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Indústrias de processo contínuo: novos rumos para a organização do trabalho

NOTAS E COMENTÁRIOS

Indústrias de processo contínuo: novos rumos para a organização do trabalho* * Notas resumidas de um texto originariamente apresentado na Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), 1985.

José Carlos de Toledo; José Roberto Ferro; Oswaldo Mário Serra Truzzi

Professores do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos, SP

1. INTRODUÇÃO

Partiremos de uma apresentação muito sumária dos principais determinantes tecnológicos e econômicos das chamadas indústrias de processo contínuo.1 1 A preensão do que seja um processo continuo não é rigorosamente definida e varia principalmene em função da indústria e do profissional que se utiliza do conceito. Deste modo, é provável, por exemplo, que diferentes concepções coexistam entre gerentes de produção, de pesosoal, engenheiros químicos, etc.

Esta característica de continuidade na produção orienta, em maior ou menor grau, o trabalho fabril num grande número de ramos industriais: química, petroquímica, nuclear, siderurgia, papel e celulose, cimento etc. Por suas características, essa indústria representa o estágio mais avançado, a vanguarda mesmo, do processo de automação industrial. Além disso, à medida que os outros setores - que operam como sistemas de produção intermitentes - passam por um processo de automação,2 2 A automação nas indústrias em geral pode ser compreendida como ocorrendo segundo dois eixos fundamentais: uma automação "discreta",que substitui o trabalho humano em operações de fabricações de fabricação pontuais, e uma automação que integra (integração) equipamentos ou fases do processo de fabricação, visando à eliminação de tempos mortos na produção. Obviamente, este último tipo de automação confere um comportamento de processo contínuo à produção industrial. estes tendem a se comportar como processos de produção do tipo contínuo.

Nosso objetivo é o de chamar a atenção para as implicações deste tipo de processo industrial, do ponto de vista da organização do trabalho nestas indústrias. Desta forma, ao estudarmos as formas particulares que assume a organização do trabalho neste tipo de indústria, estaremos apreendendo algumas das principais tendências do trabalho industrial nos setores mais modernos, pois a automação em geral, e nos processos contínuos em particular, acaba por reduzir a freqüência e a quantidade da ação humana requerida, ao mesmo tempo em que altera profundamente a qualidade dessa ação. Por outro lado, não é nosso objetivo endossar a tese de que a tecnologia marca os parâmetros fundamentais para a organização do trabalho. Mesmo assim, reconhecemos que na discussão subseqüente, feita por este texto, ela acaba emergindo como o fator que maior destaque mereceu.

2. CARACTERÍSTICAS TECNOLÓGICAS

As principais características tecnológicas presentes em geral nas indústrias de processo contínuo são as seguintes:

A) Indivisibilidade das matérias-primas ao longo do processo: é muito comum que, após introduzidos no processo de fabricação, os insumos não sejam mais distinguíveis entre si eem relação ao produto final. Isto decorre da peculiaridade do processo de fabricação ser constituído por uma série de reações físico-químicas, e não, como no caso de uma indústria tradicional, por transformações mecânicas sofridas pelos materiais empregados.3 3 É neste sentido conveniente designar esta distincão pelo par indústrias de forma/indústrias de propriedade. Ver Coriat (1980). É evidente que tal circunstância conferirá uma relação homem-matéria-prima e produto nestas indústrias totalmente distintas de uma situação comum.

B- Alto nível de integração entre os equipamentos: em lugar de máquinas isoladas realizando cada um« delas operações bem distintas, o equipamento tem a característica de ser todo interligado e interdependente, no sentido de não se poder intercambiar as transformações requeridas pelo processo (baixa flexibilidade, restrições de simultaneidade e/ou sucessividade, etc). Esta característica, que sem dúvida é quase uma decorrência da anterior, apontada pelo item A, é sugerida, por exemplo, quando se prefere distinguir, neste tipo de indústria, fases no interior do processo de fabricação ao invés de se referir a operações discretas.

C) Maior possibilidade de centralizar o controle dos processos: uma vez que a interação da mão-de-obra com os materiais é reduzida e quase toda ela submetida à intermediação dos equipamentos, o controle do processo de fabricação não significa controle da mão-de-obra, mas sim do próprio equipamento, o que é realizado através do posicionamento de censores de parâmetros variados, localizados em pontos estratégicos das instalações (ex: topo de colunas de destilação, saída e entrada de reatores etc.) Por isso mesmo, a possibilidade de reunir essas informações captadas pelos instrumentos de controle num lugar central é relativamente menos complexa do que centralizar o controle de um processo intermitente, cuja operação em geral depende de um planejamento da produção e de uma intervenção da mãode-obra mais decisivos. A lógica desta centralização está no fato de que através dela tornam-se maiores as possibilidades de diminuir o tempo necessário à correção de algum parâmetro desviante ou de alguma pane ocorrida. Quanto menores forem estes intervalos de anomalia, maior produtividade fornecerá a planta industrial em questão.

3. CARACTERÍSTICAS ECONÔMICAS

A) Não-dependência direta entre o ritmo de trablho e a produtividade: talvez seja esta a característica mais essencial à compreensão da lógica de operação de um processo contínuo. O ritmo de produção, ao invés de depender fundamentalmentedo ritmo de trabalho da mãode-obra, obedece muito mais à performance e ao rendimento das instalações como um todo. Se o equipamento "trabalha bem" (isto é, dentro dos parâmetros preestabelecidos e sem a ocorrência de panes) obtém-se alta produtividade, com o desempenho do equipamento tendendo à sua capacidade nominal.

B) Plantas industriais capital-intensivas e custos de mão-de-obra fixos: a maior parte das indústrias de processo contínuo dependem, para sua instalação, de montante expressivo de investimentos em equipamentos em relação aos custos despendidos com a mão-de-obra. Estes últimos tendem a se comportar como fixos, pois o volume de mão-de-obra empregada não se altera em conformidade com o volume de produção.

4. IMPLICAÇÕES PARA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

Nossa suposição básica é que este conjunto de características normalmente vigentes nas indústrias de processo contínuo podem ser suficientemente relevantes para definir parâmetros novos de inserção da mão-de-obra no processo de trabalho. Isto não se aplica necessariamente a todo o conjunto dos trabalhadores empregados nestas indústrias, mas sobretudo àquela parcela da mãode-obra que poderíamos chamar de operadores de equipamento.

De fato, na maior parte das indústrias de processo contínuo, iremos nos deparar com três categorias básicas de trabalhadores: a) os auxiliares de produção, que constituem um conjunto pouco qualificado, responsável por serviços gerais de apoio ou tarefas mais brutas e pesadas que envolvam certo esforço físico ou ainda tarefas absolutamente rotineiras nào-passíveis de automatização; b) os operários de manutenção, sem dúvida fundamentais à obtenção de performance e rendimentos adequados dos equipamentos; c) os operadores de equipamentos.

É sobre o trabalho destes últimos que julgamos estar ocorrendo as transformações mais interessantes. O conteéúdo do trabalho destes operadores reduz-se na maior parte do tempo a tarefas de registro e observação dos instrumentos (relógios, ábacos, etc.), colocados em pontos do equipamento, que controlam o processo de fabricação. Sc a leitura realizada conferir com as especificações físico-químicas dentro das quais a fabricação deve ocorrer, o operador nada tem a fazer; no máximo, ele deve realizar o registro (intermitente) das informações lidas. Caso o operador observe distorções em relação aos parâmetros prefixados, ele mesmo deverá acionar botões, válvulas ou chaves que operem a correção, ou, ainda, poderá entrar em contato com seus colegas, seu supervisor ou operários de manutenção para decidir o que fazer.4 4 É claro que o conteúdo específico do trabalho destes operadores variará com o nível de automação dos equipamentos que ele tiver sob sua responsabilidade. No limite, um equipamento sofisticado é programado para efetuar por conta própria as correções no processo produtivo. Os desvios devem ser eliminados e as eventuais quebras de equipamento, ou panes surgidas, devem ser consertadas o mais rapidamente possível, pois, como vimos, é isso que assegurará níveis de produtividade elevados. Em face desta situação, é possível constatar algo aparentemente singular na jornada de trabalho destes operários: o trabalho em ritmo intenso configura anormalidade na produção; o "não-trabalho"5 5 Obviamente, esta expressão é exagerada. é sinal de que tudo vai bem. Enquanto o princípio de eficiência e produtividade nas indústrias intermitentes orienta no sentido de todos trabaiharem o máximo de tempo todo, nas indústrias de processo contínuo, a vigilância passiva e tediosa é sinal de que tudo corre dentro dos parâmetros preestabelecidos.

Por outro lado, em momentos de crise, o trabalho, a dedicação e a tensão solicitados destes operadores é muito grande, porque do reparo rápido depende a produtividade global extraída da fabricação, seja porque não é incomum que se configurem, nestas indústrias, situações de ameaça e risco às capacidades e à prórpria saúde do trabalhador. A alternância entre momentos de monotonia (a maior parte do tempo) e de crise, e sobretudo tendo-se em conta a imprevisibilidade destes últimos, fornece-nos mais uma peculiaridade do trabalho a que estão submetidos estes operadores.

Nestes termos, é razoável se super que estes operários exerçam a função de absorvedores da variância que pode surgir ao longo do processo de fabricação. Deles não se exigirá perícia manual, força física ou qualquer outra habilidade que possa incrementar o ritmo de produção. Suas qualidades essenciais serão o senso de responsabilidade, a assiduidade e uma certa capacidade de iniciativa própria. Em algumas empresas, dependendo da política adotada de gestão do trabalho e do estágio de automação em que ela se encontra, estas discrepâncias podem-se traduzir em um conhecimento polivalente e maior compreensão do processo global de fabricação, em maior mobilidade dos operadores em meio às plantas industriais, em trabalho de equipe cuja implementação passa a ser facilitada com esquemas participativos, em menor grau de supervisão direta sobre o trabalho, etc.

Diante deste quadro, não faltam aqueles que empenham nesta transformação uma considerável dose de otimismo. Autores como Blauner prognosticavam, já em 1961, que o tipo de desenvolvimento tecnológico exerimentado por este ramo industrial significaria uma reversão na tendência da crescente alienação no trabalho. Outros autores menos afoitos, como Davis (1971), Susman (1970) e Coriat (1980) ponderam apenas que o que está ocorrendo nestas empresas é que a divisão do trabalho por posto individualizado está cedendo lugar a um trabalho mais homogêneo e por equipe.

Gallie (1978), estudando a organização do trabalho nas unidades centrais das refinarias de petróleo, observou que o operador responsável ou líder do grupo tinha maior liberdade e iniciativa, o operador da sala de controle deveria possuir grande experiência ao mesmo tempo em que não lhe era permitido nenhuma mobilidade física, enquanto os outros membros do grupo executavam funções relativamente fáceis de aprender e desinteressantes. Com maior prudência, este autor argumenta que é difícil discernir uma tendência conclusiva. As experiências de trabalho variam enormemente, dependendo do setor industrial e da seção particular onde o trabalhador está inserido.

Isto nos remete à necessidade de estudos de caso sobre ramos e empresas específicas. Na ausência destes, parece-nos mais sensato duvidar que estão sendo removidos os princípios taylorísticos básicos de organização do trabalho nas empresas que operam em processo contínuo. É mais provável que alguma "pseudoliberalização" produzida pelas características tecnológicas dos processos contínuos acabe resultando, na prática, numa incorporação passiva do trabalhador ao ritmo de solicitações geradas pelos equipamentos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Blauner, Robert. Alienation and freedon: the worker and his industry. Chicago, University of Chicago Press, 1964.

Coriat, Bejamin. autômatos, robôs e classe operária. In: Novos Estudos Cebrap, Jul. 1983, p. 31-8.

Coriat, Benjamin. Usines et ouvriers: figures du nouvel ordre productif. Paris, Maspero, 1980.

Davis, L.E. The coming crisis for production management: technology and organization. Int. J. Prod. Res., 965-82, 1971.

Gallic, Ducan. In search of the new working class - automation and social integration within the capitalist enterprise. Cambridge, Cambridge University Press, 1978.

Susman, Gerald I. The impact of automation on work group autonomy and task specialization. In: Desing of jobs. Louis E. Davis & James C. Taylor, London, Penguin Books, 1970.

  • Blauner, Robert. Alienation and freedon: the worker and his industry. Chicago, University of Chicago Press, 1964.
  • Coriat, Benjamin. Usines et ouvriers: figures du nouvel ordre productif. Paris, Maspero, 1980.
  • Davis, L.E. The coming crisis for production management: technology and organization. Int. J. Prod. Res., 965-82, 1971.
  • Gallic, Ducan. In search of the new working class - automation and social integration within the capitalist enterprise. Cambridge, Cambridge University Press, 1978.
  • *
    Notas resumidas de um texto originariamente apresentado na Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), 1985.
  • 1
    A preensão do que seja um processo continuo não é rigorosamente definida e varia principalmene em função da indústria e do profissional que se utiliza do conceito. Deste modo, é provável, por exemplo, que diferentes concepções coexistam entre gerentes de produção, de pesosoal, engenheiros químicos, etc.
  • 2
    A automação nas indústrias em geral pode ser compreendida como ocorrendo segundo dois eixos fundamentais: uma automação "discreta",que substitui o trabalho humano em operações de fabricações de fabricação pontuais, e uma automação que integra (integração) equipamentos ou fases do processo de fabricação, visando à eliminação de tempos mortos na produção. Obviamente, este último tipo de automação confere um comportamento de processo contínuo à produção industrial.
  • 3
    É neste sentido conveniente designar esta distincão pelo par indústrias de forma/indústrias de propriedade. Ver Coriat (1980).
  • 4
    É claro que o conteúdo específico do trabalho destes operadores variará com o nível de automação dos equipamentos que ele tiver sob sua responsabilidade. No limite, um equipamento sofisticado é programado para efetuar por conta própria as correções no processo produtivo.
  • 5
    Obviamente, esta expressão é exagerada.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 1986
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