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A HISTÓRIA DA THERANOS E AS LIÇÕES EXTRAÍDAS DE UMA GOTA DE SANGUE

BAD BLOOD: Fraude bilionária no Vale do SilícioCarreyrou, John. . Rio de Janeiro, Brasil: Editora Alta Books, 2019. 352 p.

Como uma startup do Vale do Silício que conseguiu a façanha de chegar a valer bilhões de dólares em poucos anos revelou-se uma das maiores fraudes empresariais da história recente americana? A ascensão e queda da empresa de biotecnologia Theranos e de sua fundadora, Elizabeth Holmes, é o tema deste minucioso trabalho de investigação jornalística do repórter do Wall Street Journal (WSJ) e vencedor de dois prêmios Pulitzer, John Carreyrou.

A empresa afirmava conseguir realizar centenas de exames (de colesterol, câncer, infecções, e até de gravidez) com apenas algumas gotas de sangue, por uma fração do preço e muito mais rápido do que os laboratórios tradicionais. Por tal proeza, sua fundadora e CEO, Elizabeth Holmes, chegou a ser comparada com Steve Jobs, da Apple.

O livro é dividido em duas partes. Os primeiros três quartos da obra (capítulos de 1 a 18) são narrados em terceira pessoa e tecem uma retrospectiva dos fatos anteriores ao primeiro contato do autor com o caso. Carreyrou relata desde como Holmes, ainda muito nova, soube tirar o máximo proveito das conexões de alto nível de sua família para atrair seus primeiros investidores, que não eram nem muito interessados em detalhes, nem muito céticos. O autor também revela como Holmes foi capaz de convencer um impressionante rol de outros apoiadores influentes com base no bom nome e reputação desses primeiros.

Dotada de uma elevada dose de charme, carisma e astúcia, Holmes partiu da promessa de uma tecnologia revolucionária com potencial de salvar milhões de vidas para construir uma narrativa inspiradora em torno de si. Assim, ela assumiu o papel de gênio precoce (que, em 2004, aos 19 anos de idade, largou o curso de Engenharia Química da Universidade de Stanford para fundar sua empresa) e símbolo vivo de progresso, inovação e empoderamento feminino.

Em um universo tecnológico apinhado de aplicativos voltados para economizar no aluguel e no transporte urbano, sua ambição quixotesca ecoou alto. Em pouco tempo, ela conseguiu cercar-se de um grupo de notáveis de reputação estelar, como os ex-Secretários de Estado americanos George Shultz e Henry Kissinger, que passaram a compor o conselho de administração da empresa.

Catapultada ao estrelato por força de todos esses predicados, Holmes conseguiu levantar centenas de milhões de dólares de capital de risco e fechar contratos milionários. Surpreendentemente, conseguiu isso sem jamais apresentar evidências reais de que sua tecnologia, de fato, funcionava. Um desses contratos foi firmado com a grande rede farmacêutica Walgreens para oferecer esses exames ao público em geral.

No seu apogeu, a Theranos chegou a ser considerada um dos mais promissores unicórnios - startups com valor acima de 1 bilhão de dólares -, com seu valor de mercado avaliado em 9 bilhões de dólares. Nessa ocasião, a empresa experimentou um crescimento exuberante, atingindo um contingente de 700 empregados, incluindo renomados pesquisadores com PhD.

Foi a partir daí que, em 2013, quando chegado o momento de honrar o acordo com a Walgreens, a coisa toda começou a se desfazer. Alguns empregados da Theranos, cientes de que os testes não funcionavam e de que isso poderia pôr em risco as vidas dos pacientes, começaram a se questionar e procurar maneiras de expor a verdade.

Neste ponto, começa a segunda parte do livro (capítulos de 19 a 24). O autor passa a adotar uma narrativa em primeira pessoa e relata sua atuação no desemaranhar dessa que provou ser uma grande farsa conspiratória. A partir de uma dica de um conhecido familiarizado com o caso, Carreyrou deu início a uma meticulosa investigação, construindo um caso contra a Theranos com base principalmente em denúncias de alguns corajosos ex-funcionários.

Apesar de seriamente ameaçados por quebra de sigilo pela empresa, estes apresentaram evidências suficientes para que, em 2015, o autor e seu editor, com o suporte de seus advogados, publicassem no WSJ uma série de artigos sobre o caso. Tais artigos acabaram por desmascarar todo o esquema fraudulento encabeçado por Holmes e seu assessor direto, Sunny Balwani, então presidente e COO da empresa.

Por mais extraordinária que tenha sido a forma como Holmes conseguiu, por tanto tempo, enganar investidores, clientes, agentes reguladores, especialistas e a mídia em geral, houve pessoas que duvidaram de suas promessas. O motivo para se retirarem as quantidades de sangue normalmente coletadas nos exames convencionais é que o sangue periférico é suscetível a diversos tipos de contaminação. Quanto menor a amostra, maiores são os riscos de ela apresentar variações consideráveis nos seus resultados. Especialistas familiarizados com o processo clínico sabem bem disso, e alguns investidores de venture capital especializados na área médica abordados por Holmes não se convenceram com seus argumentos e, algumas vezes, suas tentativas de captação de recursos foram frustradas.

Os fatos relatados neste livro devem ser apreciados por profissionais de negócios como um alerta que oferece pelo menos duas grandes lições. Primeiramente, embora seja verdade que indivíduos e organizações precisam cultivar a arte de storytelling, é preciso atenção também contra a ação de trapaceiros e manipuladores. Embora as histórias geralmente ofereçam benefícios simbióticos tanto para quem conta quanto para quem as ouve, é importante reconhecer que elas servem principalmente ao interesse de quem conta.

O que a epopeia de Holmes e da Theranos evidencia é que histórias de sucesso geram sentimentos intensos e estes atuam, por assim dizer, como um "anestésico" para a lógica e o ceticismo. Colocando isso de maneira positiva, boas histórias - fictícias ou não - deixam as pessoas com a mente mais aberta. Colocando negativamente, elas as tornam excessivamente crédulas.

Quando questionada sobre as dificuldades de se obterem resultados confiáveis de amostras tão pequenas de sangue, Holmes alegava ter encontrado maneiras de contornar essas dificuldades, e que não podia revelá-las por uma questão de proteção de segredo industrial. Tal argumento garantiu a longevidade da farsa, apesar do fato de que, quando se trata de tecnologia voltada para a área da saúde, há de se observar uma diferença significativa com relação às demais áreas. Nesse caso, devido ao potencial risco a vidas humanas, uma empresa não pode ser eximida de apresentar sua tecnologia para ser revista por seus pares.

Em segundo lugar, quanto à crença de que se pode permitir que empresários corram riscos e quebrem algumas regras para que possam fazer sua mágica, há de se fazer uma ressalva, haja vista o desfecho do caso. Tais regras passíveis de serem quebradas não podem ser regras éticas. Nesse sentido, esta leitura serve para incitar uma discussão da ética à luz das nuances impostas pelo processo de desenvolvimento tecnológico, hoje muito pautado no individualismo, na competição extrema, na sociedade do espetáculo e do consumo.

Nesse contexto, a ética, como observada por Kant (2009)Kant, I. (2009). Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa, Portugal: Edições 70., implica a capacidade de se pensarem a conduta e os valores das empresas reunindo simultaneamente como imperativos a liberdade e a responsabilidade. Esta, em consonância com as leis e os interesses coletivos, e aquela, como incentivo ao desenvolvimento tecnológico.

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos à Valentina Barbosa, Marilena Cheng e Emily Joyce pelo trabalho de revisão do texto.

  • Versão original

REFERÊNCIAS

  • Kant, I. (2009). Fundamentação da metafísica dos costumes Lisboa, Portugal: Edições 70.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2019
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