RESENHA BIBLIOGRÁFICA
A nova classe média (white collar)
A NOVA CLASSE MÉDIA (WHITE COLLAR). Por CHARLES WRIGHT MILLS. Tradução de VERA BORDA, Rio de Janeiro, 1969, do original norte-americano White Collar, The American Middle Classes, Oxford University Press, 1951.
White Collar é análise exaustiva, e no tom amargo tão peculiar à obra de Mills , da posição social, das condições de trabalho, das ideologias e dos tipos de personalidade da classe média norte-americana. Fiel à tradição weberiana, a finalidade da obra é denunciar o desencantamento decorrente da burocratização que permeia todas as esferas da vida social contemporânea, e a vivência insossa do indivíduo submetido à rotina das poderosas instituições que controlam o destino individual, que sufocam as potencialidades criativas e que, pela concentração econômica, solapam a capacidade inovadora e as possibilidades de êxito empresarial do pequeno proprietário.
As instituições que asseguravam a autonomia individual sob o liberalismo - a família, a igreja e a pequena propriedade ou o ofício por conta própria - foram gradativamente esvaziadas pelo Estado, pelo Exército e pela Grande Empresa, em cuja cúpula minorias concentram uma soma de poder jamais vista em toda a história da humanidade e decidem o destino do homem comum. Assim, as categorias de elite e massa constituem o eixo da análise de Mills , tendo como pressuposto a desigualdade na distribuição do poder político. Se em A Elite do Poder1 1 Tradução portuguesa de The Power Elitist, Zahar Editores, Rio de Janeiro. o autor dedica-se a explicitar os sutis meandros em que se efetiva a dominação e as ligações que permitem às elites parciais - econômicas, políticas e militares fundirem-se numa só camada, em White Collar a atenção volta-se para o reverso da medalha - a massa - particularmente a massa de trabalhadores de escritório. Ambos constituem tentativa de dissecar globalmente a estrutura social norteamericana de meados do século, e se completam numa unidade, a que ficou faltando um estudo do proletário manual.
Para o leitor desavisado, talvez WRIGHT MILLS possa ser tomado por marxista, tal a condenação da sociedade norte-americana atual. Mas, vendo-se bem, nota-se que não o preocupam a acumulação irrefreada de capital, a tendência ao subconsumo ou processos outros que possam comprometer o equilíbrio e a continuidade do modo capitalista de produção. Antes, o conflito liberdade-burocratização extravasa os limites do sistema econômico e adquire ampla universalidade: trata-se da liberdade humana em dissolução na sociedade pós-liberal, onde a concentração do poder político alimenta a irresponsabilidade coletiva e separa, cada vez mais, a elite da massa. No caso norte-americano junta-se a crise de legitimidade do poder assim concentrado, visto que a ideologia liberal, elaborada na era concorrencial e afirmada vigorosamente pela classe média, não passa de grande fetiche. Seu quadro de referência não é, pois, a democracia econômica, mas a política - levada às últimas conseqüências na pura concepção de sociedade de públicos, em que, através do diálogo e da eleição, todos têm oportunidades iguais de se fazer ouvir e de impor sua vontade. Daí sua atenção voltar-se não para a exploração, mas para a manipulação do homem pelo homem, via burocratização, comunicação de massa, subserviência intelectual etc. Colocando em termos weberianos, poderíamos dizer que WRIGHT MILLS analisa a sociedade pós-liberal através da tábua de valores da sociedade liberal, fortemente impregnada de um viés pessoal que é a extrema valorização do trabalho artesanal como condição da manifestação perfeita da natureza humana.
A obra pode ser dividida em três partes distintas:
1. Reconstrução histórica do mundo do pequeno empresário, em que se retratam a América oitocentista e os processos que permitiram o florescimento de uma economia liberal sem antecedentes feudais e com seus heróis civilizadores típicos: o pequeno proprietário rural, o comerciante, o capitão de indústria e o profissional liberal.
2. Análise do universo atual dos colarinhos brancos. Focalizando instituição por instituição, do hospital à banca de advogado, dos jornais às universidades, da loja à grande indústria, o autor procura mostrar como a burocratização não poupou setor algum do trabalho não manual, e que as velhas figuras do médico e do advogado amigos e conselheiros da família, do intelectual autônomo e responsável, do empresário empreendedor são hoje mito e não realidade, substituídas que foram pelo profissional especializado com seus contatos impessoais com a clientela, pela produção intelectual de massa que restringe a marca pessoal da criatividade etc.
3. Interpretação dos padrões de prestígio, dos traços de caráter, da ideologia e do comportamento político da classe média, tomada como um todo, com nível de generalização maior, portanto, que a segunda parte.
Ao estudante de administração duas questões apresentam interesse especial, se bem não constituam o centro da obra. Terá desaparecido - indaga MILLS - o espírito empreendedor sob o capitalismo monopolista? A resposta é negativa: se de um lado verifica que "a estrutura da sociedade já não permite acumular riqueza da maneira tradicional", visto que "no século XX as grandes empresas não concorrem mais entre si, mas como uma totalidade competem com o público consumidor e. às vezes, com determinados setores do governo", de outro lado define sugestivamente o âmbito de ação do que chama de novo empresário . "Em geral, o habitat dessa nova espécie de empresário são as áreas ainda imprecisas e não organizadas. Êle está perfeitamente à vontade nos serviços menos tangíveis - estudos de mercado e relações públicas, agências de propaganda, relações com os sindicatos, meios de comunicação de massas e indústrias de diversões". Em outras palavras, "os setores abertos ao novo empresário, que geralmente se confundem de várias maneiras, são as atividades ainda imprecisas: a) ligações entre diversas burocracias comerciais e entre as empresas e o governo; b) relações públicas ou a interpretação e justificação para o público da existência de novos poderes; c) as novas indústrias criadas no último quarto de século, especialmente as que implicam a venda de serviços praticamente intangíveis, como a publicidade, p.ex.". Suas rendas "não decorrem de capitais concretos, mas de contactos intangíveis e de canais de acesso". Com a identificação dessa nova camada social, MILLS sem dúvida apresenta um tema sugestivo e ainda inexplorado por sociólogo ou teóricos da administração.
Quanto à revolução dos gerentes, terá ocorrido, como quer a teoria gerencialista - de BURNHAM a GALBRAITH - uma expropriação da propriedade industrial pela ascensão do gerente assalariado? Invocando a questão da legitimidade, MILLS argumenta que "mesmo que o poder dos proprietários tivesse sido expropriado pelos gerentes, isso não significaria a destituição da propriedade. . . Qualquer proprietário que possa provar uma expropriação por um gerente pode processálo e mandá-lo para a cadeia; e, aliás, não se conhecem exemplos de gerentes que tenham agido intencionalmente contra os interesses dos proprietários". Investindo contra a afirmação gerencialista, que supõe o gerente superior como um perito em tecnologia ou administração, o autor sustenta que "são, antes, os 'inventariantes da propriedade'. Toda a sua atenção é dirigida para as finanças e os lucros, os principais interesses dos proprietários". Sem desconhecer que as relações pessoais entre proprietários e gerentes se alteraram de modo fundamental, e não se põem mais na linha autoritária, sustenta que tal coerção tornou-se hoje dispensável, dada a incorporação, pelos gerentes, dos valores e interesses da camada proprietária em sua própria personalidade: "...os acionistas e a junta diretora julgam os gerentes em fun-. ção de um balanço lucrativo; esta é, aliás, a maneira como os próprios gerentes se julgam. Não há necessidade de uma autoridade externa quando o próprio agente já a interiorizou".2 2 Consulte-se O Novo Empresário, parte II, cap. 5, item 4.
A linguagem de Mills em White Collar é, como sempre, clara e direta. Escreve com a intenção de atingir grandes públicos e não para qualquer círculo acadêmico restrito; à força da argumentação junta-se um estilo envolvente que muito habilmente atinge, abala e exalta a formação liberal pelo menos emocionalmente fixada em cada um de nós. É vasto o arsenal de dados empíricos de que lança mão: estatísticas oficiais, reportagens, relatórios de empresas, depoimentos pessoais, e muito das personagens white-collar da ficção literária norte-americana. Quem conhece as recomendações contidas n'A Imaginação Sociológica3 3 Tradução portuguesa de The Sociological Imagination, Zahar Editores, Rio de Janeiro. sabe que este é o estilo de prática científica ardorosamente defendido por Mills: evitar o que considera pseudo-rigor científico implícito na análise muito formalizada e quantificada de questões irrelevantes e aventurar-se a interpretações que abordem, com liberdade e originalidade, as questões cruciais de nossa época.
JOSÉ CARLOS GARCIA DURAND
- 1 Tradução portuguesa de The Power Elitist, Zahar Editores, Rio de Janeiro.
- 3 Tradução portuguesa de The Sociological Imagination, Zahar Editores, Rio de Janeiro.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Maio 2015 -
Data do Fascículo
Mar 1970