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Os deuses malditos

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Os deuses malditos

Por Luchino Visconti. São Paulo, Civilização Brasileira, 1970. 229 p. il.

A fita de Luchino Visconti transcende o simbólico e atinge o cerne de uma temática universal - a destruição do indivíduo e de uma sociedade. Nessa análise, o diretor joga com uma problemática que se situa entre a ficção e a realidade.

As escolhas do nazismo e da Alemanha aparecem ao diretor como "verdadeíramente exemplar sob o ponto de vista de uma situação histórica", pois, apesar de o fenômeno facista ser geral, é na Germânia que êle toma aspectos de tragédia e se torna exemplar para todos. E é como símbolo que surgem personagens e situações: "todo aquele que viu o filme teve a impressão de que êle era mais do que um filme histórico; e fizeram comentários neste sentido, como uma observação positiva; ou seja, como se o filme, que podia correr o perigo de acabar sendo apenas um filme histórico, não o fosse, e isto não porque os personagens sio simbolizados, mas porque provavelmente o sentido do filme é qualquer coisa mais do que a representação de uma fase histórica da Europa. De qualquer maneira, eu nunca pretendi fazer um filme histórico".

Dentro desse contexto, a fita se desenvolve, retratando, em dois planos, duas situações que se interligam: a decadência da família Essenbach (que simboliza a família Krupp) e a ascensão do nazismo. A fita centra-se, objetivamente, na tragédia familiar, enquanto o nazismo aparece como elemento simbólico e opressivo - encarnado na pessoa de Aschenbach. O único momento em que o enredo foge deste plano pessoal para o histórico é quando é retratada a noite dos longos punhais, isto é o extermínio de Roehm e dos SS, ato de aliança entre Hitler e os generais do exército alemão (29 de junho de 1934).

Porém, é a simbologia que domina a fita. Inicialmente, ela se delineia na apresentação dos personagens e nos conflitos latentes que surgem durante a tradicional reunião familiar dos Essenbach; o anúncio (verídico) do incêndio do Reichstag (27-2-1933) e a morte do patriarca Joackin von Essenbach (imaginário) são acontecimentos que aparecem como predestinação: a eliminação dos homens livres da Alemanha e a subida definitiva do nazismo. Visconti critica, assim, a noção dos liberais e comunistas, de que o nazismo era uma farsa e que não iria agüentar-se no poder por muito tempo; ou de que Hitler poderia servir de instrumento político para algumas tendências burguesas. O que afirma é a desaparição, neste dia, da República de Weimar, pensamento repisado pelo nazista Aschenbach, quando diz que "antes que as chamas do Reichstag estejam extintas, os homens da velha Alemanha estarão, nesta noite, reduzidos a cinzas".

E é a partir desta apresentação que Visconti desenvolve os fatores negativos do nazismo, quando o faz aparecer como uma força poderosa e onipotente, surgindo implacável contra todos que se rebelem contra a nova ordem. Não sendo uma história do Terceiro Reich, mas, o estudo da decadência de uma família, a fita mostra o movimento como negação dos valores: êle foi "feito para dar um aspecto quase escandaloso - no sentido justo - à instauração do nazismo, porque o filme acaba quando o nazismo começa... e eu pretendi exatamente que êle, o nazismo, começasse a medrar num terreno o mais horrível possível, o mais nefasto, para justificar os seus nove anos de vida e tudo aquilo que êle desencadeou depois em todo o mundo". "O nazismo foi negativo em tudo, mas realizando um filme sobre o nazismo torna-se necessário tomar um desses lados negativos, não se pode tratar de todos. Eu queria tratar de um pequeno núcleo, e escolhi uma família; e, nesta família, pretendi localizar os instintos mais baixos, os instintos menos nobre. Trata-se de um exemplo, não significa que o nazismo esteja todo ali."

A negação de valores torna-se, assim, a temática fundamental, transcendendo a todos e tudo. A destruição da família Essenbach - os pontos altos são a cena do incesto e o casamento nazista de Friedrich Bruckman e Sofia von Essenbach - é resultado desta avalanche negativa, quando a catalização de ódios é total, atingindo mesmo aqueles que aparentemente aparecem como contrários e diferentes. Guenther Essenbach, que durante dois terços do filme é o "único personagem de mentalidade sã", acaba sendo possuído pelo ódio. Mas, para Visconti, o fenômeno é coletivo; daí a nazista Aschenbach dizer a Guenther que "você possui uma coisa extraordinária que é este ódio novo que traz dentro de si, mas é um luxo que você o utilize apenas para satisfazer uma vingança pessoal. Nós sabemos como industrializá-lo. Venha conosco e você será um de nós, parte de nós, será um nazista".

O individual aqui é, na verdade, o retrato do geral. Família e nazismo, simbólico e real significam para Luchino Visconti uma realidade maior. "É minha convicção que, entre todas as interpretações do facismo, a mais justa, mais ainda do que as interpretações de caráter freudiano e psicanalítico, é aquela que considera o nazismo como a última fase do capitalismo no mundo, como o último resultado da luta de classe chegada às suas últimas conseqüências, à sua extrema solução, que é aquela de uma monstruosidíade como foi o nazismo ou o facismo e que, naturalmente, não pode antecipar senão uma evolução no sentido do socialismo".

EDGARD CARONE

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1971
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