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Considerações sobre o fenômeno urbano no Brasil

COMENTÁRIOS

Considerações sobre o fenômeno urbano no Brasil* * Trabalho apresentado no Seminário Latino-americano sobre Desarrollo y Política Social, Genebra, out. 1970.

Heleieth Iara Bongiovani SaffiotiI; Maria das Graças Grossi AckermannII

IProfessora titular de Sociologia, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara

IIMonitora do Institut d'Étude du Dévéloppement Économique et Social, Paris

Tornou-se corrente no vocabulário sociológico, assim como no das disciplinas que, direta ou indiretamente, abordam o fenômeno da urbanização, o uso de certas expressões tais como "urbanização patológica" e "hipertrofia das cidades" para significar a ausência ou a fraca correspondência de nivel entre o crescimento das populações urbanas e o das atividades industriais. Verifica-se, pois, empiricamente, de um lado, o aparecimento de grandes centros urbanos e, de outro, a debilidade e heteronomia de seu suporte econômico, ou seja, das atividades tipicamente urbanas, mais especificamente, industriais.

Embora a análise de todo o esquema que suporta semelhante concepção situe-se além dos limitados objetivos desta comunicação, impõe-se, pelo menos, a explicitação de algumas de suas idéias básicas.1 1 Ainda que se deixe sem exame os conceitos de urbano e de rural e os de desenvolvimento e de subdesenvolvimento que, todavia, devem ser objeto de análise posterior, dada sua importância para o tema aqui tratado, há que se comentar a concepção ingênua subjacente à idéia de urbanização hipertrófica. O conceito de "urbanização anómala" embasa-se num enfoque dos países periféricamente integrados no capitalismo internacional como unidades nacionais que, no decorrer da realização de seu tipo estrutural, idêntico ao das sociedades colonizadoras ocidentais, se revelariam capazes, pelo menos potencialmente, de percorrer as etapas já atravessadas pelas sociedades hegemônicas. Ainda que explicitamente seja negada, com certa freqüência, a idéia de que a história das formações econômico-sociais capitalistas centrais se repita na periferia, na verdade, não é senão ela que permite aos estudiosos esperar a ocorrência de níveis semelhantes na taxa de industrialização e na taxa de urbanização dos países atualmente designados subdesenvolvidos. A caracterização do fenômeno urbano nas sociedades periféricas como patológico e de parcela de suas populações urbanas, não rigorosa e regularmente comprometidas com atividades profissioqeis características das cidades, como marginais, deriva, portanto, de uma ótica deformada pela análise da história das sociedades colonizadoras.

De outra parte, semelhante modo e pensamento, não somente não procura desvendar, como encobre a verdadeira natureza das relaçies entre o centro e a periferia do capitalismo internacional ocultado ainda as várias combinações possíveis desta relaçies de dominalçai-subordinação com os característicos locais de cada unidade naciona periférica. E residem, sem dpuvidas, nestas combinações, os fatores explicativos da chamada "hipertrofia urbana do terceiro mundo".

Nesta perspectiva é que se tentará aqui examinar a urbanização brasileira, isto é, suas vinculações com os fenômenos econômicos e políticos, quer na suas dimensões internas, quer nas exteriores. Em outros termos, o Brasil será visto como peça de um complexo sistema de proporções mundiais que, todavia, conserva um grau variável de autonomia na realização histórica de seu tipo estrutural. Explicitando ainda uma vez, a ótica desta comunicação prende-se estreitamente à idéia de que o modo de produção capitalista realiza-se de maneira específica nas nações periféricamente integradas no capitalismo internacional. Neste sentido, a urbanização deixa de ser hipertrófica ou patológica para ser simplesmente específica.

Se, embora legítima, a busca de correlações entre modo de produção e dimensão urbana da vida social parece demasiado genérica para explicar todas as manifestações de certos tipos de fenômenos correntes no mundo atual, há que se diferenciarem os esquemas teóricos no sentido de torná-los aptos a percorrer as mediações responsáveis pelas diferenças verificadas entre sociedades pertencentes a um mesmo tipo estrutural e capazes também de desvendar as raízes desta diversidade, sem desvinculá-las de sua matriz comum. Abdicar da tentativa de reelaboração constante do esquema teórico envolve o sério risco de se perceber ou apenas a unidade dos fenômenos ou somente sua diversidade, quando o interesse científico reside exatamente na captação e explicação da diversidade do único.

Não foi, porém, este o princípio norteador de certas análises de Andrew Gunder Frank.2 2 Capitalism and underdevelopment in Latin America. New York, Monthly Review Press, 1967. Especialmente partes 3 e 4. Com efeito, através da idéia de satelitização em vários níveis dentro de uma mesma unidade nacional e entre diferentes países, o referido autor acaba por tornar invariável e julgar constantemente válida a relação de dominação do campo pela cidade.3 3 Ainda que sob a linguagem da subordinação da agricultura à indústria, a referida relação é afirmada, como se pode verificar na p. 246 do Capitalism and underdevelopment in Latin America.

De fato, a relação de dominação do campo pela cidade, característica dos países de capitalismo originário, nem sempre se verifica naqueles colonizados pelos primeiros. Nestes ela foi possível graças à diferenciação da produção, ao aparecimento de novo modo de organização desta produção e à passagem de certas funções, antes desempenhadas pelo campo, para os núcleos urbanos. Ainda que o campo continuasse a ser a fonte produtora de uma série de bens econômicos, havia entrado num processo que o transformava, crescentemente, em produtor de matérias-primas para a indústria. Na verdade, pois, é a cidade que se vai constituindo, cada vez mais, como o pólo mais importante da produção. E, nesta medida, vão sendo construídas, simultaneamente, as bases de sua dominação sobre o campo, quer por sua capacidade de roubar funções àquele, de absorver mão-de-obra e de acelerar o ritmo da produção, quer pelo seu poder de expansão rápida e de submissão e de desorganização de outras economias.

O importante a reter é que as cidades que nascem com o capitalismo não podem constituir-se enquanto organismos parasitários. Ao contrário, na base de seu nascimento estão suas funções de natureza nitidamente econômica. Mais do que isso, as cidades capitalistas são núcleos de um tipo revolucionário de atividade econômica, o que lhes permite comportar-se como centros irradiadores de novos bens e serviços e de novas necessidades exigindo alteração dos hábitos de consumo. Ainda é a cidade, através de suas atividades econômicas e de seus centros de poder, que realiza a ampliação do domínio das sociedades centrais para fora de si próprias, ou seja, nas áreas que se constituem como colônias. Dada a natureza das atividades econômicas destas últimas e de suas metrópoles, a relação colonizador-colonizado pode ser assimilada à relação cidade-campo. Todavia, este não é senão um aspecto da questão, restando por examinar a atuação pelo menos dos principais fatores que interferem diretamente na engrenagem produtiva das colônias.

Desde o início da colonização do Brasil sempre foi possível encontrar um produto primário destinado à exportação e capaz de servir aos interesses do colonizador. Do ciclo do pau-brasil ao do café, passando-se pelo da cana-de-açúcar, do cacau, da borracha, o pólo produtivo da economia brasileira foi, exclusivamente, até época muito recente, rural. Em outros termos, a produção stricto sensu consistia em atividade primária. É verdade que o momento da comercialização do produto realizava-se nas cidades, onde se implantaram os serviços destinados às operações de exportação. Assim, não se tratava de cidades meramente parasitárias, no sentido de carentes de função; ao contrário, desempenhavam elas papéis importantes de comercialização e de administração. E, a título de remuneração de .serviços, apropriavam-se de parte da mais valia gerada no processo produtivo que, entretanto, se situava fora delas. A natureza e o ritmo de suas atividades econômicas, porém, dependia diretamente do setor agro-exportador. Deste ângulo, a relação entre cidade e campo no Brasil colonial apresenta-se inteiramente diversa daquela verificada desde o aparecimento do capitalismo nos países colonizadores. As cidades coloniais brasileiras preenchem funções determinadas pelo .pólo produtivo, que é rural, e, neste sentido, podem ser caracterizadas como subsidiárias àquele. Não se trata, porém, de uma simples inversão das relações de dominação. Não há, por parte do campo, nenhuma pilhagem de um excedente econômico urbano, já que as cidades não desenvolviam atividades econômicas autônomas. Ao contrário, é o excedente econômico gerado pela economia agrária que será parcialmente distribuído entre agentes econômicos urbanos.

Cabe ainda acrescentar a ausência de trocas significativas entre o campo e a cidade. As atividades econômicas de um e de outra conjugam-se a fim de levar a bom termo a realização de um consumo maciçamente externo. Do êxito deste consumo exterior dependiam a sobrevivência e a expansão das atividades econômicas agrárias e, conseqüentemente, citadinas. Observa-se, pois, de um lado, que apenas dois setores de atividades econômicas constituem-se: o primário e o terciário, ainda assim precária e fragmentariamente. As importações deveriam satisfazer necessidades de bens e serviços não produzidos na colônia, notadamente no setor dos secundários. Na medida em que o Brasil colonial e, posteriormente, o Brasil imperial subordinavam-se às economias industriais, sobretudo à Inglaterra, os vínculos entre estes dois tipos de unidades componentes do capitalismo mundial caracterizavam-se pela subordinação do campo, representado este pela produção agrária da colônia, à cidade, centro de decisão e de produção industrial metropolitano. As cidades coloniais, por sua vez, dadas as suas funções subsidiárias ao setor agro-exportador, só podiam constituir núcleos limitados, localizados fisicamente segundo as conveniências da economia agrária, isto é, junto ao mar, e sem vinculações entre si.

Não cabe, pois, pretender para esta fase histórica uma rede urbana articulada e hierarquizada. Uma vez que as atividades econômicas, quase exclusivamente agrárias, estiveram sempre voltadas para o exterior, não havia condições objetivas para o aparecimento do fenômeno da regionalização. A produção diferenciou-se nas várias regiões, cada uma alimentando ao menos uma cidade que funcionava como escoadouro das mercadorias exportáveis, dando origem à verdadeira especialização regional ainda hoje passível de verificação, como é o caso da cana-de-açúcar, na zona da mata no Nordeste, do cacau, na Bahia, do gado, no Rio Grande do Sul. Todavia, a debilidade dos vínculos entre as regiões, fenômeno ainda mais acentuado se se considerarem as cidades, não permite que se vislumbrem sequer indícios de regionalização. Tanto assim era que o Brasil colonial e imperial contava apenas com três cidades significativamente grandes, todas elas portos de comercialização de um produto primário e/ou desempenhando funções administrativas: Recife, "capital do açúcar", Salvador, capital administrativa e "capital do cacau", Rio de Janeiro, ulterior capital administrativa e escoadouro da produção, antes de minérios, e, mais tarde, de café.

Em 1872, ano do primeiro recenseamento brasileiro e fase de franco crescimento da produção cafeeira, o Rio de Janeiro, capital do Império, já contava com mais do dobro da população de Salvador e com duas vezes e meia a população do Recife.4 4 Sempre que outra fonte não seja indicada, os dados demográficos aqui evocados foram extraídos das publicações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística dos recenseamentos do Brasil. Esta última cidade chega mesmo a perder população nos períodos de baixa acentuada da produção canavieira, como ocorreu entre 1872 e 1890, enquanto Salvador cresce muito ligeiramente neste período. O Rio de Janeiro, ao contrário, duplicou sua população neste mesmo lapso de tempo, passando a ter, no fim do intervalo, mais do triplo da população de Salvador e quase o quíntuplo da de Recife. Embora São Paulo, hoje a maior cidade brasileira, houvesse duplicado sua população no mesmo período, apresentava ainda em 1890 dimensões muito estreitas, não chegando o número de seus habitantes a representar sequer a oitava parte da população do Rio de Janeiro.

Todavia, esta é a época em que o café, produto de atividade agro-exportadora diretamente controlada por nacionais ao contrário do que ocorrera com o açúcar na fase colonial, conduz à criação de enormes riquezas de cuja partilha o proprietário rural brasileiro participa em melhores condições que no período anterior face aos compradores estrangeiros. Esta nova divisão da mais valia gerada pelo setor agro-exportador entre a burguesia agrária brasileira, situada no pólo da produção, e a burguesia comercial dos países hegemônicos, situada no pólo do consumo, vai permitir considerável acumulação de riquezas, com grandes repercussões no panorama citado.

Com efeito, entre 1890 e 1900, enquanto o crescimento de Recife é insuficiente para permitir-lhe recuperar a população perdida nos 18 anos anteriores, o de Salvador não chega sequer a atingir 18% e o Rio de Janeiro ultrapassa levemente os 55%. São Paulo vê sua população aumentada em mais de 350%, passando de 10» cidade do país, posto que ocupava em 1872, à quarta cidade em 1890 e à segunda em 1900. Nos 20 anos que se seguem, embora o ritmo de crescimento demográfico do Rio de Janeiro continue elevado, 42%, São Paulo quase duplica o número de seus habitantes. Trata-se, pois, de um fenômeno novo, ou seja, de um crescimento inédito das populações urbanas, profundamente ligado à economia cafeeira. Não sendo esta de caráter autárquico e utilizando em larga escala mão-de-obra assalariada, tornou possível um desenvolvimento considerável do comércio e de atividades artesanais e agrícolas, visando ao consumo interno das camadas populares. É verdade que a elite exportadora continua a garantir grande parte de seu consumo através da importação e que a principal atividade econômica do país permanece dirigida e determinada por um consumo realizado maciçamente no exterior. Mas, em contrapartida, há que se levar em conta as conseqüências demográficas da consolidação do Estado Nacional e fundamentalmente da instauração da República Federativa, ou sejam, o desenvolvimento das burocracias públicas, a expansão de organizações militares e de policiamento, o surgimento de serviços ligados à esfera da educação, da comunicação, da recreação etc, fenômenos altamente propiciadores do crescimento de setores médios urbanos.

Assim, o Rio de Janeiro, desde o início do século XIX sede do Reino Unido do Brasil e de Portugal e posteriormente principal porto de embarque das exportações de café, vai assumindo feições até então inéditas e adquirindo um equipamento urbano de distribuição de serviços capaz de atender, ainda que não na medida do desejável, uma população superior a um milhão de habitantes em 1920. Comparado ao Rio de Janeiro, São Paulo era, neste ano, uma cidade de dimensões bem modestas, não contando senão com cerca de 600 mil habitantes; mas, de outra parte, o número de seus habitantes já ultrapassava o dobro dos de Salvador e representava duas vezes e meia os de Recife. Não se trata, entretanto, de fenômeno idêntico ao que atualmente se costuma designar de urbanização. Os vínculos entre essas cidades são ainda nulos ou muito precários e todas elas continuam voltadas para o exterior. De outra parte, já se diferenciam das cidades coloniais.

Realmente, o fato de o circuito do capital realizar-se integralmente dentro do país vai permitir às cidades a diversificação de suas funções. Parte do excedente econômico gerado pelo café possibilita a importação de instituições citadinas européias, assim como de bens econômicos capazes de satisfazer necessidades nascidas dos contatos com o velho mundo e deixadas insatisfeitas pela produção nacional. Mas, ao lado desta justaposição entre campo e cidade em que esta figura como dependente daquele do ponto de vista econômico e de cidades estrangeiras representando verdadeiros modelos de vida social, as atividades que viriam, mais tarde, romper e mesmo inverter esta relação, multiplicam-se em conseqüência, parcialmente, da alta rentabilidade da economia cafeeira. Assim, enquanto o país contava com 50 estabelecimentos industriais em 1850, tal número elevou-se a 636, em 1889, a 7.400, em 1907 e a 13.336, em 1920. O capital gerado pela cultura do café e disponível para a indústria não foi, porém, empregado no quadro de uma política de distribuição mais ou menos uniforme de estabelecimentos industriais pelo país. Ao contrário, a confluência de vários fatores, dentre os quais cabe ressaltar as migrações internas e externas,5 5 Migração interna em direção ao estado de São Paulo: 1827-1899 - 935 pessoas 1900-1909 - 20.874 pessoas 1920-1929 - 225.183 pessoas Migração internacional: 1820-1880 - 426.826 pessoas das quais 21.229 p/est. S. Paulo 1880-1890 - 560.606 pessoas das quais 183.505 p/est. S. Paulo 1890-1900 - 1.129.315 pessoas das quais 757.787 p/est. S. Paulo Fonte: Camargo, J. F. Êxodo rural no Brasil. Rio de Janeiro, Conquista, 1960. levou, crescentemente a uma concentração de estabelecimentos industriais no sudeste do país, especialmente em São Paulo. Assim, a produção industrial deste estado já representava 16% da produção de bens secundários do país, em 1907, passando a representar 20% em 1914 e 33% em 1920.6 6 Simonsen, R. C. Brazil's industrial evolution. São Paulo, Escola Livre de Sociologia e Política, 1930.

O aparecimento de indústrias durante o Império e a Primeira República, porém, não se inseria num movimento de industrialização. Tal processo caracterizava-se, antes, enquanto industrialização intersticial, sem compor uma rede de indústrias interdependentes. Correspondendo a esta desarticulação industrial, melhor seria dizer manufatureira, verifica-se á existência de cidades com alto ritmo de crescimento e assumindo traços até então inexistentes, também inarticuladas entre si. A alta margem de lucro proporcionada pela, economia cafeeira, proporcionando condições vantajosas de reinvestimento no mesmo setor, e a conjuntura mundial atuavam no sentido de frear o emprego de grandes capitais em atividades econômicas secundárias. Assim, ainda em 1930, a metade dos empreendedores econômicos pertencia às camadas médias e 80% destes eram de origem estrangeira. Tal industrialização intersticial, assim como as atividades terciárias desenvolvidas nas cidades, subordinavam-se, em última instância, à marcha do setor agro-exportador que, por sua vez, flutuava segundo a conjuntura internacional. O periodo pós-colonial e anterior a 1930 assistiu a dois fenômenos intimamente ligados: a formação do Estado Nacional e a consolidação de urna nova forma de dependencia, traduzindo-se esta essencialmente pelos laços comerciais que atavam o país ao centro hegemônico do bloco ocidental de então. Ao longo deste período, sobretudo nas três décadas finais, situam-se repetidas pequenas crises do setor agro-exportador, vinculadas às intermitentes rupturas do padrão de funcionamento do mercado mundial. Se, por um lado, tais crises haviam sido insuficientes para romper o padrão de articulação entre a periferia e o centro e para dar origem a um processo relativamente autônomo de industrialização, por outro lado, contribuiu, através da industrialização intersticial, para o aparecimento de novas categorias sociais urbanas7 7 Proprietários de estabelecimentos industriais e de serviços, sobretudo comércio, e seus assalariados, além dos assalariados dos serviços públicos. capazes de absorver a produção interna que viria, mais tarde, satisfazer necessidades antes preenchidas por importações.

Com efeito, com o colapso da divisão internacional do trabalho em 1930, rompe-se o esquema de acomodações entre as forças sociais internas e externas e o setor agro-exportador expele grandes contingentes humanos que se dirigem para as cidades.8 8 Como a presente análise não se situa no plano dos comportamentos e das motivações individuais, deixarse-ão sem exame, dentre outros fenômenos, as conseqüências do efeito-demonstração no que tange às migrações internas. A partir, pois, deste marco, a urbanização não mais se subordinará ao espontaneísmo da industrialização intersticial. Ao contrário, predominará sobre a industrialização, ou seja, carecerá de suporte econômico. Este momento, que marca o início das manifestações urbano-industriais da realização periférica do capitalismo no Brasil, apresenta um novo tipo de concentração da renda nacional, responsável pela alteração das relações entre os três grandes setores das atividades econômicas, no plano interno da nação. Realmente, a partir daí, observar-se-á uma crescente dominação da indústria e dos serviços que ela engendra sobre o setor rural.

Na base da exploração dos estratos populares rurais reside a expansão quantitativa e qualitativa das necessidades de consumo da população citadina que, pressionando o mercado de trabalho e o Estado, desencadeia uma política estatal de privilegiamento das camadas populares urbanas em detrimento das rurais. As migrações internas em direção aos centros urbanos se intensificam, vindo somar-se ao elevado crescimento demográfico vegetativo. Embora a década de 1940 não haja assistido a tão grande êxodo rural quanto o ocorrido na seguinte, os dados disponíveis para o decênio mencionado fornecem uma idéia do peso da transumância no crescimento da taxa de urbanização no Brasil: as oito maiores cidades brasileiras sofreram um incremento natural médio de 29,2%, portanto de quase 3% ao ano, enquanto seu crescimento médio por imigração foi de 70,9%, ou sejam, 7,1% anuais.9 9 Camargo, R. C. A Cidade e o campo. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico S.A., 1968. Como o recenseamento brasileiro só começa a distinguir a população urbana da rural a partir de 1940, não se pode precisar a taxa de urbanização para os períodos anteriores, restando apenas a possibilidade, aqui utilizada, de se acompanhar o crescimento das maiores cidades e cotejá-lo com os totais de população dos estados e do país, informações estas registradas oficialmente pelo menos desde 1872. A taxa de urbanização passou de 31,1%, em 1940, 36%, em 1950, e a 45%, em 1960.10 10 São considerados urbanos pelo censo brasileiro os núcleos com mais de dois mil habitantes. Realizar-se-á no presente ano novo recenseamento. A população urbana para todo o país cresceu de 39% no decênio 1940-50 e de 54% na década seguinte, sendo que a região em que se inserem o Rio de Janeiro e Sãó Paulo apresentou ritmo bem mais elevado de incremento. A população rural, ao contrário, apresentou uma taxa de crescimento relativamente baixa e idêntica para as duas décadas em questão: 16%.

Evidentemente, ritmo tão acelerado de urbanização, situado no quadro de uma industrialização tipicamente de substituição de importações, veria esgotar-se rapidamente seus frágeis suportes econômicos. É bem verdade que entre 1939 e 1946 a indústria torna-se o setor mais dinâmico da economia brasileira, crescendo sua produção de cerca de 60%, enquanto a produção agrícola sofre um incremento de apenas 7% no mesmo período.11 11 Furtado, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1967. Ainda que este fato não deixe de ter significado, notadamente no que concerne à satisfação da demanda interna pela produção nacional, é preciso considerar que a implantação das atividades secundárias no Brasil nunca se fez com um aproveitamento maciço de mão-de-obra. Ao contrário, como resultado da concluência de vários fatores, dentre os quais as relações comerciais e políticas com o centro hegemônico do capitalismo mundial, o emprego da tecnologia impediu o pleno emprego do fator trabalho.

De outra parte, há que se registrar o fato de que, ainda em 1960, 47,3% da população economicamente ativa no Brasil dedicavam-se a atividades agrícolas,12 12 Slawiriki, Z. Les transformations structurelles de l'emploi dans le développement de l'Amérique Latine, in: Boletín Económico de América Latina, v. 10, n. 2 oct. 1965. aí inclusas as várias modalidades de subemprego. Assim, o Brasil, como também outros países periféricos, não teve a oportunidade histórica de poupar capitais numa industrialização com utilização intensiva de força de trabalho. Desta sorte, não obstante esteja a urbanização generalizada vinculada à industrialização, de certo modo, ela já havia sido preparada anteriormente a esta e a precedida. Ademais, ainda que se reconheça que a industrialização acelerou o ritmo da urbanização, este último fenômeno acabou por ganhar autonomia e passou a comportarse de maneira relativamente independente do primeiro. Ao contrário, nos países de capitalismo originário, não apenas a industrialização e a urbanização são fenômenos concomitantes, como também se verifica uma correspondência de nível entre eles. Não pode ser esquecido, como fator coadjuvante na produção e manutenção deste fenômeno, o fato de o setor agrário não ter sofrido mudanças significativas, quer no que tange à organização da produção, quer no papel que representa para a obtenção de divisas destinadas à importação de equipamentos.

Acresce ainda que, com o esgotamento do processo de substituição de importações inserido no quadro do restabelecimento das relações entre a periferia e o centro, em 1955, o Brasil sofre maciça penetração de investimentos estrangeiros. Do ponto de vista da relação de dependência, a mudança fundamental é que ela se caracterizará, progressivamente, mais como tecnológica e de capitais que como comercial. Pouco a pouco toma corpo o que habitualmente se chama de internacionalização do mercado interno.

Não obstante continuar a ser o café a principal fonte de divisas para o país, o ritmo de crescimento de seu setor econômico mais dinâmico, no sentido do atendimento da demanda interna, estará sempre na dependência direta da entrada de novas aplicações de capitais externos e da tecnologia que, geralmente, o acompanha. Esta tecnologia avançada permite um formidável crescimento da produção industrial, traduzido pela taxa média anual de 9,7%, durante o período 1954-58, e pela de 11,4% no intervalo 1955-61.13 13 Furtado, Celso. op. cit. Mas, a outra face do problema apresenta-se crescentemente mais grave: no primeiro período mencionado, a taxa média anual de incremento do emprego industrial não ultrapassou 0,2%, promovendo o inchaço de um setor terciário cuja composição e estrutura difere profundamente deste mesmo setor de atividades econômicas nos países ditos desenvolvidos.

Obviamente, semelhante modalidade de industrialização apresenta uma contradição interna bastante aguda: de um lado, revela a capacidade de crescer industrialmente de um país periférico e o coloca, pelo menos potencialmente, em condições de buscar mais ampla margem de autonomia de decisões econômicas e políticas; de outro lado, cerceia seu crescimento para além dos limites permitidos pela lógica do sistema capitalista internacional. De qualquer modo, esta modalidade periférica de realização do capitalismo urbano-industrial, na medida em que permite a operação de parte do parque industrial em escala ao menos próxima da ótima e insere no país a dependência anteriormente localizada fora dele, traz repercussões não negligenciáveis para a constituição de nova rede urbana. Evidentemente, o pano de fundo desta nova rede serão as velhas cidades coloniais ou imperiais, ligadas a uma economia exclusivamente agro-exportadora. Os grandes eixos de transporte lembrarão sempre os caminhos percorridos pelo café, origem da relevante concentração regional da indústria brasileira e de seu corolário, a lassidão da regionalização do país.

Entretanto, já se insinua claramente, na concentração industrial da região do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e de São Paulo, uma relação de interdependência e complementaridade entre os estabelecimentos industriais consumidores e produtores. A localização destas indústrias junto aos grandes mercados de consumo e/ou de matériasprimas e junto aos centros urbanos com capacidade de decfsão traduz o peso de uma concentração que, aos poucos, vai encontrando sua contrapartida num incipiente, mas crescente nível de integração entre o núcleo e sua região de influência, observada em indústrias orientadas para a agricultura ou consumidoras de matérias-primas regionais. Por vezes, esta tendência à regionalização é obstruída, no estado de São Paulo, onde, por influência sobretudo das empresas estrangeiras, mas também pela iniciativa privada nacional e mesmo pelo poder estatal, a grande metrópole absorve estabelecimentos industriais existentes em centros urbanos menores.14 14 Geiger, P. P. Les villes de fonctions industrielles et la régionalisation au Brésil. Instituto Brasileiro ás Geografia, mimeogr. Segundo este autor, entre 1955 e 1960, 75% dos investimentos industriais nacionais e estrangeiros dirigiram-se para São Paulo. Todavia, na região de São Paulo, já se observa certa solidariedade entre seu núcleo e sua zona de influência, articulando-se a rede urbana em termos da função industrial de centros urbanos intermediários e do surgimento de indústrias voltadas para o consumo regional.

Mais do que urna intensa regionalização na área de São Paulo, zona do país em que tal processo encontra-se em estágio mais avançado, cabe falarse, com Geiger, de uma macrorregião abrangendo Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro com suas respectivas zonas de influência. À concentração de 70% das atividades secundárias do país nesta macrorregião acrescenta-se a integração de um sistema de serviços elétricos, rodoviários, ferroviários e de comunicações que garante a persistência e a intensificação de relações crescentemente interdependentes. Mas, à medida que se vai atualizando esta macrorregionalização, vão sendo alimentadas as condições que impedem a integração do país como um todo. Os fatos estão, pois, a indicar que o livre jogo das forças econômicas nas sociedades capitalistas dependentes não favorece o surgimento de uma rede articulada de núcleos de diferentes dimensões, desempenhando funções complementares no processo de produção nacional. Resta verificar se nas formações econômico-sociais onde o nível político predomina sobre o econômico a planificação social logra determinar novas formas de conjugação das atividades econômicas e de ocupação do espaço.

  • 2Capitalism and underdevelopment in Latin America. New York, Monthly Review Press, 1967.
  • Fonte: Camargo, J. F. Êxodo rural no Brasil. Rio de Janeiro, Conquista, 1960.
  • 6 Simonsen, R. C. Brazil's industrial evolution. São Paulo, Escola Livre de Sociologia e Política, 1930.
  • 9 Camargo, R. C. A Cidade e o campo. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico S.A., 1968.
  • 11 Furtado, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1967.
  • 14 Geiger, P. P. Les villes de fonctions industrielles et la régionalisation au Brésil. Instituto Brasileiro ás Geografia, mimeogr.
  • *
    Trabalho apresentado no Seminário Latino-americano sobre Desarrollo y Política Social, Genebra, out. 1970.
  • 1
    Ainda que se deixe sem exame os conceitos de urbano e de rural e os de desenvolvimento e de subdesenvolvimento que, todavia, devem ser objeto de análise posterior, dada sua importância para o tema aqui tratado, há que se comentar a concepção ingênua subjacente à idéia de urbanização hipertrófica.
  • 2
    Capitalism and underdevelopment in Latin America. New York, Monthly Review Press, 1967. Especialmente partes 3 e 4.
  • 3
    Ainda que sob a linguagem da subordinação da agricultura à indústria, a referida relação é afirmada, como se pode verificar na p. 246 do
    Capitalism and underdevelopment in Latin America.
  • 4
    Sempre que outra fonte não seja indicada, os dados demográficos aqui evocados foram extraídos das publicações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística dos recenseamentos do Brasil.
  • 5
    Migração interna em direção ao estado de São Paulo:
    1827-1899 - 935 pessoas
    1900-1909 - 20.874 pessoas
    1920-1929 - 225.183 pessoas
    Migração internacional:
    1820-1880 - 426.826 pessoas das quais 21.229 p/est. S. Paulo
    1880-1890 - 560.606 pessoas das quais 183.505 p/est. S. Paulo
    1890-1900 - 1.129.315 pessoas das quais 757.787 p/est. S. Paulo
    Fonte: Camargo, J. F.
    Êxodo rural no Brasil. Rio de Janeiro, Conquista, 1960.
  • 6
    Simonsen, R. C.
    Brazil's industrial evolution. São Paulo, Escola Livre de Sociologia e Política, 1930.
  • 7
    Proprietários de estabelecimentos industriais e de serviços, sobretudo comércio, e seus assalariados, além dos assalariados dos serviços públicos.
  • 8
    Como a presente análise não se situa no plano dos comportamentos e das motivações individuais, deixarse-ão sem exame, dentre outros fenômenos, as conseqüências do efeito-demonstração no que tange às migrações internas.
  • 9
    Camargo, R. C.
    A Cidade e o campo. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico S.A., 1968.
  • 10
    São considerados urbanos pelo censo brasileiro os núcleos com mais de dois mil habitantes. Realizar-se-á no presente ano novo recenseamento.
  • 11
    Furtado, Celso.
    Formação econômica do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1967.
  • 12
    Slawiriki, Z. Les transformations structurelles de l'emploi dans le développement de l'Amérique Latine, in:
    Boletín Económico de América Latina, v. 10, n. 2 oct. 1965.
  • 13
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  • 14
    Geiger, P. P.
    Les villes de fonctions industrielles et la régionalisation au Brésil. Instituto Brasileiro
    ás Geografia, mimeogr. Segundo este autor, entre 1955 e 1960, 75% dos investimentos industriais nacionais e estrangeiros dirigiram-se para São Paulo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1973
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