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Em busca de identidade: o Exército e a política na sociedade brasileira

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Em busca de identidade: o Exército e a política na sociedade brasileira.

Por Edmundo Campos Coelho. Rio de Janeiro, Forense, 1976. 207 p.

O livro de Edmundo Campos Coelho, pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, levanta a história do Exército brasileiro, de 1823 aos dias atuais, com o objetivo de buscar as causas determinantes do seu comportamento político.

Em seu prefácio, Wanderley Guilherme dos Santos salienta que Campos Coelho possui de sobra "aquela dose de audácia necessária para enfrentar de maneira controversa assuntos igualmente controversos, desafiando hipóteses convencionais e sacudindo formas de pensar rotineiras ou de plantão" (p. 9). Realmente, pode-se afirmar que o autor é um polemista de primeira, e já na introdução, quando deixa claro que examinará a organização militar como objeto de análise em si mesma, mas sem excluir as relações que o Exército mantém com a sociedade, faz reparos de base às concepções teóricas da vida social e política brasileiras de, entre outros, Octávio Ianni, Hélio Jaguaribe e Nelson Werneck Sodré. E acrescenta que o aspecto mais notável das análises destes autores é que elas "...saltam de um tipo de explicação a outro, na medida em que cada qual se vê contraditado pelos fatos e as 'teorias' que as informam tornam-se irrefutáveis. À alternativa de modificar a 'teoria' para dar conta do fato novo (...) prefere-se inflá-la com uma seqüência infindável de explicações ad hoc. Em suma, não se ajusta a teoria aos fatos: ajustam-se os fatos à 'teoria'. Para fraseando Crozier, estas são teorias bloqueadas: recheadas de alusões à dinâmica da realidade, mas impermeáveis a mudanças netas mesmas" (p. 24-5).

No capítulo Da independência à questão militar é analisado o comportamento da elite política civil brasileira com relação ao Exército até a revolução de 1930. Em boa parte desse período aplica-se à organização militar a máxima do "conformar-se ou perecer" (p. 34), nutrindo-se atitudes hostis à existência de uma força armada permanente e profissional, sendo que isso já aparece com nitidez no projeto constitucional de 1823 que se distinguia por concentrar na Assembléia poderes que, virtualmente, "reduziam o Executivo à impossibilidade de governar, sem a violência de um golpe de estado". Continuando a análise, mostra o autor que, no ano fiscal de 1865-6, "as despesas do Ministério da Guerra atingiram os níveis mais altos de todo o período monárquico, consumindo 50% das despesas governamentais nestes anos. Entretanto, finda a Guerra do Paraguai, elas declinam aos níveis mais baixos de toda a história do Império, representando em 1878-9 apenas 8% do total das despesas governamentais" (p. 47; grifado no original). Destaque-se, também, que de 1821 a 1889 o Ministério da Guerra esteve quase sempre entregue a políticos civis sem a mínima identidade com o Exército (dos 92 ocupantes desta pasta 42 eram civis) (p. 54).

Campos Coelho, nas páginas seguintes, investe contra alguns mitos consagrados pela literatura política e sociológica no que tange à função moderadora desempenhada pela organização militar, afirmando que, nos últimos anos da monarquia, vários chefes militares e civis do movimento republicano aproveitaram-se do mito do Exército como instância regeneradora da sociedade civil: os primeiros para legitimar sua insubordinação frente ao poder civil, os segundos para estimular os primeiros e garantir para seus propósitos o respaldo do Exército (p. 69). E o melhor exemplo para desmistificar essa função moderadora pode ser encontrado no período 1889-94, anos em que o poder esteve gerido pelos militares.

Mas, em minha opinião, um dos pontos mais ricos do trabalho concentra-se na análise da modernização e profissionalização do Exército, bem como no capítulo Da doutrina à solidariedade militar, em que se realiza um apanhado amplo das condições sociopolítico-materiais que propiciaram a emergência do Exército como força política na sociedade brasileira. Às vezes apressadamente, outras, de maneira redundante mas sempre em tom próximo do audacioso, mostra o autor como a I Grande Guerra, a atividade dos chamados jovens turcos e a presença da missão militar francesa no início dos anos 20 entre nós desencadeou nos jovens oficiais revoltosos uma consciência crítica de modo a detectar uma série de disfuncional idades na organização militar. "Os primeiros fatores a serem percebidos foram os que afetaram negativamente a existência individual dos oficiais: condições materiais de vida, oportunidades de ascensão na hierarquia, gratificações de natureza profissional. Estes fatores foram conectados em seguida à presença de determinadas condições organizacionais: formação profissional deficiente, incompetência das chefias, falta de renovação do quadro de oficiais superiores, (etc.) ... Estas últimas condições foram, por sua vez, relacionadas ao estado do sistema mais inclusivo, isto é, o regime liberal corrompido e os sucessivos governos com suas contínuas crises. A ocorrência de fatores precipitantes criou o estímulo final para a erupção dos movimentos contestatórios (de 1922 e 1924, p. ex.)" (p. 82-4).

Em seguida, Campos Coelho comenta que a década de 30 foi considerada positiva para o Exército, em termos da regeneração dos princípios da disciplina e hierarquia, constantemente violadas desde o século anterior, bem como da definição de seu papel na sociedade. Em 1937, é conveniente destacar, a liderança do Exército "tornou-se avalista do Estado Novo, um regime militar em sua essência. A sustentação, por tempo indefinido, de um regime autoritário requeria do Exército a demonstração de um alto grau de disciplina e de efetividade do sistema de comando. Em suma, de níveis inéditos de coesão interna" (p. 97). E esta associação Exército-Estado expressou-se numa doutrina militar de efeitos duradouros, sendo que o pensamento do Gen. Pedro Aurélio de Góes Monteiro ganha relevo. Ele foi o "...primeiro aluno de sua turma e, logo, nomeado professor-assistente (... ) Tinha cultura política superior à média dos oficiais de sua geração, adquirida por esforço de autodidatismo (tendo sido) o principal inspirador e articulador do Estado Novo e homem forte do regime ..." (p. 99). Seu pensamento implicava que se assumisse plenamente a condição militar e dava-lhe dimensão própria ao fazer do Exército e da Marinha modelos para a organização da sociedade civil. Sugere aqui o autor que a doutrina militar do velho general é, em essência, idêntica à doutrina de segurança nacional elaborada pela Escola Superior de Guerra; e que antecipa, de mais de 20 anos, a doutrina militar do regime instaurado em 1964. A tese de Campos Coelho é bem clara (e não menos discutível): "... o pensamento de Góes Monteiro foi simplesmente retomado e reelaborado em função de uma nova conjuntura" (p. 105).

E comentando as várias "crises" por que o Exército passou, p. ex., em 1954, 1955, 1961 e 1964, afirma que, em síntese, "...sua integridade (...) sempre se sobrepôs, ainda que nos últimos instantes, às rivalidades internas" (p. 115). E foi nessa integridade que se baseou a Escola Superior de Guerra (ESG) quando da elaboração da Doutrina da Segurança Nacional, cuja eficácia advém, fundamentalmente, de seu potencial na produção de consenso dentro das Forças Armadas (...) pois estas são órgãos essencialmente políticos... " (p. 165-6; grifos no original). Outro ponto essencial dessa doutrina é o binômio segurança-desenvolvimento, onde o primeiro termo deve ser entendido como um fator de produção indispensável ao desenvolvimento, cabendo à organização militar a produção desse fator, isto é, ela deve participar cada vez mais na formação de políticas substantivas relacionadas ao desenvolvimento, daí sua interferência crescente na sociedade civil (p. 167).

No último capítulo, Descompressão: prospectos, o autor discute a questão da chamada política de reeducação cívica, aplicada a amplos segmentos do espaço social. Afirma que as estratégias de euforia programada podem ser, para os segmentos ilustrados - políticos, intelectuais, estudantes e artistas - tópicos para irônicos epítetos ou para o discurso filosófico-moral, mas que isso não altera o fato de que o fenômeno da euforia constitui a resultante da aplicação eficaz de uma estratégia de legitimação da ordem política implantada em 1964 (p. 176-7). E mais: que o "...caráter autoritário e coercitivo do regime não prejudica sua capacidade em gerar legitimidade em amplos e importantes segmentos da sociedade. Pelo contrário, há razões para supor que, em certos segmentos, como o das classes populares, um nível alto de autoritarismo obterá significativa recepção ..." (p. 182-3).

Muitos outros aspectos do trabalho de Campos Coelho mereceriam destaque. Entretanto, creio que os comentados já fornecem idéias básicas ao leitor interessado em conhecer alguns ângulos sob os quais se dá a participação das Forças Armadas na vida política brasileira. Seu livro, apesar de utilizar-se de uma bibliografia teórica eivada pelo ranço sistêmico e, conseqüentemente por jargões dos mais indigestos - tais como política de erradicação, hibernação, política da escassez, relacionamento simbiótico, - coloca-se muitos furos à frente dos autores que ultimamente vêm-se dedicando ao estudo da participação da organização militar na política nacional. Apesar de suas falhas, esse trabalho tem uma virtude crucial: é polêmico! Espera-se que outros o sucedam no tratamento de realidade político-social tão complexa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1978
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