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Novas tecnologias e a questão do gênero: a automação e as secretárias

ESPECIAL

Novas tecnologias e a questão do gênero: a automação e as secretárias

Angelo dos Santos Soares

Professor do Departamento de Informática e Métodos Quantitativos da EAESP/FGV, Mestre em Administração de Empresas e autor do livro O que é Informática

RESUMO

As mulheres vêm sendo apontadas como o grupo social que será mais afetado, quantitativa e qualitativamente, pelas novas tecnologias baseadas na microeletrônica. Este trabalho tem por objetivo analisar alguns aspectos relacionados a como a automação vem afetando o trabalho das mulheres na cidade de São Paulo. O cargo de secretária foi escolhido por ser "tipicamente feminino" e estar sendo automatizado em larga escala nas organizações paulistanas.

Palavras-chaves: Automação, trabalho das mulheres, secretárias (des)qualificação, desemprego.

ABSTRACT

Women have been pointed out as the most affected group by the new technologies based on microelectronics. The object of this paper is to make a preliminary analysis of how automation has affected women's employment in the city of São Paulo. The secretaries were chosen because their job is considered a female one and it has been automated in a large scale in the tertiary sector.

Key words: Automation, women's employment, (de)skilling, unemployment, secretaries.

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INTRODUÇÃO

A automação está cada vez mais presente no nosso cotidiano: bancos 24 horas, código de barras, terminais bancários para saldos e extratos, video-games, cartões magnéticos. Trata-se de uma realidade irreversível que afeta a vida das pessoas seja enquanto consumidoras ou trabalhadoras. Novos hábitos, produtos e serviços têm aparecido e modificado nossas vidas.

No Brasil, a discussão sobre a automação tem sido prejudicada por vários motivos: em primeiro lugar, houve uma polarização da discussão em torno da Política Nacional de Informática e das polêmicas travadas com os EUA. Em segundo lugar, a discussão tem se mantido restrita aos círculos acadêmicos e à ocorrência ou não do desemprego e da desqualificação. Criou-se, também, uma visão extremamente mitológica em torno da automação, como se ela fosse a redentora dos trabalhadores, libertando-os dos trabalhos repetitivos, insalubres e perigosos. Uma visão apaixonada asimoviana e mítica, que traz dificuldades para uma compreensão crítica desse processo de mudança tecnológica. Na realidade, "todo esse culto criado em torno da automação, como todos os cultos, tem a intenção de recrutar a aquiescência e a submissão não refletidas"1 1 . ROSZACK, T. O Culto da Informação. São Paulo, Brasiliense, 1988, p.12. .

A automação incorporou a idéia de modernidade. Tudo o que a ela se relaciona é considerado moderno e, portanto, racional e eficiente. A automação tem sido apresentada, dessa forma, como sendo boa em si e como a solução perfeita para tudo o que é considerado antigo, ineficiente e desorganizado na nossa sociedade.

Um outro aspecto que nos chama a atenção é a não consideração da variável gênero2 2 . Estamos utilizando o conceito gênero neste trabalho como sendo o conhecimento sempre relativo sobre as diferenças (sociais, culturais, históricas) baseadas no sexo. , na maioria das pesquisas sobre automação e processo de trabalho no Brasil, mesmo quando sabemos que a maior parte dos trabalhadores envolvidos são mulheres.

É importante salientarmos que "nenhuma análise de processo e mercado de trabalho pode ocorrer sem que se faça uma análise explícita sobre a divisão sexual do trabalho e suas causas, pois trata-se de um aspecto fundamental da organização do trabalho e da estruturação do mercado de trabalho. A natureza e o conteúdo das tarefas, salários, o controle sobre tempo e espaço, a relação com supervisores, certamente, são diferentes quando analisados sob a perspectiva do gênero"3 3 . HUMPHREY, J. Gender and Work in the Third World-Sexual Divisions in Brazilian Industry. Londres, Tavistock Publications, 1987, p. 2. .

No processo de automação da sociedade, ao contrário do que observaram Hirata e Humphrey4 4 . HIRATA, H. & HUMPHREY, J. "O Emprego Industrial Feminino e a Crise Econômica Brasileira", Revista de Economia Política. 4(4):89-107,1984. , que a divisão sexual do trabalho poderia, até certo ponto, proteger o trabalho das mulheres num período de crise econômica, o trabalho das mulheres será o mais afetado pelas novas tecnologias baseadas na microeletrônica. Inúmeras pesquisas realizadas nos países desenvolvidos5 5 . Ver WERNECK, D. Microelectronics and Office Jobs The Impact of the Chip on Women's Employment. Geneve, ILO, 1983; SELBYSMITH, J. "Developments in Micro-Electronic Technology and Their Impact on Women in Paid Employment". The Australian Quarterly, 1980, pp. 415-431; ETUI. The Impact of Microelectronics on Employment in Eastern Europe in the 1980s. Brussels, ETUI, 1980; LIE, M. Office Automation and Women's Work. Norway, IFIM, 1982 (mimeo). apontam essa problemática.

A AUTOMAÇÃO E O TRABALHO DAS MULHERES

Após a Segunda Guerra Mundial, as mulheres começaram a aumentar a sua participação no mercado de trabalho. A maioria das mulheres, entretanto, está segregada em ocupações no setor terciário da economia e em ocupações de baixa qualificação no setor primário. Podemos dizer que há uma "sexualização das ocupações" onde as mulheres se encontram concentradas em ocupações "tipicamente femininas"6 6 . Estamos considerando empregos "tipicamente femininos" aqueles onde 50% ou mais dos trabalhadores são do sexo feminino. .

As mulheres serão mais afetadas pela automação, exatamente por estarem segregadas nessas ocupações "tipicamente femininas" no setor terciário, onde estão mais concentrados os desenvolvimentos e avanços da automação.

Além disso, as ocupações onde as mulheres estão concentradas são caracterizadas, geralmente, por uma baixa taxa de sindicalização, que é mais reduzida ainda entre as mulheres. Sendo assim, quando há a introdução das novas tecnologias nesses postos de trabalho, o poder de barganha e participação das mulheres no processo é muito reduzido, o que dificulta, ainda mais, a aquisição de alguns ganhos possíveis com a automação.

Um outro aspecto que reforça a tese do impacto desproporcional da automação sobre o trabalho das mulheres é apresentado por Kaplinsky7 7 . KAPLINSKY, R. Micro Electronics and Employment Revisited - A Review. Geneve, ILO, 1987. . Os novos empregos qualificados criados pela automação exigem um perfil de qualificação que, geralmente, não é aquele possuído pela força de trabalho feminina. Segundo Lie8 8 . LIE, M. The Significance of Technology for Women's Work. Norway, IFIM, 1983 (mimeo). , uma das divisões mais importantes, hoje, no processo de trabalho se dá através da qualificação. Essa diferença de qualificação que podemos observar entre homens e mulheres na nossa sociedade vem da educação diferenciada que recebem na escola e na família, que institucionaliza os papéis dominantes de gênero. Assim, os homens são dominantes em todos os tipos de educação técnica, enquanto que as mulheres possuem uma educação caracterizada por uma abordagem não-técnica, longe dos requisitos matemáticos. Essa divisão, devemos ressaltar, estende-se ao mercado de trabalho.

Dessa forma, temos uma divisão clara entre o perfil de qualificação de homens e o de mulheres no mercado de trabalho. Para os homens, são destinadas ocupações mais técnicas, em virtude de sua formação e "habilidade natural" de operar máquinas e ferra-mentas. Já para as mulheres são designadas as ocupações não-técnicas e que possuam alguma semelhança e/ou relação com o trabalho doméstico, em virtude da sua formação (não-matemática) e da sua "dificuldade e aversão naturais" às máquinas, em particular aos computadores9 9 . Cynthia Cockburn em seu livro Brothers - Mate Dominance and Technological Change apresenta todas essas justificativas machistas sobre a inadequação das mulheres para a operação de máquinas. .

Concordamos com Werneck10 10 . WERNECK, D. Op. cit. , que aponta como razão da não representatividade da mulher nas ocupações qualificadas do setor informático, exatamente a sua educação não direcionada para matérias técnicas.

Um outro aspecto que implica um maior impacto da automação no trabalho feminino é a desigualdade existente com relação a salários e treinamentos no local de trabalho. Mesmo quando ocupam o mesmo cargo, homens e mulheres não são tratados com igualdade pela gerência. Os salários ainda são diferenciados e o acesso a promoções e treinamentos também o é. "A atitude e o tratamento gerencial com relação aos trabalhadores são condicionados pelo gênero. Essa limitação aos treinamentos associada à falta de qualificação técnica das mulheres implica, na maioria das vezes, numa maior instrumentalização na utilização de equipamentos automatizados por parte das mulheres"11 11 . HARTMANN, H. et alii. Computer Chips and Paper Clips. (2 vols.) Washington, National Academy Press, 1986, p. 22. .

A velocidade de difusão das novas tecnologias baseadas na microeletrônica é um outro aspecto que acaba diminuindo o acesso das mulheres aos empregos automatizados. Num curto intervalo de tempo, há uma total reformulação do hardware e do software em virtude de mudanças tecnológicas. Por exemplo: em 1983, havia uma grande difusão de microcomputadores de 8 bits, que utilizavam determinados softwares (processadores de texto, por exemplo). Em 1987, a tecnologia dos microcomputadores já era predominantemente de 16 bits, usando softwares distintos dos utilizados até então.

Essa incrível velocidade de difusão, nunca antes vista com outras tecnologias, prejudica de maneira diferenciada as mulheres, pois, como nos mostram Guilbert e Isambert-Mamati12 12 . GUILBERT, M. & ISAMBERT-JAMATI, V. "A Distribuição por Sexo". In: FRIEDMANN, G. & NAVILLE, P. Tratado de Sociologia do Trabalho. Vol. I, São Paulo, Ed. Cultrix, 1973, pp. 304-323. , uma das características do trabalho feminino é a descontinuidade no tempo, ou seja, os períodos de atividade profissional alternam-se com períodos de inatividade. Na maior parte das vezes, isso se dá em virtude do casamento e do período de socialização dos filhos. Esse afastamento, devemos salientar, decorre de um contexto cultural que impõe à mulher o papel da maternidade e da responsabilidade pelo cuidado da família que, associado à falta de equipamentos sociais (creches, berçários etc), dificulta muito a possibilidade da mulher de se manter dentro do mercado de trabalho. Segundo Saffioti13 13 . SAFIOTI, H. I. B. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade, 2ª edição. Petrópolis, Ed. Vozes, 1979. após esse período de afastamento, a qualificação da força de trabalho feminina ou já se esvaiu completamente ou se encontra desatualizada, obrigando a mulher a aceitar posições subalternas e precariamente remuneradas.

Nesse sentido, podemos concluir que a automação da sociedade poderá contribuir para a imposição de posições ainda mais subalternas e de menor remuneração para as mulheres, pois além da perspectiva da redução do número de empregos ocupados pelas mulheres, temos uma grande desatualização profissional das mulheres durante seu afastamento do mercado de trabalho, o que dificulta seu retorno a esse mercado após o período de socialização dos filhos.

Com relação ao Brasil, o objetivo deste artigo é mostrar como a automação tem afetado o trabalho das mulheres, a partir da análise de um cargo tipicamente feminino: o de secretária. Devemos salientar que este não é o cargo mais afetado pela automação, comparativamente a outros também estudados em uma pesquisa mais abrangente que fizemos14 14 . OS IMPACTOS da automação no trabalho das mulheres. Relatório de Pesquisa para a Fundação Carlos Chagas. São Paulo, 1990 (mimeo). . Ela foi realizada na cidade de São Paulo, durante o ano de 1989, em três empresas onde o grau de automação era o mais avançado, em termos de automação de escritórios, e onde as várias fases de produção já estavam interligadas eletronicamente. Em um dos escritórios havia até comunicação mediada por satélite.

Devemos deixar claro que essa imposição da interligação eletrônica na escolha das organizações é de fundamental importância quando se deseja analisar os impactos da automação, pois como nos mostra Aronsson15 15 . ARONSSON, G. "Changed Qualifications Demands in Computer-Mediated Work". Applied Psychology: An International Review, 38(1):57-71,1989. , a interligação eletrônica é uma nova forma de racionalização, direcionada não para as tarefas e funções separadas, mas para processos completos. Dessa forma, o simples fato de existirem máquinas automatizadas espalhadas pela organização, sem a devida interligação, não configura para nós um ambiente automatizado.

OS ASPECTOS QUANTITATIVOS

Nas últimas décadas, aqui no Brasil, as mulheres têm aumentado a sua participação no mercado de trabalho. Entretanto, tal como acontece nos países desenvolvidos, a maioria das trabalhadoras está segregada em ocupações no setor terciário e em ocupações de baixa qualificação no setor primário. Podemos dizer que no Brasil, desde 1950 até hoje, há uma "sexualização das ocupações", como nos mostra Bruschini16 16 . Ver BRUSCHINI, C. "Sexualização das Ocupações: O Caso Brasileiro". Cadernos de Pesquisa, 28:5-20, São Paulo, FCC, 1979; ______. Tendências da Força de Trabalho Feminina Brasileira nos anos 70 e 80: Algumas Comparações Regionais. São Paulo, FCC, 1989. ; e mesmo no setor terciário as mulheres ainda se encontram concentradas em "guetos ocupacionais", onde os empregos possuem uma baixa qualificação, baixos salários e um baixo prestígio na sociedade.

Quando analisamos os 70 cargos apresentados na RAIS - Relação Anual de Informações Sociais - podemos observar que 58% da mão-de-obra feminina está concentrada em apenas 16 cargos, apresentados no quadro 1, que são considerados como tipicamente femininos.


A partir da experiência internacional, podemos afirmar que no Brasil o trabalho das mulheres será mais afetado pela automação do que o trabalho masculino. Isso não significa que os homens não serão afetados pela automação, mas sim que as mulheres serão atingidas desproporcionalmente. Ao analisarmos a evolução da automação nos últimos anos, essa desproporção fica mais evidente. Os dados sobre a evolução da automação não-industrial no país são escassos, mas acreditamos que a comercialização de software pode ser um bom indicativo do crescimento da automação no terciário. Ela pode ser vista no quadro 2.


Fica claro, a partir dos dados apresentados nesse quadro, que a automação industrial apresenta sinais de retração, enquanto o setor de automação de escritórios e comercial registram uma expansão. Além disso, podemos observar que, em termos percentuais, a automação no setor terciário (escritórios, comercial, serviços e bancária juntos) representa aproximadamente o dobro da comercialização em software da automação industrial.

Neste trabalho, o setor que nos interessa em particular é o da automação de escritórios, que vem crescendo significativamente tios últimos anos.

A análise quantitativa dos impactos da automação sobre o mercado de trabalho (emprego/desemprego) é bastante complexa e encontra inúmeros problemas de ordem metodológica. No que diz respeito ao trabalho das mulheres, em particular o das secretárias, a análise quantitativa se torna ainda mais difícil.

Segundo Kaplinsky17 17 . KAPLINSKY, R. Op. cit. , há inúmeros problemas metodológicos envolvidos na análise da taxa de desemprego proveniente da utilização das novas tecnologias. Freqüentemente, aparecem estudos feitos a nível microeconômico que realizam generalizações, ilegítimas, para o nível macroeconômico.

Acreditamos que um dos principais problemas dessas estimativas reside no fato de se apresentarem números que produzem, num primeiro momento, um determinado efeito, mas ao não se confirmarem, na prática, acabam por reforçar a imagem de que não há desemprego com a automação, ou que, se existe, é muito pequeno e, portanto, não acarreta problemas. Dessa forma, o desemprego tecnológico acaba sendo desconsiderado e suas conseqüências tornam-se ainda mais insidiosas.

A análise da taxa de desemprego proveniente das novas tecnologias exige muitos cuidados metodológicos e a consideração de inúmeras variáveis, pois o nível geral de emprego numa dada sociedade é determinado por inúmeros fatores, difíceis de serem segregados.

E muito comum justificar-se a redução do número de trabalhadores utilizando-se o argumento do aumento da produtividade proveniente da automação. Entretanto, para que esse argumento seja verdadeiro, o nível da produção agregada deve se manter inalterado, o que não acontece necessariamente, pois um aumento na produtividade pode gerar um aumento de salários e uma queda nos custos reais de produção, implicando, assim, num aumento real da renda. Isso possibilitaria um aumento na procura por outros produtos e geraria novos empregos.

Esse é apenas um dos aspectos envolvidos nessa problemática. Para Schmitz18 18 . SCHMITZ, H. "Microelectronics Based Automation and Labour Utilization in Developing Countries". Viertel Jahres Bericht, 103, Bonn, 1986. , o problema do desemprego tecnológico será maior nos países do Terceiro Mundo, pois os empregos criados pelas novas tecnologias, que "compensariam" parcela do desemprego gerado, estão localizados nas empresas-matrizes, nos países desenvolvidos. No Brasil, esse efeito não-compensatório tem sido minimizado pela Política Nacional de Informática, que reserva parte do mercado interno para empresas nacionais, criando, assim, empregos relacionados às novas tecnologias que "compensam" parcela do desemprego gerado pela automação.

Um outro aspecto que merece a nossa atenção, com relação ao nível de emprego, é que a automação tem sido introduzida tanto nos escritórios, serviços como na indústria simultaneamente. A falha de não se correlacionar a automação industrial à automação dos demais setores, principalmente de escritórios, como nos aponta a associação 9 to 519 19 . 9 to 5. Hidden Victims: Clerical Workers, Automation, and the Changing Economy. Cleveland, 9 to 5, 1985 (mimeo). é fatal para qualquer análise econômica dessa questão.

Com relação ao trabalho das mulheres, Bruschini20 20 . BRUSCHINI, C. Tendências da Força de Trabalho Feminina Brasileira nos anos 70 e 80: Algumas Comparações Regionais. Op. cit. observou que no período de 1983 a 1985, de recessão econômica, houve um ligeiro deslocamento das mulheres que trabalhavam na indústria e no campo para o setor terciário. Com a intensificação da automação simultaneamente nos vários setores da economia, esse padrão de deslocamento da mão-de-obra feminina ocorrido no período de 19831985, será reduzido drasticamente, quando não inviabilizado.

Kaplinsky21 21 . KAPLINSKY, R. Op. cit. ainda nos apresenta um outro aspecto que dificulta a avaliação da taxa de desemprego proveniente da automação, que é a distinção entre o que é desemprego proveniente da automação em si, e o que é desemprego proveniente das mudanças na organização do trabalho.

Todos os aspectos apresentados até agora nos indicam a dificuldade metodológica e teórica na avaliação do quantum de desemprego proveniente da automação. No Brasil, essa avaliação é ainda mais difícil, em virtude da falta ou precariedade de dados disponíveis. As estatísticas sobre a automação comercial e de escritórios ainda são muito incipientes e não há séries históricas que permitam fazer uma análise mais detalhada de sua evolução.

Por outro lado, as estatísticas sobre o emprego da mulher, como nos adverte Bruschini, "devem ser analisadas com extrema cautela, pois além de revelarem apenas a parcela não-doméstica da contribuição da mulher à sociedade, tendem ainda a subestimá-la"22 22 . BRUSCHINI, C. Mulher e Trabalho. São Paulo, Nobel, 1985, p. 8. . Além disso, as estatísticas que revelam a participação da mulher no mercado de trabalho de acordo com os cargos, além de apresentarem um número muito restrito de cargos, em muitos casos, não trazem a informação individualizada por cargo.

Entretanto, as dificuldades para quantificação dos efeitos das novas tecnologias sobre o nível total de empregos, e, em particular, sobre o das mulheres, não devem obscurecer o óbvio: a automação sempre acarreta uma reorganização do trabalho e, mesmo que o número de postos de trabalho de uma determinada ocupação se eleve, com certeza o seu conteúdo não será o mesmo. Finalmente, se é difícil uma estimativa macroeconômica dos efeitos da automação sobre o nível de empregos, no plano microeconômico sempre é possível detectar ou desemprego, ou crescimento sem criação de empregos (fobless Grozvth), quando há introdução das novas tecnologias baseadas na microeletrônica.

OS ASPECTOS QUALITATIVOS - AS SECRETÁRIAS

As secretárias ocupam um lugar importante e de grande responsabilidade nas organizações, pois são as interfaces da organização e/ou clientes com os executivos. O foco deste texto são as implicações da automação para o trabalho da secretária particular, isto é, da secretária que se reporta a um único chefe.

A análise de como as novas tecnologias vêm transformando o trabalho das secretárias é especialmente difícil. Quando se trata da automação de escritórios, geralmente abordam-se apenas os procedimentos formais do trabalho em escritórios: as tarefas repetitivas, previsíveis e padronizadas que são passíveis de ser automatizadas.

No entanto, é preciso levar em conta também, particularmente no caso das secretárias, a prática informal dos escritórios. Ela envolve as chamadas tarefas invisíveis - pois, a exemplo do serviço doméstico, só são percebidas quando deixam de ser executadas - associadas a qualificações igualmente invisíveis23 23 . Estamos chamando de "qualificações invisíveis", em particular das secretárias, todas as qualificações que não são reconhecidas e pelas quais as trabalhadoras não são nem avaliadas e nem remuneradas. Trata-se de qualificações relacionadas ao julgamento social e cognitivo acurados e ao uso de técnicas de negociação e de mediação que envolvem um alto grau de diplomacia, e que quando são relacionadas aos homens são muito apreciadas e reconhecidas, mas quando são desempenhadas pelas secretárias, não são levadas em consideração. Um exemplo: a filtragem de telefonemas e de pessoas que procuram o executivo (gatekeeping), que sempre envolve um alto grau de diplomacia mas nunca é reconhecida e valorizada enquanto tarefa desempenhada por uma mulher. , exigidas e presentes na rotina de trabalho mas raramente computadas para fins de pagamento ou promoção. Tais tarefas não são passíveis de ser automatizadas.

Na verdade, falta uma delimitação clara das atribuições de uma secretária. A existência de uma definição para o cargo em questão é uma raridade e "onde ela existe, freqüentemente especifica: 1) taquígrafa (ditado/ cópia) e datilografia; 2) tarefas gerais de escritório; e 3) etecetera. É o etecetera que não só permite a brutal exploração das trabalhadoras em escritórios, mas também assume a naturalidade das mulheres na execução de tarefas consideradas femininas que envolvam tomar conta e prestação de serviços"24 24 . BARKER, J. & DOWNING, H. "Word Processing and the Transformation of the Patriarchal Relations of Control in the Office". Capital &Class, 10:75,1980. . Na fala das secretárias pode-se observar essa dificuldade na definição de suas tarefas:

"Tudo, a secretária faz tudo, desde servir café na sala do chefe; porque, no fundo, secretária é isso mesmo, secretária é secretária".

"Tudo, em geral faz tudo, desde o trabalho do chefe, faz particular também, desde contas, mudanças, tudo, tudo. Tantas coisas... não dá nem para fazer avaliação. A secretária fala no telefone, é complicado definir assim, pois ela faz tudo, menos resolver o supra-racional do problema, o resto é fundamental (...) eles esperam que eu faça tudo, desde a parte administrativa, o que eu puder liberar, tomar conta de absolutamente tudo".

Assim, a "generalidade" das atribuições das secretárias torna difícil a análise de como a automação altera essa ou aquela tarefa, ou se há um processo de (des)qualificação do seu trabalho, mormente quando se consideram as "qualificações invisíveis" que lhes são exigidas. Entretanto, alguns aspectos decorrentes da automação que influenciam o seu trabalho puderam ser observados.

O primeiro deles é a intensificação do ritmo de trabalho, em virtude da introdução de novas ferramentas de trabalho25 25 . Estamos considerando novas ferramentas de trabalho nos escritórios os microcomputadores, terminais de vídeo, telefax, rede de computadores, softwares aplicativos: processadores de texto, planilhas eletrônicas, bancos de dados. . O depoimento das secretárias registra isso com clareza:

"Eu mando uma mensagem, ela recebe26 26 . Nesse caso é possível enviar e .receber a resposta para/da Asia em apenas 30 segundos em virtude do sistema de comunicação de dados. , 30 segundos depois me manda a resposta, como se eu estivesse falando por telefone. É muito rápido nosso processo de correspondência".

"As coisas agilizam muito, por outro lado é neurotizante, porque você fica correndo atrás do tempo, muito mais que antes, quando as coisas demoravam".

"Fora isso têm máquinas de telefax (...) Por um lado é bom, mas por outro não, pois todo mundo quer tudo para ontem e agora é possível fazer para ontem, então começa a acelerar o processo, você não tem tempo. Uma coisa que antes você demoraria, vamos supor, uma previsão de três dias, hoje você pode ter meia hora para fazer. Quer dizer, é on-line, está cada vez mais próximo e mais difícil. O trabalho total, a atenção, a cobrança maior, há expectativa em todos os lados".

Esse aumento do ritmo de trabalho deve-se não somente aos novos equipamentos introduzidos nos postos de trabalho, telefax, por exemplo, mas também à visão mágica criada em torno dessa nova tecnologia. Acredita-se que por se tratar de um trabalho automatizado deve ser mais rápido, fácil e perfeito, pois o computador é muito rápido, faz o trabalho pesado e, acima de tudo, nunca erra. Ao homem, ou, no nosso caso, à mulher, resta apenas apertar um botão e tudo estará resolvido eficientemente. Entretanto, a realidade é muito distinta...

"Aí a gente encontra uma certa barreira por parte dos chefes, porque eles falam o seguinte: Ah! mas está lá no computador. E só alterar os números, em dois minutos você faz isso! E não é bem assim, pois às vezes por causa duma linha que você acrescenta muda toda a formatação do documento".

Além de não ser um trabalho simples, executável "em dois minutos", essa visão mágica da automação não leva em conta que as atribuições de uma secretária não se reduzem ao processamento de textos ou a atividades computadorizadas. Outras tarefas, como por exemplo atender telefone, superpõem-se a estas permanentemente. Na verdade, por detrás dessa visão mágica da automação está, também, a desconsideração das "qualificações invisíveis" de tais trabalhadoras.

Com a automação, ocorre ainda um aumento do volume de trabalho a ser executado, principalmente quando as secretárias estão organizadas em um pool.

"Então tivemos que abrir mão de uma secretária, de um elemento humano, em virtude da automação que houve. Já que isso facilitava tanto, então não era necessário ter cinco secretárias, quatro já seriam suficientes e foi o que foi feito".

"As coisas são muito mais fáceis. As cópias carbono, hoje em dia, estão à parte. Agora, por outro lado, o volume de trabalho cresce".

"O serviço sai mais rápido, apesar de que muitas coisas que não se faziam antigamente são feitas agora".

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Um outro aspecto problemático que encontramos na análise dos efeitos da automação no trabalho das secretárias é a questão do controle. Segundo Cárter, "entre os trabalhadores de escritórios, e especialmente entre secretárias, as questões de controle e autonomia no posto de trabalho são complicadas tanto conceitualmente, como em termos de encontrarmos um meio concreto de estudá-los"27 27 . CARTER, V. J. "Office Technology and Relations of Control in Clerical Work Organizations". In: WRIGHT, B. D. (org.), Women, Work, and Technology - Transformations. Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1987, p. 203. . Em nenhum momento da pesquisa foi mencionada a existência de monitoração eletrônica do trabalho28 28 . Monitoração eletrônica do trabalho é a coleta, armazenamento, análise e apresentação de informações sobre a produtividade e as atividades dos funcionários. A qualquer momento, em um local remoto, pode-se saber quanto um(a) determinado(a) trabalhadora) produziu, quantas vezes foi ao banheiro ou realizou alguma pausa. . Mesmo assim, não podemos afirmar que tal controle não exista, pois, muitas vezes, a monitoração é feita sem o conhecimento do(a) trabalhador (a). Com relação a essa questão, pudemos observar que o grau do controle está diretamente relacionado à relação chefe-secretária. Quanto mais autoritária e patrimonial for essa relação, maior será o controle a que será submetida a secretária.

Entretanto, se o controle no posto de trabalho é de difícil análise, o controle sobre as tarefas a serem executadas é facilmente observável. Com a automação, as secretárias tornam-se dependentes do computador para a realização das suas tarefas.

"Você depende do equipamento".

"Eu faço tudo com ele, se não tiver o micro eu morro em só uma hora. Você fica meio incapaz de viver sem, quando o meu micro quebra, eu quebro também e daí o fluxo continua".

"Não dá nem para explicar, a gente já se acostumou tanto com o trabalho automatizado que não dá nem para lembrar como era trabalhar do outro jeito".

"Eu não sei mais viver sem isso. Eu recebi um convite para trabalhar em outras empresas que estavam começando a ter micro. Não dá!".

Essa dependência é extremamente prejudicial às secretárias, não só por dificultar a mobilidade entre empregos, mas sobretudo em virtude de dois grandes problemas relacionados ao trabalho administrativo automatizado: o tempo de resposta e a quebra de equipamentos.

O tempo de resposta29 29 . Tempo de resposta é definido como o tempo médio entre a pressão da tecla e a resposta e/ou caracter aparecer na unidade de saída de dados com a qual estamos trabalhando. Esse tempo em que o operador espera a resposta é variável, de acordo com a parte onde se encontra a sequência do diálogo. e a quebra de equipamento acabam impondo o ritmo de trabalho às secretárias, que desta forma perdem o controle sobre ele. O tempo de resposta, na maioria das vezes, é muito alto, em função de problemas com as telecomunicações, quantidade de usuários no sistema, tipo de operação que está sendo realizada etc. Esses fatores são aleatórios e por isso estão totalmente fora do controle das secretárias. "Em tais situações os empregados não podem dizer se o 'silêncio' foi causado por uma carga elevada de trabalho ou se o sistema caiu"30 30 . JOHANSSON, G. & ARONSSON, G. "Stress Reactions in Computerized Administrative Work". Journal of Occupational Behaviour, 5:159-181,1984. . A espera que o tempo de resposta implica é um dos principais aspectos negativos de automação apontados pelas secretárias, como se observa em suas falas:

"O que tem de mais negativo no sistema automatizado é que o seu tempo de resposta é lento, você acaba de terminar o programa e, devido à sobrecarga na rede, ele acaba sendo lento e isso às vezes empata o seu tempo".

"Devido à sobrecarga da rede você tem que esperar muito para conectar e entrar na rede, ou então esperar muito para poder ter a sua resposta".

"O tempo de resposta é ruim. É um tempo mais demorado para você obter a resposta no sistema de um assunto que você envia. Aqui o processo é mais lento porque as linhas telefônicas da região são supercarregadas".

A satisfação de realizar suas tarefas de maneira rápida e eficiente, de acordo com as expectativas da chefia, muitas vezes, é prejudicada por tempos de resposta demorados; eles não podem ser considerados como pausas para descanso das secretárias, pois há um acúmulo de trabalho e de pressão para a realização das tarefas. Mas é, sobretudo, a variabilidade e a imprevisibilidade que tornam os tempos de resposta uma grande fonte de ansiedade e stress ocupacional.

A quebra dos equipamentos é também muito prejudicial ao trabalho das secretárias, principalmente em virtude da dependência que se cria dessas máquinas.

"De repente, você está no fim, aí entra um arquivo que você passou um dia inteiro datilografando, aí você fica doida e quer subir pelas paredes e isso já me aconteceu. O micro trava e não dá nem para você salvar o que já fez. Mas isso é uma síncope que você passa por cima do micro quando dá essa merda. Aí você dá uma respirada funda, dá uma passeadinha, toma alguma coisa e volta para o micro porque você não pode fazer nada. Infelizmente isso acontece".

"Você fica dependente, sem sua produção, é lindo! Você chega para o chefe e diz: quebrou e tá tudo lá. Ele tem um ataque. Sério, porque está tudo lá, mesmo que eu queira fazer uma coisa referente ao meu trabalho, a maior parte está tudo lá, então eu começo a chorar pelo micro do vizinho (...) Você estabelece uma rotina dependendo desses novos produtos e de repente pifa e aí você entra em pânico, porque você marcou que tal hora, tal coisa vai estar em tal lugar e não vai estar porque a máquina não funciona".

"Quando quebram e não vem técnico. Você fica maluca para vir o técnico que não aparece, aí te levam o micro embora: Te trago daqui a dois dias, trazem depois de um mês, você fica louca".

A quebra de equipamentos, como pudemos observar, é freqüente no trabalho automatizado das secretárias, seja no Brasil, seja em outros países. E, como nos mostram Johansson e Aronsson, "o maior problema relacionado com o conteúdo e quantidade de trabalho junto aos terminais de vídeo recai sobre as quebras imprevisíveis de equipamento, que ainda ocorrem com freqüência nos sistemas de computador, vários anos após a sua introdução (...) As quebras e quedas dos sistemas constituem-se num apreciável esforço mental (...) e afetam a carga de trabalho não só quando elas ocorrem, mas também quando não ocorrem. A ameaça da quebra está constantemente presente"31 31 . Idem, ibidem. .

Para resolver o problema da quebra do equipamento, as secretárias buscam o auxílio de outras secretárias no empréstimo de equipamentos, o que acaba gerando uma sobrecarga no trabalho destas últimas.

Devemos deixar claro, todavia, que, mesmo apresentando problemas, as secretárias na sua totalidade preferem os sistemas automatizados. Muitas razões podem ser apontadas para a explicação dessa aprovação unânime da automação de escritórios pelas secretárias. Segundo Murphree, esse entusiasmo pelas novas tecnologias se dá em virtude da publicidade intensa existente em torno das novas tecnologias, pois "muitas secretárias interpretam esse entusiasmo e encorajamento para referir-se a que todo o trabalho de escritório tornou-se High Tech e esperam que lhes sejam dadas chances de executar um trabalho mais desafiante, que aprimorem suas qualificações, que recebam melhores salários e haja ascensão organizacional"32 32 . MURPHREE, M. C. "New Technology and Office Tradition: The Not-So-Changing World of the Secretary". In: HARTMANN, H. et alii. Op. cit., p. 1.01. .

A automação de escritórios, por sua vez, facilitou o trabalho das secretárias, ao eliminar uma parcela do trabalho repetitivo, com a introdução dos processadores de texto, que dispensam as secretárias de redatilografarem os textos.

"Quando você fazia um texto numa máquina de datilografar, se você errava, o chefe tem mania de ir lá e rabiscar tudo, então você tem que refazer realmente, poucas são as pessoas que vão lá com cuidado - olha vamos apagar aqui, você vai consertar - então você perdia um tempo enorme; no micro, no processador de texto você consegue trocar textos de 10, 15, 20 páginas em segundos, principalmente hoje em dia, que cada vez ficam mais rápidos os softs (...) Você não perde tanto tempo escrevendo, datilografando e errando".

"O sistema é superprático, você desfaz, faz, aumenta o texto, mexe aqui, mexe ali (...) Acho que a coisa torna a sua vida muito mais prática, mais ágil, rápida, você não fica perdendo tempo com detalhes, cola aqui, passa tintinha, isso tudo foi abolido com a automação".

Nesse sentido, a automação de escritórios, realmente, facilitou o trabalho das secretárias. Entretanto, devemos salientar que a utilização dos processadores de texto possui alguns aspectos que podem ser muito problemáticos para as secretárias. Segundo Schneider33 33 . SCHNEIDER, L. Words, Words, Words. How Word Processing Vendors Sell Their Wares in Norway. Norway, IFIM, 1982 (mimeo). , existem algumas discrepâncias entre o que dizem os vendedores de processadores de texto e a sua aplicação prática. Em primeiro lugar, embora sejam considerados como uma nova tecnologia que veio eliminar o trabalho repetitivo, chato e monótono de homens e mulheres, os processadores de texto, que são usados através de terminais e monitores de vídeo, apresentam novos riscos físicos e mentais: problemas de visão, problemas de reprodução, problemas musculares, dores de cabeça, dermatites etc. sem falar do sfress causado por quebra de equipamentos e tempo de resposta.

Em segundo lugar, a promessa de que os processadores de texto iriam melhorar as condições de trabalho das secretárias, possibilitando um aumento do tempo livre que seria utilizado na realização de tarefas mais interessantes e mais qualificadas, na verdade não se realiza. O que podemos observar é um aumento do ritmo e do volume de trabalho, que acaba impedindo o desenvolvimento das secretárias no seu "tempo livre", que não passou a existir.

Segundo Barker e Downing, a utilização dos processadores de texto é uma forma de se elevar o ritmo do trabalho através da eliminação de uma certa "cultura de resistência" das secretárias, que lhes possibilitava um certo controle sobre o ritmo do trabalho. Trata-se de uma cultura "que é contraditória, aparentemente opressiva, mas que ao mesmo tempo contém sementes de resistência"34 34 . BARKER, J. & DOWNING, H. Op. cit., p. 82. . Para as autoras em questão, a imagem criada em torno das secretárias, de mulheres que estão preocupadas com as unhas, com o cabelo e que conversam sobre "futilidades de mulher'' é utilizada pelas secretárias na criação de uma cultura informal em que os padrões masculinos não têm espaço. Nas suas próprias palavras, "constitui-se um mundo onde os patrões e seus subordinados não podem penetrar, (...) permitindo às mulheres a liberação de certas tarefas"35 35 . Idem, ibidem, p. 83. , possibilitando um certo controle sobre o tempo de trabalho.

Além disso, no escritório não-automatizado existem inúmeras maneiras de as secretárias controlarem o seu tempo: ir ao xerox buscar cópias, ir ao almoxarifado buscar material de escritório. Segundo Barker e Downing36 36 . Idem, ibidem, p. 84. , até mesmo fazer tarefas consideradas femininas (por exemplo: fazer café, molhar as plantas), que podem reforçar o papel ideológico da "esposa do escritório", é uma forma de não ficar o tempo todo datilografando e de ter maior flexibilidade na utilização do seu tempo de trabalho. Os processadores de texto possibilitam a redução ou a eliminação desse tempo "não produtivo" através da substituição de um controle patriarcal por outro controle mais direto.

Isso fica mais evidente quando se vê que os processadores de texto, juntamente com a automação de escritórios, possibilitaram o aparecimento de uma nova forma de organização do trabalho das secretárias: o pool de secretárias37 37 . Urn pool de secretárias é um grupo de secretárias, geralmente quatro ou cinco, supervisionadas por uma coordenadora que mantém os contatos pessoais com os executivos. Cada pool atende a um número de executivos variável (no mínimo seis), e cada secretária se especializa num determinado tipo de tarefa. .

Essa nova forma não tem obtido sucesso, na maioria das organizações onde tem sido implementada, pois além de aumentar o ritmo do trabalho através de um controle rígido pelo qual todo o tempo é transformado em tempo de trabalho, a organização em pool também traz algumas ambigüidades, principalmente com relação à chefia, que inviabiliza, muitas vezes, a sua implementação, como nos mostra Murphree38 38 . MURPHREE, M. C. Op. cit. .

Na verdade, trata-se de um processo de desqualificação das secretárias onde a relação chefia-secretária é eliminada e as "qualificações invisíveis" são desconsideradas. As secretárias são reduzidas a meras datilógrafas e aquelas que possuem maior experiência profissional, na maioria das vezes, não se submetem a esse processo de desqualificação.

"Já foi tentado fazer pool de secretárias e ser distribuído o trabalho, não funciona porque você tem que dar uma continuidade nele. Você não pode começar... eu começo um trabalho, aí amanhã você continua, você não sabe onde eu parei, o que aconteceu, o que eu falei com as pessoas, qual foi a seqüência. No processador de texto até funcionaria, tá? Mas uma secretária não faz só processamento de textos".

"Quando mudou para o pool, tinha as secretárias novas e um novo estilo de banco. As secretárias antigas de banco, não teve uma que não deu problema, elas ficaram insatisfeitas, achando que eram só datilógrafas, porque a coordenadora cuidava de todos os executivos e nós só fazíamos o serviço de datilografia (...) Então foi uma insatisfação geral. Todas as secretárias antigas pediram demissão".

Os pools de secretárias são um exemplo de não compreensão e não consideração das qualificações dos trabalhadores envolvidos num processo de automação. "A maioria dos administradores de tecnologia, armados com os princípios do taylorismo, concentram-se nos procedimentos formais do trabalho de escritório e consideram o domínio das ações informais como um 'problema', parte da ambigüidade obstinada do trabalho de escritório que deve ser 'racionalizado', eliminado, ou, quando isso não é possível, ignorado. Freqüentemente, o resultado final é a criação de sistemas tecnológicos rígidos que violam a principal lógica que eles supostamente deveriam automatizar"39 39 . HOWARD, R. Brave New Workplace. New York, Penguin Books, 1987, p. 75. .

As secretárias com mais experiência, capazes de perceber essa violação da lógica do seu trabalho, pediram demissão, pois nessa situação a desqualificação do trabalho se mostra de maneira muito evidente, provocando sofrimento, em virtude da insatisfação com o conteúdo das novas tarefas. "A certeza de que o nível atingido de insatisfação não pode mais diminuir marca o começo do sofrimento"40 40 . DEJOURS, C. A Loucura do Trabalho. São Paulo, Oboré, 1987, p. 49. .

Temos, no caso das secretárias "antigas", o que Dejours chama de uma "vivência depressiva", onde se conjugam o sentimento de indignação, por causa da mecanização do trabalho, e o sentimento de inutilidade, por causa da desqualificação.

As secretárias "novas" não passaram pelo mesmo processo, pois como nos adverte Schmitz41 41 .SCHMITZ, H. Op. cit. , só podemos falar em desqualificação, quando a qualificação existe previamente e o/a trabalhador(a) deixa de possuí-la.

CONCLUSÃO

Podemos observar que houve um aumento significativo do ritmo de trabalho das secretárias, em virtude da automação. Essa sobrecarga quantitativa de trabalho traz algumas conseqüências negativas, principalmente para as mulheres. Em primeiro lugar, aumenta o stress ocupacional nesse posto de trabalho e implica em inúmeros problemas relacionados à saúde física e mental das secretárias.

Em segundo lugar, o aumento do ritmo de trabalho associado a um aumento no volume de trabalho, como pudemos observar, provoca um quantum de desemprego, seja por um crescimento sem empregos (Jobless Growth), seja por uma diminuição dos quadros funcionais. A automação de escritórios, dessa forma, no nível micro provoca o desemprego, que afetará mais as mulheres, pois estamos tratando de um cargo tipicamente feminino. Entretanto, em virtude das dificuldades teóricas e metodológicas já apontadas, não é possível fazermos generalizações macroeconômicas, nem estimativas de quantos cargos de secretária deixaram de existir em virtude da automação.

Além disso, há uma grande pressão sobre as trabalhadoras para que as tarefas sejam realizadas com rapidez e perfeição. Grande parcela dessa pressão se deve à visão mágica existente em torno da automação na nossa sociedade, que acaba invertendo a ordem, permitindo que a máquina imponha o seu ritmo de trabalho às pessoas e criando uma dependência inaceitável dos equipamentos automatizados.

Finalmente, aqui no Brasil, podemos concluir que as mulheres também serão mais afetadas pela automação, pois a mão-de-obra feminina também se encontra segregada no setor terciário, onde a automação começa a se intensificar nos últimos anos. Sendo assim, teremos e já estamos tendo um maior número de mulheres passando por uma reorganização de seus postos de trabalho. Essa reorganização dos trabalhos das mulheres sempre implicará numa mudança qualitativa, nem sempre positiva, como pudemos observar no caso das secretárias, e numa mudança quantitativa que, se não podemos estimar globalmente, podemos observar em nível micro, como no caso das secretárias: a presença do desemprego42 42 . Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa A Automação e o Trabalho das Mulheres aprovado no V Concurso Nacional de Dotações para Pesquisa sobre Mulher Brasileira, realizado pela Fundação Carlos Chagas. Agradeço ao NPP-Núcleo de Pesquisas e Publicações da EAESP/FGV que refinanciou esse projeto de pesquisa. .

  • 1. ROSZACK, T. O Culto da Informação. São Paulo, Brasiliense, 1988, p.12.
  • 3. HUMPHREY, J. Gender and Work in the Third World-Sexual Divisions in Brazilian Industry. Londres, Tavistock Publications, 1987, p. 2.
  • 4. HIRATA, H. & HUMPHREY, J. "O Emprego Industrial Feminino e a Crise Econômica Brasileira", Revista de Economia Política. 4(4):89-107,1984.
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  • 8. LIE, M. The Significance of Technology for Women's Work. Norway, IFIM, 1983 (mimeo).
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  • 13. SAFIOTI, H. I. B. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade, 2Ş edição. Petrópolis, Ed. Vozes, 1979.
  • 14.OS IMPACTOS da automação no trabalho das mulheres. Relatório de Pesquisa para a Fundação Carlos Chagas. São Paulo, 1990 (mimeo).
  • 15. ARONSSON, G. "Changed Qualifications Demands in Computer-Mediated Work". Applied Psychology: An International Review, 38(1):57-71,1989.
  • 16. Ver BRUSCHINI, C. "Sexualização das Ocupações: O Caso Brasileiro". Cadernos de Pesquisa, 28:5-20, São Paulo, FCC, 1979;
  • ______. Tendências da Força de Trabalho Feminina Brasileira nos anos 70 e 80: Algumas Comparações Regionais. São Paulo, FCC, 1989.
  • 18. SCHMITZ, H. "Microelectronics Based Automation and Labour Utilization in Developing Countries". Viertel Jahres Bericht, 103, Bonn, 1986.
  • 19. 9 to 5. Hidden Victims: Clerical Workers, Automation, and the Changing Economy. Cleveland, 9 to 5, 1985 (mimeo).
  • 22. BRUSCHINI, C. Mulher e Trabalho. São Paulo, Nobel, 1985, p. 8.
  • 24. BARKER, J. & DOWNING, H. "Word Processing and the Transformation of the Patriarchal Relations of Control in the Office". Capital &Class, 10:75,1980.
  • 30. JOHANSSON, G. & ARONSSON, G. "Stress Reactions in Computerized Administrative Work". Journal of Occupational Behaviour, 5:159-181,1984.
  • 33. SCHNEIDER, L. Words, Words, Words. How Word Processing Vendors Sell Their Wares in Norway. Norway, IFIM, 1982 (mimeo).
  • 39. HOWARD, R. Brave New Workplace. New York, Penguin Books, 1987, p. 75.
  • 40. DEJOURS, C. A Loucura do Trabalho. São Paulo, Oboré, 1987, p. 49.
  • 1
    . ROSZACK, T.
    O Culto da Informação. São Paulo, Brasiliense, 1988, p.12.
  • 2
    . Estamos utilizando o conceito gênero neste trabalho como sendo o conhecimento sempre relativo sobre as diferenças (sociais, culturais, históricas) baseadas no sexo.
  • 3
    . HUMPHREY, J.
    Gender and Work in the Third World-Sexual Divisions in Brazilian Industry. Londres, Tavistock Publications, 1987, p. 2.
  • 4
    . HIRATA, H. & HUMPHREY, J. "O Emprego Industrial Feminino e a Crise Econômica Brasileira",
    Revista de Economia Política. 4(4):89-107,1984.
  • 5
    . Ver WERNECK, D.
    Microelectronics and Office Jobs The Impact of the Chip on Women's Employment. Geneve, ILO, 1983; SELBYSMITH, J. "Developments in Micro-Electronic Technology and Their Impact on Women in Paid Employment".
    The Australian Quarterly, 1980, pp. 415-431; ETUI.
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    Office Automation and Women's Work. Norway, IFIM, 1982 (mimeo).
  • 6
    . Estamos considerando empregos "tipicamente femininos" aqueles onde 50% ou mais dos trabalhadores são do sexo feminino.
  • 7
    . KAPLINSKY, R.
    Micro Electronics and Employment Revisited - A Review. Geneve, ILO, 1987.
  • 8
    . LIE, M.
    The Significance of Technology for Women's Work. Norway, IFIM, 1983 (mimeo).
  • 9
    . Cynthia Cockburn em seu livro
    Brothers - Mate Dominance and Technological Change apresenta todas essas justificativas machistas sobre a inadequação das mulheres para a operação de máquinas.
  • 10
    . WERNECK, D. Op. cit.
  • 11
    . HARTMANN, H. et alii.
    Computer Chips and Paper Clips. (2 vols.) Washington, National Academy Press, 1986, p. 22.
  • 12
    . GUILBERT, M. & ISAMBERT-JAMATI, V. "A Distribuição por Sexo". In: FRIEDMANN, G. & NAVILLE, P.
    Tratado de Sociologia do Trabalho. Vol. I, São Paulo, Ed. Cultrix, 1973, pp. 304-323.
  • 13
    . SAFIOTI, H. I. B.
    A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade, 2ª edição. Petrópolis, Ed. Vozes, 1979.
  • 14
    .
    OS IMPACTOS da automação no trabalho das mulheres. Relatório de Pesquisa para a Fundação Carlos Chagas. São Paulo, 1990 (mimeo).
  • 15
    . ARONSSON, G. "Changed Qualifications Demands in Computer-Mediated Work".
    Applied Psychology: An International Review, 38(1):57-71,1989.
  • 16
    . Ver BRUSCHINI, C. "Sexualização das Ocupações: O Caso Brasileiro".
    Cadernos de Pesquisa, 28:5-20, São Paulo, FCC,
    1979; ______.
    Tendências da Força de Trabalho Feminina Brasileira nos anos 70 e 80: Algumas Comparações Regionais. São Paulo, FCC,
    1989.
  • 17
    . KAPLINSKY, R. Op. cit.
  • 18
    . SCHMITZ, H. "Microelectronics Based Automation and Labour Utilization in Developing Countries".
    Viertel Jahres Bericht, 103, Bonn, 1986.
  • 19
    . 9 to 5.
    Hidden Victims: Clerical Workers, Automation, and the Changing Economy. Cleveland, 9 to 5, 1985 (mimeo).
  • 20
    . BRUSCHINI, C.
    Tendências da Força de Trabalho Feminina Brasileira nos anos 70 e 80: Algumas Comparações Regionais. Op. cit.
  • 21
    . KAPLINSKY, R. Op. cit.
  • 22
    . BRUSCHINI, C.
    Mulher e Trabalho. São Paulo, Nobel, 1985, p. 8.
  • 23
    . Estamos chamando de "qualificações invisíveis", em particular das secretárias, todas as qualificações que não são reconhecidas e pelas quais as trabalhadoras não são nem avaliadas e nem remuneradas. Trata-se de qualificações relacionadas ao julgamento social e cognitivo acurados e ao uso de técnicas de negociação e de mediação que envolvem um alto grau de diplomacia, e que quando são relacionadas aos homens são muito apreciadas e reconhecidas, mas quando são desempenhadas pelas secretárias, não são levadas em consideração. Um exemplo: a filtragem de telefonemas e de pessoas que procuram o executivo
    (gatekeeping), que sempre envolve um alto grau de diplomacia mas nunca é reconhecida e valorizada enquanto tarefa desempenhada por uma mulher.
  • 24
    . BARKER, J. & DOWNING, H. "Word Processing and the Transformation of the Patriarchal Relations of Control in the Office".
    Capital &Class, 10:75,1980.
  • 25
    . Estamos considerando novas ferramentas de trabalho nos escritórios os microcomputadores, terminais de vídeo, telefax, rede de computadores,
    softwares aplicativos: processadores de texto, planilhas eletrônicas, bancos de dados.
  • 26
    . Nesse caso é possível enviar e .receber a resposta para/da Asia em apenas 30 segundos em virtude do sistema de comunicação de dados.
  • 27
    . CARTER, V. J. "Office Technology and Relations of Control in Clerical Work Organizations". In: WRIGHT, B. D. (org.),
    Women, Work, and Technology - Transformations. Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1987, p. 203.
  • 28
    . Monitoração eletrônica do trabalho é a coleta, armazenamento, análise e apresentação de informações sobre a produtividade e as atividades dos funcionários. A qualquer momento, em um local remoto, pode-se saber quanto um(a) determinado(a) trabalhadora) produziu, quantas vezes foi ao banheiro ou realizou alguma pausa.
  • 29
    . Tempo de resposta é definido como o tempo médio entre a pressão da tecla e a resposta e/ou caracter aparecer na unidade de saída de dados com a qual estamos trabalhando. Esse tempo em que o operador espera a resposta é variável, de acordo com a parte onde se encontra a sequência do diálogo.
  • 30
    . JOHANSSON, G. & ARONSSON, G. "Stress Reactions in Computerized Administrative Work".
    Journal of Occupational Behaviour, 5:159-181,1984.
  • 31
    . Idem, ibidem.
  • 32
    . MURPHREE, M. C. "New Technology and Office Tradition: The Not-So-Changing World of the Secretary". In: HARTMANN, H. et alii. Op. cit., p. 1.01.
  • 33
    . SCHNEIDER, L.
    Words, Words, Words. How Word Processing Vendors Sell Their Wares in Norway. Norway, IFIM, 1982 (mimeo).
  • 34
    . BARKER, J. & DOWNING, H. Op. cit., p. 82.
  • 35
    . Idem, ibidem, p. 83.
  • 36
    . Idem, ibidem, p. 84.
  • 37
    . Urn
    pool de secretárias é um grupo de secretárias, geralmente quatro ou cinco, supervisionadas por uma coordenadora que mantém os contatos pessoais com os executivos. Cada
    pool atende a um número de executivos variável (no mínimo seis), e cada secretária se especializa num determinado tipo de tarefa.
  • 38
    . MURPHREE, M. C. Op. cit.
  • 39
    . HOWARD, R.
    Brave New Workplace. New York, Penguin Books, 1987, p. 75.
  • 40
    . DEJOURS, C.
    A Loucura do Trabalho. São Paulo, Oboré, 1987, p. 49.
  • 41
    .SCHMITZ, H. Op. cit.
  • 42
    . Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa
    A Automação e o Trabalho das Mulheres aprovado no V Concurso Nacional de Dotações para Pesquisa sobre Mulher Brasileira, realizado pela Fundação Carlos Chagas. Agradeço ao NPP-Núcleo de Pesquisas e Publicações da EAESP/FGV que refinanciou esse projeto de pesquisa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1990
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