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The homeless mind

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Olivier Udry

The homeless mind

Por Peter Berger, Brigitte Berger e Hansfried Kellner.

O objetivo desta obra é abordar a teoria da modernização por meio da sociologia do conhecimento, procurando mostrar quais as conseqüências da modernização, tanto sobre conhecimento como sobre países do Terceiro Mundo. Propõe-se um nível de discussão que tenha por ponto central de interesse e entendimento o operário médio comum.

O livro está composto em três partes: na primeira temos um pequeno ensaio sobre sociologia do conhecimento, referendado a nível empírico com a análise dos compostos principais da modernização: a produção tecnológica e a burocracia. O composto produção tecnológica desenvolve um conhecimento particular, sendo este internalizado pelo homem a partir de sua ação sobre o conhecimento adquirido. No entanto, a complexidade do composto é tal que o indivíduo vê-se reduzido à apreensão de apenas parte da realidade que lhe é apresentada. As formas de internalização deste conhecimento fundamentam-se em uma divisão entre meios e fins, característica principal do composto em questão.

Existe, em última análise, uma dissociação muito grande entre conhecimento da realidade e teoria do conhecimento real, traduzindo-se na ignorância do fim do seu trabalho, reforçada pelo fato de que esta abstração é implícita no composto referido.

Cada composto produz então um estilo cognoscitivo que é devidamente legitimado e divulgado pelas organizações, independentemente de alguns obstáculos em seu caminho avassalador. O que ocorre é a extensão destes conflitos à personalidade do indivíduo, levando a uma dicotomia, aliás muito empregada ao longo da obra, entre vida social e vida privada, implicando a adoção de diferentes papéis de comportamento com situações diversas e simultâneas.

No segundo capítulo, os autores colocam em discussão o composto burocracia, sendo sua principal característica o requerimento de um grau menor de relacionamento direto com a vida de um indivíduo do que o do composto anterior. Os diferentes graus de envolvimento da burocracia não se constituem em pressões tão acentuadas, visto que seu objetivo não é produtividade, e sim tornar-se indispensável através da transmissão de padrões de conhecimento e comportamento ("personalismo burocrático") fundamentados em seu próprio estilo cognitivo. Segue-se uma descrição do aparato burocrático, do tipo específico de conseqüências que ele gera ao nível do indivíduo, existindo neste ponto uma diferença nítida em relação ao composto anterior que é a não-separação entre meios e fins. O encontro entre os dois compostos dá-se ao nível da abstração explícita, ou seja, esta existe no composto produção tecnológica, mas não é disponível a qualquer instante, enquanto que na burocracia ocorre o inverso, principalmente em função de um certo tipo de comportamento, "a expectativa de justiça". Pelo fato de a ordem institucional estar muito mais segmentada na burocracia, o reflexo desta na esfera da vida privada é significativamente maior do que o reflexo derivado da produção tecnológica. A conseqüência principal disso tudo reside na alocação social do indivíduo pela burocracia, e em última análise, na função desta como elemento amortecedor do impacto de modernização, visto que ela possui os requisitos exatos para captação e posterior distribuição da energia contrária à modernização.

A partir da análise da pluralização de comportamentos sociais (capítulo 3), e de suas várias formas de manifestação ao longo da história, os autores procuram evidenciar os mecanismos de integração social destes; segundo eles, esta pluralização existe em função de dois aspectos característicos da sociedade moderna: vida urbana e comunicação de massa moderna. Decorre um fenômeno de padronização do comportamento como mito da "urbanização do conhecimento", fenômeno este que leva à "socialização" do conhecimento, caracterizada entre outras por uma atitude de "aprendiz de tudo e mestre de nada". A contrapartida desta "socialização" do conhecimento dá-se com a contracultura (tipo norte-americano) na busca de diferentes valores de identificação social. Há um certo destaque para a importância da religião como agente transportador de valores de identificação, paralelo ao fato de que a própria modernização contribui para destruir este papel através da pluralização de comportamentos sociais. Justifica-se então a discussão que vem a seguir sobre o obsoletismo do conceito de honra na sociedade moderna, dando margem à aparição do conceito da dignidade, mais apropriado à solidão do homem moderno, sustentando-se independentemente (o conceito) de qualquer atividade, padrão de comportamento, raças, sexo. etc. A diferença entre os dois conceitos reside no fato de que a dignidade está desvinculada de papéis institucionais, o que não se dava com a honra na aristocracia tradicional. Seria este um reflexo do enfraquecimento da institucionalização de comportamentos, oú um fortalecimento da coerência subjetiva, decorrente desta desinstitucionalização? Em meio a uma análise que procura ser antropológica, delineava-se a necessidade de redefinição da noção de identidade e da dignidade em reflexo contrário à industrialização. No entanto, os autores colocam como desejável o restabelecimento da honra, embora esta possa ensejar por sua vez um novo tipo de institucionalização.

Concluindo esta primeira parte, encontramos os alicerces de toda a discussão da parte seguinte, visto serem caracterizadas as formas de apropriação dos dois compostos trabalhados até aqui, produção tecnológica e burocracia, portadores do ethos capitalista em si. São utilizados de maneira precisa dois conceitos para a manipulação da teoria do conhecimento: o de composto propriamente dito e empregado desde o início, e o de transportador (Carrier), sendo este definido como um grupo social que produziu ou transmitiu elementos de um particular conhecimento. Existe uma série de relações entre estes conceitos, encontráveis na teoria das organizações, e resultantes de um processo histórico, delineando-se nesta teoria vetores institucionais variáveis, o principal sendo as relações de propriedade na sociedade moderna. Pela primeira vez na obra, os autores citam efetivamente suas correntes diretoras da abordagem referida; em termos claros, uma linha clássica de Durkheim e Max Weber, por considerarem Marx como analista demasiado enfatizante do capitalismo. O principal conceito utilizado, de Weber, é o da "reciprocidade causal" entre processos institucionais e de conhecimento ("afinidade eletiva"), por ser mais dialético que a abordagem de Marx, e por estar fundamentado na emergência da ética protestante. Parece preferível esta trilha onde a dinâmica das instituições pode melhor ser colocada, inclusive quanto à transmissão dos referidos compostos. Assim sendo, propõem os autores uma diferenciação necessária entre primary carriers e secundary carriers. Os primeiros são os agentes de modernização propriamente ditos (produção tecnológica e burocracia), enquanto que os demais compõem-se dos agentes socioculturais, gozadores de um certo grau de autonomia, como os aparelhos ideológicos (escola, igreja), a urbanização, vida privada, meios de comunicação de massa. A equivalência prática reside na existência de uma rede de definições cognitivas e normativas, enquadradas em uma instância simbólica específica, determinada pela modernização. Esta rede assume então as características dos compostos nos quais ela se assenta: racionalidade (no sentido weberiano), componencialidade, controlabilidade etc.

Chegamos assim à segunda parte do livro, onde os autores estudam modernização como sendo um processo de transmissão de pacotes, variando o impacto deste processo em função do contexto sociopolítico-econômico onde ele se produz. Assim, os países do Terceiro Mundo sofrem este impacto modernizante de modo peculiar, se considerarmos a intensidade do conflito entre os agentes transportadores secundários (culturais), visto que estes freqüentemente atingem um certo grau de autonomia; as diferenças básicas devem ser analisadas em função do quadro de referência principalmente no que diz respeito a concepções de trabalho e realização. A progressão do impacto modernizante é sucessivamente exposta, sem serem relegados a segundo plano os agentes econômicos, nem a produção tecnológica, muito menos a burocracia em função de sua maior adaptabilidade e de seu caráter político relevante. As conseqüências apontadas mostram a emergência de classes sociais que derivam seu poder e conhecimento do aparato burocrático (principalmente), atribuindo a este agente modernizador maior capacidade de alteração dos padrões sociais tradicionais, do que a própria produção tecnológica. Nesta perspectiva, o choque com os nacionalismos sociais altera a concepção de pobreza até então vista como natural, agora considerada como injusta, e que deve necessariamente ser modificada. À medida que a questão é reduzida à organização social da economia, os autores colocam sua discussão ao nível do conflito entre capitalismo e socialismo, sublinhando no entanto a existência, em países do Terceiro Mundo, de razões não-econômicas para uma tendência ao socialismo. Faltam no entanto as relações entre poder político e dinâmica socio-econômica, assim como os fatores que possibilitam a adoção de um certo modelo de modernização em detrimento de outros.

No capítulo seguinte encontramos a análise dos grupos sociais isolados do processo de modernização, embora esse isolamento raramente seja absoluto; nesta perspectiva a escola, como aparelho ideológico, assume importância destacada, paralelamente ao poder dos meios de comunicação de massas, isto porque a manipulação, direcionada à modernização, não pode executar-se somente no âmbito econômico, visto que seria excessivamente custosa, e que o homem vive de sonhos (a partir da realidade imaginária transmitida), donde a necessidade de penetração a nível perceptivo. Neste ponto deve ser ressaltada a característica de componencial idade que mencionamos acima, pois ela enseja uma forma bastante particular de apreensão do real, através de "pacotes", mais facilmente manipuláveis pelos interesses de uma determinada classe social.

A contribuição essencial deste enfoque é mostrar que existe uma relação inversa entre a duração das transformações sociais e o grau de coerção necessário para efetivá-las como tais.

A modernização é então passível de ser acompanhada pelos padrões tradicionais de conhecimento, gerando-se dois pólos de conhecimento, havendo necessariamente interação entre eles (cognitive bargaining), seja a nível de aceitação ou de resistência (com o surgimento de seitas messiânicas antimodernizantes). A ideologia modernizante procura, em última análise, integrar, trazer a ela a antiga instância simbólica. Será de vital importância, então, o tipo de ideologia respondente à modernização (aceitativa e legitimadora; resistente; englobante dos novos setores independentemente dos antigos). A interação entre os pólos de conhecimento poderá provocar tanto uma reintegração de identidade (com o socialismo, por exemplo), como uma nova identificação mais definitiva (permanência do capitalismo) com o novo contexto de referências.

A terceira e última parte aborda os aspectos antagônicos à modernização (contramodernização, demodernização), com maior destaque, mais uma vez, para as perspectivas oferecidas pelo Terceiro Mundo. Os autores procuram colocar-se numa linha não-funcionalista, racional, ou moderna; procuram identificar quais formas assume o aprendizado de demodernização, reduzindo-as a um objetivo por eles chamado de "neomístico", integrante do conhecimento pré-teórico, e não uma ideologia propriamente dita. Quaisquer que sejam as diversas correntes contramodernizantes, todas elas convergem de maneira geral contra a racionalidade funcional que molda a realidade atualmente. No entanto, existem limites de demodernização resultantes das estruturas atuais do conhecimento, das solicitações institucionais, nem sempre direcionais à reversão do status. No Terceiro Mundo, a contramodernização atua muito mais reforçada pela presença maciça de padrões culturais tradicionais; além do que, a estrutura de conhecimento destes países ainda não está definitivamente assentada em instituições, podendo observar com mais cuidado as experiências dos países mais avançados, calcados neste modelo. Neste aspecto, a liderança política bem direcionada poderá propor um modelo de desenvolvimento adequado às aspirações da sociedade como um todo.

As conclusões "políticas" propostas pelos autores mostram que o socialismo não pode ser colocado como perspectiva determinante para os países do Terceiro Mundo. (Aliás, a idéia de socialismo parece coincidir com o modelo empregado na União Soviética), justamente pelo fato de ser uma opção de desenvolvimento em paralelismo não-antagônico com a modernização. Neste nível de análise, a sociologia é colocada como assumindo um papel histórico de "filosofia do não", cuja função específica é trazer à tona os problemas cruciais de desenvolvimento. A procura de alternativas, no entanto, é referida a nível de instituições (e este ponto é fundamental à medida que revela a opinião dos autores sobre produção de conhecimento), e do conhecimento por elas produzido, legitimado e difundido. Lamentam apenas os autores, o fato de que as ciências sociais estejam divididas entre duas correntes, assim caracterizadas: cientificismo pedante (Skinner), e utopismo messiânico (Guevara), sendo que ambas levam cientificamente a um tipo qualquer de totalitarismo. Ao mesmo tempo que estas conclusões procuram sintetizar o espírito na obra, elas dão mostra das intenções dos autores de afirmar uma caracterização de produção e transmissão de conhecimento por um processo de institucionalização, qualquer que seja, mas praticamente irreversível e insubstituível.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Out 1976
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