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O papel das disciplinas de embasamento na formação acadêmica de administradores

NOTAS E COMENTÁRIOS

O papel das disciplinas de embasamento na formação acadêmica de administradores

Moema Miranda de Siqueira

Professora adjunta na Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em administração pela USP

1. INTRODUÇÃO

Este artigo, ao discutir o papel que as disciplinas ditas de' 'embasamento'' teriam na formação acadêmica de administradores, pode ser considerado um ato de coragem, na medida em que, provavelmente, suscitará discussões e oposições de grupos respeitados e tradicionais da área. No entanto, é justamente este caráter polêmico que lhe garante um potencial importante, no momento em que, mais do que nunca, questiona-se a formação dos administradores, com denúncias de má qualidade, inadequação às necessidades do mercado ou envelhecimento dos cursos (Fleury, 1983; Motta,.1983). Além disso, deve ser entendido a partir da explicação de alguns pressupostos, vistos quase como "verdade de fé"

Freqüentemente, professores das disciplinas ditas de "embasamento" nos cursos universitários de administração sentem-se inseguros em suas tarefas acadêmicas, alvos de diferentes pressões. De um lado, a estrutura curricular reserva-lhes o nebuloso papel de lecionar disciplinas de "apoio" ou cultura geral. De outro, sentem o menosprezo de colegas da área profissional, que julgam dispensáveis, ou pelo menos excessivos, os estudos teóricos na formação de administradores. Agravando esse quadro, os alunos, ansiosos em relação às dificuldades do mercado de trabalho, acreditam que o adestramento técnico lhes garantirá maiores chances que uma formação mais generalista.

Isto faz com que, muitas vezes, os professores das disciplinas de "embasamento" cheguem mesmo a desenvolver sentimento de culpa ou formulem desculpas e atitudes de defesa por estarem lecionando matérias de cultura geral num curso orientado para a prática.

Neste artigo, são consideradas disciplinas de "embasamento" dos cursos de administração, a partir do currículo mínimo definido pelo Conselho Federal de Educação, as disciplinas de cultura geral, compostas de cadeiras da área humanística (direito, psicologia, sociologia, filosofia, política, história), contrapondo-se às disciplinas profissionalizantes das áreas técnicas de administração (vendas, finanças, pessoal etc.), e às disciplinas instrumentais (do ciclo básico, como matemática, estatística, teoria econômica, pesquisa operacional etc). Enquanto as primeiras visam formar hábitos de pensar rigorosos, desenvolver a capacidade analítica e explicar os esquemas de compreensão da realidade, as segundas informam e adestram em técnicas e conhecimentos imediatamente utilizáveis, tais como classificar custos, elaborar organogramas ou reduzir o número de operações.

2. OS PRESSUPOSTOS

O primeiro pressuposto das formulações aqui apresentadas diz respeito à concepção de universidade que se adota.

Não se trata de uma concepção idealista, mas considera-se que a universidade não é uma comunidade isolada da realidade social, um lugar neutro, refletindo, portanto, em si, toda a gama de problemas e contradições sociais. Dessa forma, ela não escolhe ou inventa os problemas, mas estes se impõem ao seu estudo e reflexão (Santos, 1978).

No entanto, se à universidade cabe, justamente, transformar o acontecimento em conhecimento, exige-se de seus integrantes uma formação científica ampla e sólida, capaz de permitir a apreensão da complexidade que é a realidade social. Só assim ela pode tornar-se o locus produtor de ciência, superando o papel de simples reprodutora de conhecimentos.

Por outro lado, a prática científica não se deve isolar em especializações desvinculadas e autônomas, sob o risco de fragmentar o real e converter o especialista mais competente em simplificador grosseiro.

Admite-se, portanto, que, além dos objetivos informativos - aumentar o volume de dados no universo de conhecimentos - e de automação - criar destrezas e habilidades - o processo de aprendizagem na universidade deve preencher também objetivos formativos, contribuindo para a formação da personalidade do profissional como ser social pertencente àquela realidade.

O segundo pressuposto deriva do anterior. Sem prender-se às discussões academicistas sobre a administração como ciência, arte ou mesmo técnica, aceita-se que, embora ainda não dispondo de uma teoria geral consistente, o conhecimento necessário para uma prática social coerente do administrador profissional envolve não apenas informações técnicas ou destrezas específicas, mas capacidade analítica e consciência crítica. É justamente esta posição que explica a formação acadêmica de administradores dentro de universidades, diferenciando-os dos técnicos de nível médio, dos profissionais treinados nas próprias empresas e em cursos paralelos do sistema. Não se trata de competir com tais instituições na formação de profissionais, mas de definir um perfil distinto para seu produto.

A formação acadêmica do administrador diferencia-o do técnico, voltado para a "rotinização" e as regras e cuja destreza técnica representa o maior peso da profissionalização. Diferencia-o, também, do "tomador de decisões", dos executivos, aquela espécie de líder que cuida da exceção e cuja bagagem individual - de aptidões e valores - é o principal suporte à atividade profissional (Castro, 1974).

Defende-se o perfil do administrador como um agente de mudança, formado numa universidade que assuma sua função estratégica na construção de uma sociedade mais justa e efetivamente democrática, que estará mais preocupada em formar "profissionais" que informar futuros técnicos, estimular seres criativos e questionadores antes que meras estações repetidoras (UFUb, 1985).

3. O PROFISSIONAL E O MERCADO DE TRABALHO

A discussão sobre a quantidade e a qualidade adequada de profissionais a serem formados pelas universidades pode ser conduzida a partir de dois enfoques distintos.

O primeiro defende a definição da oferta e do perfil do profissional a partir de demandas específicas, expressas principalmente por expectativas ou ofertas de emprego no mercado. Corresponderia a uma estratégia reativa.

Já o segundo, sem desconsiderar a realidade social, mas consciente do papel indutor de mudanças da universidade, preconiza uma estratégia pró-ativa, na qual o aparelho de recursos humanos pode, através da introdução de profissionais conscientes e criativos, provocar mudanças no aparelho prestador de serviços da sociedade, inclusive criando novas demandas.

No momento em que se vislumbra no Brasil o florescimento de um pluralismo característico das sociedades democráticas, parece oportuno defender-se a formação de um profissional capaz de atuar em associações de bairros, cooperativas, comunidade de base, sindicatos, partidos políticos e outros campos novos à espera de formas organizativas inovadoras, além de seu tradicional campo nas empresas (Siqueira, 1982).

Advoga-se, portanto, uma estratégia pró-ativa na definição da qualidade e quantidade de profissionais de administração a serem formados na universidade.

4. EVOLUÇÃO DA PRÁTICA SOCIAL DO ADMINISTRADOR

As considerações feitas nos remetem à discussão da prática social do administrador, que, embora historicamente - mais do que qualquer outro profissional - tenha sido condicionado à mediação, vê expandirem-se suas possibilidades de atuação.

O esquema de Ansoff sobre o "gerente mutável" pode facilitar a análise.

Mostra ele que a administração surgiu de baixo para cima, através de um profissional essencialmente empreendedor. À medida que as forças produtivas cresciam e se diferenciavam, foi sendo exigida uma atenção administrativa especial, passando os administradores a se especializarem em produção, marketing, finanças, P&D etc., configurando-se os especialistas funcionais.

A compreensão da força que o ambiente exercia e a necessidade de se estar preparado para entendê-lo, e nele atuar, propugnaram por um administrador genérico, que, embora com conhecimentos especializados nas áreas funcionais, tivesse capacidade de perceber as inter-relações e os determinantes sociais dos aspectos gerenciais. A letra T foi inclusive utilizada como ilustrativa desse novo profissional.

Hoje, a característica fundamental do profissional de administração deve ser sua abertura à mudança, sua supergeneralidade, mais próxima da letra A do que da T (Ansoff, 1981).

A figura seguinte visualiza a evolução.

5. A COMPOSIÇÃO CURRICULAR E AS DISCIPLINAS DE EMBASAMENTO

Pelo exposto, a composição das disciplinas no currículo de formação de administradores deverá necessariamente incluir matérias capazes de desenvolver nos estudantes o conhecimento e as habilidades genéricas para a administração, permitindo que cada um escolha, em seguida, a especialização que melhor se ajuste a seus interesses e aptidões.

Com a velocidade e intensidade das mudanças na sociedade contemporânea, a compreensão da dinâmica sócio-econômico-política torna-se mais importante que as técnicas operativas especializadas, passíveis inclusive de alterações constantes neste ambiente mutável. Por exemplo, mecanismos de isenção de imposto de renda ou características financeiras das taxas de open são condições técnicas que se alteram em função das contingências ambientais, exigindo do administrador capacidade para identificar essas últimas, substituindo por novas técnicas aquelas apreendidas na situação anterior.

Portanto o objetivo último é formar um profissional que capte de maneira rápida e eficiente a estrutura social em permanente mudança, para nela atuar, construindo e reconstruindo-a quotidianamente. Para isso, o papel das disciplinas de "embasamento" é crucial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ansoff, H. Igor. Do planejamento estratégico à administração estratégica. São Paulo, Atlas, 1981.

Castro, Cláudio de M. A profissionalização do administrador e o amadorismo dos cursos. In: Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, 14(2): 59-66, mar./abr. 1974.

Fleury, Paulo F. O ensino de graduação em administração no Brasil: um estudo de casos. In: Revista de Administração de Empresas, 23(4), 29-42, out./dez. 1983.

Motta, Fernando C. A questão da formação do administrador. In: Revista de Administração de Empresas, 23(4), 53-5, out./dez. 1983.

Santos, José Henrique dos. Discurso de posse no cargo de vice-reitor da UFMG. Boletim Informativo da Reitoria, UFMG, (260), 27 out. 1978.

Siqueira, Moema M. de. Administrador de organizações: uma proposta alternativa. In: Departamento de Ciências Administrativas. A formação do administrador. Belo Horizonte, Face/UFMG, 1982.

Universidade Federal de Uberlândia. O que tem sido a universidade. Uberlândia, Pró-Reitoria Estudantil e de Extensão, 1985.

  • Ansoff, H. Igor. Do planejamento estratégico à administração estratégica. São Paulo, Atlas, 1981.
  • Santos, José Henrique dos. Discurso de posse no cargo de vice-reitor da UFMG. Boletim Informativo da Reitoria, UFMG, (260), 27 out. 1978.
  • Universidade Federal de Uberlândia. O que tem sido a universidade. Uberlândia, Pró-Reitoria Estudantil e de Extensão, 1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
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