper e continuar a adotar o planejamento econômico centralizado. A ruptura isoladamente não fundamenta a busca de um modelo de mercado para as relações entre as empresas iugoslavas.

A diversidade étnica, que é verdadeira, pois na Iugoslávia cada uma das repúblicas e províncias autônomas é constituída por uma etnia particular (sérvios, croatas, eslovenos, albaneses, húngaros, etc), não pode responder convincentemente pela implantação de uma tipologia organizacional que é, basicamente, a mesma para toda a federação.

Os escritos marxistas, estes, então, por jamais fazerem referência explícita ao que seria a autogestão, não servem de justificativa para o que ocorreu na Iugoslávia após 1950.

Juntas - industrialização acelerada e democracia industrial - tornam-se realmente incompreensíveis, principalmente notando-se as altas taxas de crescimento econômico alcançadas na Iugoslávia entre 1950 e 1960. Tornam-se ainda mais incompreensíveis se observarmos que em 1948 - início da industrialização - 80% da população eram constituídos de camponeses. É difícil aceitar-se que a modernização de uma sociedade - envolvendo industrialização e implantação de modelos organizacionais participativos - possa se processar sem conflitos quando a maioria desta população é camponesa, a menos que a mudança organizacional seja um mero transplante, uma espécie de "jardinagem social".

Em outras palavras, para que uma sociedade se industrialize é preciso que a industrialização faça sentido para uma boa parte da população; para que uma classe operária se forme é preciso que a proletarização faça sentido ao menos para uma parte do campesinato.

Ora, se levarmos esta hipótese mais adiante - isto é, que havia na Iugoslávia nos fins da década de 40 um consenso mais ou menos generalizado sobre as vantagens de industrialização - ficamos sem compreender as razões da opção pelo modelo chamado autogestão.

Neste texto pretendemos elaborar alguns dados sobre a organização social da Iugoslávia agrária e assim tentar entender um pouco mais a questão da "aparição" da autogestão naquele país.

No final, procuramos alinhavar, ainda que brevemente, a Unha de explicação que adotamos.

2. AS PRÁTICAS ORGANIZACIONAIS DOMINANTES NA IUGOSLÁVIA ATÉ 1950

Logo que iniciamos o estudo das práticas organizacionais na Iugoslávia do pré-II Guerra Mundial, constatamos a presença freqüente de uma instituição social da vida camponesa - a "zadruga" - a saber, a família comunitária extensiva, unidade de base da comunidade rural.

Não é possível obter-se uma definição única que abranja todas as variantes de "zadrugas", no entanto, se nos ativermos aos elementos essenciais, podemos considerá-la como: uma comunidade constituída por uma ou várias famílias consanguíneas ou com relações de parentesco, possuindo em comum os meios de produção, consumindo e regulando em conjunto a propriedade e a vida da comunidade.

A rigor podemos distinguir três grandes regiões onde as "zadrugas" foram particularmente numerosas. A primeira região cobre o Montenegro e o norte da Albânia, portanto, a região sul da Iugoslávia. Nesta região, a "zadruga", como organização familiar predominante, teve um papel fundamental, mas por volta de 1938 seus vestígios já eram raros.

A segunda região engloba as montanhas da Bósnia Herzegovina, o oeste da Croácia e o norte da Macedónia, portanto, o centro-oeste da Iugoslávia. Nesta região, bem maior que a primeira, cuja economia era marcadamente rural - criação de gado -, as "zadrugas" subsistiram durante uma boa parte do século XX.

A terceira região se estende pelas planícies e vales croatas, Sérvia e centro-oeste búlgaro, portanto, o leste da Iugoslávia. Podia-se encontrar nesta região, até os anos 40, uma vida comunitária do gênero "zadruga".

Segundo Mosely,6 6 Mosely, P. The distribution of the zadruga within Southeastern Europe. The Joshua Star Memorial. New York, v. V; Jewish social studies, 1953, p. 221-2. Apud Halpern, J. M. Social and cultural change in a Serbian village. Connecticutt, HRAF, 1956, p. 293. em todas estas regiões, não somente a lembrança, mas também a influência da "zadruga" permaneceram vivas na prática cotidiana do campensinato iugoslavo até fins dos anos 30.

Os estudos sobre as "zadrugas" foram na sua quase-totalidade de natureza etnográfica. Até o presente, não tinham sido reparadas as similitudes entre as manifestações de solidariedade e os tipos de compromissos praticados pelas "zadrugas" e o modelo organizacional adotado pelas empresas autogeridas iugoslavas.

Uma primeira corrente de pesquisas se preocupou em particularizar a "zadruga" enquanto instituição tipicamente eslava, distinta das instituições que podiam ser encontradas nas outras regiões da Europa Oriental.

Uma segunda tentou estabelecer um paralelo entre as "zadrugas" e as formas de comunismo doméstico primitivo praticado em vários locais, como por exemplo o "ayllu" inca e o "kibutz" israelense.

Finalmente, uma terceira corrente se orientou para o estudo da evolução histórica da vida comunitária tipo "zadruga" entre os povos dos Bálcas.

Para alguns autores, entre eles Novokovic,7 7 Filipovic, M. Ethnografie de la Serbie du sud. HRAF, 1937. p. 11. as "zadrugas" existiram durante toda a Idade Média e mesmo antes, enquanto que outros afirmam que as "zadrugas" são produto de sistemas fiscais e legais introduzidos durante as dominações turca e austro-húngara.

Os escritos mais antigos sobre as "zadrugas" croatas, datando de 1177 e 1197, e a legislação serba dos séculos XIII e XIV atestam a existência destas comunidades agrárias. Podemos acreditar, entretanto, que a vida familiar comunitária tipo "zadruga" precedeu as informações escritas sobre sua existência. Segundo Filipovic:8 8 Filipovic, M. Zadruga. In: Byrnes, R. Communal families in the Balkans: the zadruga. N. Dame University Press, 1976.

'The zadruga is constantly mentioned in the early Middle-Ages and later as well in the regions under Venetians, Austrians and Hungarians, and in the lands which fell to the Turks. The zadruga proved to be a powerfull means of protection to the South-Slavs while they were under the Turks and the Austrian court used the zadruga as a source of military manpower and economic ressource. Laws and statutes obliged the residents of the military frontier to live, in household zadrugas until 1871. In the period from the coming of the Turks until the second half of the nineteenth century the attitudes of the rulers toward the zadruga didn't change. The Croatian Christian lords and the Turkish landlords, who all demanded annuities from their serfs, opposed the division of zadrugas among peasants and prevented it."

Assim, protegida por dois grandes impérios, pôde desenvolver-se entre os camponeses iugoslavos durante mais de 500 anos a organização familiar tipo "zadruga", que exibia um número de características de funcionamento que a distinguia da família patriarcal.

Poucos são os dados sobre a organização interna, as relações de parentesco e os tipos de associações externas das primeiras "zadrugas". Sabe-se que a partir do século XV as "zadrugas" eram compostas de pais, filhos, irmãos, parentes e vizinhos que possuíam e exploravam em conjunto suas terras. Estas "zadrugas" se consolidaram entre os povos eslavos e resistiram tenazmente às grandes transformações históricas.

A importância e o tamanho das "zadrugas" em uma dada região eram sobretudo função de pressões sócio-econômicas. Na Idade Média e mesmo durante a invasão otomana, os pesados impostos que recaíam sobre as famílias camponesas e as ameaças externas, favoreceram o desenvolvimento de numerosas "zadrugas" de grande porte. Por isso mesmo, em certas regiões da Croácia, desde 1848, quando cessaram as pressões que agiam no sentido de se formarem "zadrugas" maiores, começou um processo de desagregação.

De qualquer modo, como sugere Halpern:9 9 Halpern, J. M. Social and cultural... op. cit. p. 312.

"Even if much of the traditional zadruga organization has broken down its influence was still strongly felt in Orasác social organization by 1940's. Underlying the question is the fact that in Orasác and in Yugoslavia in general there had been relatively much less opportunity in the cities and most of the population had been forced to remain on the farm. What had been seen is not the disappearance of the zadruga but rather a modification of the same social structure which existed at the time of the settlement of Orasác."

Durante séculos, os povos eslavos foram obrigados a permanecer no campo. A vida desenrolava-se quase que exclusivamente no vilarejo. Os centros urbanos, pouco numerosos, foram fundados por gregos, turcos e húngaros e durante as diversas ocupações (três no total: otomana, austro-húngara e alemã) os camponeses não elaboraram organizações sociais que ultrapassassem a comunidade doméstica e o vilarejo.

As "zadrugas" eram as unidades de base da produção no campo. Enquanto organismo coordenador de um importante contingente de mão-de-obra, elas puderam desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento agrícola dos Bálcãs. Nas regiões onde a economia era basicamente de subsistência, as "zadrugas", possuindo uma elaborada divisão do trabalho e um grau de cooperação elevado, propiciaram as condições ideais para a auto-suficiência das comunidades camponesas, seja de um ponto de vista econômico, seja de um ponto de vista social, além de servirem de elemento determinante na fixação da população eslava no campo.

As "zadrugas" marcaram também a vida política nos Bálcãs. O rei de Sérvia, por exemplo, era visto como sendo o chefe de uma grande "zadruga". Nas guerras de liberação, as "zadrugas" desempenharam um papel primordial na medida em que elas forneceram soldados sem interrupção da produção. Mesmo aceitando-se uma tendência para seu desaparecimento a partir da segunda metade dos anos 40, é preciso notar sua capacidade de adaptação até os primórdios da consolidação de uma exploração moderna do campo.

Segundo Sicard,10 10 Sicard, E. La zadruga sud-slave dans l'évolution du groupe domestique. Paris, Ed. Ophrys, 1943. as "zadrugas" deixaram vestígios, mesmo após seu desaparecimento formal.

Os princípios de ajuda mútua que encontramos presentes ainda hoje não somente nas cooperativas agrícolas, mas também nas organizações de trabalho associado, podem ser entendidos como sendo indicativos de persistência e transformação das formas de solidariedade praticadas na Iugoslávia durante séculos.

Mosely chega mesmo a distinguir a desagregação de uma "zadruga" de seu desaparecimento. Uma "zadruga" sofria normalmente um processo de fracionamento sem que isto indicasse necessariamente sua extinção. As grandes "zadrugas" foram sempre em pequeno número, sendo que as maiores tinham no máximo 80 membros. O número mais freqüente de participantes de uma "zadruga" oscilava entre 10 e 20. As "zadrugas" cresciam até um certo ponto, quando as condições assim favoreciam. No entanto, atingindo esse limite, o fracionamento era inevitável na medida em que a coordenação do trabalho tornava-se mais difícil, a atribuição de tarefas mais complexa e os laços de parentesco mais distantes.

Os fatores que catalisavam o desmembramento das "zadrugas" eram de diversas ordens: a aquisição de um pedaço de terra longe da propriedade principal podia provocar uma separação entre os membros da comunidade; a partida de alguns membros para o trabalho sazonal no estrangeiro podia também ser um fator de fragmentação. No Montenegro, por exemplo, um dos fatores determinantes do processo de decomposição das "zadrugas" foi o êxodo rural durante a crise dos anos 1929 e 1930. Quase sempre, após o desmembramento de uma "zadruga", observava-se a formação de novas "zadrugas" a partir dos núcleos isolados. Apesar das sucessivas divisões, uma comunidade rural sobreviveu sempre a no mínimo três gerações. Nas regiões onde o ritmo de crescimento econômico foi mais lento, o declínio das "zadrugas" foi menos pronunciado. Na Eslovénia onde a economia se aproximava dos níveis atingidos na Europa Central, as "zadrugas" desapareceram rapidamente e muito antes do início do século XX. No Kosovo, onde a influência e a tradição orientais são ainda predominantes, as "zadrugas" prolongaram sua existência. Hoje em dia, a diminuição das famílias numerosas pode ser considerada como um indicador indireto do processo de desaparecimento das últimas "zadrugas". Quando do fracionamento, o patrimônio - sobretudo a terra - era dividido, obedecendo-se aos critérios de igualdade que regiam a vida comunitária.

Sem dúvida, tanto a industrialização acelerada quanto a modernização da sociedade foram elementos decisivos para o declínio da vida comunitária rural.

Ao processo de urbanização, podemos associar uma mobilidade vertical e horizontal rápida. No caso iugoslavo, do total da população 20.600 mil habitantes em 1971, cerca de 8 milhões tinham mudado de terra natal e aproximadamente 6 milhões de camponeses tinham migrado para as cidades. Um terço da população urbana vinha do campo. No processo de migração para as zonas urbanas, as vagas sucessivas de camponeses transportavam toda uma "bagagem cultural" que eles possuíam.

As formas de solidariedade e os tipos de associações que se traduziam na comunidade familiar por comportamentos coletivistas e pela ajuda mútua podem ainda hoje ser identificados tanto na vida familiar quanto na organização de comunidade laboral. Mesmo sendo difícil estabelecer uma causalidade entre as práticas tradicionais e os modelos organizacionais modernos, podemos ressaltar que tanto as primeiras quanto os últimos se articulam em torno de matrizes de significados, nas quais os valores associados ao coletivismo estão presentes, embora o contexto sócio-econômico seja distinto.

Até recentemente, quando um camponês ascendia socialmente, as solidariedades e as fidelidades antigas não eram abandonadas, pois elas faziam parte de uma cosmogonia consagrada, recebida e aceita. Para Buric:11 11 Buric, Olivera. The zadruga and the contemporary family in Yugoslavia. In: Byrnes, R. Communal families ... op. cit. p. 129.

"The values associated with mutual aid and kinship corporacy persevere today in village and city alike, and are particularly notable in the context of relationships linking rural and urban kin. They may be expressed in the form of material aid such as the help urban families extend to their peasant relatives by participating in seasonal agricultural labor, or by the substantial contributions of food villagers make to their city kin. In the city apartments are always open to country relatives who arrive for medical treatment, to negociate business, to educate their children or to seek employment. About a fifth of a sample of 500 Belgrade workers said that a kinsman had helped them to find a job. In effect relatives are willing to perform ali kinds of services and to intervene in times of need. During their formative years children are offered the protection of a web of kinship ties."

Ao lado das práticas coletivas e de solidariedade mútua existiam também normas de eqüidade e participação igualitária no processo de tomada de decisão. Esses dados, no seu conjunto, tornavam a "zadruga" distinta da família patriarcal onde a estratificação do poder e a hierarquia de privilégios eram acentuadas.

Isto não quer dizer que na "zadruga" a hierarquia fosse abolida. Se de um lado o processo de decisão era democrático, de outro a atribuição de tarefas e a divisão do trabalho segundo sexo, idade e grau de parentesco era rigidamente respeitada.

Em suma, não podemos estabelecer a hipótese da continuidade e da determinação do modelo "zadruga" para o modelo autogestão iugoslavo. Podemos, no entanto, diagnosticar matrizes de significados: uma em torno da qual se organizavam os camponeses iugoslavos, outra em função da qual se organizam os participantes das empresas autogeridas. Tanto em uma quanto na outra, encontramos formas e comportamentos associados ao coletivismo, à solidariedade corporativa, à democracia interna, à eqüidade, sempre preservando uma sólida hierarquia para a execução das tarefas.

Uma análise sucinta das comunidades agrárias iugoslavas nos permitiu avaliar a objetividade institucional da "zadruga"; uma análise da estrutura e do funcionamento destas "zadrugas" nos permitirá demonstrar a presença de práticas participativas semelhantes às encontradas nas unidades autogeridas.

3. A ESTRUTURA E O FUNCIONAMENTO DAS "ZADRUGAS"

As "zadrugas", ou comunidades domésticas do campo, identificadas como o modelo de organização social na Iugoslávia agrária, apresentavam um modo de funcionamento e uma organização interna que possuíam como características principais a regularidade e a semelhança, as quais eram independentes de fatores étnicos ou religiosos.

Quaisquer que fossem as regiões, a estrutura formal das "zadrugas" permanecia a mesma. No cume da hierarquia encontrávamos o chefe da família - "domacin" ou "staresina" - que executava funções bem definidas.

Este chefe representava a comunidade no diálogo com as autoridades da república e era o responsável pela compra e venda de bens da "zadruga". Os casamentos eram acertados entre os chefes, que também se incumbiam da escolha dos padrinhos. Tanto interna quanto externamente à "zadruga", eles arbitravam as disputas e as querelas.

Quando os critérios de eficácia começaram a ser privilegiados, a concepção do papel de chefe mudou, tendo um deslocamento das bases da legitimidade de um plano moral para um plano econômico, isto é, para a produção. Quando a produtividade da propriedade agrícola tornou-se um elemento decisivo para a sobrevivência do grupo, os critérios de escolha do chefe da comunidade foram menos influenciados por considerações de ordem moral e mais centrados sobre a aptidão ao trabalho. De qualquer forma, quaisquer que fossem os fundamentos da autoridade do chefe - religiosos, morais ou econômicos - ela sempre foi delegada pelos demais membros da comunidade.

Quando a "zadruga" se consolidou como forma dominante de organização social nas comunidades rurais, "o domacin" não era necessariamente o mais velho, porém o mais perspicaz e o mais capaz para os negócios. Se por acaso ele não conviesse mais, outro podia ser designado para seu posto. Contudo, era raro que os critérios de idade não correspondessem aos de aptidão para os negócios. Habitualmente, o chefe escolhido ou indicado era aquele que a comunidade achava o mais competente entre os mais idosos.

Como a autoridade do chefe era delegada, ele conservava seu posto enquanto gozasse da confiança e do respeito da comunidade. Seu poder era instável e sempre inferior ao do "pater-famílias". O chefe da comunidade tinha muito menos autoridade que um chefe de família, o qual, segundo a lei, era o único proprietário de suas terras e o único responsável pela sua família. Nos negócios, por exemplo, o chefe de uma "zadruga" consultava todos os homens casados da comunidade. No caso de dissolução da "zadruga" a divisão do patrimônio era decidida pelo conselho da família e as decisões eram tomadas por unanimidade absoluta.

Quando os membros do conselho descobriam desacertos evidentes no comportamento do chefe ou no caso em que este último envolvia a comunidade em uma situação difícil, ou mesmo quando ele abusava de seus direitos, o conselho poderia destituí-lo. Como chefe da "zadruga", o "domacin" merecia o respeito e a obediência dos demais membros; apesar disso, ele não podia dispor do patrimônio da "zadruga" sem o consentimento do conselho. Segundo os usos, o conselho era composto pelos adultos casados. Para ser chefe devia-se ser adulto e casado. Quando o chefe falecia ele era substituído por outro que não era sempre seu filho; pelo menos esta não era uma condição necessária. O novo chefe podia ter sido indicado pelo antigo ou pelo conselho. De qualquer maneira ele deveria ser legítimo aos olhos da comunidade.

Este "domacin" assumia um papel de direção econômica e moral e de vigilância, o que não o impedia de participar dos trabalhos na comuna local. Apesar de sua autoridade, ele não deixava de consultar aqueles que eram ao mesmo tempo seus subordinados e seus pares. À preocupação de continuamente ouvir conselhos se somava a obrigação de tratar cada membro, cada pessoa, cada família sob o mesmo pé de igualdade. O "domacin" dirigia sua casa no plano econômico com uma constante atenção para o tratamento equânime. Ele estava sempre presente, consultando o conselho, supervisionando o trabalho, inspecionando as tarefas domésticas, desempenhando o papel da autoridade religiosa.

O conselho era a instância máxima de decisão. Os membros do conselho deveriam ser homens com mais de 15 anos e casados. Mesmo quando as famílias eram menores e mesmo quando as mulheres tiveram uma influência maior na comunidade, o homem continuou a ser a autoridade suprema. Em todas as consultas anteriores à efetivação dos negócios e em todas as eleições somente os homens intervinham. Era raro que uma mulher ascendesse à chefia da "zadruga" e jamais uma mulher sucedeu outra mulher no posto de "domacin".

As mulheres e especialmente a chefe do grupo feminino - a "domacica" - tinham também papéis bem definidos. A função da chefe do grupo feminino era definida à semelhança da função de "domacin" e os fundamentos de sua autoridade sobre as outras mulheres eram também econômico-religiosos.

A chefe do grupo feminino era na maioria das vezes a mulher ou a mãe do "domacin", mas isto não era obrigatório, pois ela podia perfeitamente ser uma outra mulher do grupo. Após sua designação para o papel, a "domacica" exercia sua autoridade sobre todas as mulheres e crianças da comunidade. Ela devia supervisionar o trabalho das outras mulheres, orientar as recém-casadas, integrando-as à família, apresentar as reivindicações do grupo feminino ao chefe da comunidade, controlar a cozinha, dirigir a produção e o armazenamento dos laticínios, conservas, etc. Na repartição das tarefas entre homens e mulheres e na hierarquia interna, sendo todo homem superior a cada mulher, podemos constatar que o primeiro critério de divisão do trabalho era o sexo. As pessoas ocupantes de cargos eram designadas pela coletividade e mesmo após a morte do chefe a "domacica" podia permanecer no seu posto, se ela assim o quisesse. Da mesma maneira que o conselho podia destituir o chefe, ele podia exigir do chefe que destituísse a "domacica".

Segundo Sicard:12 12 Sicard, Emile. La zadruga dans la littérature serbe 1850-1912. Paris, Ed. Opheys, 1943. p. 71-7.

"La domacica, ce second personnage de la zadruga, jouait le rôle même du chef mais d'un chef qui travaille davantage que lorsqu'il est homme. Mais même lorsqu'en fait elle remplit les fonctions de chef, le respect qu'elle porte à celui qui, en droit, est domacin n'est pas diminué. Elle surveillait le travail que ses belles filles lui faisaient. Elles les instruisait et leur enseignait tout ce qui est bien. Elle prennait soin de toutes les personnes féminines de la famille et des enfants. Elle tenoit un compte de tout ce qui était commun car il y avait mille choses qui étaient communes par exemple la laine. Et durant sa vie la domacin était le premier à tenir compte de ses avis comme elle affectait de ne les donner que dans la mesure où une femme pouvait en donner."

A exemplo do chefe da comunidade e da "domacica", os demais membros também tinham funções bem definidas. As noras executavam tarefas que eram derivadas das necessidades da comunidade e não das necessidades de suas famílias, os trabalhos domésticos eram atribuídos pela chefe do grupo feminino a uma das mulheres. Em geral, as atividades domésticas eram executadas observando-se um rodízio periódico entre as mulheres. As jovens esposas eram dispensadas das tarefas pesa-, das no primeiro ano de seu casamento. As mulheres idosas e as grávidas tinham tarefas mais leves.

Os acontecimentos mais importantes, tais como a festa do padroeiro, os batismos e os casamentos, eram celebrados coletivamente.

No casamento as jovens recebiam um dote fornecido pela comunidade. Não somente o dote era atribuição da comunidade como também a acumulação de fundos para a festa de matrimônio recaía sobre o grupo. Segundo os hábitos, a comunidade da noiva presenteava o novo casal com vestuário e outros presentes. Usualmente, a noiva recebia três pacotes, um com roupas para ela, outro com roupas para o noivo e outro com o enxoval para a casa. Às vezes, a "zadruga" da noiva oferecia um animal de presente à "zadruga" do noivo como expressão de amizade. O dote da noiva não era um simples presente, e sim ele se integrava numa estratégia bem elaborada de preservação dos bens da comunidade, visto que, após o casamento, a noiva deixava sua "zadruga" e se mudava para a "zadruga" do noivo. Tendo recebido o dote, a noiva perdia todos os seus direitos à herança na sua antiga "zadruga". Seguindo a mesma lógica, isto é, da preservação da integridade do patrimônio e da unidade do grupo, enquanto restasse um homem na "zadruga", nenhuma mulher tinha direitos sobre os bens comuns, sobretudo as terras.

As mulheres das "zadrugas" recebiam, enquanto ali habitassem, uma quantia em dinheiro, três vezes ao ano, para as despesas suplementares. Todas as mulheres recebiam a mesma quantia e habitualmente a distribuição se fazia nas grandes festas: a colheita, Natal e o dia do padroeiro da "zadruga". A comunidade supervisionava os gastos femininos, pois, segundo o folclore, "as intrigas femininas eram a razão do rompimento das comunidades". As mulheres podiam também se beneficiar de renda suplementar proveniente de uma eventual propriedade privada. Esta renda não era incluída nos cálculos da comunidade.

As crianças recebiam tarefas segundo a idade e o sexo. Igualmente, sua educação era feita em função das necessidades da comunidade e não das da família.

Os irmãos do chefe, seus filhos, seus sobrinhos e os outros homens emancipados participavam das decisões do grupo tanto de um ponto de vista moral quanto econômico. Os trabalhos eram atribuídos com eqüidade. Cada um tinha sua função precisa, uns aravam, outros faziam reformas, uma família vigiava o gado, outra se ocupava do armazenamento.

Raramente se admitia mão-de-obra temporária na "zadruga". Quando isto acontecia, não raro os trabalhadores se agregavam definitivamente à família. Nas raras vezes em que tal se fez necessário foi porque membros da "zadruga" tinham ido trabalhar fora.

A igualdade de direitos era respeitada, sobretudo quando da dissolução da comunidade e da repartição do patrimônio. Eugene Hammel pôde observar a constância no respeito aos princípios de eqüidade entre os membros do sexo masculino nas "zadrugas"13 13 Hammel, E. Alternative social structures and ritual relations in the Balkans, Engl. Cliffs, New Jersey, Prentice Hall, 1968, p. 17.

"All had rights to the original patrimony of the zadruga or to that property to which their fathers had full rights. Any new property acquired by the zadruga might, however, be divided only between males who were over the age of 15 at the time of the acquisition and in approximate proportion to their own investment of labor on it. The head of the zadruga, father or elder brother or cousin, might receive a slightly larger share in recognition of his position and responsibilities. Food or land was divided not by shares but by the head and an extra portion might be given to the pregnant women and those segments in which a member had died during the past year. Similarly if the zadruga had already expended communal funds for the dowry or marriage expenses of any member, them all unmarried persons of that generation were allowed a share of money or property in contribution toward the expenses the community would have paid if fission had not occured."

Dentro das "zadrugas" se superpunham uma estrutura executiva e uma estrutura legislativa eminentemente participativa, o que tornava a organização das comunidades agrárias radicalmente original. Este tipo de organização social era essencialmente democrático,- toda autoridade era delegada e o poder máximo ficava com o conselho. O chefe não era em realidade mais que um "executivo" das decisões do conselho. Ele era responsável pela "planificação" do trabalho, pela "execução" das tarefas diárias e pelo "controle" de tudo. Ele representava também a comunidade nas assembléias do vilarejo e perante o governo. Ele recebia os hóspedes. Entretanto, todas as decisões importantes eram amadurecidas no conselho; assim, por exemplo, o chefe não podia decidir sozinho a compra ou venda de terras. Os outros itens de igual importância, isto é, a compra de gado, as novas construções, a exclusão de um membro, eram, segundo os costumes, "ruminadas" durante longas e numerosas consultas ao conselho.

O chefe devia também, quando requisitado, arbitrar as disputas e conflitos entre "zadrugas" ou entre membros de uma "zadruga" aliada. Estas arbitragens, ainda que da competência exclusiva do chefe, eram objeto de constantes consultas ao conselho antes que um resultado pudesse ser atingido, de tal modo que se passavam anos entre a decisão de desmembramento e a dissolução efetiva de uma comunidade.

As decisões do conselho eram tomadas após o jantar. Durante a refeição, cada membro prestava contas de seu trabalho; em seguida, o chefe distribuía as tarefas do dia seguinte. Após o jantar os membros do conselho se reuniam para as grandes decisões.

A organização da "zadruga" era, então, sensivelmente distinta da família patriarcal tradicional, pois a "zadruga" se fundava sobre o princípio de igualdade dos membros do conselho e sobre um processo democrático de tomada de decisão. O chefe da "zadruga" era escolhido por eleição e, às vezes, se praticava o rodízio na chefia, e ele agia sempre como um responsável pelos interesses da comunidade. Numa grande "zadruga" da Herzegovina seu chefe se apresentava como sendo "o ministro das relações estrangeiras da comunidade", visto que ele se encarregava das compras e vendas e lhe era atribuída a tarefa de discutir com o coletor de impostos. Todas as vezes que a honestidade do chefe era colocada em questão, o conselho podia destituí-lo. O conselho era, portanto, a autoridade suprema; o chefe, seu "executivo" principal.

Na instituição da "zadruga" podemos distinguir diferentes níveis de participação democrática. Por exemplo, o poder do "domacin" era mais limitado entre os sérvios e croatas do que entre os montenegrinos. No Montenegro, o chefe não prestava contas sistematicamente ao conselho em assuntos tais como a venda dos bens, enquanto que na Sérvia, para tomar esta decisão, o chefe deveria obter o apoio da maioria dos conselheiros, e na Croácia, a unanimidade. Regra Geral, as "zadrugas" croatas eram caracterizadas por democracia interna e de participação em grau superior ao das "zadrugas" do sudoeste iugoslavo.

O lugar da mulher na estrutura de poder e sua influência nas decisões variavam segundo as regiões. Na Croácia uma mulher poderia ser eventualmente chefe da comunidade e no Montenegro as mulheres idosas chegaram a participar das assembléias como conselheiras. Na Bósnia-Herzegovina as mulheres chegaram até a votar no conselho. Na Sérvia, porém, a democracia se limitava aos homens, as mulheres nunca participavam do conselho e jamais assumiam a chefia da comunidade.

As práticas de participação e de decisões coletivas não se limitavam às comunidades. Estas práticas foram largamente difundidas dentro dos vilarejos. Por exemplo, era responsabilidade da assembléia do vilarejo cuidar dos indigentes, promover ajuda financeira aos acidentados, cultivar as terras dos enfermos, reconstruir as casas demolidas ou incendiadas. A estrutura política do vilarejo, e mais tarde da comunidade, reproduzia em escala maior o que se passava na "zadruga".

Nos vilarejos conservavam-se os mesmos hábitos de hospitalidade que eram praticados nas "zadrugas". Freqüentemente, os vilarejos acolhiam viajantes que não tinham conhecidos na região. Os membros do conselho do vilarejo os hospedavam e davam-lhes de comer e beber.

Mais recentemente, passou à alçada do conselho da comuna fazer executar as diretivas do governo central. As eleições nos vilarejos se faziam por aclamação, todos os chefes de "zadrugas" eram eleitores, mas não era necessário ser chefe para ser eleito. O presidente do conselho do vilarejo era eleito para um mandato de três a cinco anos. O conselho reunia-se ao menos uma vez por mês. Entre os membros do conselho podiam ser encontrados, geralmente, representantes das cooperativas agrícolas dos partidos políticos e das indústrias. O núcleo permanente do conselho era constituído por um presidente, um secretário e dois auxiliares. A função do presidente era essencialmente "decorativa". Cabia ao secretário e aos auxiliares executar as tarefas, embora esta não fosse regra geral, havendo variações conforme a comuna ou vilarejo. O presidente recebia os visitantes de honra, escutava as demandas dos cidadãos, realizava os casamentos, presidia as reuniões da assembléia e intermediava as relações entre o governo e o vilarejo. Em suma, o presidente, o secretário e os auxiliares eram os "executivos" do conselho do vilarejo.

A "zadruga", na sua originalidade e tendo em vista suas particularidades que a distinguiam dos outros tipos de famílias, pode ser considerada uma comunidade de bens, parentesco e vida. As diferentes formas de cooperação e de divisão do trabalho e mesmo as disputas ocasionais a respeito de instrumento de trabalho, do gado e da vida em comum estavam ligadas ao mesmo trinômio sobre o qual se apoiava a comunidade familiar. Podia-se antever a formação de uma "zadruga" por sinais, tais como a utilização em comum de um instrumento de trabalho, serviços prestados com uma certa regularidade a vizinhos.

Esta comunidade de bens, parentesco e vida foi sem dúvida preservada na memória dos povos balcânicos. Todos os esforços dos membros da "zadruga" e, sobretudo, de seu chefe eram dirigidos para a manutenção da vida comunitária, e as práticas cotidianas visavam primordialmente as necessidades comuns.

Todos os membros eram nutridos e vestidos pela "zadruga". A lã, o algodão, os alimentos eram produzidos e consumidos internamente pela comunidade. Cada "zadruga" possuía em geral um pequeno tear que as mulheres utilizavam.

As refeições eram feitas em comum e numa mesma mesa- Aqueles que trabalhavam no campo e não podiam voltar para as refeições levavam suas marmitas.

A "zadruga" pressupunha a propriedade comum, mas não podíamos distingui-la a partir do tipo de atividade econômica. A "zadruga" era uma comunidade de trabalho coletivo, onde o que importava era a preservação da vida em comum, condição de existência do grupo. Como decorrência, as "zadrugas" iugoslavas apresentaram quase sempre as mesmas características gerais, embora diferenciadas pelo tipo de atividade econômica segundo as regiões onde elas se encontravam. Mesmo quando as famílias habitavam residências isoladas numa mesma "zadruga", os rituais coletivos eram preservados, e podia-se ainda falar de vida comum, apesar dos primeiros indícios de desagregação física.

Quando a "zadruga" se formava a partir de uma família, o avô ou o pai tornava-se naturalmente seu chefe. Este tipo de "zadruga" era conhecido como "zadruga paterna" e, neste caso, a autoridade do chefe era enorme, embora, mesmo assim, a prática de consultas .existisse. Após a morte do chefe, seus filhos, irmãos e demais membros permaneciam quase sempre juntos. A partir desta nova situação, constituía-se a verdadeira "zadruga", na qual os irmãos, parentes e demais membros formavam uma coletividade de trabalho e agiam como co-proprietários. O chefe desta nova coletividade poderia ter sido indicado pelo seu antecessor e, portanto, ter sido preparado para ocupar o cargo. O sucessor não era necessariamente o primogênito. Em geral era escolhido o mais legítimo e mais respeitado pelos demais. A escolha não era nunca definitiva. O chefe podia ser substituído se a comunidade assim o quisesse. Em algumas "zadrugas" croatas a chefia era exercida por rodízios.

Pelo seu funcionamento, a "zadruga" lembrava um Estado em miniatura. O poder supremo era da alçada do conselho familiar. O Poder Executivo era delegado ao chefe da comunidade, que era designado pelo conselho. A comunidade devia respeitar o chefe e obedecê-lo. Em geral, ele possuía dois atributos: estava entre os mais idosos e era reconhecido como um dos mais capazes, sem que nenhum destes atributos fosse uma exigência, principalmente o primeiro. Por sinal, quando não se encontrava um homem à altura do cargo, uma mulher podia reivindicar o posto, ou mesmo ela podia ser escolhida pelo conselho. Estes casos, contudo, eram raros e não aconteciam a não ser que a participação democrática tivesse alcançado um alto grau.

Um dos traços distintivos destas comunidades era que os laços que os uniam não desapareciam mesmo após a desagregação da comunidade.

Em Biléca Rudine,14 14 Vucinich, W. A zadruga in Biléca Rudine. In: Byrnes, R. Communal families ... op. cit. p. 185. as famílias que se dispersaram após o desmembramento de uma "zadruga" permaneceram unidas por elos de amizade e parentesco e continuaram a cooperar entre si. Era comum a ajuda mútua no trabalho da terra, nas colheitas, para zelar pelos animais, e mesmo para outras atividades (festas, construções, casamentos, etc).

Os camponeses não distinguiam rigorosamente as suas famílias das "zadrugas". Em regiões do Montenegro e da Herzegovina onde a "zadruga" foi predominante, podia-se notar que uma família nuclear tornava-se uma "zadruga" quer por simples expansão biológica quer por alianças com outras famílias.15 15 Bogisic, V. D'une forme particulière de la famille chez les serbes et les croates. Revue de Droit Internationale et de Législation Comparée. Bruxelas, XVI: 374-422, 1884, Apud Skendt, S. Mosely on Zadruga. In: Byrnes, R. Communal families ... op. cit- p. 14. Podemos então concluir que os bens que uniam entre si os diferentes membros ou as diferentes famílias eram mais importantes que o número de participantes, visto que era precisamente o uso comum dos bens que definia o caráter coletivo e participativo da comunidade. Por estas razões, a "zadruga" demonstrou uma grande capacidade de sobrevivência às mudanças advindas com a modernização, e ela soube integrar os novos métodos de trabalho introduzidos na agricultura.

Além do mais, como eram instituições estabelecidas, as "zadrugas" puderam incorporar ou rejeitar em conjunto as mudanças levadas para o campo a partir da segunda metade do século XX.

Ás duas principais correntes etnológicas que se debruçaram sobre o estudo das "zadrugas", a escola americana, com Philippe Mosely, e a escola francesa, com Emile Sicard, são unânimes em suas conclusões: nada se decidia na Iugoslávia até os anos 40 sem o aval dos conselhos das comunidades rurais e de seus chefes. Mosely,16 16 Mosely, P. Adaptation for survival: the Varzic Zadruga. In: Slavonic and East European Studies, XXI: p. 147-73, 1943. (American Series, n.º 2.) no seu trabalho sobre a "zadruga" Varzic, ressaltou a capacidade das "zadrugas" de adaptação e mesmo de fortalecimento sob o impacto das mudanças de hábitos e costumes introduzidas por uma economia cada vez mais capitalista e pelo crescimento do individualismo.

As "zadrugas" possuíam pecularidades sobretudo nos usos e costumes. A começar pelo nome. Existiam três palavras para designar "zadruga": Kuca (casa), termo cotidiano, habitual; "zadruga", termo mais empregado para se referir à comunidade como entidade legal. O termo "zadruga" tem uma conotação jurídica que já podia ser encontrada no código civil croata em 1810. Os membros da "zadruga" também se denominavam habitualmente de grupo, bando, equipe, etc.

Uma outra característica da "zadruga" que ressaltava sua distância da família patriarcal era que cada participante tinha, em princípio, o direito de exigir sua parte na propriedade comum. Além disso, cada um era livre para deixar a "zadruga" e nesse caso levar consigo a parte dos bens comuns que lhe pertencia de direito.

A exclusão de um membro era decidida pelo conselho e era sempre revestida de um caráter de punição exemplar. Os excluídos ou fundavam novas "zadrugas" ou se juntavam a "zadrugas" já existentes.

A religião não influenciava a estrutura das comunidades, como já foi afirmado; no entanto, ela provocava algumas variações ao nível dos usos e costumes. A poligamia foi abolida na Iugoslávia em 1928, mas em algumas "zadrugas" muçulmanas o chefe tinha mais de uma mulher. A segunda mulher era concedida somente quando todos os membros da família já tivessem a sua. Em alguns casos, a primeira mulher escolhia a segunda; esta última não substituía a primeira e era admitida na família rural da mesma maneira que as demais. Quando a primeira mulher não era mais capaz de assumir suas tarefas, a segunda tomava seu lugar sem ser, necessariamente, escolhida como chefe das mulheres. Nas "zadrugas" cristãs as viúvas não podiam voltar a casar, elas continuavam simplesmente a viver na comunidade com seus filhos ou podiam retornar à "zadruga" paterna, sem os filhos, e aí então voltar a casar. Em algumas "zadrugas" cristãs, o chefe tinha o "direito da primeira noite"; em outras, os irmãos do defunto tinham "direitos" sobre a viúva.

Em vista de todas estas razões, a instituição da "zadruga" se mostrou resistente ao seu desaparecimento.

Algumas pesquisas recentes puderam atestar a tenacidade das "zadrugas". Blaga Petrovska que entre 1968 e 1969 conduziu estudos de campo em toda a Macedónia, apoiada pelas autoridades comunais, pelo clero e pelo campesinato, pôde identificar 27 comunidades domésticas do tipo "zadruga". A virtude principal dos estudos de Petrovska foi a de demonstrar a sobrevivência de instituições familiares nas suas formas tradicionais, o que torna mais pertinente o estudo da recuperação das formas de solidariedade praticadas no passado. É importante notar que, nas comunidades rurais, a eqüidade nas relações, o direito à participação e o consenso davam um sentido à vida. Seria audacioso de nossa parte afirmar que a prática autogestionária que se implantou na Iugoslávia entre 1950 e 1970 - com todas as ressalvas que se fazem a chamar esta prática de autogestão - teve suas origens na "zadruga". Entretanto, é preciso reconhecer que a autogestão recuperou modelos de solidariedade há muito tempo presentes na memória dos povos iugoslavos. A autogestão na industria surge como a negação da "zadruga" e podemos afirmar que o tipo de organização surgido durante a modernização da sociedade foi um dos elementos-chave para o desaparecimento das comunidades rurais. Em síntese, a autogestão não é a "zadruga" transformada, mas ambas têm elementos em comum.

Pesquisas recentes sobre a família iugoslava assinalam a persistência dos laços de amizade, ajuda mútua e colaboração no seio de uma mesma família e aos parentes mais próximos, tanto no campo quanto nas cidades. Estas formas de colaboração no interior da família extensiva não desapareceram, apesar das tendências à urbanização e à industrialização. Alguns autores17 17 Buric, O. The Zadruga ... op. cit. p. 128. chegam a sustentar a hipótese de que a manutenção da rede familiar desempenhou um papel importante na migração camponesa durante a modernização das sociedades.18 18 A respeito da relação entre a rede familiar e o processo de migração num contexto de Terceiro Mundo, consulte a obra de Berger, Peter. Pyramids of sacrifice. New York. Pelican Books, 1977, em especial p. 217-24.

A "zadruga" consolidou práticas de vida associativa . que não eram função do número de participantes; existiram "zadrugas" de 100 membros e "zadrugas" de cinco membros, contudo a rede de alianças e associações era sempre mais abrangente. A "zadruga", após seu surgimento na Idade Média, apoiou-se sempre sobre uma prática coletiva diretamente imbricada na cultura eslava. As leis promulgadas nada faziam além de reconhecer ou regularizar o que já existia de fato.

A existência de famílias extensivas ou nucleares não era um indicador preciso de desagregação das comunidades rurais. Ao contrário, segundo Bogjsic, não havia diferença significativa entre as famílias extensivas e as famílias nucleares no tocante à sua estrutura e ao funcionamento. Ambas representavam estágios distintos no processo de rupturas e fusões, que eram elementos básicos na transformação das "zadrugas".19 19 Bogisic, V. Regarding the Form Called Inokostina among Serbian and Croatian Village Families. Belgrado, 1884. p. 40, Apud Buric, O. ibid. p. 126.

Mesmo sabendo-se que as "zadrugas" estavam em vias de extinção, seu desmembramento não era completo e as pessoas continuavam por muito tempo utilizando coletivamente alguns bens (poços, charretes, moinhos, cemitérios, fornos, utensílios domésticos, gado, etc).

As práticas de trocas equilibradas mantiveram-se até muito recentemente; o dinheiro e as mercadorias eram intercambiados sem juros ou sobretaxas, pessoas ou mesmo grupos podiam-se deslocar para ajudar um outro grupo e assim reiteravam práticas milenares de solidariedade.

Mesmo tendo-se em conta que as comunidades são menores, o ciclo de reprodução da família mais curto e a vida urbana mais individualista, a autogestão, nos seus elementos constitutivos, é um dos melhores indícios de que a solidariedade entre os membros de um mesmo clã não se abalou. A ideologia da solidariedade grupai como forma de vida permanece inalterada nos seus aspectos mais amplos.

As "zadrugas" devem ser analisadas como processos e o seu desmembramento não deve ser entendido como a decadência absoluta dos padrões culturais sobre os quais elas se apoiavam. Tanto os desmembramentos quanto os reagrupamentos foram sempre graduais e às vezes atravessavam-se inúmeros anos durante os quais novas rupturas e fusões se produziam.

Outra comparação descolocada é a assimilação das "zadrugas" às formas de comunismo cristão primitivo. Nas "zadrugas" os direitos individuais não foram suprimidos, mas controlados pela comunidade; eles podiam, no limite, ser reivindicados. Nas "zadrugas" as pessoas ou grupos isolados podiam ter propriedade privada, embora o fundamental fosse fornecido pela comunidade, desde o vestuário até o dote de casamento. O dinheiro comum era administrado pelo chefe ou um seu delegado, a participação democrática era a regra, embora ao norte, nas regiões que pertenciam ao império austro-húngaro, esta participação tenha sido mais ampla que no sul. De modo geral, o chefe gozava de uma autoridade simbólica. A instância máxima era o conselho, o chefe o representava. Quando um dos membros da família deveria comparecer à justiça, era o chefe que ia em seu lugar.

Praticava-se comumente uma estratégia de trocas e compensações, tanto no interior da comunidade quanto nas relações com outras comunidades. As relações internas à "zadruga" eram especialmente marcadas por uma divisão do trabalho determinada por fatores diversos. 0 primeiro era de ordem sexual: as atividades reservadas aos homens eram de cuidar do gado, arar o campo, estocar as colheitas; as mulheres preparavam as refeições, olhavam as crianças, costuravam e ocasionalmente ajudavam no campo ou nas atividades de irrigação, colheita, ordenha, fabricação de laticínios; as mulheres idosas e os doentes eram dispensados do trabalho; as tarefas eram distribuídas segundo as necessidades cotidianas e sazonais do grupo.

A divisão sexual do trabalho era praticada não somente na comunidade, como também no vilarejo ou comuna. As mulheres não participavam das assembléias comunais, o que era privilégio dos homens; excepcionalmente, dependendo da região e do assunto, algumas "domacicas" tinham o direito de participar das assembléias.

As crianças eram agrupadas por classes de idade; as meninas e os meninos ficavam juntos até os cinco anos, após o que eram separados e orientados para o trabalho segundo o sexo.

Os mais idosos inspecionavam o trabalho doméstico e as atividades do vilarejo. A eles cabia preservar os cultos e as tradições e dirigir os festejos do santo padroeiro ("slava").

Nos momentos de pico algumas "zadrugas" chegavam a recrutar trabalhadores temporários, mas isso só ocorria quando não fosse possível contar com a ajuda de vizinhos.

As "zadrugas" quase chegaram à auto-suficiência, graças à elaborada divisão interna do trabalho. Em geral, o trigo, o milho, as batatas, as verduras e legumes, a carne, a manteiga, os queijos e as bebidas alcoólicas eram produzidos e consumidos pela comunidade. As roupas, as ferramentas e as construções eram também obras da comunidade.

Para evitar restrições, a "zadruga" controlava suas despesas. 0 café, por exemplo, era reservado aos visitantes; a bebida usual era o leite. Utilizava-se o mel e não o açúcar. Os produtos de luxo, como o fumo, eram comprados por indivíduos e não pela comunidade. Este controle regulava as despesas, mas não eliminava as contribuições eventuais em mão-de-obra ou dinheiro para as necessidades do vilarejo.

Não se exigiam sacrifícios supremos, nem se submetiam os membros da comunidade a grandes privações, porém a vida não era de abundância. Por isso mesmo, a manutenção da solidariedade e a integração dos novos membros se inscrevia numa estratégia complexa de sobrevivência.

Um dos elementos fundamentais na estratégia interna de preservação do grupo era a recusa sistemática do direito à herança para as mulheres, enquanto houvesse homens na "zadruga". 0 dote era a compensação pela perda do direito à herança. Quando um chefe falecia ou quando uma "zadruga" se desagregava, as mulheres solteiras poderiam reivindicar no máximo o dote. Quando havia falta de homens em uma família, parentes próximos (cunhados, sobrinhos, genros) podiam ser integrados na família e assumir a chefia do grupo. Entre as provas de dedicação à nova comunidade, o novo chefe adotava o nome de sua mulher e adotava o santo padroeiro da sua nova "zadruga".

Na vida cotidiana, as práticas ritualescas eram preservadas para consolidar o espírito de grupo. As refeições eram feitas em comum, habitava-se uma única casa (Kuca), a comida era servida num prato único (sinja) que circulava na mesa. Era comum não haver utensílios de cozinha suficientes e vários se servirem dos mesmos. Os utensílios de mesa (facas, colheres, garfos, etc.) não eram nunca suficientes, o que, segundo Vucinich, não é passível de entendimento, a não ser que admitamos uma vontade expressa de manutenção da vida comum, pois os camponeses eram hábeis artesãos e poderiam facilmente suprir esta falta de utensílios.

Além das atividades nas "zadrugas", os indivíduos assumiam tarefas no vilarejo. Como Mosely notou:20 20 Mosely, P. Adaptation for survival: the Varzic Zadruga. op. cit. p. 147.

"The coelders of the Varzic zadruga played important roles in the organized Ufe of the village. Jozo had been the eider of the Zelcin Land Association for eleven years and president of the Farmer's Union sponsored by the Croat Peasant Party. Djuro was president of the Peasant's Union, also promoted by the Peasant Party, and president of the school board. Simo was captain of the Croation Village Defense, an unarmed semi-military body likewise organized under the auspices of the Macek Party. Marko was a corporal and Antun a member of the same organization. The active leadership of a prosperous zadruga in village affairs was greatly facilitated by the division of labor within the large household. A well managed zadruga could afford to devote a share of its time to public affairs while the head of a small family was hard pushed to get his own work done. In addition a zadruga had considerable voting power in village elections, if one adds to its own members a large share of its in-laws and god-parents."

A vida nas "zadrugas" era igualmente marcada pelas festas em honra do santo padroeiro festejado sempre numa mesma data. Nesta ocasião, bem como nos casamentos, convidavam-se todos os parentes, mesmo os que habitavam as cidades. Ainda hoje, no campo, as festas são cerimônias coletivas para onde vai um grande número de pessoas. Os vizinhos que tivessem ajudado em trabalhos, tais como colheita, aragem, plantio, etc, não eram nunca esquecidos.

Entre todas as festividades, a do santo padroeiro era a mais impregnada pela solidariedade grupai. Festejar separadamente o mesmo padroeiro, no mesmo dia, era sinônimo de ruptura. O padroeiro indicava simbolicamente a mesma genealogia e também uma rede de alianças e adoções. O genro adotado se convertia ao padroeiro. Às vezes, os membros adotados podiam festejar o seu santo padroeiro precedente, no entanto, eles deveriam fazê-lo numa outra data e esta festa chamava-se "prestava". O que era verdade para um membro integrado era também verdade para uma "zadruga" incorporada por outra mais poderosa.

A "slava" - festa do santo padroeiro - era um núcleo determinante na vida da comunidade, a tal ponto que eram proibidos os casamentos entre pessoas que tivessem o mesmo padroeiro, mesmo que não pertencessem à mesma genealogia.

A "slava" já era celebrada por volta do ano 1000. Filipovic assim o sugere quando comenta que "em Ohrid, em 1018, o Duque Ivca teve seus olhos furados pelos bizantinos no dia de sua "slava".21 21 Filipovic, M- Ethnografie de la Serbie du Sud. op. cit. p. 19.

A "pré-slava", festejada à parte, tinha várias razões: os novos membros recém-adotados não abandonavam seu santo padroeiro anterior; um camponês doente adotava como "pré-slava" o santo do dia de sua cura.

Em geral, os chefes religiosos encontravam-se presentes nas festividades. A "slava" do vilarejo não começava sem a presença dos padres e dos chefes das comunidades.

O ritual encerrava-se pela matança de um animal.

A "slava" era assim um momento privilegiado dos rituais de solidariedade, pois ela era a festa do padroeiro, não de um indivíduo e sim de um grupo, e tinha como função manifesta ratificar e consolidar os laços comunitários e as relações com os grupos aliados.

Através dos séculos as relações entre grupos camponeses organizados em "zadruga" eram sobretudo caracterizadas por um sistema de trocas - mulheres, serviços, trabalho - e de alianças - casamentos, "slavas" e compadrio.

Devemos ressaltar a importância e a especificidade do compadrio na sociedade iugoslava. A diferença essencial entre o compadrio ("Kumstvo") praticado entre os eslavos e aquele dos povos latinos é que no primeiro caso as relações eram estabelecidas entre grupos (todos os membros de um grupo tornavam-se compadres de todos os membros de outro grupo), enquanto que no segundo caso as relações se dão entre indivíduos. Se A era padrinho do filho de B, todos os membros da "zadruga" de A eram compadres dos membros da "zadruga" de B.

O compadrio era um bem simbólico da "zadruga" que os camponeses manuseavam como coisa. Um grupo que tivesse o mesmo nome, festejasse a mesma "slava" e tivesse a mesma propriedade tinha os mesmos deveres e direitos de "Kumstvo". O compadrio era um bem, pois ele se situava entre as riquezas materiais (terra, gado, mantimentos) que podiam ser divididas e as riquezas espirituais ("slava") que não diminuíam quando do desmembramento. Quando uma "zadruga" se desagregava, os "Kumstvo" eram incluídos na divisão dos bens, a menos que esta divisão já tivesse sido feita. Um compadrio podia ser trocado, dado ou vendido com outro bem material qualquer. As trocas e doações eram comuns; as vendas, mais raras. O conjunto indica que o compadrio também estava imbricado num sistema de compensações e equilíbrios entre grupos.

Entre os sérvios, segundo Halpern,22 22 Halpern, J. M. Social and Cultural... op. cit. p. 330. o compadre se beneficiava de um grande respeito. Em geral, quando habitava um outro vilarejo e vinha visitar seu afilhado, ele era recebido com sinais de estima.

O compadrio podia ser transmitido na linhagem paterna e a principal função do compadre era escolher o nome da criança. Nas famílias cristãs o compadre de batismo era também compadre de crisma. Uma certa hierarquia de religiões era seguida no que tange ao compadrio. Uma "zadruga" cigana podia solicitar "Kumstvo" a uma "zadruga" muçulmana e esta, por sua vez, a uma "zadruga" cristã, mas sempre neste sentido.

O compadrio era acertado no batismo e no casamento, segundo a religião. Na maioria dos casos, a "zadruga" que apresentava um padrinho de batismo também providenciava um para o casamento. A "zadruga" que batiza também casa, no que se refere ao compadrio.23 23 Erlich, Vera. Family in transition. Princeton, Princeton University Press, 1966.

A ética dominante proibia o casamento entre compadres. Duas "zadrugas" que estabeleciam relações de "Kumstvo" não podiam celebrar casamento entre seus membros antes de decorridas três gerações. Quando alguém se referia a seus compadres, queria dizer o número de ligações de compadrio entre sua "zadruga" e outras. A reciprocidade do compadrio também era bastante rara. Em geral, as famílias escolhidas para compadres possuíam uma situação sócio-econômica melhor, embora azares, falências, rupturas não implicassem o rompimento do compadrio.

O convite para o compadrio obedecia a um ritual bem definido. O chefe da família onde uma criança deveria ser batizada visitava o chefe de outra família, levando um bolo típico e uma garrafa de bebida, e cerimoniosamente sugeria que as famílias estabelecessem relações de compadrio.

Uma vez compadres, a cada visita o padrinho era acolhido com todas as honras da casa. Os membros da "zadruga" do afilhado iam acolher o padrinho na porta de entrada da propriedade, as mulheres se ajoelhavam e abaixavam a cabeça, uma das noras lavava os pés do hóspede; na mesa, ele tinha um lugar de honra, era o primeiro a ser servido e a refeição não começava antes que ele a iniciasse e não se deixava a mesa antes dele.

A oferenda de "Kumstvo" era quase sempre um sinal de reconhecimento por serviços prestados. No caso de doença, a criança era levada para a estrada e a primeira pessoa que a encontrasse era convidada para apadrinhá-la.

O compadrio fazia parte das trocas, serviços e ajudas mútuas. Estas relações constituíam importantes mecanismos para a estabilidade das relações entre as famílias. A oferta de compadrio significava, às vezes, o perdão a um crime. Junto com a "slava" e o dote, o "Kumstvo" constituía uma parte do cimento cultural que solidificava a vida familiar.

Em suma, a "zadruga" possuía como elementos orgânicos o conselho e o chefe. Abaixo deles, o trabalho era dividido segundo sexo e idade, em função das necessidades da comunidade.

A estrutura de decisão era claramente democrática e a de execução respeitava uma divisão equitativa do trabalho. No que tange ao funcionamento externo, as famílias estabeleciam estratégias de cumplicidades e alianças que consolidavam os aspectos coletivos do funcionamento interno. Os vilarejos reproduziam em escala maior as práticas comunitárias. As festas, os batismos, os casamentos, o primeiro corte de cabelo e, sobretudo, a "slava" ratificavam a presença e a solidez dos laços que uniam os grupos. Toda estratégia de compadrio se inscrevia na mesma lógica de solidariedade e de preservação da comunidade.

Comparando-se o modelo de autogestão das empresas iugoslavas24 24 Cf. Venosa, Roberto. "L'Autogestion en Yougoslavia: 1950-1970. Une tentative de Réévaluation du Processus de l'institutionalisation d'une typologie de l'organization". Dissertação de doutoramento defendida junto à Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, França, out. 1979. cap. 2. e as características de funcionamento das "zadrugas", podemos observar algumas similaridades claras entre o modelo formal da autogestão e a organização da "zadruga"- Reconhecê-los equivale a desmistificar o credo na autogestão, como o futuro inexorável, como um estágio superior. Seria, em última instância, reconhecer que, se a autogestão existe bem ou mal na Iugoslávia, é devido ao fato de que ela era uma forma de organização possível. No limite estaríamos também sugerindo a impossibilidade de intelectuais com origem social em frações dominadas de classes dominantes "advinharem" qual a melhor organização para a classe operária.

4. A MEMÓRIA COLETIVA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE: A GEOGRAFIA DE UM PERCURSO

A esta altura seria recomendável que delineássemos a tradição sociológica à qual nos filiamos. Ainda que esteja além de nossa pretensão fazer uma exposição sistemática e detalhada das metaciências ou paradigmas dominantes nos estudos das organizações complexas, acreditamos que seja importante apresentar os elementos constitutivos da visão de mundo que adotamos.25 25 Carlos Osmar Bertero, num artigo intitulado "Tipologias e teoria organizacional", procura analisar a importância do estudo de casos e da análise comparativa para o estudo das organizações complexas. Cf. Revista de Administração de Empresas. Rio de Janeiro, FGV, 21 (1): 31-8, jan./mar. 1981.

Indicando as leituras que fizemos, podemos clarear a maneira pela qual selecionamos os acontecimentos e como os religamos de modo a estabelecer o que esperamos ser uma explicação possível, sem jamais ambicionar uma totalização.

Em primeiro lugar, procuramos compreender a sociedade iugoslava e a escolha da autogestão como um fato social,27 27 As noções de conjunto de conhecimentos institucionalizados bu conjunto de conhecimentos disponíveis foram tomadas no sentido que Schutz as construiu. Cf. Schutz, A. Collected Papers. La Haye, Martinus Nijhoff, 1976. 3 v. Schutz pertenceu a urna tradição que tenta estabelecer uma ponte entre a fenomenologia e a teoria weberiana de ação social. Segundo esta tradição, os fundamentos da ação social devem ser procurados no conhecimento institucionalizado encontrado pelo agente social na sua vida cotidiana. isto é, a sociedade como uma realidade objetiva, produzida por agentes sociais a partir de um conjunto de conhecimentos institucionalizados.26 26 A noção de foto social foi utilizada neste trabalho segundo a concepção durkheimeana. Cf. Durkheim, E. Les Règles de la méthode sociologique. Paris. PUF, 1977. Para Dürkheim os fatos sociais devem ser vistos como objetos.

Procuramos a explicação da existência e da legitimidade de autogestão entre os iugoslavos, na reserva de conhecimentos que podem ser utilizados.28 28 A noção de reserva de conhecimentos que podemos utilizar cotidianamente foi formulada essencialmente por Peter Berger. As obras de Beiger que consultamos para este trabalho foram as seguintes: Beiger, Peter & Luckmann, T. The Social construction ofreality. London, Penguin Books, 1976; Beiger, Peter et alli. The Homeless mind. New York, Vintage Books, 1974; Beiger, Peter. Les Mysticatéurs du progrès. Paris, PUF, 1978.

O conjunto de conhecimentos institucionalizados ou enraizados foi percebido como sendo estruturas estruturantes ou como uma forma de memória coletiva,29 29 Para o conceito de "memória coletiva", seguimos, sobretudo, Maurice Halbwachs. Entre as obras de Halb wachs utilizadas neste trabalho, podemos citar: La Mémoire collective. Paris, PUF, 1968; Les Cadres sociaux de la mémoire. Paris, Mouton, 1976; La Classe ouvière et ses niveaux de vie. Paris, Gordon Breach, 1970. o que nos permite afirmar que além de ser um produto humano e uma realidade objetiva, as formas sociais são, também, realidades subjetivas.30 30 A partir do trinômio: sociedade com produto humano, sociedade como realidade objetiva, sociedade como realidade subjetiva, Peter Berger elaborou toda sua produção intelectual, a qual, na tradição Weber-Schutz da sociologia do conhecimento, pretende estabelecer uma análise de construção social da realidade.

Não levar em consideração esta tradição ou estimá-la negligenciável equivale, em nossa opinião, a cair nas armadilhas ideológicas onde as profecias mítico-religiosas anunciam o fim dos conflitos sociais.

Em segundo lugar, fica subentendida neste trabalho uma concepção do papel do estudioso das organizações: ele deve transformar sua obra num espelho onde a identidade social de seu objeto possa ser projetada.

Um terceiro aspecto merecedor de destaque é o da autonomia do campo simbólico. O debate sobre a determinação em primeira ou última instância pela base, infra-estrutura, ou econômico, já percorreu um longo trajeto e mereceu atenção profunda e detalhada em vários textos. Entrar neste debate nos levaria muito além dos limites que fixamos. Fica implícito, entretanto, que aceitamos que o campo ideológico possui uma lógica própria e que ele não é um simples reflexo da sociedade (visão interna) nem um olhar sobre esta sociedade (visão externa), mas ela mesma, uma vez que não existe sociedade sem representação do social.

Em quarto lugar, percebemos a dificuldade atual de falar da memória de um grupo, mesmo que alegóricamente. À primeira vista, uma memória não pode existir fora de um corpo de um indivíduo e não pode durar mais tempo que a existência deste corpo. Se isto fosse verdade, as experiências históricas seriam intransmissíveis e os referenciais sociais não seriam construídos, reconstruídos e nem mesmo conservados, sequer em parte, pelas memórias individuais.

A aprendizagem social se faz, em parte, entre gerações, e nesta aprendizagem os mitos, as crenças e as lógicas sociais são transmitidas e tornam-se elementos constitutivos das matrizes de significados que ajudam a definir a identidade de grupos e indivíduos.

A organização social e as formas de dominação praticadas ao longo da história dos povos iugoslavos têm suas "ideológicas":31 31 Cf. Auge, M. Theorie des pouvoirs et idéologie. Paris, Hermann, 1975.

"L'idéo-logique est une notion réservée plus précisément à une systématique virtuelle des représentations du pouvoir. L'idéo-logique est syntaxique en ce qu'elle définit dans une série paradigmatique, les choix d'un terme et les règles d'accord."

O campo da dominação, não podendo ser reduzido ao campo de exploração econômica, nos permite concluir que, no caso iugoslavo, se a propriedade privada enquanto categoria jurídico-econômica está em grande parte desaparecendo após a coletivização, a questão da dominação permanece em aberto.

Torna-se evidente que o presente da Iugoslávia foi fabricado. Durante séculos as "ideológicas" funcionaram bem. Um dia elas foram colocadas em cheque pelo socialismo triunfante, que, se impondo, trouxe novas "ideológicas" e novos órgãos de difusão (partido, comuna, sindicato, conselhos de trabalhadores, etc). Mas, sobretudo com o avanço socialista, se desmoronaram lentamente as estruturas da Iugoslávia agrária. O nacionalismo, o projeto de desenvolvimento de um país atravessando a fase de uma industrialização sem concessões para com as estruturas antigas, tudo isto afetou pesadamente as crenças vitais e o conteúdo destas estruturas sociais e criou novos canais ideológicos de vulto, ultrapassando largamente o quadro da propriedade agrícola.

Este trabalho pretendeu ser um ensaio sobre a memória e a história das organizações ou simplesmente sobre a história. Nosso objetivo foi tentar efetuar uma análise sobre o impasse criado pelos "proprietários do marxismo", que, conservando a plástica do discurso, o esvaziam de seu conteúdo crítico, escondem a dominação passada, apagam o universo da memória, do mito e das crenças, e mistificam o presente, oferecendo uma nova profecia em que a autogestão adquire o estatuto de ritual da salvação.

"Les croyances sociales, quelle que soit leur origine, ont un double caractère, ce sont des traditions ou des souvenirs collectifs, mais ce sont aussi des idées ou des conventions qui résultent de la connaissance du présent."32 32 Halbwachs, M. Les Cadres sociaux de la mémoire, Paris, Mouton, 1976. p. 294-5.

O conhecimento do presente, que um grupo opõe a seu passado, não é seu presente, mas o passado mais recente de outros grupos aos quais ele tenta se identificar. Puramente convencional, neste sentido, o pensamento social seria puramente lógico; ele só admitiria o que lhe conviesse na situação atual; ele conseguiria apagar da memória de todos os membros de um grupo as lembranças que os prendem ao passado, mesmo as mais insignificantes, e que lhes permitiriam estar ao mesmo tempo em parte na sociedade de ontem e em parte na de hoje. Puramente tradicional, ele não deixaria penetrar a menor idéia ou fato que estivesse em desacordo com as crenças antigas. Assim, tanto num como noutro caso, a sociedade não admitiria nenhum compromisso entre a consciência das condições presentes e o acervo das crenças tradicionais; ela se fundaria inteiramente numa ou noutro.33 33 Id. ibid. p. 296.

Este duplo caráter constitui uma garantia que, enquanto se prossegue um trabalho de transformação social, algumas das instituições e mesmo as partes fundamentais da estrutura social permanecem inalteradas ou ao menos assim parecem. Uma sociedade não passa de uma organização para outra em virtude de um esforço consciente de seus membros, que construiriam novas instituições em vista das vantagens reais que eles obteriam. Certamente, mais tarde, eles "enxergarão" estas vantagens por motivos que podemos chamar racionais, ou ao menos racionais aos seus olhos, mas isto acontecerá somente após terem eles experimentado e compreendido os benefícios destas instituições. Enquanto eles não chegarem a este ponto, as novas instituições não podem inspirar respeito, a não ser que se lhes conceda o mesmo prestígio atribuído às instituições antigas. Com efeito, no caso iugoslavo, a organização da comuna desempenhou um papel fundamental na estruturação da autogestão. "La commune a été ainsi le creuset où se sont élaborer les nouveaux rapports sociaux."34 34 Cf. Meister, A. Où va l'autogestion Yougoslave? Paris, Anthropos, 1970. p. 18-33.

A habilidade de Tito e do Partido talvez tenha sido a de transformar em escolha o que era em realidade uma imposição social.

O que confirma mais uma vez a frase de Marx no 18 Brumário de Luís Bonaparte:

"Les hommes font leur propre histoire, mais ils ne la font pas arbitrairement, dans les conditions choisies par eux, mais dans des conditions directement données et héritées du passé. La tradition de toutes les générations mortes pèse d'un poids très lourd sur le cerveau des vivants. Et même quand ils semblent occupés à se transformer eux et les choses, à créer quelque chose de tout à fait nouveau, c'est précisément à ces époques de crises révolutionnaires qu'ils évoquent craintivement les esprits du passé, qu'ils leur empruntent leurs noms, leurs mots d'ordre, leurs costumes, pour apparaître sur la nouvelle scène de l'histoire sous ce déguisement respectable et avec ce language emprunté."

Assim, se a sociedade é um produto humano, os mortos governam o mundo.

Em última análise, nos propusemos a apresentar elementos que permitam enfocar a autogestão como uma construção social. Jamais pretendemos responder à questão: A Iugoslávia é ou não autogestionária? Nem mesmo saber se: a autogestão é ou não a organização da classe operária? Ensaiamos, sobretudo, uma outra apresentacão para um problema ainda não suficientemente abordado: como a organização da sociedade iugoslava pode adquirir uma textura de democracia industrial? Este problema se inscreve no espaço teórico mais amplo dos processos de institucionalização de tipologias de organizações.

  • 6 Mosely, P. The distribution of the zadruga within Southeastern Europe. The Joshua Star Memorial. New York, v. V; Jewish social studies, 1953, p. 221-2. Apud Halpern, J. M. Social and cultural change in a Serbian village. Connecticutt, HRAF, 1956, p. 293.
  • 7 Filipovic, M. Ethnografie de la Serbie du sud. HRAF, 1937. p. 11.
  • 10 Sicard, E. La zadruga sud-slave dans l'évolution du groupe domestique. Paris, Ed. Ophrys, 1943.
  • 12 Sicard, Emile. La zadruga dans la littérature serbe 1850-1912. Paris, Ed. Opheys, 1943. p. 71-7.
  • 13 Hammel, E. Alternative social structures and ritual relations in the Balkans, Engl. Cliffs, New Jersey, Prentice Hall, 1968, p. 17.
  • 23 Erlich, Vera. Family in transition. Princeton, Princeton University Press, 1966.
  • 28 A noção de reserva de conhecimentos que podemos utilizar cotidianamente foi formulada essencialmente por Peter Berger. As obras de Beiger que consultamos para este trabalho foram as seguintes: Beiger, Peter & Luckmann, T. The Social construction ofreality. London, Penguin Books, 1976; Beiger, Peter et alli. The Homeless mind. New York, Vintage Books, 1974;
  • Beiger, Peter. Les Mysticatéurs du progrès. Paris, PUF, 1978.
  • 29 Para o conceito de "memória coletiva", seguimos, sobretudo, Maurice Halbwachs. Entre as obras de Halb wachs utilizadas neste trabalho, podemos citar: La Mémoire collective. Paris, PUF, 1968; Les Cadres sociaux de la mémoire. Paris, Mouton, 1976;
  • La Classe ouvière et ses niveaux de vie. Paris, Gordon Breach, 1970.
  • 32 Halbwachs, M. Les Cadres sociaux de la mémoire, Paris, Mouton, 1976. p. 294-5.
  • *
    Trabalho apresentado na reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisas em Ciências Sociais, no grupo de trabalho "Organizações e Sociedade", Friburgo, 21 a 23 de outubro de 1981.
  • 1
    A ênfase na análise do cotidiano das organizações advém da corrente fenomenológica que se instalou na sociologia e que
    autodenominou sociologia do conhecimento. Os pilares desta tradição são Max Weber, Alfred Schutz, Max Scheller e mais recentemente Peter Berger e Thomas Luckmann. Os escritos de Schutz influenciaram também a etnometodologia, em particular Harold Garilnkel, Aaron Qcourel, Erving Goffman.
  • 2
    Cf. Venosa, Roberto. A evolução da participação nas organizações autogeridas iugoslavas.
    Revista de Administração de Empresas. Rio de Janeiro, FGV.
    21(47-54), jan./mar. 1981.
  • 3
    Cf. Venosa, Roberto. Organização e a panacéia participativa ou participação e a panacéia organizacional.
    Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, FGV,
    8 (4): 80-102, out./dez. 1974.
  • 4
    As considerações que fazemos aqui estão fortemente influenciadas por: Berger, Peter. Sociology and freedom. In:
    Facing up to modernity, p. 11-26.
  • 5
    Venosa, Roberto. O modismo da autogestão. In:
    Folha de São Paulo, 18.05.80, p. 34.
  • 6
    Mosely, P. The distribution of the zadruga within Southeastern Europe.
    The Joshua Star Memorial. New York, v. V;
    Jewish social studies, 1953, p. 221-2. Apud Halpern, J. M.
    Social and cultural change in a Serbian village. Connecticutt, HRAF, 1956, p. 293.
  • 7
    Filipovic, M.
    Ethnografie de la Serbie du sud. HRAF, 1937. p. 11.
  • 8
    Filipovic, M. Zadruga. In: Byrnes, R.
    Communal families in the Balkans: the zadruga. N. Dame University Press, 1976.
  • 9
    Halpern, J. M. Social and cultural... op. cit. p. 312.
  • 10
    Sicard, E.
    La zadruga sud-slave dans l'évolution du groupe domestique. Paris, Ed. Ophrys, 1943.
  • 11
    Buric, Olivera. The zadruga and the contemporary family in Yugoslavia. In: Byrnes, R. Communal families ... op. cit. p. 129.
  • 12
    Sicard, Emile.
    La zadruga dans la littérature serbe 1850-1912. Paris, Ed. Opheys, 1943. p. 71-7.
  • 13
    Hammel, E.
    Alternative social structures and ritual relations in the Balkans, Engl. Cliffs, New Jersey, Prentice Hall, 1968, p. 17.
  • 14
    Vucinich, W. A zadruga in Biléca Rudine. In: Byrnes, R. Communal families ... op. cit. p. 185.
  • 15
    Bogisic, V. D'une forme particulière de la famille chez les serbes et les croates.
    Revue de Droit Internationale et de Législation Comparée. Bruxelas,
    XVI: 374-422, 1884, Apud Skendt, S. Mosely on Zadruga. In: Byrnes, R. Communal families ... op. cit- p. 14.
  • 16
    Mosely, P. Adaptation for survival: the Varzic Zadruga. In:
    Slavonic and East European Studies, XXI: p. 147-73, 1943. (American Series, n.º 2.)
  • 17
    Buric, O. The Zadruga ... op. cit. p. 128.
  • 18
    A respeito da relação entre a rede familiar e o processo de migração num contexto de Terceiro Mundo, consulte a obra de Berger, Peter.
    Pyramids of sacrifice. New York. Pelican Books, 1977, em especial p. 217-24.
  • 19
    Bogisic, V.
    Regarding the Form Called Inokostina among Serbian and Croatian Village Families. Belgrado, 1884. p. 40, Apud Buric, O. ibid. p. 126.
  • 20
    Mosely, P. Adaptation for survival: the Varzic Zadruga. op. cit. p. 147.
  • 21
    Filipovic, M-
    Ethnografie de la Serbie du Sud. op. cit. p. 19.
  • 22
    Halpern, J. M. Social and Cultural... op. cit. p. 330.
  • 23
    Erlich, Vera.
    Family in transition. Princeton, Princeton University Press, 1966.
  • 24
    Cf. Venosa, Roberto. "L'Autogestion en Yougoslavia: 1950-1970. Une tentative de Réévaluation du Processus de l'institutionalisation d'une typologie de l'organization". Dissertação de doutoramento defendida junto à Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, França, out. 1979. cap. 2.
  • 25
    Carlos Osmar Bertero, num artigo intitulado "Tipologias e teoria organizacional", procura analisar a importância do estudo de casos e da análise comparativa para o estudo das organizações complexas. Cf.
    Revista de Administração de Empresas. Rio de Janeiro, FGV,
    21 (1): 31-8, jan./mar. 1981.
  • 26
    A noção de foto social foi utilizada neste trabalho segundo a concepção durkheimeana. Cf. Durkheim, E.
    Les Règles de la méthode sociologique. Paris. PUF, 1977. Para Dürkheim os fatos sociais devem ser vistos como objetos.
  • 27
    As noções de conjunto de conhecimentos institucionalizados bu conjunto de conhecimentos disponíveis foram tomadas no sentido que Schutz as construiu. Cf. Schutz, A.
    Collected Papers. La Haye, Martinus Nijhoff, 1976. 3 v. Schutz pertenceu a urna tradição que tenta estabelecer uma ponte entre a fenomenologia e a teoria weberiana de ação social. Segundo esta tradição, os fundamentos da ação social devem ser procurados no conhecimento institucionalizado encontrado pelo agente social na sua vida cotidiana.
  • 28
    A noção de reserva de conhecimentos que podemos utilizar cotidianamente foi formulada essencialmente por Peter Berger. As obras de Beiger que consultamos para este trabalho foram as seguintes: Beiger, Peter & Luckmann, T.
    The Social construction ofreality. London, Penguin Books, 1976; Beiger, Peter et alli.
    The Homeless mind. New York, Vintage Books, 1974; Beiger, Peter.
    Les Mysticatéurs du progrès. Paris, PUF, 1978.
  • 29
    Para o conceito de "memória coletiva", seguimos, sobretudo, Maurice Halbwachs. Entre as obras de Halb wachs utilizadas neste trabalho, podemos citar:
    La Mémoire collective. Paris, PUF, 1968;
    Les Cadres sociaux de la mémoire. Paris, Mouton, 1976;
    La Classe ouvière et ses niveaux de vie. Paris, Gordon Breach, 1970.
  • 30
    A partir do trinômio: sociedade com produto humano, sociedade como realidade objetiva, sociedade como realidade subjetiva, Peter Berger elaborou toda sua produção intelectual, a qual, na tradição Weber-Schutz da sociologia do conhecimento, pretende estabelecer uma análise de construção social da realidade.
  • 31
    Cf. Auge, M.
    Theorie des pouvoirs et idéologie. Paris, Hermann, 1975.
  • 32
    Halbwachs, M.
    Les Cadres sociaux de la mémoire, Paris, Mouton, 1976. p. 294-5.
  • 33
    Id. ibid. p. 296.
  • 34
    Cf. Meister, A.
    Où va l'autogestion Yougoslave? Paris, Anthropos, 1970. p. 18-33.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1982
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