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O saneamento básico e o evolver de suas organizações em São Paulo

ARTIGO

O saneamento básico e o evolver de suas organizações em São Paulo

Antonio Carlos Sachs

Pós-graduado na disciplina Empresas Públicas, pela Universidade de Paris XI; assistende de pesquisa da EAESP/FGV

1. INTRODUÇÃO: ASPECTOS GERAIS DA EXPANSÃO DO APARELHO ADMINISTRATIVO EM SÃO PAULO

O presente artigo constitui um primeiro esboço no sentido de apresentar algumas linhas básicas para o exame da constituição do campo das organizações de saneamento básico na administração pública paulista, no período 1950-1975.

De maneira resumida, a indagação central do estudo é a seguinte: se assumirmos como válida a afirmação de que a conjuntura pós-64 não apenas concorreu de fornia decisiva com a estratégia de acumulação econômica de diversos grupos ou setores que atuam no plano da sociedade civil, como também sancionou um conjunto de medidas que implicaram reestruturação do aparelho do Estado, que efeitos terá produzido no "esquema institucional" do segmento administrativo voltado para as atividades de saneamento básico?

O breve exame do perfil organizacional da burocracia civil paulista, da forma como se configurou, respectivamente, em 1962 (Governo Carvalho Pinto) e em 1976 (Governo Paulo Egydio), permite, inicialmente, assinalar o "impacto" das sucessivas reorganizações verificadas no corpo central do Estado.

Com efeito, se comparadas simplesmente em termos absolutos, o número de secretarias de estado, que contavam nove em 1962, passam a 18 em 1976. Secretarias como "Esporte e Turismo", "Negócios Metropolitanos", "Comunicações", "Economia e Planejamento", "Promoção Social", restringindo-nos apenas às mais recentes, simplesmente não constituíam uma esfera própria no campo da burocracia do Estado.

No quadro de uma divisão interna do trabalho governamental, uma "esfera própria" pressupõe, em primeiro lugar, a existência de uma organização, um corpo relativamente estável de funcionários e a possibilidade efetiva de apropriação de recursos materiais do Estado. Ao lado disso, as agências que compõem a "administração paralela"1 1 A expressão "administração paralela" foi utilizada por Celso Lafer para designar o conjunto de agências incumbidas da implementação do Plano de Metas, no período 1956-61. O autor assinala que "o Governo não optou pela reforma total da administração paralela. Esta administração paralela era constituída ou por órgãos existentes - em que a diluição do sistema de mérito não tinha ocorrido, como é o caso do BNDE, do Banco do Brasil (Cacex), da Sumoc - ou, então, por órgãos novos para os quais se drenou a competência disponível no serviço público, através da requisição, como é o caso, por exemplo, dos Grupos Executivos, do Conselho de Política Aduaneira". In: Lafer, Betty M. Planejamento no Brasil. conheceram uma expansão sem precedentes, e às poucas autarquias e institutos existentes em 1962 - centrados, basicamente, na área previdenciária e hospitalar, no "bloco" Viação e Obras Públicas e no setor fazendário - foi acrescentado um número expressivo de empresas, fundações e superintendências, cuja abrangência inclui desde atividades ligadas ao setor financeiro (Grupo Banespa S.A) até atividades de "organização da cultura" (TV educativa, artesanato, etc.). Mais precisamente, "no momento presente o setor descentralizado compõe-se de 65 entidades, sendo que três delas estão em fase de implantação. Destas, 32 têm o status de empresa (duas em fase de implantação), 22 são autarquias e 11 são fundações (uma em implantação)"2 2 Coutinho, Luciano G. Evolução da administração descentralizada em São Paulo: questões relevantes para as políticas públicas. Revista de Administração de empresas, Rio de Janeiro, FGV, v. 19,1979. . É certo, porém, que algumas delas, num estágio anterior do campo, se encontrassem já "embutidas" no interior das organizações então existentes, exercidas seja sob a forma de uma competência residual, seja conjuntamente com outras atividades ou ainda através de órgãos colegiados (conselhos, comissões e grupos de assessoria técnicoadministrativa) vinculados diretamente ao governador. Assim foi, por exemplo, no caso da atual Secretaria de Estado de Obras e do Meio-Ambiente, cujo evolver administrativo, em sua dimensão funcional, pode ser retraçado a partir do Decreto aº 28, de 1.º de março de 1892

"A Secretaria de Estado de Obras e do Meio-Ambiente tem sua origem no Decreto n.º 28, de 1.º de março de 1892 que criou, entre outras, a Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Com o desdobramento desta, eni 1927, foram constituídas duas outras secretarias: a dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio e a dos Negócios de Viação e Obras Públicas. Essas duas áreas (viação e obras públicas) foram desdobradas pela Lei n.º 7.833, de 19 de fevereiro de 1963, surgindo duas secretarias de estado: a dos Negócios dos Transportes e a dos Negócios dos Serviços e Obras Públicas.

O Decreto n.º 6.503, de 5 de agosto de 1975, alterou a denominação da Secretaria de Estado dos Negócios dos Serviços e Obras Públicas para Secretaria de Estado de Obras e do Meio-Ambiente, denominação que permanece até hoje."3 3 Perfil da administração pública paulista. Fundap, 1980.

2 A ESFERA DO SANEAMENTO BÁSICO E O SEU EVOLVER POLÍTICO-ADMINISTRATIVO

O exame das principais transformações político-administrativas relativas a um segmento expressivo da burocracia civil paulista - a engenharia sanitária - permite distinguir três momentos básicos na organização do campo: a criação de organizações autárquicas, no início dos ançts O exame das principais transformações político-adminis50, que deram origem à "administração paralela", setrativas relativas a um segmento expressivo da burocracia guindo-se a constituição de um "setor empresarial" público, no final dos anos 60, a partir do fracionamento de competencias em tomo de um número expressivo de "sociedades por ações", até a concentração final de atividades em tomo de grandes unidades empresariais, ocorrida em 1973 com a criação da Cia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e Cia Estadual de Tecnologia de Saneamento Básico e de Controle de Poluição das Águas (Cetesb).

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Assim, a cronologia dos principais eventos políticoadministrativos corresponde a diversos momentos de um processo conducente a uma "redução" do espaço organizacional - no sentido de uma diminuição do número relativo de organizações afins, existentes no interior de uma mesma esfera de competência - em benefício das grandes unidades empresariais. Como conseqüência essas grandes unidades ganharam em poder e em autonomia concentrando intramuros atividades e recursos que, num estágio anterior de divisão do trabalho, estavam alocados diferentemente e constituíam o objeto de uma multiplicidade de agências.

Luciano G. Coutinho caracterizou esse processo como um movimento de "descentralização administrativa com descentralização do poder de decisão", realizado "com um notável fortalecimento e concentração setorial do poder econômico e institucional nas entidades descentralizadas, especialmente nas grandes empresas do estado". Politicamente, "pelo menos 11 empresas estaduais de porte considerável passaram para o primeiro escalão da hierarquia (... ) dentro da administração, escapando ao controle ou mesmo suplantando as secretarias de estado nos seus respectivos campos".4 4 Coutinho, Luciano G. Evolução da administração descentralizada em São Paulo... Revista de Administração de Empresas, cit.

Neste sentido, o acréscimo de poder e de autonomia em organizações situadas "fora da administração centralizada", constituídas sob a forma de sociedades anônimas, implicou, sobretudo, "deslocamentos" sucessivos de instâncias de poder, cujo "itinerário" pode ser retraçado a partir da reconstituição da história do campo, isto é, da gênese dos grupos e de suas organizações. Segundo o mesmo autor, "após a segunda metade dos anos 60, e com redobrada intensidade após 1970, as empresas públicas tornaram-se os veículos dominantes da atuação descentralizada em setores economicamente relevantes, absorvendo as atribuições e esferas funcionais das autarquias nestas áreas. As formas autárquicas entram numa fase de esvaziamento e regressão (.. . )". Ás autarquias, que representavam as formas organizacionais dominantes nos anos 50, perderam gradativamente sua posição, foram "esvaziadas" ou extintas, e seria, portanto, uma questão interessante saber qual o destino das organizações em declínio. O estudo sistemático de um caso particular, o Departamento de Águas e Esgotos, pode ser elucidativo.

3. AUTARQUIAS

"É opinião generalizada entre os engenheiros sanitaristas brasileiros que se dedicam aos serviços da espécie, que somente órgãos com autonomia administrativa e financeira podem agir com a necessária flexibilidade, para fazer face ao dinamismo que precisam eles apresentar, ao contrário da vagarosidade que resulta da obediência integral às normas e peias administrativas usuais (...)

E foi assim pensando que a V Convenção Nacional de Engenheiros, reunida em Recife em novembro de 1951, e na qual tomaram parte engenheiros sanitaristas de todo o país, aprovou, por proposta nossa, uma recomendação aos governos dos estados no sentido de darem tal organização aos seus serviços, para que estes bem possam executar sua missão de interesse coletivo.

São Paulo, dirigido presentemente por um ilustre governador, que é também um eminente professor de engenharia sanitária de nossa universidade, não poderia deixar de adotar uma tal orientação na organização administrativa do departamento que executa os serviços em sua capital. (...)

Foi assim, afinal, conseguida a efetivação de uma providência, pela qual se bateram sucessivas administrações que passaram pela Repartição de Águas e Esgotos."

Engº PlínioP. Whitaker, julho 1954

É possível que a fase mais abertamente política na história de um grupo situado no interior da burocracia civil seja aquela em que, dadas as "condições necessárias e suficientes", o seu desenvolvimento ulterior, enquanto grupo dirigente, dependa da constituição de "esferas próprias". Sem dúvida, a criação de agências não assegura, por si, a continuidade e a autonomia do grupo, mas esta parece ser uma etapa necessária para sua consolidação. Neste sentido, o desenvolvimento das formas autárquicas na esfera da engenharia pública tem muito da sua história vinculada à história do corpo de agentes incumbidos dessa modalidade de trabalho, os engenheiros, e de sua inserção no espaço do aparelho administrativo. O núcleo básico dessa inserção, até 1963, parece ter sido o "bloco" então constituído pela "Secretaria da Viação e Obras Públicas" e suas organizações "paralelas", as autarquias, criadas, respectivamente, em 1946 (Departamento de Estradas de Rodagem), 1951 (Departamento de Águas e Energia Elétrica) e 1954 (Departamento de Águas e Esgostos), bem como as Cias. Ferroviárias Estaduais.

As autarquias surgem como uma primeira forma de extensão do corpo central do aparelho administrativo e é somente a partir do Governo Lucas Nogueira Garcez (1951-55), que os serviços de saneamento básico (água e esgotos) passam, em grande parte, a ser executados através dessas organizações. A divisão de fronteiras entre o DAEE e o DAE ê clara; enquanto o primeiro possuía um campo funcional mais abrangente, envolvendo desde serviços de energia elétrica e telefonia até atribuições "delegadas pelo Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica, como seu órgão técnico-regional", a segunda teve seu campo funcional restrito aos "serviços de abastecimento de água potável, de esgotos sanitários e despejos industriais de toda a área metropolitana da Capital, compreendendo os municípios de São Paulo, ABC e Guarulhos".

Até então, essas atividades estavam organizadas no interior da própria Secretaria de Estado, através da Repartição de Águas e Esgotos, no caso do DAE, e da Inspetoria de Serviços Públicos no caso do DAEE A constituição de "novas esferas", as autarquias, deu origem a uma série de "movimentos paralelos": foram extintos, além da Repartição e da Inspetoria, o Serviço de Hidrografia do Instituto Geográfico e Geológico, vinculado à Secretaria da Agricultura, e a 4.3 Recebedoria da Capita, da Secretaria da Fazenda; o acervo, bens e instalações dos órgãos extintos foram transferidos, passando a integrar o patrimônio das novas, organizações; os cargos foram relotados em outros órgãos da Secretaria de Viação e Obras Públicas; o corpo de funcionários efetivos, ou seja, os concursados, seguiram as novas organizações ou foram relotados com os seus cargos; e, com relação aos ocupantes de cargos ou funções dirigentes, o § 2º, art 11, da Lei n.º 1.350, que cria e organiza o DAEE, dispõe que, caso transferidos, "somente poderão exercer cargos ou funções da mesma espécie ou de natureza consultiva, em situação hierárquica correspondente àquele em que se achavam".5 5 Cf. Lei n.º 1.350, de 12 de dezembro de 1951, que cria e organiza o DAEE, e Lei n.º 2.627, de 20 de janeiro de 1954, referente ao DAE.

Esses movimentos no interior do aparelho administrativo, envolvendo extinções, transferências patrimoniais e "reconversão" total ou parcial de um corpo de funcionários, embora obedecendo a determinações diferentes, são de certa forma recorrentes e poderiam ser ricamente ilustrados a partir de uma investigação mais ampla.

4. O CASO DEPARTAMENTO DE ÁGUAS E ESGOTOS (DAE)

Em 1945, o Eng.º Plínio P. Whitaker, então diretor da Repartição de Águas e Esgotos de São Paulo, dá início às negociações visando obter a transformação daquele órgão em "forma autárquica". A organização que então dirigia lhe parece anacrônica, pois "funciona como as repartições públicas comuns (. .. ) sujeita por isso a toda a legislação que rege a ação destas". Whitaker contava com um forte argumento: desde 1911, ano em que é reorganizada "dando-se-lhe a estruturação fundamenta", até aquela data, a Repartição havia sido "apenas ampliada por leis posteriores".

Assim, fizeram-se "apenas ampliações parciais que se tornaram obrigatórias em virtude do crescimento da cidade, e, portanto, dos serviços a seu cargo, o que obrigou a criação de novas Seções e o aumento do número de funcionários".6 6 Whitaker, Plínio P. Transformação da RAE em autarquia, abrangendo em seu âmbito toda a área metropolitana de São Paulo. Boletim RAE, n. 24,1952. O quadro de pessoal havia sido ampliado por decretos de 1925 e 1931 e contava, na época (1931), entre funcionários técnicos e administrativos, um total de 124 efetivos, assim discriminados:

Técnicos (engenheiros, químicos e bacteriologistas) 31 Administrativos 93 Total 124

A estes se acrescia "certo número de funcionários extraquadro, dentre os quais aqueles que haviam passado para a RAE, vindos das extintas Comissões de Obras Novas do Rio Claro e Comissão de Saneamento da Capital".

Em 1937, o pessoa extraquadro, somado aos de carreira, totalizava 253 funcionários assim discriminados:

Por sua vez, o Decreto-lei n.º 15.626, de 9 de fevereiro de 1946, criou o "Quadro dos Serviços Industriais da Repartição de Águas e Esgotos de São Paulo, que integrou todos os funcionários de caráter efetivo e extranumerarios, então existentes". O quadro ficou assim fixado:

Diretor 1 Engenheiros e Químicos 66 Bacteriologista 1 Administrativos 518 Total 586

A comparação entre os dados para o período 1937-46 indica a expansão relativa do corpo de funcionários:

Num período de quase 10 anos o número total de funcionários havia mais do que duplicado, sendo que a expansão, mais acentuada ocorreu entre os administrativos; em decorrência, a proporção entre técnicos e administrativos havia decrescido. A expansão do corpo de funcionários foi correlata à criação de novas seções: em 1931, foram criadas a Seção de Tratamento e a Seção de Obras Novas da Adutora Rio Claro; em 1939, foi criada a Seção de Hidrómetros e Consumo; em 1940, foram criadas as seções de Adução de Águas do Rio Claro e de Adução de Cotia, Santo Amaro, Cantareira e Cabuçu (ambas desmembradas, parte da antiga Seção de Águas e parte da Seção do Tratamento, que ficou extinta); nesse mesmo ano foram ainda criados o Laboratório de Química e o Laboratório de Bacteriologia e Hidrobiología, "desmembrados da Seção de Tratamento"; finalmente, em 1947, havia sido criada a Seção de Usinas Elevatórias de Esgotos.7 7 Id. ibid. p. 108. O quadro 3 indica esse desenvolvimento, contrapondo-o ao número de funcionários.


Segundo Whitaker, no entanto, "esses acréscimos e ampliações, não tendo sido estudados em um plano de conjunto, não deram à RAE a organização ideal que deveria ter; esta dependeria, em primeiro lugar, da sua autonomia administrativa e, em segundo lugar, de uma criteriosa divisão de serviços internos".8 8 Id. ibid. p. 108.

Com efeito, o ponto central de sua exposição de motivos prende-se à autonomia administrativa e financeira, sem a qual a RAE estaria "impedida de agir":

"Para anular esta (...) causa de entrave administrativo, deve o órgão incumbido dos serviços de águas e esgotos da Capital ser livrado das subordinações atuais e tratado como empresa de caráter industrial, dando-se-lhe a indispensável autoridade para agir, com independência econômica e legal, ajustando-se a sua atividade a um controle que a acompanhe, mas a não perturbe. A solução é, portanto, a da autarquia, com personalidade jurídica, capacidade financeira de arrecadação e utilização dos próprios recursos, Tegida por um Conselho e uma administração executiva, dependendo certas medidas de maior relevo de aprovação do Secretário da Viação, e outras, ainda de maior alcance, da autorização do Governador do Estado".9 9 Id. ibid. p. 112.

Foi preciso esperar, no entanto, o Governo Lucas Nogueira Garcez (1951-55), para que a transformação desejada ocorresse, pois "havia na época (1945) uma compreensão diferente sobre tá tipo de organização, pois a tendência era a de concentrar-se toda a arrecadação e distribuição dos dinheiros públicos nas mãos do Tesoureiro. A própria autarquia do Departamento de Estradas de Rodagem só foi conseguida por imposição de lei federal, a fim de tornar possível o recebimento das quotas do fundo rodoviário".

O Governo Garcez parece ter marcado o início da ascensão das formas autárquicas na área de saneamento. O início do declínio ocorreria no pós-64, com o surgimento do setor empresarial público.10 10 "O argumento central do discurso desse governante é a descentralização industrial, preocupando-se, em conseqüência, com o desenvolvimento dos serviços de infra-estrutura como energia elétrica e saneamento. Estas áreas encontram ressonância, no âmbito de criação de agências através da administração descentralizada, como a autarquia DAE, a autarquia DAEE, e a empresa Usinas Elétricas do Paranapanema (Uselpa)." Cf. Manifestações da relação estado-urbano no estado de São Paulo. 1978, p. 231. (Série Estudos e Pesquisas, n.º 28).

5. A CONSTITUIÇÃO DE UM SETOR EMPRESARIAL PÚBLICO

"Chegou-se ao momento de alterar profundamente o esquema institucional das organizações ligadas a empreendimentos de água e esgoto, tanto na Baixada Santista como no interior de um modo geral, a exemplo do que já se vem realizando na área metropolitana de São Paulo, como o citado desmembramento de atividades do Departamento de Águas e Esgotos e criação de novo órgão de características empresariais para cuidar de setor específico do abastecimento de água"

Revista DAE, jul. 1968

A constituição de um setor empresarial público, a partir da segunda metade dos anos 60, representa provavelmente o fato mais significativo na história políticoadministrativa do setor saneamento. Até então, o espaço organizacional dessa esfera de competência era constituído basicamente por órgãos da "administração direta do Estado", ou seja, pelas autarquias, como no caso do DAEE e DAE, e pelas unidades administrativas integradas na própria secretaria de estado, como no caso do Departamento de Obras Sanitárias.11 11 O Departamento de Obras Sanitárias foi criado pela Lei n.º 627, de 4 de janeiro de 1950, tendo por finalidade "promover o desenvolvimento do saneamento urbano e rural do Estado, com sua atividade dirigida principalmente para o Interior". Foi extinto em agosto de 1970, "em obediência ao art. 20 do Decretolei de 23 de setembro de 69, que dispõe sobre a constituição da Cia. de Saneamento da Baixada Santista (SBS)". Cf. LEX 1950 e 1970. 12 A CESP - Centrais Elétricas de São Paulo, a Cia. de Telecomunicações do Estado de São Paulo (Cotesp) e o Fundo Estadual de Eletrificação Rural não contam entre as organizações de saneamento, muito embora estejam formalmente vinculadas à autarquia DAEE.

Esse "esquema institucional" de divisão do trabalho foi alterado somente a partir do Governo Abreu Sodré (1967-71), com o fracionamento de competências em tomo de um número expressivo de "sociedades por ações". É durante esse período que são constituídas, sob a forma de "empresas públicas", a Cia Metropolitana de Água de São Paulo (Comasp), a Cia Metropolitana de Saneamento de São Paulo (Sanesp) e a Cia de Saneamento da Baixada Santista (SBS), além de uma nova autarquia a FESB - Fomento Estadual de Saneamento Básica A esse novo grupo de organizações foi ainda acrescida a Cia de Água e Esgoto do Vale do Ribeira (Sanevale), criada em 1971, já durante o Governo Laudo Natel.

O espaço organizacional na área dê saneamento, no período que vai entre 1965 e 1973, pode ser ilustrado pelo organograma da página 40.

A consolidação desse novo setor empresarial foi precária uma vez que praticamente todas as empresas dessa "geração" tiveram uma existência efêmera e foram extintas ao final de poucos anos, com a criação da Sabesp e da Cetesb em 1973. É provável, no entanto, que a sua implantação tenha alterado de certa forma a posição ocupada pelas organizações dos anos 50, em especial as autarquias DAEE e DAE, e tenha contribuído para a reorganização da esfera de saneamento, seja em termos do "esquema institucional" seja em termos dos quadros dirigentes. Assim, por exemplo, a constituição da Comasp e da Sanesp aumentou o número relativo de organizações em face de uma mesma atividade - o saneamento básico na Grande São Paulo - e implicou, além do fracionamento de competências, uma "partilha" de recursos e de poder entre essas duas novas organizações e o DAE, que pouco tempo depois teve alterada sua denominação para Superintendência de Água e Esgotos da Capital (Saec) (Decreto n.º 52457, de 26 de maio de 1970) até sua extinção definitiva em dezembro de 1973. Com o seu campo funcional reduzido, o DAE teve, por um lado, transferidos à Comasp, mediante incorporação acionária, "os mananciais", "as instalações de captação, adução, tratamento, reservação e condução de águas" e, por outro, transferidos à Sanesp, "os bens, equipamentos e instalações, direta ou indiretamente vinculados ao sistema de afastamento, tratamento e disposição final de esgotos". Neste sentido, a lógica associada à integralização de capital, em geral realizada por organizações já existentes, corresponde, em certos casos, mais a uma divisão de "espólio" do que a um controle acionário.

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No caso Comasp, o capital inicial, no valor de NCr$ 100.000.000,00 (cem milhões de cruzeiros novos) e dividido em 10.000.000 de ações ordinárias, foi subscrito da seguinte forma: 8.130.420 ações pelo DAEE, 1.869.400 ações pelo DAE e as restantes 180 ações por dezoito pessoas físicas; "ao mesmo tempo em que o DAEE as subscrevia em dinheiro, integralizando, inicialmente, dez por cento de seu valor, fazia-o o DAE através da conferência dos estudos relativos ao aproveitamento dos rios Juqueri, Capivari-Monos e afluentes, dos bens desapropriados para esse fim, das obras e equipamentos já existentes e necessárias aos objetivos da empresa, cujos valores foram devidamente estimados e aprovados. De outra parte, os demais acionistas, tal qual o DAEE, por terem subscrito em dinheiro as suas ações, inicialmente integralizaram apenas 10% de seus valores".13 13 Grau, Eros R. Comasp - Sociedade anônima de capital autorizado. Revista DAE, 1969.

Assim, "da constituição das duas empresas, (...), restaram ao antigo DAE, (... ) as atribuições de operar o sistema distribuidor de água e de coletar os esgotos do Município de São Paulo, comprando água da Comasp, distribuindo aos seus consumidores, coletando seus esgotos, entregando-os à Sanesp para tratamento e disposição final".14 14 Pontes, Luiz A. de Lima. Novo sistema tarifário da SAEC (resumo do trabalho elaborado pelas firmas Coplasa-Planasa), Revista DAE, n. 82, 1971.

Desta forma, a divisão de áreas entre as organizações de saneamento básico, na região metropolitana de São Paulo, ficou equacionada conforme a figura 1.


Igualmente, a criação, em 1969, da Cia. de Saneamento da Baixada Santista (SBS) resultou na extinção do Departamento de Obras Sanitárias e da Superintendência de Saneamento da Baixada Santista, que havia sido criada no ano anterior. Até então, o saneamento da Baixada Santista era realizado através de três unidades de administração distintas: Repartição de Saneamento de Santos, Serviço de Ajgua de Santos e Cubatão e Distrito de Obras Sanitárias de Guarujá: "eram, portanto, três órgãos na mesma região a cuidar de serviços correlatos. Dentro do programa de reforma administrativa, do Governo Abreu Sodré numa iniciativa da Secretaria de Obras Publicas, foi reformulado o problema de saneamento da Baixada Santista (SBS), criando em novembro de 1968, como início de ampla reforma em estudo, a Superintendência de Saneamento da Baixada Santista que unifica numa única administração os três órgãos, embora ainda subordinados ao Departamento dê Obras Sanitárias".15 15 Chiara, José & Tanaka, Renato T. Saneamento da Baixada Santista - reforma administrativa. Revista RAE, n. 72, 1969.

Os serviços de saneamento básico passaram a ser caracterizados como serviços de "natureza tipicamente industrial" e as reformas efetuadas como "tentativas para desvincular os serviços da centralização burocrática":

"Os órgãos da Baixada Santista sentiam, cada vez mais, os efeitos da centralização e das normas do Estado que, em vez de desburocratizar, se tomavam mais rígidas, cerceando, assim, o dinamismo desejável para órgãos de natureza prevalentemente industrial".16 16 Id. ibid.

Na realidade, a situação de declínio do Departamento de Obras Sanitárias (DOF) já havia sido definitivamente caracterizada com a criação, em maio de 1968, do Fundo Estadual de Saneamento Básico, posteriormente transformado em autarquia com a denominação de Fomento Estadual de Saneamento Básico (Decreto-lei aº 172, de 26 de dezembro de 1969). Com a.organização do FESB, o DÒP, "dotado de estrutura obsoleta e de um sistema de trabalho altamente burocratizado", teve a maioria de suas atividades transferidas para a esfera de competência da nova organização e os "setores não absorvidos (... ) transferidos para outras unidades da administração estadual (... ) ou transformados em unidades independentes".17 17 Revista RAE, junho 1968. Na longa trajetória percorrida desde a época de sua criação, em 1950, havia realizado "considerável número de importantes obras de água e esgoto em todo o interior do Estado"; a sua estrutura, no entanto, "já bastante antiga (.,. ) abrangendo amplas funções, (...) emperrada pelas injunções burocráticas, transformou o órgão numa repartição pública sem forças para proporcionar trabalho eficiente e rápido (...)". 18 18 Id. ibid.

Data ainda desse período, a criação do Centro Tecnológico de Saneamento Básico (Cetesb), "uma entidade capaz de proporcionar base tecnológica para o aceleramento de programas de saneamento básico", constituído a partir da unificação de laboratórios pertencentes ou vinculados às autarquias DAE e DAEE e ao DOP: "diversos Laboratórios funcionam sob controle desses departamentos, exercendo funções semelhantes, apenas com delimitação de área de atuação. Não existe trabalho entrosado entre os mesmos, nem coesa diretriz de ação. Além dessa dispersão, referidos laboratórios se encontram em atividade bastante reduzida (...)".19 19 Nogami, P. et alii. São Paulo organiza centro estadual parapromover o avanço tecnológico da engenharia sanitária. Revista RAE, julho 1968.

A reorganização ocorrida no campo das organizações de saneamento básico, no final dos anos 60, deu origem à constituição de um setor empresarial público, montado a partir da criação de uma multiplicidade de agências organizadas sob a forma de "empresas públicas", e alterando de forma definitiva a posição ocupada pelas organizações dos anos 50. Passados alguns anos, esse "esquema institucional" de divisão do trabalho viria novamente a se modificar, mas agora de forma inversa, ou seja, a partir da unificação em grandes unidades empresariais de competências, recursos e poder anteriormente fracionados.

6. CONCLUSÃO

"A Sabesp hoje é responsável pelos serviços de águas e esgotos de 227 municípios, paulistas. Só esse fato revela confiança que as prefeituras municipais têm depositado na empresa, tendo em vista as suas possibilidades efetivas de atuação, quer pelo aspecto de obtenção de recursos, quer pela experiência que a Sabesp tem acumulado no setor."

Eng.º Walter Coronado Antunes, 1979

A "privatização" via empresas públicas de um segmento expressivo do aparelho administrativo, vinculado ao saneamento básico, obedeceu a que tipos de determinação? À parte o problema específico da autonomia relativa dos quadros dirigentes no interior dessa esfera, a adoção da "forma empresarial" parece relacionar-se ao "esquema verticalizado" adotado por entidades federais na produção de serviços de saneamento. Com efeito, a tendência geral à centralização verificada no pós-64, parece acentuar-se a partir do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), quando o Governo Federal passa a definir de forma crescente, via mecanismos financeiros, as responsabilidades do setor:

"Pretendiam as autoridades sanitárias, para viabilizar o Planasa, que todos os estados desejosos de aderirem ao plano criassem empresas estaduais de saneamento. Estas companhias de economia mista deslocavam da administração centralizada e das autarquias a responsabilidade pela instalação e controle das atividades de saneamento, flexibilizando as operações. O governo do estado, através das companhias, procuraria paulatinamente absorver os serviços municipais existentes, através de entendimentos com as prefeituras e câmaras de vereadores locais."20 20 Setor de Saneamento Básica Fundap/Unicamp, 1979. mimeogr.

A centralização parece ser uma contrapartida ao progressivo enfraquecimento político e financeiro dos municípios face aos demais níveis de governo, privandoos, assim, de certas atribuições que, num estágio anterior de divisão do trabalho, lhes eram próprias. Mais ainda, se é certo que a administração e o controle dos serviços de saneamento básico constituem um trunfo não-desprezível na arena do trabalho político, seria interessante investigar os efeitos da situação atual sobre aposição de força relativa dos grupos dirigentes envolvidos. Neste sentido, não deixa de ser sugestiva, à guisa de conclusão, a referência a um diagnóstico recente sobre o setor: "deslocar o executor não deixa de ser uma maneira de centralizar em um nível superior a administração dos favores políticos".22 22 Setor de Saneamento Básico. Fundap /Unicamp, 1979. mimeogr.

A definição de políticas setoriais, no sentido de uma ação uniforme envolvendo os diversos "níveis" de governo, e a crescente concentração do poder econômico e institucional em grandes unidades empresariais, fez-se acompanhar de uma progressiva "desmunicipalização" dos serviços de água e esgotos.

Criada em 1973, com o objetivo de implantar, operar e administrar os serviços de saneamento básico dos municípios paulistas, a Sabesp tinha sob sua responsabilidade, nessa ocasião, além da Capital, os sistemas de apenas dois municípios no interior: Botucatu e Águas da Prata. Atualmente, 227 cidades já aderiram ao Planasa, transferindo seus serviços de água é esgotos à Empresa.21 21 Revista Administração Municipal, n. 11,1979.

  • 2 Coutinho, Luciano G. Evolução da administração descentralizada em São Paulo: questões relevantes para as políticas públicas. Revista de Administração de empresas, Rio de Janeiro, FGV, v. 19,1979.
  • 3 Perfil da administração pública paulista. Fundap, 1980.
  • 4 Coutinho, Luciano G. Evolução da administração descentralizada em São Paulo... Revista de Administração de Empresas,
  • 6 Whitaker, Plínio P. Transformação da RAE em autarquia, abrangendo em seu âmbito toda a área metropolitana de São Paulo. Boletim RAE, n. 24,1952.
  • 13 Grau, Eros R. Comasp - Sociedade anônima de capital autorizado. Revista DAE, 1969.
  • 14 Pontes, Luiz A. de Lima. Novo sistema tarifário da SAEC (resumo do trabalho elaborado pelas firmas Coplasa-Planasa), Revista DAE, n. 82, 1971.
  • 15 Chiara, José & Tanaka, Renato T. Saneamento da Baixada Santista - reforma administrativa. Revista RAE, n. 72, 1969.
  • 17 Revista RAE, junho 1968.
  • 19 Nogami, P. et alii. São Paulo organiza centro estadual parapromover o avanço tecnológico da engenharia sanitária. Revista RAE, julho 1968.
  • 21Revista Administração Municipal, n. 11,1979.
  • 1
    A expressão "administração paralela" foi utilizada por Celso Lafer para designar o conjunto de agências incumbidas da implementação do Plano de Metas, no período 1956-61. O autor assinala que "o Governo não optou pela reforma total da administração paralela. Esta administração paralela era constituída ou por órgãos existentes - em que a diluição do sistema de mérito não tinha ocorrido, como é o caso do BNDE, do Banco do Brasil (Cacex), da Sumoc - ou, então, por órgãos novos para os quais se drenou a competência disponível no serviço público, através da requisição, como é o caso, por exemplo, dos Grupos Executivos, do Conselho de Política Aduaneira". In: Lafer, Betty M.
    Planejamento no Brasil.
  • 2
    Coutinho, Luciano G. Evolução da administração descentralizada em São Paulo: questões relevantes para as políticas públicas.
    Revista de Administração de empresas, Rio de Janeiro, FGV, v. 19,1979.
  • 3
    Perfil da administração pública paulista. Fundap, 1980.
  • 4
    Coutinho, Luciano G. Evolução da administração descentralizada em São Paulo...
    Revista de Administração de Empresas, cit.
  • 5
    Cf. Lei n.º 1.350, de 12 de dezembro de 1951, que cria e organiza o DAEE, e Lei n.º 2.627, de 20 de janeiro de 1954, referente ao DAE.
  • 6
    Whitaker, Plínio P. Transformação da RAE em autarquia, abrangendo em seu âmbito toda a área metropolitana de São Paulo.
    Boletim RAE, n. 24,1952.
  • 7
    Id. ibid. p. 108.
  • 8
    Id. ibid. p. 108.
  • 9
    Id. ibid. p. 112.
  • 10
    "O argumento central do discurso desse governante é a descentralização industrial, preocupando-se, em conseqüência, com o desenvolvimento dos serviços de infra-estrutura como energia elétrica e saneamento. Estas áreas encontram ressonância, no âmbito de criação de agências através da administração descentralizada, como a autarquia DAE, a autarquia DAEE, e a empresa Usinas Elétricas do Paranapanema (Uselpa)." Cf.
    Manifestações da relação estado-urbano no estado de São Paulo. 1978, p. 231. (Série Estudos e Pesquisas, n.º 28).
  • 11
    O Departamento de Obras Sanitárias foi criado pela Lei n.º 627, de 4 de janeiro de 1950, tendo por finalidade "promover o desenvolvimento do saneamento urbano e rural do Estado, com sua atividade dirigida principalmente para o Interior". Foi extinto em agosto de 1970, "em obediência ao art. 20 do Decretolei de 23 de setembro de 69, que dispõe sobre a constituição da Cia. de Saneamento da Baixada Santista (SBS)". Cf. LEX 1950 e 1970.
    12 A CESP - Centrais Elétricas de São Paulo, a Cia. de Telecomunicações do Estado de São Paulo (Cotesp) e o Fundo Estadual de Eletrificação Rural não contam entre as organizações de saneamento, muito embora estejam formalmente vinculadas à autarquia DAEE.
  • 13
    Grau, Eros R. Comasp - Sociedade anônima de capital autorizado.
    Revista DAE, 1969.
  • 14
    Pontes, Luiz A. de Lima. Novo sistema tarifário da SAEC (resumo do trabalho elaborado pelas firmas Coplasa-Planasa),
    Revista DAE, n. 82, 1971.
  • 15
    Chiara, José & Tanaka, Renato T. Saneamento da Baixada Santista - reforma administrativa.
    Revista RAE, n. 72, 1969.
  • 16
    Id. ibid.
  • 17
    Revista RAE, junho 1968.
  • 18
    Id. ibid.
  • 19
    Nogami, P. et alii. São Paulo organiza centro estadual parapromover o avanço tecnológico da engenharia sanitária.
    Revista RAE, julho 1968.
  • 20
    Setor de Saneamento Básica Fundap/Unicamp, 1979. mimeogr.
  • 21
    Revista Administração Municipal, n. 11,1979.
  • 22
    Setor de Saneamento Básico. Fundap /Unicamp, 1979. mimeogr.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 1982
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