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In memoriam: Prof. Ruy Vianna Braga (1929-1973)

IN MEMORIAM

In memoriam: Prof. Ruy Vianna Braga (1929-1973)

Talvez o mais próprio em face da morte de um amigo sejam o silêncio e as lágrimas. Tudo o mais é posterior e começa a perder consistência porque, tanto quanto a morte, é inexorável continuar vivendo.

Por isso, escrever um depoimento sobre Ruy Vianna Braga será mais um esforço para compreendermos a história da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, na medida em que as instituições são conquistas de pessoas. O preito ao amigo já terá sido feito no último diálogo, na derradeira mirada, nas poucas lágrimas e na silenciosa e revoltada reflexão sobre sua morte ou acerca da morte em si mesma.

Ruy Vianna Braga foi um dos professores que edificaram e trouxeram até aqui a primeira e mais reputada Escola de Administração deste país. Nela encontrou o desafio intelectual e político para sua realização enquanto homem culto, inquieto e generoso. E era extraordinária sua recente preocupação em conceber novos projetos a fim de que nossa Escola se abrisse em novas responsabilidades, tendo sempre presentes as duras contingências de um educador em país onde os percalços contra a inteligência e a cultura se encontram a cada passo.

Um jovem que mantinha um explícito compromisso com a pressa e a eficiência - esta a imagem cada vez; mais nítida e consistente de Ruy Vianna Braga ao longo dos 18 anos de nossa convivência. Tal compromisso com a vida é por vezes terrível e quase sempre resulta em morte precoce. Foí o caso de meu grande amigo. Pode-se perguntar se esse risco estava presente na sua equação existencial, devidamente conceituado ou premeditado. Creio que sim. De outro modo teria sido ele alcançado pelo abatimento ou teria retificado aquela diretriz. Ou sobretudo ter-lhe-ia faltado a admirável e quase absurda coragem com que viveu nos últimos quatro anos, desde que seu enfermo coração descompassou-se do ritmo de sua sadia e límpida inteligência. Agora que nós, seus amigos, sentimos um enorme vazio à nossa volta e dentro de nós mesmos, fácil é compreender que ele não se deixou abater um só minuto e sua disposição de levar a vida até a morte foi uma seqüência valorosa, sem rejeitar nenhum desafio.

A par daquele compromisso com a pressa e a eficiência, sempre houve um homem alegre, de espírito inquieto, indagador e de extremo zelo pelas suas próprias convicções em face de qualquer dos problemas que enfrentou e resolveu. Pode parecer que um temperamento de tal feitio fosse arredio à convivência ou infenso à amizade. Não no caso de Ruy: com ele, o acidente da convivência muito rapidamente se transformava no milagre da amizade; o que de começo seria apreço e compreensão, tornava-se afeto e respeito. Mais ainda: sua grande sedução humana o impelia a um exercício cada vez mais amplo junto a professores e a funcionários, que se deixavam envolver pelo seu estilo: os mandatos e as tarefas deviam ser cumpridos ao nível do ótimo e os cronogramas se refaziam para colher antecipações.

Creio que afinal seu grande desígnio foi o de marcar o tempo da vida com gestos e realizações. O tempo parecia seu maior inimigo e a vida um importante regalo para fruir em alta velocidade e permanente alegria.

Daí porque entre os velhos professores de nossa Escola (velhos de 40 anos) nenhum pôde tão cadamente estabelecer relacionamento igualmente fraterno e fecundo com os jovens professores (jovens de 25 a 35 anos) quanto Ruy Vianna Braga. É que a inércia institucional sempre teve nele ardoroso contestador e os problemas do ensino, permanente atitude critica.

Será erro pensar que sua inteligência era tocada apenas pelos grandes problemas: grandes e pequenas dificuldades ele as enfrentava com a mesma postura. Desde a criação do Departamento de Métodos Quantitativos à preparação de um gráfico ou de uma apostila; da luta pelo voto aos jovens professores à solução de um problema de aluno; a criação dos Conselhos de Classe ou a dedicada atenção que dava ao problema de um amigo; as tarefas complexas da Vice-díretoria Académica; o empenho na campanha de fundos de bolsas de alunos; a dedicação ao problema do tempo integral dos docentes, seus enormes esforços para dotar nossa Escola de um Centro de Computação Eletrônica - todos esses problemas tiveram em Ruy Vianna Braga o líder consciente ou o companheiro dedicado.'

Porque respeitava a opinião dos outros, não era fácil demovê-lo quando às vozes "fechava a questão". Em certas situações chegava a ser um pouco quebradiço: não vergava. No entanto, convencido ou não, nunca se poderia colher dele senão lealdade. É que a voragem de seu temperamento tinha, na dignidade seu impulso fundamental. Não fazia proselitismo porque acreditava no exemplo e não podia viver afastado da linha de frente. Por isso sua vida foi tão curta e ele nos foi arrebatado na melhor e mais vigorosa quadra de sua existência.

O elogio póstumo é quase sempre duvidoso, pois a posse da vida nos leva a ser generosos com os mortos. Se porventura olhos estranhos lerem este texto e alguém se preocupar com o sentimento da justiça - venha e pergunte a qualquer um desta Casa. Não haverá dois depoimentos.

Creio que no ofício do poeta o que há de mais admirável é que ele sente o que sentimos e diz o que não sabemos dizer. Manuel Bandeira escreveu um verso que mais parece o primeiro preceito de uma religião que ainda não existe ou a primeira frase de um hino que pode minorar o nosso permanente desconsolo em face da morte: "A alma das coisas somos nós". Se o poeta tem razão, e não importa em que sentido usemos esta pequena e misteriosa palavra, a alma de Ruy Vianna Braga está nesta Casa, estará conosco a alma do grande amigo que tão pouco viveu e tão rápido morreu, que não tivemos tempo de dteer-lhe o quanto o amamos.

Antonio Angarita Silva

20.2.1973

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Jun 1973
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