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Crise regional e planejamento

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Crise regional e planejamento

Por Amélia Cohn. Perspectiva & Secretaria da Cultura, Ciências e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976. 170 p.

O livro de Amélia Cohn tem por objetivo realizar o exame da configuração social, política e econômica que torna possível a explicação do processo que levou à criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em 1959, no Governo Juscelino Kubitschek de Oliveira. A análise concentra-se na verificação das condições que conduzem à definição do Nordeste como área-problema (p. 9), e que formam o enquadramento das medidas concebidas e levadas a efeito para fazer frente a tal problema. Na introdução, a autora afirma que procurou-se encarar o processo em tela de uma perspectiva representada pelas condições gerais de expansão do sistema capitalista no Brasil contemporâneo, operando-se com as relações entre a região abrangida pela Sudene e o centro hegemônico interno do sistema capitalista em fase de expansão/integração no Brasil, dado pelo Centro-Sul (p. 10).

A obra divide-se em três capítulos, cada um deles referente à dimensão específica do problema mais amplo que nele foi examinada. Assim, a análise tem início com o exame do papel desempenhado pelo Nordeste no processo de desenvolvimento capitalista brasileiro, procurando mostrar a maneira pela qual ele se configura como fator dinâmico nesse processo. Isto equivale a direcionar a discussão, no sentido de verificar o tipo de relação existente entre a estrutura agrária nordestina e o desenvolvimento industrial brasileiro, levando o Nordeste a ter uma participação ativa nesse processo como uma região fornecedora de capital e mão-de-obra para o desenvolvimento do Centro-Sul, contribuindo para um maior aumento das disparidades regionais.

Dessa maneira, principalmente no período compreendido entre os anos de 1948 e 1957, o desequilíbrio regional Nordeste/Centro-Sul se acentua, sendo que o aspecto nodal da questão é o de a estrutura agrária funcionar como um bloqueio à industrialização regional, e não o de estar a agricultura nordestina estagnada ou em crescimento (p. 55). Além do mais, até o fim dá década de 50 a economia nordestina não se configura como um problema de entrave ao desenvolvimento brasileiro, e as medidas governamentais tem por finalidade manter a economia regional no seu papel de fornecedora de capital, mão-de-obra e divisas ao núcleo industrial do Sul. Numa perspectiva mais ampla, onde a seca era vista como o "grande mal do Nordeste", os recursos federais dispendidos na região configuravam-se como investimentos improdutivos, com a finalidade imediata de minimizar os problemas sociais criados pelas secas. Neste primeiro capítulo Amélia Cohn deixa claro que o Nordeste sempre se configurou - desde a perda da força da agroindústria açucareira e do algodão - como um problema regional, interno à região, e não como um problema em termos de entrave ao desenvolvimento do tipo de sistema capitalista industrial no país (p. 56).

No capítulo seguinte é realizado um exame do Nordeste como problema político-social, mostrando que a atuação do Governo federal na região, dos fins do século passado até a década de 50, caracterizou-se por seu caráter eminentemente imediatista, prestando socorro ao flagelo ocasionado pelas secas. No encaminhamento da discussão a autora mostra como o posterior agravamento das tensões sociais e políticas da região, principalmente na segunda metade da década de 1950, exige uma intervenção mais sistemática e efetiva do Governo federal. E tal intervenção torna-se necessária no sentido de desenvolver a região com o intuito da manutenção do padrão de integração do sistema político e social nacional, e não para a expansão em termos econômicos do sistema capitalista de produção no Brasil.

Nos subtítulos "O nordeste como problema social" e "O nordeste como problema político" analisam-se os fatores que geraram tensões sociais, que se revestem de caráter eminentemente político, tais como as análises da estrutura de produção vigente no setor agrário, a conseqüente migração para os núcleos urbanos e o fenômeno das secas (p. 64); assim, configura-se uma situação estrutural de tensões e transformações, dadas pela seca de 1958, pelo movimento das Ligas Camponeses, pela atuação da Igreja Católica, pelo excedente de mão-de-obra na região. O temor das autoridades federais era que esse grande contingente populacional concentrado geograficamente, sub ou desempregado, submetido a manipulações ideológicas de caráter revolucionário - mais freqüentemente de cunho populista - pudesse desencadear a ruptura dos padrões sociais e políticos até então em vigor. No Nordeste dos anos 50, pela primeira vez, ocorria a mobilização política das massas camponesas, fazendo reivindicações incompatíveis com a estrutura de produção agrária vigente. Estes problemas sociais emergentes e em acelerado desenvolvimento não mais comportavam uma solução de compromisso do tipo tradicionalmente adotado.

E as eleições de 1958 já refletem de modo marcante, no nível político, as mudanças ocorridas no nível socioeconômico regional. A nível regional representam a queda da oligarquia agrária que até então detinha inquestionavelmente o poder, ao passo que no nível regional representam a derrota do partido governamental, e do tradicional compromisso eleitoral PSD-PTB - "coronéis" (p. 92). No Nordeste a estrutura de dominação sofre mudanças: o predomínio político da oligarquia rural vai sendo contestado pela expansão política das camadas urbanas, especialmente de um empresariado local, plenamente identificado com os valores urbanos (p. 96), e surgindo o populismo como expressão da ascensão das massas e de sua incorporação ao sistema - quer no nível nacional, quer no regional.

Assim, o resultado das eleições de 58 representaram para o Estado uma perda maior do controle político sobre a região. Além disso, há uma queda do, ou maior controle sobre o coronelismo e clientelismo vigentes na região que representavam, em última instância, os interesses do Governo central. Dentro desse quadro, a criação de um órgão de planejamento regional no Nordeste, subordinado diretamente ao Governo central, representará uma centralização do poder, para retomar o controle político da região (p. 98).

No cap. 3, "Os níveis técnico e político na criação da Sudene", Amélia Cohn preocupa-se em analisar os diagnósticos técnicos elaborados e sua realização dentro do quadro mais geral das diretrizes político-econômicas nacionais e regionais. Em suma, seu objetivo é exatamente o de tentar esmiuçar a configuração política das soluções técnicas adotadas (objetivos econômicos e meios instrumentais para atingi-los) (p. 113).

Começa por examinar os vários planos que realizaram um diagnóstico a nível regional. O primeiro é o Estudo sobre o desenvolvimento econômico do nordeste, realizado em 1953 pelo economista H.W. Singer, que elaborou o trabalho a convite do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE). A idéia central desse documento pode ser assim resumida: "... é preciso aumentar o rendimento por unidade de capital já investido... melhorando as instituições na área do Polígono (das Secas) e reduzindo ou eliminando o desperdício das atuais fontes de recursos, inclusive os recursos financeiros". Quanto ao setor agrário, o documento já afirmava que o problema do Nordeste não é apenas climático, devendo sua baixa produtividade essencialmente à industrialização regional de matérias-primas locais (p. 115-6).

O documento do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), elaborado por Celso Furtado e que serviu de base para a elaboração das diretrizes da Sudene, baseia seu diagnóstico em dados relativos ao período 1948/1956, enxergando o Nordeste dentro do conjunto do processo de desenvolvimento nacional. No decorrer de toda a análise o encaminhamento é feito exatamente no sentido de mostrar como a industrialização da região é a única via possível para seu desenvolvimento. Mostra, também, o problema dos latifúndios e dos minifúndios, ambos subaproveitando o fator terra. E o desenvolvimento agrícola se configura, no documento, como essencial para se atingir a meta principal, que é a de industrialização regional. O relatório do GTDN apresenta-se muito mais como um documento político-econômico do que como um diagnóstico técnico-econômico sobre a região-problema, sendo sua intenção a de formar um novo pólo dinâmico da economia no Nordeste. O enfoque do documento é exatamente o de analisar o regional dentro do nacional, sem levar em conta a relação contrária, isto é, se um esforço de industrialização da região não diminuiria o ritmo de desenvolvimento industrial do pólo dinâmico da economia. E em toda sua extensão, o documento não faz referência à possível contribuição do desenvolvimento nordestino para o desenvolvimento nacional global: seu campo de análise é estritamente o Nordeste e os reflexos sobre a região das políticas econômicas nacionais adotadas (p. 117-24).

A autora realiza, também, uma breve análise do Plano de Metas, elaborado no Governo Juscelino Kubitschek. O objetivo principal do Plano era a implantação de uma estrutura industrial integrada; assim, não só o setor agrícola merece pouca atenção, como se encara prioritariamente o problema de fontes de recursos para financiar a implantação dessa nova estrutura. O problema central do Plano era o de conciliar inflação e poupança forçada, mantendo o nível do salário real de ampla faixa da população (p. 125-6).

A própria implantação do Plano levava ao aumento dos desequilíbrios regionais e de disparidades sociais, na medida em que implementava o desenvolvimento de pólo dinâmico da economia nacional, através exatamente de um mecanismo de concentração de renda, não só por estratos sociais como também por regiões (p. 127). A seguir, utilizando-se de Carlos Lessa e Celso Lafer, mostra como o Plano é uma resposta ao nacional-desenvolvimentismo, fator de sustentação do Governo. Segundo Lessa, concebe-se um Estado empresário industrial, cuja função era exatamente a de preencher os vazios deixados pela empresa privada, ao passo que Lafer mostra como o Plano de Metas resultou da própria dinâmica do populismo e da percepção, por parte de Juscelino, dessa dinâmica, que exigia contínua expansão das oportunidades de emprego (p. 129).

O esquema político de Kubitschek recebe o apoio dos empresários industriais (sobretudo paulistas) e dos setores agrários, na medida em que não se compromete com qualquer reforma mais profunda na estrutura de produção agrícola. Como afirma Skidmore, "tendo sido bem treinado na escola política do PSD de Minas Gerais, Kubitschek estava pouco inclinado a influir no sistema de propriedade rural existente".

Na última parte do cap. 3, a autora mostra as marchas e contramarchas que antecederam a aprovação do projeto de lei que criou a Sudene, em dezembro de 1959. Em fevereiro de 1959 um decreto transforma o GTDN no Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (CODENO), cujas atribuições eram as de ir implementando as diretrizes gerais da política econômica proposta na criação da Sudene. Tendo Celso Furtado como superintendente, o objetivo central da Sudene era o de implementar o desenvolvimento econômico da região, impulsionando a industrialização. Entretanto, pensava-se que este teor essencial seria executado e/ou alcançado em detrimento do setor agrário e da solução do problema das secas, daí a razão dos inúmeros debates com relação à criação do novo órgão. Amélia Cohn deixa claro que nunca se levantaram, nos debates federais, obstáculos ou contestações à criação da Sudene, mas o que se fez foi tentar modificar o projeto de lei, propondo sua criação no sentido de fazer com que ela não adquirisse o controle sobre a oligarquia agrária local, que se centrava essencialmente em torno do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) que, daí por diante, passa a ser subordinado à Sudene (p. 147-8).

No nível administrativo, a criação da Sudene se encaixa dentro das normas políticas gerais do Governo Kubitschek, representando uma forma de diminuir a oposição dos grupos que ofereciam maior resistência, na medida em que o Governo mantém na região os órgãos federais e estaduais ali já existentes, somente subordinando-os ao novo grande órgão centralizador das atividades aí desenvolvidas. Assim, Kubitschek continuava em sua política de evitar conflitos, não abolindo ou alterando radicalmente as instituições administrativas existentes, preferindo criar um novo órgão para solucionar um novo problema (p. 157-8).

Amélia Cohn preocupou-se em enfatizar a dimensão regional dentro da perspectiva mais geral do processo de acumulação, encarando a partir do centro hegemônico e entendendo o planejamento como uma forma de controle social, que ganha feições concretas em condições históricas específicas. E o planejamento aqui é entendido como sendo o processo em que a ação política, sem deixar de sê-lo, opera conforme as regras do jogo econômico e assume a forma de racionalidade imposta por estas (p. 159).

Finalizando, cremos que o livro de Amélia Cohn, juntamente com o de Betty Lafer, o de Celso Lafer (a ser brevemente traduzido) e o de Henrique Rattner, constituem-se em leituras indispensáveis para a compreensão de problemas relacionados à política e aos desequilíbrios regionais do Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 1976
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