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GÊNERO-CORPO-SEXUALIDADE NO ESPACIALIZAR: PRODUZINDO CORPOS-EM-CAMPO NA PESQUISA

Género-cuerpo-sexualidad en la espacialización: Produciendo cuerpos-en-campo en la investigación

RESUMO

Este artigo objetiva desvelar a espacialidade no trabalho de pesquisa a partir das relações de corpo, gênero e sexualidade entre sujeitos pesquisados e pesquisador a partir de um estudo de cunho teórico-empírico de base etnográfica. Tomando como ponto de partida teorizações sobre espacialidade e materialidade, desenvolvemos conceitualmente a noção de corpos-em-campo como um possível caminho para a produção de conhecimentos não sobre, mas com específicas vidas. Tal movimento permite ainda compreender o corpo a partir das práticas de organização e romper com processos de silenciamento e hierarquização de específicos corpos que configuram lacunas teóricas e empíricas na pesquisa, na medida em que propõe visibilizar e problematizar também o corpo pesquisador na produção do espaço. Nos Estudos Organizacionais, esse movimento torna-se relevante para uma agenda ética e política de pesquisa preocupada com a construção de diálogos e reconhecimentos com diferentes corpos, gêneros e sexualidades que permitem ampliar possibilidades de praticar organização.

Palavras-chave:
espaço; espacialidade; corpo; reflexividade; práticas.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo develar la espacialidad en el trabajo de investigación a partir de las relaciones de cuerpo, género y sexualidad entre investigados e investigador. Realizamos para esto un estudio etnográfico de carácter teórico-empírico. Tomando como punto de partida las teorías sobre la espacialidad y la materialidad, desarrollamos conceptualmente la noción de cuerpos-en-campo como una posible vía para la producción de conocimiento no sobre sino con vidas específicas. Dicho movimiento permite también entender el cuerpo desde las prácticas de organización y romper con procesos de silenciamiento y jerarquización de cuerpos específicos que configuran brechas teóricas y empíricas en la investigación, en la medida en que propone visibilizar y problematizar también el cuerpo investigador en la producción del espacio. En los estudios organizacionales, este movimiento adquiere relevancia para una agenda de investigación ética y política preocupada por la construcción de diálogos y reconocimientos con diferentes cuerpos, géneros y sexualidades que permitan ampliar las posibilidades de practicar la organización.

Palabras clave:
espacio; espacialidad; cuerpo; reflexividad; prácticas.

ABSTRACT

This article aims to examine spatiality in research work based on the body, gender and sexuality relations established between research subjects and the researcher in an ethnographic theoretical-empirical study. Taking as our starting point theories about spatiality and materiality, we have developed conceptually the notion of bodies-in-the-field as a possible way to produce knowledge not about, but with specific individual lives. This approach also allows us to understand the body based on organizational practices and to break with processes that silence and hierarchically situate specific bodies and produce theoretical and empirical gaps in research, insofar as it aims to give visibility to and problematize the researcher body in the production of space. In Organizational Studies, this approach is relevant to an ethical and political research agenda concerned with fostering dialogue with and recognition of different bodies, genders, and sexualities, thus expanding the possibilities of organizational practice.

Keywords:
space; spatiality; body; reflexivity; practices.

INTRODUÇÃO

Os esforços de apreensão das práticas de produção espacial na pesquisa organizacional implicam, em alguma medida, situar o espacializar como prática material e, por isso mesmo, corporificada (Beyes & Steyaert, 2012Beyes, T., & Steyaert, C. (2012). Spacing organization: Non-representational theory and performing organizational space. Organization, 19(1), 45-61. doi: 10.1177/1350508411401946
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). Compreender o corpo a partir das práticas de organização ainda representa um campo incipiente nos Estudos Organizacionais (Rezende, Oliveira, & Adorno, 2018Rezende, L., Oliveira, J. S. de, & Adorno, E. C. L. M. (2018). Compreendendo o corpo a partir das práticas de organização: Etnografia de uma organização artesanal. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 17(1), 35-53. doi: 10.21529/RECADM.2018002
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), motivo pelo qual buscamos, a partir das reflexões que produzimos durante o desenvolvimento de um estudo teórico-empírico, dialogar com esse campo. Tencionamos contribuir com esse diálogo, assim, ao nos propormos a problematizar a produção do corpo pesquisador na experiência espacial do campo empírico de pesquisa. Nesse processo, damos ênfase a experiências espaciais organizadas que contrapõem a heteronormatividade e a norma cisgênero/a como únicas práticas que conferem inteligibilidade às relações correspondentes entre corpo, gênero e sexualidade (Bento, 2017Bento, B. (2017). O que é transexualidade. São Paulo: Editora Brasiliense.; Souza & Parker, 2020Souza, E. M. D., & Parker, M. (2020). Practices of freedom and the disruption of binary genders: Thinking with trans. Organization, 29(1), 67-82. doi: 10.1177/1350508420935602
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).

A hierarquização de corpos nas organizações demarca cotidianamente lugares privilegiados com corpos cis, normais, neutros; ao mesmo tempo, produz constantemente (não)lugares marginalizados com corpos trans, anormais, abjetos e tokenizados. A pesquisa organizacional não se desenvolve de modo imune a esses processos, na medida em que estar em campo configura-se como experiência incorporada que produz conhecimento encarnado (Gherardi & Perrota, 2014Gherardi, S., & Perrotta, M. (2014). Between the hand and the head. Qualitative Research in Organizations and Management: An International Journal, 9(2), 135-150. doi: 10.1108/QROM-06-2012-1079
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); a interpretação e julgamento do pesquisador relacionam-se profundamente com a capacidade de percepção de seu corpo (Bispo & Gherardi, 2019Bispo, M. D. S., & Gherardi, S. (2019). Flesh-and-blood knowing interpreting qualitative data through embodied practice-based research. RAUSP Management Journal, 54(4), 371-383. doi: 10.1108/RAUSP-04-2019-0066
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). Não obstante, o lugar do corpo que assume a autoria da pesquisa segue naturalizado pelo caminho do mito do pesquisador neutro, representado por uma compreensão da norma de quem observa como sendo sujeito masculino, branco, cis e heterossexual (Fonseca, 2007Fonseca, C. (2007). O anonimato e o texto antropológico: Dilemas éticos e políticos da etnografia 'em casa'. Teoria e Cultura, 2(1), 39-53. Retrieved from https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/12109
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; Grossi, 1992Grossi, M. P. (1992). Na busca do outro encontra-se a si mesmo. In: M. P. Grossi (Org.), Trabalho de campo & subjetividade (pp. 7-16), Florianópolis, SC: Editora Claudia Lago.; Oliveira, 2018Oliveira, J. S. D. (2018). As influências raciais na construção do campo etnográfico: Um estudo multi situado no contexto Brasil-Canadá. Organizações & Sociedade, 25(86), 511-531. doi: 10.1590/1984-9250868
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, 2019Oliveira, J. S. (2019). Etnografia como um processo de (re)educação de subjetividades: Feminismos negros e a aprendizagem etnográfica com Neuza Cavedon. Farol-Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 6(17), 810-835. doi: 10.25113/farol.v6i17.5762
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).

Compreendemos, assim, que o corpo pesquisador segue invisibilizado. Nesse caminho, minimiza-se a presença de corpos nas discussões acerca da espacialidade e materialidade da pesquisa, mesmo não restando dúvidas de que esse corpo pesquisador em campo não é neutro, pois expressa sexualidade, gênero e é racializado (Oliveira, 2018Oliveira, J. S. D. (2018). As influências raciais na construção do campo etnográfico: Um estudo multi situado no contexto Brasil-Canadá. Organizações & Sociedade, 25(86), 511-531. doi: 10.1590/1984-9250868
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, 2019Oliveira, J. S. (2019). Etnografia como um processo de (re)educação de subjetividades: Feminismos negros e a aprendizagem etnográfica com Neuza Cavedon. Farol-Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 6(17), 810-835. doi: 10.25113/farol.v6i17.5762
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). Isso nos faz perceber que essa negação da sua própria presença em campo escamoteia a prática de ocupação exclusiva de um lugar de privilégio, como pesquisador, que fala com autoridade sobre a vida dos outros (Clifford, 2008Clifford, J. (2008). In J. R. S. Gonçalves (Org.), A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX (pp. 17-59). Rio de Janeiro, RJ: Editora UFRJ.) e cujo reconhecimento mantém-se restrito a determinados corpos, gêneros e sexualidades reconhecidos pela norma. Com efeito, entendemos que essa prática materializa o direito de reconhecimento apenas a corpos que não escapam da norma e, ao reproduzir e reforçar a norma, cria uma espécie de barreira ao reconhecimento para aqueles corpos apagados ou rebaixados pela norma (Butler, 2018Butler, J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, RJ: Editora José Olympio.), revelando uma dinâmica hierárquica e excludente nas relações entre corpos-em-campo.

Além disso, a naturalização do corpo pesquisador em torno de corpos, gêneros e sexualidades específicas também produz negligência quanto às relações entre diferentes corpos (não)hegemônicos presentes em campo de pesquisa. Trata-se de uma prática que organiza silenciamentos das diferentes relações e posições sociais entre pesquisadores e pesquisados. Por meio dessa ação política da imperceptibilidade de corpos específicos, relações tecidas no campo, por exemplo, entre pessoas cis/trans, brancas/não brancas, heterossexuais/não heterossexuais habitando o espaço de pesquisa, continuam sem ser reconhecidas em seus próprios termos, com seus próprios corpos, gêneros e sexualidades (não)hegemônicos (Smith, Higgins, Kokkinidis, & Parker, 2018Smith, W., Higgins, M., Kokkinidis, G., & Parker, M. (2018). Becoming invisible: The ethics and politics of imperceptibility. Culture and Organization, 24(1), 54-73. doi: 10.1080/14759551.2015.1110584
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). Essas relações, ao não configurarem o campo do aparecimento regulado por determinados entendimentos sobre o que é ciência, verdade, pesquisa, constituem não lugares na espacialidade em campo.

No exercício reflexivo que se materializa neste artigo, tomamos como objetivo desvelar a espacialidade no trabalho de campo etnográfico a partir das relações de corpo, gênero e sexualidade entre sujeitos pesquisados e pesquisadores. Assumimos, portanto, uma visão praxeológica e performativa do espacializar, entendendo-o como prática dinâmica e relacional de produção espacial baseada nas interações entre humanos e não humanos que participam de práticas organizativas (Vasquez, 2013Vásquez, C. (2013). 8 Spacing Organization. Organization and organizing: Materiality, agency and discourse, 127-149.Newbury Park, CA: Routledge). Entendemos, assim, que as espacialidades, maneiras de fazer/praticar o espaço, manifestam-se a partir da perspectiva dos sujeitos de maneira situada em contextos sociais nos quais modos de interação e relacionamento social organizam o mundo vivido (Certeau, 1998Certeau, M. De. (1998). A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes.), ou seja, movimentos que não se materializam sem corpo. Dessa forma, na intenção de lidar com o problema teórico aqui apresentado, que permeia uma importante agenda ética e política na pesquisa, e que implica romper com processos que configuram lacunas teóricas e empíricas na pesquisa, buscamos problematizar a espacialidade do campo de pesquisa a partir do encontro entre o pesquisador cis e seus/suas participantes de pesquisa travestis e trans.

As reflexões aqui discutidas originaram-se do desenvolvimento de uma pesquisa que, a princípio, não contava com o recorte teórico específico deste artigo, em que o primeiro autor esteve em campo junto a uma organização da sociedade civil da região sudeste do Brasil. Tal organização compõe o primeiro centro de referência do Espírito Santo para população de travestis e mulheres trans, consideradas a população que mais vive situações de vulnerabilidade entre todos aqueles componentes da comunidade LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer e questionadores, intersexuais, assexuais ou aliados e outros indivíduos de minorias sexuais e de gênero), uma vez que buscam possibilidades de vida que falham quanto às práticas regulatórias que produzem identidades coerentes e verdades sobre normas de gênero e, por isso, estão expostas a um risco mais elevado de objetificação, assédio, patologização e violência do que aqueles com corpos tidos por normais (Butler, 2018Butler, J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, RJ: Editora José Olympio.). Para isso, foram resgatados os dados etnográficos produzidos durante a participação do pesquisador como voluntário durante um projeto específico da organização, compondo um corpus que foi revisitado reflexivamente pelos dois autores deste artigo, que resultou desse diálogo.

A partir desse caminho percorrido, entendemos que esses processos de silenciamento e hierarquização que organizam a presença ausente de determinados corpos em campo implicam riscos de estigmatizar, objetificar e reificar entendimentos sobre o outro. Numa agenda ética e política, propomos, neste trabalho, discutir a visibilização do corpo-pesquisador e dos corpos-em-campo como um possível caminho para a produção de conhecimentos não sobre, mas com específicas vidas. Compreendemos, assim, o campo como produzido espacialmente nas relações entre corpos que interagem material e simbolicamente. Nesse sentido, a prática de espacializar o campo nos auxilia a situar o corpo não como instrumento, mas agente de pesquisa.

O ESPACIALIZAR COMO PRÁTICA MATERIAL E CORPORIFICADA

Nesta seção, articulamos os entendimentos teóricos que suportam nossa compreensão sobre a prática do espacializar como material e corporificada, compreensão essa que embasa nossas discussões sobre a produção de corpos-em-campo. Nosso ponto de partida é uma abordagem micropolítica das práticas, que tem seus fundamentos nas teorizações de Certeau (1998)Certeau, M. De. (1998). A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes., para quem o espaço é produto do modo como é habitado e efeito das operações que orientam, circunstanciam, temporalizam e põem em funcionamento os elementos móveis de sua constituição, fornecendo inteligibilidade ao mundo vivido (Certeau, 1998)Certeau, M. De. (1998). A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes.. Essas operações são as chamadas práticas, maneiras de fazer dos sujeitos sociais produzidas histórica, social e temporalmente, cujo caráter processual e cotidiano raramente forma fronteiras bem-delimitadas. As práticas organizam espaços em teias formadas por vivências sociais produzidas pelo caminhar dos sujeitos sociais que, com seus corpos, iluminam suas maneiras de fazer que, ciclicamente, moldam-se pelas trajetórias que alteram, inventam e praticam os espaços (Certeau, 1998)Certeau, M. De. (1998). A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes..

O estudo do espaço pela via das práticas permite apreender a vida organizada de maneira situada social e culturalmente, a partir das experiências compartilhadas, delineando e materializando relações sociais, interações, capacidades, forças precognitivas, movimentos corporais, intensidades afetivas com o encontro (Beyes & Steyaert, 2012Beyes, T., & Steyaert, C. (2012). Spacing organization: Non-representational theory and performing organizational space. Organization, 19(1), 45-61. doi: 10.1177/1350508411401946
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). Assim, com essas informações que localizam o processo de organização espacial e implicam (re)pensar o espaço, como aberto e múltiplo, praticado e do dia a dia, situamos o envolvimento deste trabalho com o devir espacial e com as atividades que as pessoas fazem juntas, coletiva e socialmente, nos encontros de produção de pesquisa etnográfica. Em outras palavras, situamos o lugar de onde e como percebemos o que acontece durante a produção de pesquisa no encontro socialmente organizado com outras pessoas, coisas e como os múltiplos espaços de pesquisa são socialmente organizados, corporificados e produtos de sua própria organização. É a partir dessas bases que tencionamos problematizar a experiência espacial do trabalho de campo, engendrado por relações sociais organizadas e corporificadas que constituem o mundo etnográfico praticado.

Com efeito, inscrevemos nossas preocupações nesse panorama conceitual em que a apreensão das práticas de produção espacial na pesquisa organizacional implica situar o espacializar - representado textualmente em sua forma verbal de modo a enfatizar a dinâmica processual do fenômeno - como prática material e, por isso mesmo, performativa, múltipla e corporificada (Beyes & Steyaert, 2012Beyes, T., & Steyaert, C. (2012). Spacing organization: Non-representational theory and performing organizational space. Organization, 19(1), 45-61. doi: 10.1177/1350508411401946
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). Esses esforços nos colocam em diálogo com estudos engajados em perturbar suposições recorrentes na teoria organizacional que se baseiam na lógica dualista objeto/sujeito, natureza/ciência, corpo/mente, masculino/feminino (Dale, 2000Dale, K. (2000). Anatomising embodiment and organisation theory, Palgrave, New York.) e em superar a pouca atenção dada às dimensões materiais e sociais na produção de espaços organizacionais (Fantinel & Davel, 2019Fantinel, L., & Davel, E. P. B. (2019). Learning from sociability-intensive organizations: An ethnographic study in a coffee organization. BAR-Brazilian Administration Review, 16(4), 1-20. doi: 10.1590/1807-7692bar2019180142
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; Marrewijk & Yanow, 2010Marrewijk, A. Van, & Yanow, D. (2010). Organizational spaces: Rematerializing the workaday world. Northampton, UK: Edward Elgar Publishing.; Weinfurtner & Seidl, 2019Weinfurtner, T., & Seidl, D. (2019). Towards a spatial perspective: An integrative review of research on organisational space. Scandinavian Journal of Management, 35(2), 101009. doi: 10.1016/j.scaman.2018.02.003
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).

Explorando essa vertente, alguns estudos, recorrendo à relevância do corpo em ação, em diferentes contextos de produções espaciais, onde tanto os corpos presentes como as relações entre corpos praticantes do espaço, mostram como o espaço vivido é significativo na prática e pode produzir contribuições conceituais sobre as maneiras pelas quais os membros da organização configuram e reconfiguram os espaços de trabalho durante a realização das suas atividades profissionais (Best & Hindmarsh, 2019Best, K., & Hindmarsh, J. (2019). Embodied spatial practices and everyday organization: The work of tour guides and their audiences. Human Relations, 72(2), 248-271. doi: 10.1177/0018726718769712
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; Munro & Jordan, 2013Munro, I., & Jordan, S. (2013). ‘Living Space’ at the Edinburgh Festival Fringe: Spatial tactics and the politics of smooth space. Human Relations, 66(11), 1497-1525. doi: 10.1177/0018726713480411
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). Ao tecer análises dessa dinâmica espacial, com leituras visuais de gestos e movimentações corporais e lugares usados como recursos para os participantes avaliarem como devem se mover no espaço durante os encontros com seus clientes, públicos, reforçam a centralidade dos corpos dos participantes em interação para a experiência em tais contextos. Com efeito, os autores, ao não se ocuparem com o espaço de maneira limitada à arquitetura, conseguiram interrogar, por meio das práticas espaciais incorporadas, sentidos e significados emergentes de arranjos espaciais, bem como de corpos e objetos, um processo erguido por meio das relações estabelecidas entre aqueles presentes na experiência espacial.

As articulações trazidas aqui possibilitam recolocar o corpo em ação no espaço social e compreender as multiplicidades espaciais produzidas pelos praticantes; por isso, os espaços sociais são também espaços corporais (Dosse, 2004Dosse, F. (2004). História e ciências sociais. Bauru; SP: Edusc.). Para Certeau (1998)Certeau, M. De. (1998). A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes., o corpo é uma produção social pelo qual os espaços se constituem. Nesse sentido, argumentamos que falar sobre práticas é falar sobre corpo. Esse entendimento nos permite dizer que a organização se constitui de maneira espacializada e que qualquer ato de organização é um ato de produção de espaço para a ação humana (Dale & Burrell, 2007Dale, K., & Burrell, G. (2007). The spaces of organisation and the organisation of space: Power, identity and materiality at work. Leicester, UK.Macmillan International Higher Education.; Hernes, 2004Hernes, T. (2004). The spatial construction of organization (Vol. 12). Amsterdam: John Benjamins Publishing.). Trata-se da presença performativa do espacializar que descreve uma postura ontológica segundo a qual a realidade é fluida e se transforma cotidianamente, onde o movimento ganha centralidade, estando sempre presente no espaço habitado. Mais que isso, aliás: trata-se de prática que se constitui de “corpo presente” na organização espacial, questionando-se como os corpos “fazem o que fazem” e “o que esse fazer faz” (Gherardi, 2009Gherardi, S. (2009). Introduction: The critical power of the practice lens. Management learning, 40(2), 115-128. doi: 10.1177/1350507608101225
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).

Para além dos contextos específicos de realização de pesquisas empíricas, os estudos citados chamam nossa atenção para outras tantas práticas por meio das quais as partes organizam seus corpos em conjunto umas com as outras de maneira a estabelecer a dinâmica do espaço organizacional. Nesse processo de reflexão, optamos por dar um passo atrás e discutir não um contexto empírico específico, em que um de nós esteve inserido para a produção de uma etnografia, mas nos utilizarmos dessa experiência para discutir a própria constituição do campo na pesquisa organizacional, quando diferentes relações entre “corpos-em-campo” podem desvelar dinâmicas de produção da experiência espacial. Entre essas dinâmicas, optamos por enfatizar práticas de produção de diferenças e desigualdades nos espaços, com especial atenção à dimensão de gênero, como será explicado no tópico a seguir.

ESPACIALIZANDO CORPOS GENERIFICADOS NO FAZER ORGANIZACIONAL

No desenvolvimento do trabalho etnográfico que serviu de base para as presentes reflexões, tínhamos como objetivo discutir a produção do espaço em um contexto organizacional específico, contexto esse em que, no fluxo do campo (Cavedon, 2014Cavedon, N. R. (2014). Método etnográfico: Da etnografia clássica às pesquisas contemporâneas. In E. M. de Souza (Ed.), Metodologias e analíticas qualitativas em pesquisa organizacional: Uma abordagem teórico-conceitual (pp 65-90). Espírito Santo, ES: Editora Ufes.), revelaram-se dimensões não previstas inicialmente na pesquisa, como será discutido oportunamente neste texto. Entendemos tais dimensões que localizam social e historicamente corpos, gêneros e sexualidades e problematizam a heteronormatividade como lógica subjacente ao que é naturalizado na produção espacial, como insuficientes na literatura hegemônica sobre espaço organizacional. Assim, pouco se discute que esses corpos que espacializam e são espacializados não são neutros: ocupam lugares e não lugares por questões de gênero e sexualidade, assim como de raça (Rezende et al., 2018Rezende, L., Oliveira, J. S. de, & Adorno, E. C. L. M. (2018). Compreendendo o corpo a partir das práticas de organização: Etnografia de uma organização artesanal. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 17(1), 35-53. doi: 10.21529/RECADM.2018002
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; Tyler & Cohen, 2010Tyler, M., & Cohen, L. (2010). Spaces that matter: Gender performativity and organizational space. Organization Studies, 31(2), 175-198. doi: 10.1177/0170840609357381
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). Buscamos, dessa forma, transpor limites para obter compreensões envolvendo a racionalidade situada e inteligibilidades próprias às relações correspondentes entre corpo, gênero e sexualidade (Bento, 2017Bento, B. (2017). O que é transexualidade. São Paulo: Editora Brasiliense.; Souza & Parker, 2020Souza, E. M. D., & Parker, M. (2020). Practices of freedom and the disruption of binary genders: Thinking with trans. Organization, 29(1), 67-82. doi: 10.1177/1350508420935602
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).

Nos Estudos Organizacionais, esse movimento torna-se relevante na medida em que gênero, sexualidade e raça são categorias sociais que se constituem como prática material e simbólica de composição das relações sociais no cotidiano das organizações (Oliveira, 2018Oliveira, J. S. D. (2018). As influências raciais na construção do campo etnográfico: Um estudo multi situado no contexto Brasil-Canadá. Organizações & Sociedade, 25(86), 511-531. doi: 10.1590/1984-9250868
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), situação essa que se torna ainda mais agravante quando se travam relações em campo com pessoas que expressam gêneros e sexualidades que escapam das normas (Oliveira, 2020Oliveira, M. R. G. (2020). Nem ao centro, nem à margem! Corpos que escapam às normas de raça e de gênero. Salvador, BA, Saberes Trans, Ed. Devires.).

As teorizações sobre espacialidades de pesquisa, portanto, deixam lacunas: primeiro, ao desconsiderar corpo/gênero/sexualidade na produção espacial, onde o corpo pesquisador segue invisibilizado; segundo, ao não problematizar a heteronormatividade como lógica subjacente ao que é naturalizado na produção espacial. Essa limitação pode ser explicada pela já mapeada perda do poder crítico das lentes da prática, por produções científicas que desconsideram que a relacionalidade entre o mundo social e a materialidade com diferentes modalidades de ação possuem um caráter político, pois a atuação dos sujeitos sociais articula-se com as lógicas fornecidas pelas circunstâncias que lhes são exteriores com efeito em reprodução da racionalidade situada com os padrões normativos ou subversão pelas novas produções (Gherardi, 2009Gherardi, S. (2009). Introduction: The critical power of the practice lens. Management learning, 40(2), 115-128. doi: 10.1177/1350507608101225
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; Oliveira, 2018Oliveira, J. S. D. (2018). As influências raciais na construção do campo etnográfico: Um estudo multi situado no contexto Brasil-Canadá. Organizações & Sociedade, 25(86), 511-531. doi: 10.1590/1984-9250868
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, 2021).

Com essas limitações, não é difícil concordar com Thanem (2011)Thanem, T. (2011). Embodying transgender in studies of gender, work and organization. In E. Jeanes, D. Knights and P. Yancey Martins (Eds.), Handbook of Gender, Work and Organization (pp. 191-204). Oxford, UK: Wiley quando o autor adverte estudiosos organizacionais para que não se esqueçam de que o corpo atua nos processos diante de padrões sociais normativos hegemônicos. Tampouco com Rezende et al. (2018)Rezende, L., Oliveira, J. S. de, & Adorno, E. C. L. M. (2018). Compreendendo o corpo a partir das práticas de organização: Etnografia de uma organização artesanal. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 17(1), 35-53. doi: 10.21529/RECADM.2018002
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, quando as pesquisadoras afirmam que compreender o corpo a partir das práticas de organização ainda representa um campo incipiente nos Estudos Organizacionais, motivo pelo qual buscamos, a partir das reflexões que produzimos durante o desenvolvimento de um estudo teórico-empírico, dialogar com esse campo, a fim de pensar experiências organizadas que contrapõem a heteronormatividade e a norma cisgênero/a como únicas práticas que conferem inteligibilidade às relações correspondentes entre corpo, gênero e sexualidade (Bento, 2017Bento, B. (2017). O que é transexualidade. São Paulo: Editora Brasiliense.; Souza & Parker, 2020Souza, E. M. D., & Parker, M. (2020). Practices of freedom and the disruption of binary genders: Thinking with trans. Organization, 29(1), 67-82. doi: 10.1177/1350508420935602
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).

Importante ressaltar, aqui, que compreendemos a heteronormatividade como um conjunto de disposições (discursos, valores, práticas) por meio das quais a heterossexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade natural e legítima de expressão (Warner, 1993Warner, M. (1993). Fear of a queer planet: Queer politics and social theory (Vol. 6). Minneapolis, USA: University of Minnesota Press.). Trata-se de um arsenal que regula não apenas a sexualidade, mas também o gênero. As disposições heteronormativas voltam-se a naturalizar, impor, sancionar, promover e legitimar uma única sequência sexo-gênero-sexualidade: a centrada na heterossexualidade e rigorosamente regulada pelas normas de gênero (Butler & Trouble, 1990Butler, J., & Trouble, G. (1990). Feminism and the subversion of identity. Gender Trouble, 3, 1-25.), as quais, fundamentadas na ideologia do dimorfismo sexual, agem como estruturadoras de relações sociais.

Já acerca da cisgeneridade, destacamos que diferentes ativistas trans e movimentos transfeministas já argumentaram que a norma cisgênero/a é uma das matrizes normativas das práticas culturais, sociais e políticas que produzem efeitos de expectativas e universalização da experiência humana (Leal, 2018Leal, D. T. B. (2018). Performatividade transgênera: Equações poéticas de reconhecimento recíproco na recepção teatral (Doctoral dissertation, Universidade de São Paulo).; Nascimento, 2021Nascimento, L. (2021). Transfeminismo. São Paulo: Editora Jandaíra.; Simakawa, 2015Simakawa, V. V. (2015). Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: Uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia.). A noção de uma norma cisgênero /a, proposta pela pesquisadora Julia Serano (2016)Serano, J. (2016). Whipping girl: A transsexual woman on sexism and the scapegoating of femininity. Berkeley, USA: Seal Press (CA)., materializa-se como um sistema de opressão exercitado a todo momento que força a generificação do mundo vivido, ou seja, a todos se identificarem e serem facilmente reconhecíveis pelo binário masculino/feminino, e que se organiza tendo como presunção a suposição cis, permitindo que o privilégio cis se prolifere, ainda que de modo invisível, pois naturalizado (Serano, 2016Serano, J. (2016). Whipping girl: A transsexual woman on sexism and the scapegoating of femininity. Berkeley, USA: Seal Press (CA).).

Isso posto, buscamos atender e reforçar o convite a pensar o corpo como matéria (Breton, 2002Breton, D. Le. (2002). La sociología del cuerpo (Col. Claves). Buenos Aires, Argentina: Nueva Visión.; Shilling, 2003)Shilling, C. (2003). The body and social theory. Los Angeles, USA: Sage., uma vez que, apesar de determinados corpos cuja existência não consta em específicas representações, é inegável sua existência como realidade material (Preciado, 2020Preciado, P. B. (2020). Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia. Rio de Janeiro, RJ: Editora Schwarcz-Companhia das Letras.). Por exemplo, corpos travestis não constam representados como profissionais administradores, líderes de organizações e, mesmo quando realizam tais atividades, são frequentemente invisibilizados por fornecedores, bancos, clientes etc. Durante a experiência de campo, o primeiro autor coletou um relato da líder da organização pesquisada nesse sentido:

as pessoas não acreditam que eu, uma travesti, conduzo os projetos aqui na Gold, realizo trabalho de contabilidade, finanças, negocio com o banco, sou recursos humanos da Associação, a Gold não tem um contator, administrador na figura de homem, nem de uma pessoa cis, sou eu, uma travesti! Elas não aceitam que uma travesti ocupe esse lugar.

Dada tal realidade material, nosso argumento é de que compreender o espacializar implica reconhecê-lo em sua perspectiva processual, material e corporificada, o que pressupõe situar tal prática em suas imbricações com fenômenos inscritos nos corpos, como o gênero e a sexualidade, que, apesar de serem o enfoque deste texto, certamente não se restringem a essas duas dimensões.

Nesse sentido, tais dimensões já foram evidenciadas empiricamente como agentes na produção espacial, uma vez que o conhecimento corporificado acerca da própria sexualidade nos funcionários de uma organização constitui parte integrante da maneira como os espaços de trabalho são vivenciados e negociados (Riach & Wilson, 2014Riach, K., & Wilson, F. (2014). Bodyspace at the pub: Sexual orientations and organizational space. Organization, 21(3), 329-345. doi: 10.1177/1350508413519767
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). Na medida em que os espaços se produzem no processo de experiência entre sujeitos (como clientes e funcionários, por exemplo), os modos de interação, intenções e efeitos confundem-se, misturam-se e podem revelar tensões relacionadas à sexualidade e outras orientações particulares que afetam as dinâmicas de ocupação dos espaços (Riach & Wilson, 2014Riach, K., & Wilson, F. (2014). Bodyspace at the pub: Sexual orientations and organizational space. Organization, 21(3), 329-345. doi: 10.1177/1350508413519767
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).

Ainda, cabe destacar que a produção espacial de gênero é permeada por relações naturalizadas, segregadoras e/ou de exclusão experimentadas por determinados corpos nas organizações. Essas relações não se dão apenas no plano simbólico, mas marcam sua presença no campo material; um exemplo é a constituição de banheiros nas organizações, naturalizada, na maior parte das vezes, na convenção de separação binária masculino/feminino. A organização espacial, nesse caso, apresenta-se como se pessoas não cisgênero (aquelas que se não se identificam com o sexo biológico atribuído e determinado no nascimento, ou que preferem não ter gênero atribuído) simplesmente não existissem. Esse exemplo evidencia de que forma os arranjos espaciais orientam separações e exclusões de gênero e revela os padrões de nossa organização repetitiva cotidiana do corpo através do espaço e permite questionar tanto sobre a forma como nos relacionamos por meio de categorias de gênero social e historicamente ordenadas quanto sobre como o espaço é parte integrante dessa organização (Skoglund & Holt, 2020Skoglund, A., & Holt, R. (2020). Spatially organizing future genders: An artistic intervention in the creation of a hir-toilet. Human Relations 74(7), 1007-1032. doi: 10.1177/0018726719899728
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).

A compreensão da prática do espacializar de corpos sexualizados e generificados no fazer organizacional vem nos ajudando a produzir importantes insights no processo de investigação das distintas relações vividas nas pesquisas organizacionais, o que situa a pesquisa a partir de um ponto de vista crítico em relação a abordagens mais ortodoxas, moldadas por pressupostos de racionalismo e cognitivismo nos Estudos Organizacionais. Por meio desse poder crítico, no qual a relacionalidade entre o mundo social e a materialidade pode ser investigada, podemos expor diferenças e desigualdades em como essas experiências espaciais são experimentadas por diferentes corpos, gêneros e sexualidades em campo de pesquisa.

Assim, defendemos uma análise espacial que, diferentemente de silenciar o padrão espacial hegemônico cis heteronormativo, tido como neutro e certo, percorre outro caminho: primeiro, atuando no sentido de visibilizar, desvelar e compreender o corpo pesquisador como elemento de constituição desse modo de produção espacial cis do campo de pesquisa. Em seguida, dando ênfase a práticas de produção espacial que contrapõem a heteronormatividade e a norma cisgênero/a como únicas práticas que conferem inteligibilidade às relações correspondentes entre corpo, gênero e sexualidade na pesquisa organizacional, num movimento em que são evidenciadas diferentes relações materiais entre corpos-em-campo.

Nesse percurso, foram fundamentais as reflexões produzidas a partir de experiências de campo durante a realização de uma pesquisa etnográfica, em que o primeiro autor deste texto atuou junto a uma organização composta por sujeitos produtores de práticas espaciais empenhadas em romper com as violências espaciais de gênero e sexualidade. No entanto, apesar de se tratar de discussões originadas de uma etnografia, não gostaríamos de cercear o diálogo que tecemos aqui à produção do campo etnográfico, por entendermos que as preocupações tratadas aqui não se circunscrevem ao fazer etnográfico. Por isso, destacamos que as reflexões que elaboramos nos levam a pensar sobre a produção do campo de pesquisa de maneira mais ampla, entendendo-o como produzido espacialmente nas relações entre corpos que interagem material e simbolicamente. Tecemos, portanto, articulações a partir da prática do espacializar o campo, um movimento que nos auxilia a situar o corpo não como um instrumento, mas agente de pesquisa.

ESPACIALIZANDO CORPOS-EM-CAMPO NO FAZER ETNOGRÁFICO: REFLEXÕES A PARTIR DE UMA PESQUISA EMPÍRICA

O fazer etnográfico permeia um tipo de produção de pesquisa que pretende provocar uma reconfiguração das próprias narrativas hegemônicas, com o objetivo de “fazer/desfazer a oposição entre eu e o outro, construir/desconstruir a dicotomia exótico-familiar”, que tanto contribuem para a perpetuação dessas hierarquizações (Fonseca, 2007Fonseca, C. (2007). O anonimato e o texto antropológico: Dilemas éticos e políticos da etnografia 'em casa'. Teoria e Cultura, 2(1), 39-53. Retrieved from https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/12109
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, p. 49). Isso não é possível negando as diferenças e assimetrias no encontro com os outros, mas sim no exercício reflexivo do reconhecimento das diferenças e no estudo das maneiras complexas com que essas diferenças se entrecruzam (Abu-Lughod & Lutz, 1990Abu-Lughod, L., & Lutz, C. (1990). Language and the politics of emotion. Cambridge, UK: Cambridge University Press.). O que nos faz pensar que a representação de “homem artificial”, universal, branco, masculino, disciplinado está para os estudos sobre organizações e gestão (Gatens, 1996Gatens, M. (1996). Imaginary bodies: Ethics, power and corporeality. United Kingdom: Psychology Press.; Souza, Costa, & Pereira, 2015Souza, E. M. D., Costa, A. D. S. M. D., & Pereira, S. J. N. (2015). A organização (in) corporada: Ontologia organizacional, poder e corpo em evidência. Cadernos EBAPE.BR, 13(4), 727-742. doi: 10.1590/1679-395118624
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) assim como a busca pela neutralidade do pesquisador no desenvolvimento do trabalho em campo está para os métodos etnográficos.

Foi com essa preocupação em mente que fizemos uso dos encontros etnográficos promovidos pelo primeiro autor deste texto em uma organização da sociedade civil localizada no sudeste brasileiro, denominada Grupo Orgulho Liberdade e Diversidade (GOLD). A associação, conduzida por uma travesti, assume em sua missão a promoção e defesa dos Direitos Humanos. Embora a pesquisa ainda se encontre em andamento, para este texto foi destacado um período específico de imersão em campo, composta por encontros que ocorreram durante a mobilização de um projeto chamado “Aconchego”, ocorrido entre o último trimestre de 2019 e o primeiro de 2020, no qual o pesquisador em campo habitou aquele espaço na condição de cidadão voluntário e pesquisador. Entre as atividades, o projeto teve como missão fornecer um espaço de acolhimento à população trans em situação de vulnerabilidade, onde essas pessoas pudessem simplesmente habitar aquele espaço com segurança e conforto para passar as tardes, acessar internet, estudar etc.

Fisicamente, o espaço do projeto foi concebido com uma sala com sofás, almofadas, tapetes e poltronas coloridas, com uma bandeira do movimento de orgulho trans, uma estante de livros com o acervo pensado para valorização, reconhecimento e respeito com suas identidades trans e travestis e próprias expressões, e um segundo ambiente, mais reservado, com uma mesa, três cadeiras, livros, destinado à realização de encontros entre a população atendida e profissionais participantes do projeto, necessariamente envolvidos com ativismo LGBTQIA+ e com a causa travesti e trans, no caso, uma psicóloga não binária branca e uma assistente social negra. O projeto visava ao atendimento das mais diversas demandas, como obtenção de informações sobre o processo de retificação de nome e gênero e demais direitos necessários ao acesso à cidadania, testagem de doenças sexualmente transmissíveis, realização de oficinas educacionais e grupos de apoio, atendimento aos familiares, até fornecimento de cestas básicas e distribuição de roupas doadas, em situações de maior vulnerabilidade.

Por meio dos encontros na GOLD, foi possível ao pesquisador em campo reconhecer similaridades com os outros corpos-em-campo, desestabilizando coerências falseadas culturalmente, pelas quais se acredita serem pessoas cis e trans algo diferentes. Além disso, foi possível ter acesso às práticas corporais mobilizadas para expressão ou ocultação trans (frequentemente nomeando sua identidade travesti, por exemplo, durante as reuniões emergem falas do tipo “Vem aqui, travesti! Quem vai decidir é a travesti!”, via maneira de falar rompendo com palavras masculinas, insistindo em flexionar gênero, “essa corpa não me define”, em substituição à palavra corpo, ou “bom dia a todes”, em substituição a todos, todas, numa lógica de invenção de palavras livres de gênero binário, além de outros usos do corpo, com roupas e assessórios masculinos e femininos apropriados de modo livre em relação à sequência sexo-gênero-sexualidade, mulher trans com barba, homem trans com maquiagem, pessoa não binária feminina, masculina) e reconhecer-se como um sujeito histórico que, sendo homem homossexual afeminado, desde criança também desenvolveu seus modos de expressar/disfarçar/ocultar comportamentos e padrões lidos socialmente como femininos.

Nesse movimento de buscar o outro, o pesquisador encontrou, por vezes, a si mesmo (Grossi, 1992Grossi, M. P. (1992). Na busca do outro encontra-se a si mesmo. In: M. P. Grossi (Org.), Trabalho de campo & subjetividade (pp. 7-16), Florianópolis, SC: Editora Claudia Lago.). Por outro lado, ao mesmo tempo, ainda que fosse possível reconhecer familiaridades entre os corpos-em-campo, certos estranhamentos eram perceptíveis já no primeiro encontro com a coordenadora travesti do projeto social, reforçando que “o sentimento de ser estrangeiro não começa à beira d’água mas à flor da pele” (Geertz, 1999Geertz, C. (1999). Os usos da diversidade. Horizontes Antropológicos, 5(10), 13-34. Retrieved from https://www.scielo.br/j/ha/a/7Wdq4bkgMgjhnQftjCYsRZz/?format=pdf⟨=pt
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, p. 21). O pesquisador registrou em seus diários de campo que, numa das primeiras reuniões frente a frente com a líder dos projetos, estranhou e teve dificuldades para naturalizar o fato de a condução das principais ações da organização ser realizada por uma travesti, sejam tarefas administrativas ou captação de verbas e demais apoios junto a empresários e instituições nacionais e internacionais, bem como ser aquele corpo travestilizado o ocupante da presidência da instituição, com mais de 10 projetos ativos.

Outro processo de estranhamento deu-se durante um atendimento voluntário realizado com a população trans em que o pesquisador se percebeu constrangido durante um golpe de olhar com uma mulher trans, que gerou um pensamento intrusivo sexualizando o corpo generificado daquela mulher, seguido de um exercício reflexivo: “Acho que ela está me desejando enquanto homem e me seduzindo. Epa! Pera aí! Você não pode esquecer que o fato de ela ser uma mulher trans não implica desejo sexual por outro homem, nem mesmo por um homem gay, uma vez que gênero e sexualidade são conceitos que não se confundem”, o que gerou imediatamente reflexões lembrando os limites do juízo, quando Butler (2015)Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo. São Paulo, SP: Editora Autêntica. afirma que “o reconhecimento não pode ser reduzido à formulação e à emissão de juízo sobre os outros” (p. 63). Tais processos exigiram do pesquisador em campo um exercício autorreflexivo sobre seu posicionamento enquanto um pesquisador cis e os riscos que correria de reproduzir processos e relações sociais desiguais que privilegiam uns e subjugam continuamente outros, produzindo situações de abjeção no processo de realização da pesquisa.

Entendemos, assim, que a compreensão desses processos contribui para o entendimento do espacializar como prática material e corporificada, que, na reflexão sobre a pesquisa, viabiliza refletir sobre a produção de corpos-em-campo, expressão que situa pesquisador/a e pesquisado/a não como seres que possuem corpos, mas que são corpos (Flores-Pereira, Davel, & Almeida, 2017Flores-Pereira, M. T., Davel, E., & Almeida, D. D. D. (2017). Desafios da corporalidade na pesquisa acadêmica. Cadernos EBAPE.br, 15(2), 194-208. doi: 10.1590/1679-395149064
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) que constituem agentes ativos na pesquisa. Destacamos, na hifenização, o caráter processual de produção de tais corpos no contexto da pesquisa, ou seja, no espacializar do campo.

A imersão em campo também permitiu compreender como as interações com as outras pessoas na organização afetam e são afetadas por expressões ou ocultações da personificação trans, e os sentimentos e experiências corporais que são estimulados quando expressam ou ocultam a transgeneridade na interação com os outros no espaço organizacional. Nesse mesmo sentido, participar como voluntário, inserido nessa realidade desde então, direcionou o olhar do pesquisador para determinados aspectos espaciais, como as materialidades, as interações e os usos dos corpos, permitindo, assim, desnaturalizar as práticas convencionais de organização permeadas por lógicas cisheteronormativas e materialidades proibidas.

Essas dinâmicas relacionais refutam princípios ontológicos de viver juntos o campo, e, em contato com as diferenças, colocam em relevo aspectos éticos e o “trabalho político” que, ainda que possam ser discutidos em relação ao fazer etnográfico (Oliveira, 2020Oliveira, M. R. G. (2020). Nem ao centro, nem à margem! Corpos que escapam às normas de raça e de gênero. Salvador, BA, Saberes Trans, Ed. Devires.; Schwade, 1992Schwade, E. (1992). Poder do sujeito, poder do objeto. In: M. P. Grossi (Org.), Trabalho de campo & subjetividade (pp. 41-52), Florianópolis, SC: Editora Claudia Lago.), não são exclusivos de etnografias. Tal aspecto foi abordado por Oliveira (2018)Oliveira, J. S. D. (2018). As influências raciais na construção do campo etnográfico: Um estudo multi situado no contexto Brasil-Canadá. Organizações & Sociedade, 25(86), 511-531. doi: 10.1590/1984-9250868
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, ao apresentar seu trabalho de campo num estudo multissituado no contexto Brasil-Canadá posicionada como mulher negra etnógrafa, o que permitiu destacar como as influências de raça se manifestam espacialmente organizadas nas experiências de pesquisa com abordagem etnográfica. Ao sustentar essa afirmação, a pesquisadora apresenta práticas racistas cotidianas de reprodução dos estigmas, da segregação e das dinâmicas de ocupação dos diferentes espaços que, por meio de diferentes ocasiões com os participantes da pesquisa, destacam o fato de que um pesquisador ou pesquisadora ser negro/negra influenciaria o desenvolvimento da pesquisa nas organizações, desvelando como a materialidade da raça se manifestou cotidianamente no espaço de produção da etnografia. Consoante com esses entendimentos, Grossi (1992)Grossi, M. P. (1992). Na busca do outro encontra-se a si mesmo. In: M. P. Grossi (Org.), Trabalho de campo & subjetividade (pp. 7-16), Florianópolis, SC: Editora Claudia Lago. afirma que esse processo de construção do campo etnográfico e do texto resultante da etnografia é influenciado pela construção e posicionamento social dos pesquisadores, exemplificando tal posicionamento social pela via do gênero.

Esse quadro anunciado incita-nos sobre a importância de evidenciar o caráter ético e político nas produções científicas elaboradas a partir do trabalho de campo. Tal conscientização materializou-se para nós durante a realização do trabalho de campo com pessoas trans, por meio de um processo de autoconhecimento e rememoração de algumas das próprias experiências espaciais do primeiro autor enquanto criança, que performava expressões lidas como afeminadas, com um enorme potencial de transgressão de gênero, o adolescente masculino tido como “sensível” e por isso marcado como diferente, e o adulto gay com masculinidade lida como falha em vários espaços (inclusive organizacionais), mas que aprendeu a performatividade de gênero nos moldes heteronormativos a ponto de expressar neutralidade social, mantendo a conveniência e a passabilidade de homem “normal” em outros espaços. Desse modo, à medida que foi tecendo os encontros com os participantes, mas também com o que viveu e com o que não pôde viver, em meio a pontes e muros, a trajetória de campo foi visibilizando uma teia de práticas espaciais tanto cis heteronormativas como trans(gressoras).

Nesse sentido, destacamos que o suporte teórico certeauniano é fundamental no sentido de fornecer uma lente micropolítica que permite a compreensão de dinâmicas sociais espacializadas em relações de poder situadas e circunstanciais. O trabalho de campo evidenciou o caráter efêmero e desestabilizado da produção espacial, bem como da própria produção do “outro”. Lembramos que, para o autor, lugar e espaço, próprio e outro, estão sempre em produção, uma vez que não se trata de posições fixas ou dadas a priori. Estamos interessados, aqui, nas desestabilizações e subversões nas quais consideramos as múltiplas opções de ocupar lugar e espaço.

Finalmente, na experiência de campo que gerou tais reflexões, a apropriação dessa demanda produziu-se em encontros etnográficos permeados por relações de gênero, no sentido de compreender como relações generificadas, sexualizadas e corporificadas entre pessoas cis e pessoas trans habitam a espacialidade experimentada no campo de pesquisa em contexto organizacional. Buscamos demarcar contextos que (in)visibilizam relações sociais e portanto culturais, a partir de lugares desiguais onde engendram-se espaços, práticas de organização e corpos como um possível caminho para a produção de conhecimentos, que, na pesquisa empírica aqui descrita, revelou situações com corpos cis considerados neutros e corpos trans, travestis, que carregam marcas em relação a padrões de referência e cujas representações dominantes afirmam unicamente suas existências “como espécime numa taxonomia do desvio que deve ser corrigido” sem referências adequadas nos espaços da cidade, espaços midiáticos, nem mesmo espaços de cidadania (Preciado, 2020Preciado, P. B. (2020). Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia. Rio de Janeiro, RJ: Editora Schwarcz-Companhia das Letras., p. 224). Evidencia-se empiricamente que o espacializar do campo se constitui por relações de gênero reconhecidamente hierarquizadas, que, na pesquisa em foco, se produziu com pessoas travestis e trans, mas que não se circunscreve a esse contexto específico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, em que trazemos reflexões provocadas pela e na experiência de campo do primeiro autor, nos direcionamos a discutir como relações de corpo, gênero e sexualidade do pesquisador, no caso um homem gay, cis, influenciam a espacialidade de trabalho no campo de pesquisa. Problematizamos, para isso, o espacializar do campo etnográfico no encontro entre pesquisador e participantes da pesquisa, evidenciando as dinâmicas de expressões de gênero-corpo-sexualidade nesse processo por meio do que chamamos produção de corpos-em-campo. Nesse percurso, caracterizamos como fundamental o entendimento do espacializar como prática material e corporificada, e tencionamos destacar os corpos, situados e generificados, como agentes ativos na pesquisa.

A partir desse entendimento material e corporificado articulado, nosso esforço reflexivo alinha-se no sentido de romper com julgamentos ou representações prévias e produzir espaços de reconhecimento com todos, todas e todes corpos praticantes e as práticas que, em conjunto umas com as outras, estabelecem a dinâmica do espaço organizacional e configuram uma agenda ética e política que emerge nos limites de nossos esquemas de inteligibilidade. Trata-se de um lugar de reflexividade, onde, no contexto da pesquisa etnográfica, nos perguntamos como dialogar e reconhecer quando nos encontramos numa situação de produção de pesquisa não sobre o outro, mas com o outro.

Tecer espacialidades de pesquisa alternativas a um quadro neutro, hegemônico, também cis e heteronormativo, é relevante para os Estudos Organizacionais na medida em que corpo, gênero e sexualidade se constituem como práticas espaciais, materiais e simbólicas, de engendramento das relações sociais no cotidiano nas organizações, “são espaços que importam” na produção da pesquisa etnográfica (Oliveira, 2018Oliveira, J. S. D. (2018). As influências raciais na construção do campo etnográfico: Um estudo multi situado no contexto Brasil-Canadá. Organizações & Sociedade, 25(86), 511-531. doi: 10.1590/1984-9250868
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; Tyler & Cohen, 2010Tyler, M., & Cohen, L. (2010). Spaces that matter: Gender performativity and organizational space. Organization Studies, 31(2), 175-198. doi: 10.1177/0170840609357381
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). Essas são relevantes questões, uma vez que são as categorias sociais que posicionam os pesquisadores e os sujeitos em campo (Musante & DeWalt, 2010Musante, K., & DeWalt, B. R. (2010). Participant observation: A guide for fieldworkers. Plymouth, UK: Altamira Press.), e que se acentuam não apenas no fazer etnográfico, mas, de certa forma, nas abordagens qualitativas de maneira mais ampla, reconhecidas como produtoras de maior envolvimento dos pesquisadores na realização do trabalho em campo, e emergem como dimensão central durante a condução das etnografias, por terem as relações sociais como seu mundo vivido (Grossi, 1992Grossi, M. P. (1992). Na busca do outro encontra-se a si mesmo. In: M. P. Grossi (Org.), Trabalho de campo & subjetividade (pp. 7-16), Florianópolis, SC: Editora Claudia Lago.).

Por tais objetivos, somamos esforços com aqueles/as que buscam desconstruir o mito em torno da neutralidade do pesquisador no desenvolvimento da pesquisa, implicando um caráter político ao trabalho de campo e cujo contexto faz parte da constituição sócio-histórica do etnógrafo e pode atuar como instrumento heurístico nas análises de pesquisa (Grossi, 1992Grossi, M. P. (1992). Na busca do outro encontra-se a si mesmo. In: M. P. Grossi (Org.), Trabalho de campo & subjetividade (pp. 7-16), Florianópolis, SC: Editora Claudia Lago.; Oliveira, 2018Oliveira, J. S. D. (2018). As influências raciais na construção do campo etnográfico: Um estudo multi situado no contexto Brasil-Canadá. Organizações & Sociedade, 25(86), 511-531. doi: 10.1590/1984-9250868
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). Argumentamos que esse esforço de desconstruir o mito da pesquisa etnográfica e do/a etnógrafo/a manifesta um compromisso ético de desvelar certos processos e relações na construção de espaço de trabalho em campo, aceitando a responsabilidade pelo que fazemos e dizemos, exigindo que o pesquisador seja autorreflexivo sobre seu posicionamento e relações no campo (Cunliffe, 2016Cunliffe, A. L. (2016). “On becoming a critically reflexive practitioner” redux: What does it mean to be reflexive? Journal of Management Education, 40(6), 740-746. doi: 10.1177/1052562916668919
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; Cunliffe & Karunanayake, 2013Cunliffe, A. L., & Karunanayake, G. (2013). Working within hyphen-spaces in ethnographic research: Implications for research identities and practice. Organizational Research Methods, 16(3), 364-392. doi: 10.1177/1094428113489353
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).

É um movimento imprevisível, de se defrontar com a estranheza, a permanente surpresa, no encontro com o qual poderia se estabelecer a crise do crível, a quebra dos padrões habituais de referência, valores, pensamentos e ações (Ferraço, Soares, & Alves, 2017Ferraço, C. E., Soares, M. D. C. S., & Alves, N. (2017). Michel de Certeau e as pesquisas nos/dos/com os cotidianos em educação no Brasil. Pedagogía y Saberes, (46), 7-17. Retrieved from http://www.scielo.org.co/scielo.php?pid=S0121-24942017000100002&script=sci_arttext&tlng=pt
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). Trata-se de uma prática ética, conforme esboçou Butler (2015)Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo. São Paulo, SP: Editora Autêntica., “talvez somente possível pela experiência do outro, sob as condições de termos suspendido o juízo, tornamo-nos finalmente capazes de uma reflexão ética sobre a humanidade do outro” (p. 64). Por isso, argumentamos também que pesquisar (e espacializar) dentro de uma agenda ética com o outro implica reconhecimento do outro; neste caso, permitir-se praticar com corpos-em-campo, um movimento de abrir-se para a alteridade e reflexividade.

Para tanto, durante as vivências em campo, retornamos e articulamos nossas preocupações às teorizações de Certeau (1998)Certeau, M. De. (1998). A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes., considerando os sujeitos da vida cotidiana como praticantes (seriam corpos ordinários?), o que implica capturá-los não em essência, mas em atos, relações e interações. Este estudo percorre a via das práticas cotidianas reflexivas, não de pessoas cis sobre pessoas trans, mas com pessoas cis e trans, a fim de compreender o mundo vivido de criação de conhecimento não só teórico mas também metodológico e de produção da vida social nos diferentes contextos, por acreditar que a atitude do pesquisador em campo faz toda a diferença, no sentido de construir pontes com os informantes destacando a importância da reflexividade não apenas na etnografia, mas na pesquisa de modo geral.

Com esse trajeto, pelas vias da espacialidade e materialidade, desenvolvemos conceitualmente a espacialidade com corpos-em-campo, uma noção que reflete uma atitude de pesquisa com práticas reflexivas de rompimento com a negação, invisibilização, abjeção e estigmatização de corpos, gêneros e sexualidades. Com efeito, espaços com corpos-em-campo permitem descobrir desigualdades nas experiências espaciais, injustiças materiais, representacionais e formas de exclusão. Além disso, materializam o direito de reconhecimento para corpos, gêneros e sexualidades tidos como desviantes das normas hegemônicas visibilizando dinâmicas espaciais menos hierárquicas, excludentes.

Destacamos, com esse movimento, uma agenda de pesquisa que propicie a abertura de avenidas mais éticas, mas também caminhos para análises dos modos de organização espacial na pesquisa organizacional menos violentos, com preocupações inerentes à complexidade das experiências vividas que não se restringem em padrões normativos e formas de construção de diálogos e reconhecimentos com diferentes corpos-em-campo que permitem ampliar possibilidades de praticar organização. Tal esforço materializa-se como uma tarefa urgente e necessária para chacoalhar as práticas de pesquisa hegemônicas que vêm sendo aceitas como válidas em termos metodológicos e que alimentam a manutenção da realização de pesquisa cis-heteronormativa (mas também masculina, branca, sem deficiência), sem abertura para espaços divergentes, em termos de relações corporais, sexuais, de gênero, de raça praticados na condução da pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2021
  • Aceito
    12 Abr 2022
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