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O setor agropecuário: chave do desenvolvimento latino-americano

ARTIGOS

O setor agropecuário: chave do desenvolvimento latino-americano

Julio César Funes

Professor contratado de Desenvolvimento Econômico da Universidade de Tucumán (Argentina) e da Universidade del Zulia (Venezuela)

"As reformas agrárias raramente foram outorgadas por senhores dotados de espírito público, por sua própria iniciativa benevolente, mas foram forçadas pela insatisfação dos camponeses ávidos de terra." - GUNNAR MYRDAL.

O que nos motivou a escrever êste artigo foi a necessidade de modernização de nosso continente e da reformulação de seus quadros políticos, sociais e econômicos. A existência de países mais desenvolvidos do que outros sempre se colocou ao longo da história, o que criava povos líderes, que se colocavam na dianteira dos demais.

Mas foi apenas ao final da Segunda Guerra Mundial que pudemos sentir uma preocupação generalizada para se eliminar o atraso que assolava as comunidades menos privilegiadas. Que razões influíram para que tal processo se desencadeasse? À guisa de fundamentação para o desenvolvimento de nosso artigo listaremos os seguintes:

1) Uma têrça parte da população mundial, onde encontramos os Estados Unidos da América, a União Soviética, a Europa Ocidental, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, a Checoslováquia, o Japão e a União Sul-Africana, constituem uma classe alta de nações que alcançaram elevados níveis de renda média real por habitante e adentraram, ou se encontram em condições de adentrar sem maiores obstáculos, o que se convencionou chamar de "a era do elevado consumo", em que os melhoramentos obtidos com o desenvolvimento se transformam em benefícios para tôda a população, e não se reduzem mais a uma estreita faixa minoritária.

As duas restantes têrças partes da população mundial é formada por uma classe baixa de nações, em que a característica mais importante, mas não a única, é a de que uma pequena fração da população desfruta da maior parte da renda nacional, enquanto a maioria dos habitantes permanece marginalizada econômica e socialmente. Neste mundo submerso encontram-se os países latino-americanos, africanos e asiáticos, exclusive a União Soviética, e alguns países europeus.

A classe alta de nações, que é a mais industrializada, tende a melhorar constantemente sua situação, como conseqüência de seus elevados níveis de poupança, seu elevado desenvolvimento tecnológico e a posse dé um potencial humano treinado para as tarefas de uma economia modernizada.

A classe baixa de nações, que se defronta com uma série de entraves ainda não solucionados, debate-se em meio à ignorância, à miséria e à insalubridade, fazendo com que aumente cada vez mais a distância que as separa das nações do primeiro grupo.

As cifras do QUADRO 1 justificam nossas afirmações porque os Estados Unidos da América, com um Produto Nacional Bruto por habitante de 2 790 dólares em têrmos reais, encabeça a lista do grupo de países privilegiados, onde podemos encontrar igualmente países com economias de tipo capitalista e socialista, a demonstrar que ambos os sistemas foram capazes de tirar da miséria e do atraso um certo número de países. A União Soviética, país que, na década dos vinte, apresentava-se ao mundo como subdesenvolvido, passou desde então a desenvolver-se, até que se alçou ao nível da "elite", com um Produto Nacional Bruto de 986 dólares por habitante em têrmos reais.


O mesmo quadro nos dá uma idéia de qual é a situação no mundo submerso, no qual infelizmente se encontra o nosso continente, da mesma forma que os países do grupo socialista e capitalista. Entre êstes poderíamos apontar os países asiáticos com 154 dólares de PNB em têrmos reais por habitante e entre os socialistas a China Continental com 167 dólares.

2) A esta situação, até aqui caracterizada em têrmos puramente econômicos, veio adicionar-se outro fator, de natureza estritamente social, a revolução das expectativas, para auxiliar no esclarecimento do problema. Seu traço distintivo é o despertar das consciências por intermédio do conhecimento das tremendas desigualdades da situação de injustiça e de urgência em prol de uma melhoria imediata.

3) Finalmente, o derradeiro elemento a ser mencionado diz respeito às possibilidades. O desenvolvimento tecnológico alcançado em nossos tempos, e que tem uma dimensão jamais conhecida em outro período da história, nos permite afirmar que a revolução das expectativas está fundamentada em possibilidades realmente existentes na moderna ciência e na técnica de nossos dias para tornar realidade o abandono da miséria e a eliminação do atraso para dois terços da população mundial. Isto explica porque aquilo que no passado era quase inacessível para a maioria, pode ser hoje uma realidade tangível para todos.

Sem dúvida, não é possível acreditar que a utilização das inovações tecnológicas para consecução do desenvolvimento econômico e social seja tarefa fácil. Os países atrasados apresentam uma série de falhas estruturais de natureza política, econômica, social e, em alguns casos, até espiritual, que estão obstaculizando a melhoria da atual situação.

Para o caso específico da América Latina, tais obstáculos também são de vários tipos: desequilíbrio na distribuição da riqueza, estratificação social, sistemas educacionais deficientes, desperdício de nossas já escassas possibilidades de investir por exagerados padrões de consumo, que atingem a categoria do luxo e da ostentação, abandono do setcr agropecuário para busca de uma industrialização que não se concretiza, etc., além dos fatores externos, sôbre os quais nessas possibilidades de controle, até o momento têm se mestrado modestas.

O SETOR AGROPECUÁRIO

Neste artigo nos deteremos no setor agropecuário porque nos parece aquêle em que encontramos um complexo de condições que atribuímos a falhas estruturais e que exigem uma reforma para que se obtenha um desenvolvimento econômico e social autêntico.

A partir dêstes pressupostos tentaremos demonstrar que o setor agropecuário constitui a chave para o desenvolvimento econômico latino-americano.

Várias razões contribuíram para que nos ocupássemos do Continente como um todo:

• O tema abrange, embora em graus diferentes, todos os países da América Latina.

• A solução deve ser enfrentada por todos ou pela maioria para que possa lograr êxito.

• A idéia, tão em moda, de constituir um Mercado Comum Latino-Americano exige soluções novas quç não deixem de lado o problema agropecuário.

• O ponto de vista pessoal, fundamentado na experiência do autor que visitou nestes últimos anos quase todos os países da América Latina e se convenceu de que os problemas principais que afligem a Argentina, são semelhantes aos encontradiços no Brasil, Colômbia ou Venezuela, pelo menos no que diz respeito ao setor agropecuário.

Dos diversos setores componentes da atividades econômica o que mais cresceu foi o da Mineração e Atividades Extrativas, isto é, 7,3 % e 4,4% respectivamente, e o de menor crescimento, utilizando-se as duas formas de medição foi o agropecuário com 3,5% e 0,7%. Se considerarmos o período mais extenso, 1936-40 e 1955-60, as conclusões serão semelhantes. Na verdade o que representa uma taxa de crescimento anual de 0,7% para o setor agropecuário?

Se considerarmos que a Renda Nacional cresceu neste mesmo período a uma taxa de 2,3% ano, obteremos uma elasticidade de crescimento da produção de 0,3%, quando a relacionamos à Renda Nacional. Com efeito:

Como a elasticidade-renda da demanda de produtos agropecuários para consumo final e intermediário de nosso continente é de aproxidamente 0,5, chegamos a uma primeira e grave conclusão: o setor mais importante, em têrmos de absorção de mão-de-obra, não apresentou poder de reação suficiente sequer para crescer de acordo com as necessidades que lhe foram impostas por um modesto crescimento da Renda Nacional.

O problema encontrou solução através de dois caminhos, ou por uma combinação de ambos: pela diminuição do quantum de exportações para recondução ao mercado interno que crescia sem que se desse um aumento suficiente da oferta; ou incrementando as importações dos produtos carentes.

A fim de possibilitar um melhor entendimento do problema, devemos observar que nos últimos anos temos importado produtos de outras áreas de origem agropecuária a um valor equivalente a 600 milhões de dólares anuais.

No ano de 1960, a despeito de vigoroso processo de urbanização, 54% da população do continente vivia em zonas rurais. Em conformidade com as estimativas das Organizações Internacionais, no ano de 1975, 46% da população latino-americana continuará vivendo na zona rural.

Partindo dêstes fatos e observando o QUADRO 3, particularmente os vários setores, concluiremos mais uma vez que o setor agropecuário é o de índice mais baixo. Enquanto o valor médio para todos os setores é de 816 dólares por trabalhador, na mineração atinge a cifra mais elevada de 3.66 7 dólares e na agricultura e na pecuária a cifra mais baixa com 382 dólares de produto gerado por trabalhador.


Tomando por base êstes dados do passado, levantemos a questão das perspectivas para o futuro.

Iniciaremos pelos dados referentes ao crescimento populacional. A densidade demográfica de nosso continente nos coloca entre as regiões subpovoadas. Em 1960 tínhamos 11 habitantes por quilômetro quadrado, enquanto a Ásia tinha 62 e a Europa 86. Mas se nos detivermos na análise do aumento populacional do mundo nos últimos anos, verificaremos que a América Latina apresenta o mais elevado índice anual de crescimento, como pode ser observado no QUADRO 4. Êste índice apresenta tendência crescente, podendo aumentar ainda mais no futuro.


Nosso continente assiste ao fenômeno da explosão demográfica que nos permite afirmar que o grau de crescimento populacional desde 1950 até nossos dias alcançou a mais elevada taxa até hoje conhecida. Sendo mais explícito: entre 1925 e 1935 a população aumentou em 20 milhões de habitantes a uma taxa anual de crescimento de 2 %. Entre 1935 e 1945 o aumento foi de 25 milhões à mesma taxa de 2%. Entre 1945 e 1955 a população aumentou de 40 milhões a uma taxa de crescimento anual cumulativo de 2,6%. Para o qüinqüênio 1955-1960 esta taxa elevou-se a 2,9%.

Em 1960 éramos 206 milhões de habitantes; em 1975 seremos 315 milhões e em 1980 o continente terá 360 milhões de habitantes. Entre 1960 e 1980, a América Latina terá que alimentar, vestir, prover moradia e trabalho para 150 milhões de pessoas adicionais, o que representa 70% a mais do que a população existente em 1960.

Retomando as cifras do QUADRO 4 , veremos que o decênio 1950-60 apresenta para a América Latina uma taxa anual de crescimento da ordem de 2,8%. A mesma é superior aos demais continentes, inclusive a Ásia e a África com 1,9% e 2,0% respectivamente.

Os economistas calcularam o nível de investimentos necessários na América Latina, apenas para manter o atual nível de vida da população, a fim de que o crescimento populacional não produza uma deterioração sôbre a situação imediatamente anterior ao aumento. Para a efetuação de tal cálculo foi utilizada uma fórmula simples:

onde r é a taxa de crescimento populacional, sob a forma de porcentagem anual; b a porcentagem da Renda Nacional líquida que deve ser poupada anualmente e a a relação capital-produto, que para nosso continente se estima ao redor de 2,5.

A partir dêstes dados obteremos:

Efetuando as operações conclui-se que a porcentagem da Renda Nacional líquida que deve destinar-se a investimentos iguala a 7,25%. Se atentarmos para o fato de que o coeficiente líquido de investimentos nestes últimos anos é igual a 10% do PNB, tomando-se por base um coeficiente bruto de 15,5, veremos que quase três quartas partes de nosso esforço de poupança, e conseqüentemente de investimentos, se destina simplesmente ao acompanhamento do crescimento populacional, restando uma quarta parte para aumento da produtividade e da renda por habitante.

Em face desta "explosão demográfica", qual o comportamento do setor agropecuário no passado e que possibilidades nos poderá oferecer no futuro?

O estudo de vinte e quatro produtos principais, que ocupam aproximadamente 50% da superfície total cultivada, demonstrou que o seu aumento de produção nos últimos vinte anos, foi de 60%, obtidos da seguinte forma: 38% por simples extensão da área cultivada e apenas 16% pela elevação dos rendimentos (aumento de produtividade), o que significa 0,7% anuais.

A fim de realizar as projeções suponhamos que, por ora, a renda por habitante aumente a uma taxa anual cumulativa de 2,5% (objetivo mínimo da Aliança para o Progresso); que se mantenha não eqüitativa a distribuição da renda entre a população e ainda, que a população continue crescendo a uma taxa cumulativa de 2,9% ao ano até 1980. Nestas condições ao considerar-se para os produtos a elasticidade-renda, o consumo atual, a tendência histórica etc., poderemos estimar a demanda interna futura.

No QUADRO 5, encontramos o consumo médio anual para 1957-59 e se projeta a demanda para 1980 de quatro produtos agrícolas e um pecuário: trigo, milho, arroz, feijão e carne bovina, pois todos têm uma participação importante na composição da dieta habitual em nosso continente.


A inevitável conclusão que se depreende ao observar-se a porcentagem de aumento em duas décadas é de 160% para milho, 158% para carne bovina, 150% para arroz etc., o que implica na impossibilidade prática de o setor agropecuário atingir suas metas, com base no seu comportamento histórico.

Essa possibilidade, explica-se pelo fato de que a forma de crescimento tradicional, isto é, a expansão da fronteira geográfica não será viável para a maioria dos países que estão aproveitando com produções extensivas tôdas as terras aráveis disponíveis. Isto implica num aumento de superfícies marginais que exigirão um esforço de capital muito maior àquele tradicionalmente destinado ao setor e sua produtividade será inevitàvelmente mais baixa.

A fim de quantificar as necessidades adicionais de terras aráveis, tomemos por base que os quatro produtos agropecuários, que em 1957-59 exigiam 35 milhões de hectares, passarão a ocupar, para a produção projetada de 1980, 72,5 milhões de hectares e que o número de cabeças de gado vacum, que em 1957-59 era de 186 milhões (produzindo 29,9 quilos de carne por animal) teria de aumentar em 1980 para 387 milhões de cabeças, supondo-se que a produção por animal aumente para 31,9 quilos, em conformidade com a tendência verificada nos últimos anos.

Qual seria a solução possível? Se o setor agropecuário continuar com os atuais índices de crescimento, a resposta é clara: devemos baixar o nível de consumo. A possibilidade de importar o equivalente à diferença entre a demanda e a oferta interna deverá ser prontamente abandonada, uma vez que a situação de inossos balanços de pagamentos jamais o permitiriam.

Ao abordar o problema de nosso balanço de pagamentos convém advertir da conveniência de adicionar dois pontos que nos indicam uma perspectiva ainda de mais difícil solução, se nos decidirmos pela manutenção da atual situação.

Primeiramente cumpre ressaltar que não foram levados em consideração, para efeito de nossos cálculos, os aumentos de produção do setor agropecuário destinados à exportação. É evidente que para muitos países latino-americanos, dentre êles a Argentina é o exemplo mais significativo, os bens do setor agropecuário (e para a América Latina como um todo, os bens de origem no setor primário em geral), continuarão por alguns anos sendo decisivos para obtenção das divisas necessárias a serem investidas para que se possa atingir um desenvolvimento econômico e social autêntico. O "grande impulso" (take-off) necessário para arrancar-nos do atraso, exigirá bens e serviços externos que deverão ser pagos pelas nossas exportações. Todavia já é suficientemente conhecido o fato de que as exportações de tipo primário das zonas subdesenvolvidas apresentam um crescimento muito baixo, devido a uma série de fatores que influem na pauta de consumo dos países desenvolvidos, e que enumeraremos brevemente:

• A medida que se eleva o nível de renda, a demanda por alimentos tende a crescer num ritmo inferior ao do aumento desta mesma renda. Em outras palavras, a elasticidade-renda da demanda de alimentos é menor do que 1.

• Com a elevação da renda se produz uma mudança no gôsto dos consumidores, que aumentam suas despesas na aquisição de alguns itens da alimentação (carne, frutas, verduras, e legumes etc.) e diminuem suas despesas com outros itens alimentares (cereais é um caso típico).

• O desenvolvimento tecnológico permite o desenvolvimento de um número sempre crescente de materiais sintéticos em substituição às matérias-primas tradicionais.

• A maior eficácia da tecnologia exige quantidades cada vez menores de matérias-primas. Os Estados Unidos necessitavam em 1899 3,2 quilos de carvão para produzir um quilowatt-hora de eletricidade e em 1950 a necessidade de carvão baixou para 0,5 quilo por quilowatt-hora.

• A política dos países desenvolvidos para atingir auto-suficiência no abastecimento de alguns prcdutos primários, o que lhes permite aumentar o consumo sem ter de lançar mão de importações adicionais.

Em conseqüência do que foi acima exposto as exportações de produtos primários, exclusão feita do petróleo, cresceram entre 1928 e 1955-7 de 14%, enquanto as exportações de produtos manufaturados aumentaram, neste mesmo período, de 103%. Portanto, devemos aproveitar ao máximo as possibilidades que se nos apresentam como favoráveis dos produtos tradicionais, mas incorreríamos em risco se não completássemos nossa estratégia com outras medidas:

• Diversificando nosso mercado tradicional de exportações em tôdas as áreas em que possamos obter vantagens, inclusive incrementando o comércio com os países socialistas, porque em alguns dêles a elasticidade-renda da demanda de produtos alimentícios, vestuário e outras necessidades primárias é bastante elevada.

• Diversificando as exportações através da inclusão de produtos manufaturados onde possamos obter vantagens, dadas as características de nossa dotação de recursos.

• Concretizando o Mercado Comum Latino-Americano, com o que não será necessário importar os produtos agropecuários por parte de alguns países, pôsto que o continente pode auto-abastecer-se dos mesmos. Cumpre observar que nos últimos anos a América Latina importou de outras áreas produtos agropecuários num total de 600 milhões de dólares.

Podemos concluir que é contraproducente uma política que tente cobrir a demanda interna de produtos agropecuária nas formas acima referidas, ou seja, importando mais ou diminuindo nossas exportações dêstes mesmos produtos para colocá-los no mercado interno, uma vez que os balanços de pagamentos, para diminuição da pressão deficitária, exigem outras decisões e o Desenvolvimento Econômico impõe importações novas para a transformação que possibilite novas exportações.

Em segundo lugar partimos do pressuposto de que será mantido o atual padrão de distribuição injusta da renda.

Uma melhor distribuição da renda significaria um aumento imediato dos módulos de consumo por parte daquela população que se encontra a nível de subsistência e que requereria maiores quantidades de produtos agropecuários.

Na verdade, o QUADRO 6 nos mostra que a metade da população de nosso continente tem níveis de renda inferiores ao que se estima como renda média da população tribal africana ou dos países asiáticos (exclusive a União Soviética).


A renda média da América Latina para o ano de 1962 era de 370 dólares e na sua distribuição constatava-se que 50% da população absorvia apenas 16% da renda total, atingindo a uma média por habitante de 120 dólares. Um segundo grupo, constituído por cêrca de 45% da população, mereceria a classificação de "classe média especial", absorvendo 51% da renda total, com uma renda média de 400 dólares por habitante. Os restantes 5% da população foram subdivididos em dois grupos e chegamos à seguinte conclusão: 3% absorvendo 14% da renda total com uma média de 1.750 dólares e 2% absorvendo 19% do total, atingindo uma média por habitante de 3.500 dólares. Isto demonstra que 2% da população latino-americana absorve uma parte maior da renda nacional do que os 50% que constituem o grupo menos privilegiado, realidade que nos permite confirmar a proposição anterior, isto é, que a metade da população latino-americana encontra-se em nível de subsistência e qualquer política de Desenvolvimento Econômico e Social que se propuser deverá levar em consideração uma forma de se conseguir uma desigualdade menor na distribuição da renda nacional.

As evidências levantadas até o momento permitem-nos chegar à conclusão de que o setor agropecuário será muito menos capaz de reagir favoràvelmente às necessidades do futuro se fôr mantida à estrutura atual.

Os esforços destinados a aumentar a Renda Nacional e a sua melhor distribuição, exige inovações nos processos produtivos, que uma vez implementados geram o problema de aumento do desemprêgo. Isto se deve ao fato de que os processos tradicionais, embora ineficazes absorvem um certo quantum de mão-de-obra. A inovação tecnológica, aumenta indiscutivelmente a produtividade, mas torna supérflua a mão-de-obra outrora empregada que então aflui em busca de novas colocações para o mercado de trabalho. Quando se considera a explosão demográfica e as imensas necessidades de investimento para que ela possa obter colocação, é fàcilmente inteligível o número de desempregados, ou o desemprêgo disfarçado nos países latino-americanos.

A mão-de-obra rural, por fôrça de inovações introduzidas nos processos agrícolas, particularmente a mecanização, é devido à estagnação generalizada reinante neste setor da economia, desloca-se para as cidades. Pelo fato da atividade industrial não ser capaz de absorver a totalidade da mão-de-obra emigrada das zonas rurais, conseqüência de um prc cesso de urbanização descontrolado, esta acaba por dirigir-se para atividades de produtividade muito baixa, como o serviço público, vendedores de baixa categoria etc., c que configura uma nova forma de desemprêgo parcial ou disfarçado. De nossa parte é suficiente que se observe qualquer capital ou cidade de maior importância no continente para constatar a existência de distritos inteiros onde tal população se acha aglomerada. Isto demonstra que a questão social mais importante de nosso continente, ou seja, a eliminação do marginalismo, exige a criação de trabalhos produtivos que permitam a ocupação plena do fator de produção mais importante, ou seja, a mão-de-obra.

O processo desenvolvido nos últimos vinte anos estêve basicamente dirigido para que se conseguisse o Desenvolvimento Econômico e Social através da industrialização. Mas foi esquecido um dado fundamental, presente nos países hoje desenvolvidos quando êstes iniciavam o seu processo de industrialização, ou seja, o crescimento do setor agropecuário com uma produtividade por trabalhador que era cada vez maior, e com a possibilidade de absorção, por parte de uma indústria nascente, da mão-de-obra que era eliminada pelo setor primário. Desta maneira, o processo migratório interno do campo para a cidade, não apenas foi normal, mas imprescindível para o próprio processo de desenvolvimento. A elevação da produtividade no setor agropecuário além de requerer uma quantidade menor de mão-de-obra por unidade de produção, tinha o poder de reação necessário para alimentar, vestir, dar moradia etc., aos indivíduos que se dirigiam para as cidades e que estavam ávidas por mão-de-obra adicional a fim de que se pudesse iniciar o processo de expansão industrial. Juntamente com a expansão industrial, tínhamos o crescimento paralelo do setor de serviços.

As economias dos atuais países desenvolvidos evidenciam nossa afirmação. Tomemos por exemplo os Estados Unidos em 1950 e veremos qual a divisão porcentual da atividade econômica pelos vários setores.

Por outro lado, em nossos países o processo tem lugar de maneira totalmente distorcida. Pretendeu-se a industrialização a qualquer custo, descurando-se do setor agropecuário que acabou por atrofiar-se, dando lugar a uma urbanização descontrolada, pelo abandono do campo por parte de milhões de trabalhadores, que não foi conseqüência do aumento de produtividade, mas de uma secular falta de oportunidades. Era lógico, então, que a industrialização não pudesse assumir as mesmas características que possui nos países desenvolvidos, e a maioria dos imigrantes, sem a educação e o treinamento necessários, acabassem por dirigir-se aos empregos mais baixamente remunerados.

A fim de corroborar nossas afirmações com relação ao nosso continente tomemos o exemplo de Honduras e veremos como se apresenta a sua conformação pelos principais setores:

Se representarmos graficamente as economias hondurenha e norte-americana, poderemos observar nitidamente a figura truncada para Honduras no que diz respeito ao setor secundário.

Se a metade da população de nosso continente, que são os consumidcres potenciais de produtos industriais, se enccntra a nível de subsistência, vemo-nos ante uma impossibilidade prática para o crescimento do setor industrial.

A existência de um mercado potencial de 80 milhõer, de habitantes no Brasil continuará apenas como possibilidade, enquanto êsses milhões de indivíduos não dispuserem de poder aquisitivo para influenciar a demanda de produtos industriais. Completaremos nossas reflexões sôbre o processo de industrialização a fim de locar de maneira precisa o setor chave na estratégia do desenvolvimento.

A industrialização de nossos países, especialmente a partir de 1945 (na Argentina, México e Brasil o processo iniciou-se pouco antes), realizcu-se preferencialmente pela substituição das importações de produtos de pequena complexidade de fabricação, iniciando-se pelos bens de consumo não duráveis e posteriormente passando-se para os bens de consumo duráveis, do qual constituem excelente exemplo os eletrodomésticos.

Um grande número de países - Argentina, Brasil, México e Uruguai entre outros - já completaram o processo de substituição dos itens fáceis.

A próxima etapa será mais complexa e mais dispendiosa. Mais complexa porque produzirá bens que envolvem processos mais elaborados e mais dispendiosa porque as necessidades de capital para implantar tal tipo de indústria exigem investimentos muito superiores àquelas que até o momento foram exigidos pela indústria de bens de fácil substituição. Uma siderurgia cu um conjunto petroquímico necessita de mais capital, mão-de-obra mais qualificada e um mercado mais amplo do que os exigidos para a fabricação de fogões elétricos, para citar apenas um exemplo.

Sem levar em consideração as sérias falhas que ocorreram ao longo do processo de industrialização de nossos países, uma vez que para listá-las seria necessário um espaço que um artigo desta natureza não comportaria, deixamos registradas nossas dúvidas sôbre a possibilidade de êxito de uma política que se contente em cuidar tãosòmente do setor industrial. A tecnologia da industrialização nos países desenvolvidos se realiza mediante atendimento à constelação de seus recursos produtivos. Nestes países, devido ao alto nível de renda, pode contar-se com uma elevada dotação de capitais e ainda com o fator de escassez da mão-de-obra. É evidente que a tecnologia que mais se recomenda é exatamente aquela que absorve grandes montantes de capital e seja capaz de poupar mão-de-obra.

Mas acabamos de constatar que em nossos países ocorre exatamente o inverso. O baixo nível de renda nos permite poupança e investimentos bastante baixos e por outro lado contamos com mão-de-obra em abundância. Portanto, a importação pura e simples de tecnologia não resolve o problema da ocupação plena de nosso fator humano e exige capitais que não possuímos dentro de nossas fronteiras. Não resta dúvida de que a falta de investigações científicas em nosso continente nos obrigam ao uso de técnicas oriundas de outros países.

Um exemplo contundente a respeito será de grande utilidade para nosso ponto de vista. No livro People, Jobs and Economic Development, A. J. JAFFE refere-se, entre outras coisas, à incidência que teve sobre o nível de emprêgo o desenvolvimento econômico do Estado Livre Associado de Pôrto Rico. Entre 1947 e 1956 o Produto Nacional Bruto por habitante passou de 327 a 513 dólares anuais. As grandes inversões de capitais norte-americanos permitiram que se implantasse um processo de industrialização muito rápido e o crescimento do PNB foi de 56%. Isto todavia não impediu que a mão-de-obra efetivamente ccupada passasse no Estado em questão de 543 000 em 1947 para 533 600 em 1956, o que demonstra que o processo de transformação industrial representou uma quantidade menor de empregos apesar do aumento do Produto Nacional Bruto.

Pôrto Rico pôde solucionar fácilmente o seu problema por fôrça da emigração maciça de trabalhadores para os Estados Unidos (cêrca de 418 000 pessoas entre 1947 e 1956) e o desemprêgo não chegou, portanto, a constituir um problema. Mas os países latino-americanos não são Estados Associados e uma experiência similar poderia criar tensões sociais ainda maiores do que as existentes.

Do que foi dito até o momento, pode-se perceber a complexidade e as dificuldades que devemos enfrentar para lograr o Desenvolvimento Econômico e Social. Mas como resultado podemos constatar que algumas coisas ficaram mais claras.

Apenas através de mudanças estruturais que eliminem ou pelo menos atenuem as injustiças poderemos vencer o atraso em que nos encontramos.

A REFORMA AGRÁRIA

Dentre essas mudanças estruturais destaca-se uma, de especial significação para o êxito do processo, ou seja, a modificação do setor agropecuário. Apenas pelo aumento da produtividade por homem efetivamente ocupado, será possível eliminar um grande número de obstáculos. A exploração intensiva deverá substituir a extensiva que atualmente se pratica, com a adoção de uma política que signifique a utilização de uma tecnologia adequada e que complemente o trabalho para o aumento da produtividade e não realize a substituição em grande escala da mão-de-obra pela mecanização. Isto implicará na adoção de adubos, inseticidas, melhores sementes etc., juntamente com a educação dos camponeses para que possam assimilar os ensinamentos que lhes forem ministrados.

A seriedade dos fatos apontados nos leva a afirmar que apenas com a Reforma Agrária, será possível superar os obstáculos do setor agropecuário.

As condições dessa Reforma Agrária foram bem expostas pelo economista e agrônomo latino-americano JACQUES CHONCOL.1 1 ) Citamos nos parágrafos anteriores algumas opiniões e cifras apresentadas pelo Professor JACQUES CHONCOL numa brilhante conferência pronunciada num curso sobre "Problemas Econômicos da América Latina", que se encontrava sob minha responsabilidade na Escola de Estudos Econômicos Latino-Americanos para portadores de grau universitário em Santiago do Chile, durante o ano de 1962. A conferência foi publicada na revista Panorama Econômico, n.º 232-33, Santiago do Chile, julho de 1962 e também no livro El Desarrollo de América Latina y la Reforma Agraria, Santiago do Chile, Editorial dei Pacífico S. A. JACQUES CHONCOL. Cuidaremos aqui de apresentar um resumo de suas conclusões acompanhado de alguns comentários.

1) A Reforma Agrária necessária na América Latina não é nem a colonização, nem um plano de desenvolvimento agrário. O ponto de partida encontra-se na redistribuição da terra e dos recursos hidrográficos imprescindíveis à produção, o que implicará na redistribuição da renda originada no setor em bases justas. O exemplo argentino mostra claramente que na década dos cinqüenta 63% das terras cultivadas eram ocupadas por arrendatários e outras modalidades de trabalhadores sem terra, enquanto os 37% restantes trabalham em suas propriedades, cabendo observar que mesmo nestes casos verifica-se uma porcentagem muito elevada de minifundiários, que criam um problema tão grave ou talvez ainda mais sério do que o latifúndio. Na maioria dos demais países latino-americanos, a posse da propriedade agrária é ainda mais injusta.

Juntamente com a redistribuição será necessário iniciar uma política de desenvolvimento agrícola que leve em consideração o que fôr necessário para a transformação com o aumento da produtividade, tais como, política de preços, assistência técnica, créditos, treinamento de camponeses, desenvolvimento de técnicos de mercadização etc.

2) O processo de redistribuição da terra deve ser completo, rápido e drástico. Em outras palavras, o processo deve abarcar milhões de trabalhadores rurais e a maior extensão possível de terras.

3) Conseguir o máximo apoio político para o processo, tanto da parte dos homens de govêrno, como das forças políticas e por parte do povo. A Reforma Agrária só sê realizará quando os homens de govêrno estiverem convencidos de sua inadiável necessidade e quando o povo a apoiar.

4) As propriedades expropriadas pela Reforma Agrária devem ser pagas a prazo e por preços mínimos. Se se pretender pagar os preços de mercado e à vista, não existirão fundos suficientes nem para o início da transformação.

5) Incorporar integralmente à comunidade nacional cs trabalhadores agrários, arrancando-os do analfabetismo e do nível de pura subsistência a fim de ensinar-lhes novas técnicas. Com o aumento de sua renda, obtida pela venda de sua produção, estarão capacitados para compras de bens manufaturados.

Essa é uma das tarefas mais audaciosas que se apresentam à geração hodierna, pois trata-se de subtrair ao atraso e à miséria uma comunidade secularmente submersa.

6) Uma das maneiras mais favoráveis para tornar exeqüível uma Reforma Agrária é a organização do camponês em cooperativas de produção, de comercialização, de aproveitamento mecânico etc..

Não há dúvida que a transformação aqui esboçada exigirá equipamentos e uma tecnologia apropriada. Tão logo se obtenha o aumento de produtividade, os lucros que se conseguirem poderão ser aproveitados pelos próprios camponeses, se forem suficientemente unidos no processo de comercialização de seus produtos. As duas conquistas podem ser logradas com menores inconvenientes, se estiverem organizados em forma de cooperativas. Esta, todavia, não é a única alternativa, mas parece a mais conveniente, pelo menos na fase inicial do processo.

7) Criação de um organismo estatal específico, que detenha a função de planejamento do processo, pôsto que o Estado desempenha a função mais difícil e por isso decisiva para o êxito ou para o fracasso da Reforma. Tal organismo deve descentralizar-se a níveis regionais, permitindo que os responsáveis respectivos tenham autoridade suficiente para decidir sôbre os problemas locais.

A experiência boliviana de Reforma Agrária teve início em 1953. Os organismos encarregados da mesma eram o Ministério da Agricultura, o Serviço Agrícola Interamericano, o Ministério de Assuntos Rurais, o Banco Agrícola Boliviano, a Corporação de Fomento, o Ministério da Defesa e o Conselho Nacional de Cooperativas.

Como conseqüência do grande número de organismos atuantes e da ausência de um que exercesse a função de coordenação, foram desperdiçados esforços e não apenas se deixou de trabalhar com a unidade que se fazia necessária, mas também acabou-se por paralisar a ação dos organismos responsáveis pela implementação do processo, pois se anulavam mütuamente através de ações contraditórias.

8) "A Reforma Agrária deve ser feita pelos camponeses, com a ajuda decisiva do Estado, que é o responsável pela orientação em direção ao bem-comum através da criação de estruturas que concretizem as aspirações das massas camponesas e que estejam a serviço da comunidade nacional e não seja o instrumento de uma oligarquia que detém o controle do poder no Estado."

Estas foram as palavras finais de CHONCOL que transcrevemos com o intuito de manifestar nossa total adesão ao seu pensamento.

CONCLUSÃO

Considerando-se que os povos da América Latina estão interessados em conseguir o Desenvolvimento Econômico e Social num período de tempo que seja o mais breve possível, juntamente com uma diminuição da lacuna na distribuição social da renda, devemos afastar como inútil a alternativa da manutenção da situação atual. Nosso ponto de vista é coincidente com o de um velho estadista latino-americano que se referindo aos problemas políticos do "Plano da Aliança para o Progresso" afirmava: "Se o destino da América Latina fôr permanecer estagnada ou adotar uma cultura pagã, então os povos latino-americanos que contribuíram com grandes sacrifícios em prol do sistema democrático, devem cessar os seus sacrifícios em troca de uma civilização desfrutada pelo norte (Estados Unidos e Canadá) e à qual o sul simplesmente aspira."

Usando nossas próprias palavras: o problema se coloca como um dilema entre as duas seguintes alternativas: ou o sistema político atual realiza as mudanças estruturais necessárias para atender as exigências populares, ou os povos varrerão a situação de injustiça vigente, prescindindo de valores que, até o momento, foram considerados intocáveis.

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    ) Citamos nos parágrafos anteriores algumas opiniões e cifras apresentadas pelo Professor JACQUES CHONCOL numa brilhante conferência pronunciada num curso sobre "Problemas Econômicos da América Latina", que se encontrava sob minha responsabilidade na Escola de Estudos Econômicos Latino-Americanos para portadores de grau universitário em Santiago do Chile, durante o ano de 1962. A conferência foi publicada na revista
    Panorama Econômico, n.º 232-33, Santiago do Chile, julho de 1962 e também no livro
    El Desarrollo de América Latina y la Reforma Agraria, Santiago do Chile, Editorial dei Pacífico S. A. JACQUES CHONCOL.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jul 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1967
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