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A doença começa com a incapacidade de lidarmos com o externo e termina com a capacidade de entendermos o interno

EDITORIAL

A doença começa com a incapacidade de lidarmos com o externo e termina com a capacidade de entendermos o interno

É muito sigrnficativo o diálogo entre o físico Fritjof Capra e oncologista e psicoterapeuta Cart Simanton, relatado em Sabedoria Incomum (Cultrix, 1990, p. 152-165): "...posso dizer e repet!r a um paciente, mediante metáforas, que não conseguiremos tirar uma doença enquanto ele não estiver pronto para deixá-la, que sua doença serve a vários propósitos úteis".

Símonton e sua esposa Staphanie têm desenvolvido um trabalho pioneiro e singular no tratamento do câncer desde os anos 70, quebrando várias paradigmas sobre os conceitos de doente, doença, cura, autocura e processo de cura, uma vida quase totalmente dedicada à pesquisa, ao apoio a seus pacientes e a palestras sobre resultados alcançados. O empenho pessoal com seus pacientes, a ponto de jamais esperar que os mesmos aceitem algo que eles mesmos não tenham experimentado, tem construido um respeito na comunidade científica próximo ao de uma santidade. "Eles (os pacientes) não estão prontos para estarem agir de maneirasaudável; sua família e a sociedade em que vivem não estão dispostas a tratá-los de maneira diferente; e assim por diante", enfatiza Simanton em seu diálogo com Capra em dezembro de 1978.

As organizações adoecidas apresentam comportamento semelhante. A estrutura de poder, procedimentos, sistemas, crenças e valores em que estão mergulhados seus recursos acabam por engessar a capacidade das organizações reagirem competitivamente, pois estão fragmentadas pelas experiências dolorosas que vão vivenciando ao longo do seu ciclo de vida. A doença, como identificou Simanton para seus pacientes com câncer, surge quando não se consegue mais dedicar energia para garantir o funcionamento da realidade que é construída com base na imagem da própria fragmentação. Em termos organizacionais, quando não se é mais capaz de unidade de ação na diversidade das dimensões competitivas.

Da mesma fmma como os pacientes costumam ficar aterrorizados qumdo são informados que não têm mais sintoma algum de doença que "estavam usando como muleta paro continuarem vivendo", no dizer de Simanton, as organizações correm o risco de ao passarem por terapias radicais de mudança descobrirem que terão que enfrentar os mesmos velhos problemas estressantes de seu nicho de mercado e de sua realidade interior fragmentada e podem, como os pacientes de Simanton, ter recaída. Precisam da doença pois "as doenças são solucionadoras de problemas", reforça o grande oncologista, pois elas descobrem a nossa incapacidade de resolução sadia de nossos problemas". Novamente, em termos organizacionais, é mais fácil encontrar regras, procedimentos, penalidades e bodes expiatórios como rota patológica de fuga (expressão de Capra) do que estabelecer um processo construtivo de solução.

O neurologista, professor e - escritor inglês Oliver W. Sacks em sua recente obra Um antropólogo em Marte (Companhia das letras, 1995) narra sete casos clínicos de sobrevivência após radicais alterações de candições neurológicas que variam entre a sindrome de Tourette, o autismo, a amnésia e -o daltonismo total. Embora únicos todos eles são demonstração evidente da capacidade de adaptação- e até de transmutação, segundo o autor- dos organismos humanos, em direção a uma nova ordem organizacional compatível com um contexto neurológico acidentalmente alterado. "Ao que me parece", afirma Sacks, "quase todos os meus pacientes, quaisquer que sejam seus problemas, buscam a vida -e não apenas a despeito de suas condições, mas por causa delas e até mesmo com sua ajuda". Esta busca implica um paradoxo - tese central de seu livro - de que toda doença tem um potencial criativo capaz de revelar a real identidade do ser humano, um potencial criativo capaz de encontrar meios de sobrevivência psicológica que implica em fugir da própria solução da doença, como descobriu Simanton.

Pesquisadores como Sacks e os Simantons esqueceram o ambiente frio dos hospitais e suas terapias geralmente radicais para pesquisar a vida dos pacientes no mundo real, certo de que "a forma como eles e seus cérebros constroem seus próprios motivos, não pode ser totalmente compreendida pela observação do comportamento do exterior", conforme desabafa Sacks. Inspirado em seu pai, clinico geral, que considerou relutante, a própria aposentadoria aos noventa anos desde que a famílía tolerasse, pelo menos, as consultas que fazia a domicílio, Sacks provavelmente rendeu-se a evidência de que a radicalidade deve ser mais um atributo do médico em explorar a identidade e os mundos profundamente alterados no interior dos pacientes, do que um atributo da particular terapia "externa" que utiliza.

A metátora. da organização enquanto um organismo adaptativo, capaz de aprender, adoecer e a reagir espetacularmente a acidentes e a tratamentos como seres humanos leva ao questionamento muito mais dos consultores e dirigentes organizacionais - suas "terapias" de mudança - do que das próprias organizações a eles submetidas. A ansiedade pelos resultados imediatos tem levado consultores e dirigentes a considerarem - assim como muitos médicos - que os interesses do "paciente" têm maior relevância que a própria qualidade de vida e saúde organizacional.

Lembra Simanton que "historicamente, todo curador era considero uma pessoa saudável" e que "hoje isso não é mais verdade". Prescrever terapias e medicamentos radicais começa nas faculdades de medicina e nas escolas da administração. Talvez seja hoje o caso de começar a cuidar da saúde humana e organizacional a partir da saúde dos futuros terapeutas.

Prof. Marilson Alves Gonçalves

Diretor e Editor da RAE

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Out 1995
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