RESENHA BIBLIOGRÁFICA
Afrânio Mendes Catani
Professor no Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação da Unesp (Araraquara)
Ianni, Octávio. Revolução e Cultura. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1983. 134 p.
Em certo sentido, Revolução e cultura vem a ser a retomada de uma série de temas já presentes em trabalho anterior de Ianni, qual seja, Imperialismo e cultura (1976). Autor de pelo menos uma dúzia de livros - entre os quais se destacam O Colapso do populismo no Brasil, Raças e classes sociais no Brasil, Estado e planejamento econômico no Brasil, Ditadura e agricultura - neste Revolução e cultura, dedica-se à América Latina, onde as revoluções burguesas e socialistas levantam "problemas culturais de grande interesse, talvez ainda pouco conhecidos". E a análise desses problemas ajuda na explicação das revoluções, bem como levanta tópicos importantes para o estudo das ciências sociais, das artes, da filosofia, dos movimentos sociais e dos partidos políticos. Segundo o autor, "toda revolução abre novos problemas de cunho cultural, ao mesmo tempo que recoloca as implicações culturais das lutas sociais passadas. Além de abrir perspectivas novas, cada revolução redescobre o passado e o presente" (p. 9).
Uma das idéias centrais desta obra é a de que, nas ocasiões revolucionárias, a cultura também acaba sendo colocada em xeque, simultaneamente com as condições sociais, econômicas e políticas. A partir dessa perspectiva, vários aspectos da história cultural dos países latino-americanos podem ser examinados: "civilização, barbárie e exotismo; a revolução burguesa e a questão nacional; as relações da ciência, arte e filosofia com os movimentos da sociedade; o compromisso e a distância entre o intelectual e as lutas sociais; as diferenças e as relações entre cultura 'erudita' e 'popular'; o romance da tirania; a transformação das idéias em forças sociais; a cultura do socialismo; a contribuição das revoluções de base operário-camponesa para a teoria da revolução socialista" (p. 9/10).
Ao longo dos sete capítulos de seu texto, Ianni se empenha no sentido de dar conta desses vários aspectos da história cultural arrolados no parágrafo anterior, sempre procurando evitar que a análise descambe para um tratamento culturalista. Isto é, não perde de vista as perspectivas econômica, política e social e a maneira pela qual elas interagem com a cultural. Através da transcrição e comentário de longos trechos dos escritos de, por exemplo, Simón Bolívar, Ianni elucida o quadro em que se insere a nossa dependência cultural. Em seu Discurso de Angostura (1819), Bolívar já falava que "não somos europeus, não somos índios, mas uma espécie de média entre nativos e espanhóis (...). Tenhamos presente que o nosso povo não é europeu nem americano do norte; é mais uma mescla de Africa e América que uma expressão da Europa (...) . É impossível dizer com propriedade a que família humana pertencemos (...). Atado ao triplo jugo da ignorância, tirania e vício, o povo americano não pode adquirir nem saber, nem poder, nem virtude".
Durante todo o período colonial, as sociedades formadas na América Latina se baseavam no trabalho compulsório, principalmente sob a forma de escravatura. Negros e índios foram escravizados com a finalidade de produzir para as metrópoles e para o consumo dos governantes e senhores nas colônias. Na condição de escravos ou semi-escravos viviam os índios, mestiços, negros e mulatos, desenvolvendo-se a partir daí um largo processo de divisão social e racial do trabalho, conduzindo a uma estrutura social rígida (p. 14). No Brasil colônia, a estrutura social apresentou composição semelhante à dos demais países vizinhos, sendo que essa estratificação social e racial persistiu mais ou menos semelhante ao longo do século XIX, ao final do qual se dá a abolição da escravatura. E essa abolição, logicamente, "não apagou de imediato a cultura produzida em cerca de três séculos de trabalho escravo e semi-escravo. Também no século XX entraram os desdobramentos sociais, raciais e culturais do passado escravista, como herança de desigualdades que se recriam com as desigualdades e contradições de classes" (p. 15).
Na seqüência, Ianni explora outros aspectos que anunciara na apresentação de seu livro, quais sejam: a ação do imperialismo norte-americano sobre a região, detalhando um pouco mais a dominação cultural daquele país sobre Porto Rico, Chile, Cuba e Nicarágua (cap. 3); o cosmopolitismo dos intelectuais e as suas produções, mostrando que ocorre o divórcio entre o intelectual - a "classe culta" - "com a sua produção cultural, por um lado, e o 'povo-nação', camponeses, operários e mineiros, ou índios, negros e brancos, por outro" (cap. 4); as transformações culturais ocorridas em Cuba e Nicarágua, após a irrupção das revoluções antiimperialistas (cap. 6); etc. Além disso, dedica todo um capítulo ("Carnavalização da tirania") ao comentário de romances, estudos e biografias escritos por latino-americanos acerca da ditadura, da figura do ditador e, enfim, sobre o processo de representação política e das alianças de classes que se estabelecem na região. Para esta empreitada utiliza-se, entre outros, de Jesus de Galindez, Astúrias, Roa Bastos, Alegria, Neruda, Garcia Marques, Oduvaldo Viana Filho e Ernesto Gardenal. Assim, "Pablo Neruda, em Canto geral, trabalha largamente os verdugos e as oligarquias. Além dos conquistadores e libertadores, camponeses e operários, índios e negros, trabalha as tiranias..." (p. 91). Dentro dessa visão, a figura do ditador está presente como produto e símbolo da opressão, do imperialismo: "é longa a procissão dos ditadores, atravessando a História. Cada um segundo o seu tempo: Francia, Diaz, Gomez, Estrada, Ubico, Trujillo, Stroessner, Médici, Pinochet, Anaconda Copper Mining Co., United Fruit Co., International Telephone and Telegraph Corporation (ITT) e outros tantos ainda serão os ditadores neste hemisfério" (p. 92).
Revolução e cultura é indispensável aos que pretendem ter em mãos uma breve história da cultura da América Latina, embora em algumas passagens o autor frustre o leitor, devido ao não-aprofundamento de alguns tópicos. De qualquer maneira, Ianni sempre está com as antenas bem sintonizadas, e oferece o que há de mais atual em cada um dos assuntos aos quais se dedica - e apenas isso já seria motivo suficiente para recomendar a leitura desse livro polêmico e criativo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Jun 2013 -
Data do Fascículo
Mar 1985