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Planejamento empresarial numa época de incerteza

NOTAS E COMENTÁRIOS

Planejamento empresarial numa época de incerteza* * Documento de trabalho apresentado no Seminário sobre o titulo acima, organizado pelo NPP/RAE da EAESP/FGV, em outubro de 1980.

Carlos Osmar Bertero

Professor do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV

1. PRESSUPOSTO DA ESTRATÉGIA EMPRESARIAL

A prática do planejamento estratégico ou a política de negócios, para usar expressão talvez mais simples, é marcada por uma série de pressupostos que, pelo simples fato de serem pressupostos, não chegam a ser explicitados. Conseqüentemente, a reflexão sobre eles não se faz, o que acaba criando sérias dificuldades para que se pense criticamente a teoria e as práticas do planejamento empresarial. A ausência da reflexão crítica sobre o presente inibe pesadamente a percepção do presente e restringe as possibilidades de descortinar o futuro, matéria-prima e palco do planejamento e da estratégia empresariais.

1.1 O primeiro pressuposto importante, subjacente a todos os modelos estratégicos e presente na maioria dos esforços de planejamento empresarial, é a afirmação de que a economia se encontra em processo de constante expansão. Tal atitude fundamenta-se numa experiência recente que, no caso, se estende aos últimos cinqüenta anos. A economia mundial, após abandonar os escombros da crise de 1929, entra numa fase ascensional que pode ser considerada sem precedentes, e que se torna ainda mais clara no período que vai do final da II Guerra Mundial até 1970. O período é marcado pela ascensão dos EUA à condição de superpotência, a reconstrução da Europa Ocidental e sua transformação em ator econômico privilegiado, o surgimento do Japão como a segunda potência econômica do mundo capitalista, a enorme expansão do capital, não só nas áreas desenvolvidas, mas também nas áreas subdesenvolvidas. A expansão do capital através das multinacionais, seus agentes privilegiados, a ação decisiva do Estado nos países periféricos acabaram por gerar enormes transformações em muitos países. O Brasil ocupa hoje uma plataforma inegavelmente importante entre as nações altamente desenvolvidas do centro da economia, e entre os demais países do chamado Terceiro Mundo.

Por mais difícil e vulnerável que esta terminologia e estes procedimentos de classificação de países sejam, não há como negar ao Brasil, juntamente com outros países que incluem o México, a Coréia do Sul, Formosa, a Turquia e a África do Sul, posição que os coloca bastante distanciados dos países habitualmente considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

O passado recente, aqui considerado, assistiu ainda à enorme floração de inovações tecnológicas nos mais variados ramos, o que conduziu a uma quantidade até então nunca vista de produtos e serviços novos. As inovações tecnológicas, ao gerarem produtos e serviços, abriram novas fronteiras econômicas e novos mercados, criando oportunidades para o aparecimento de novas empresas, a expansão das já existentes e também a diversificação de muitas outras, até então fixadas num determinado ramo.

Embora não disponhamos de muitos dados com os quais comparar o crescimento econômico que vem desde 1935 até 1970 com o de épocas passadas, podemos estar seguros de que ele foi bastante acelerado, o suficiente para alterar quase todas as regiões do mundo. Que estas nossas palavras não sejam tomadas como louvor irrestrito ao crescimento econômico recente. Não ignoramos que ele se realizou de maneira desequilibrada, ao longo de linhas que prestigiaram mais a acumulação do que a distribuição e a construção de sociedades mais justas e dignas. O que desejaríamos ressaltar, porém, foi a aquisição de um hábito de pensamento e de ação, que levou pelo menos duas se não três gerações de empresários e executivos profissionais a tomarem o crescimento constante da economia, e freqüentemente com taxas elevadas, como uma condição natural. Portanto, planejar o futuro da empresa e delinear suas atividades num cenário de crescimento constante foi algo que se incorporou ao pensamento e à formulação da estratégia empresarial.

1.2 Outro pressuposto que norteou o pensamento estratégico é que no interior de uma economia em crescimento constante a empresa não encontrará nenhum obstáculo à sua expansão, desde que consiga posição adequada no mercado, junto com uma operação razoavelmente eficiente. Obstáculos de natureza social, política ou relativa à base de recursos naturais eram considerados inexistentes. Este pressuposto implicava que o meio-ambiente, hoje variável tão importante e ao mesmo tempo tão questionado nos modelos de estratégia empresarial, era dado como neutro, ou mesmo favorável à ação estratégica da empresa. Embora a década de cinqüenta contivesse esparsas advertências ao problema da depleção ou exaustão de algumas matérias-primas, ou eventuais considerações sobre escassez energética, estes tópicos nunca chegaram a preocupar, pois jamais foram objeto de confrontação pela maioria da população como ocorre hoje em muitos países. Também impensáveis eram as limitações ecológicas à expansão empresarial. O ar, as águas e os recursos florestais ainda eram vistos como dons gratuitos, freqüentemente citados como tais nos manuais tradicionais da economia.

1.3 A estratégia empresarial sempre pressupôs uma convergência entre objetivos empresariais e objetivos da sociedade global. Evidentemente, nunca se duvidou ou questionou que o objetivo da empresa fosse a acumulação, sendo os lucros mais instrumentos e meios para prosseguimento do processo de crescimento da empresa do que a decantada recompensa ao proprietário do capital pelo risco incorrido. Considerava-se apenas que, ao se expandir, ou seja, ao acumular, a empresa aumentava a riqueza ou o produto econômico da comunidade, gerava empregos, atendia aos consumidores, propiciando-lhes satisfação de necessidades, contribuía para a redistribuição da riqueza ao recolher impostos e taxas ao erário público, remunerava os acionistas, caso fosse empresa de capital aberto, exercia saudável efeito multiplicador na economia ao criar sua rede de fornecedores. Na verdade, era um mundo onde não se havia ainda levantado criticamente a possibilidade de que objetivos sociais e empresariais divergissem, ou seja, de que o crescimento da empresa ou a realização de acumulação pudessem levar a que amplos setores da sociedade fossem desatendidos ou mesmo lesados.

Os movimentos de crítica à convergência, onde a empresa com freqüência surgia na condição de ré e o empresário e os ocupantes dos quadros administrativos como transitando no limiar do crime, só começaram a surgir nos EUA no fim dos anos 60. No Brasil, essa ainda é uma crítica restrita a círculos muito reduzidos. Todavia, os movimentos de defesa do consumidor, com toda a sua visibilidade, talvez tenham sido a manifestação mais dramática dessa divergência nos países capitalistas centrais.

Convém lembrar os protestos contra atividades empresariais em nome da ruptura do equilíbrio ecológico e as severas críticas dos anos 60 e 70 nos EUA contra o que se denominou de complexo industrial militar.

Nos países menos desenvolvidos as críticas seriam diferentes, mas igualmente focalizadas na divergência entre os objetivos empresariais e os da sociedade. Dentre as críticas dirigidas às empresas que atuam nos países menos desenvolvidos, assume especial importância a acusação de que, se não são agentes concentradores de renda, pelo menos tendem a manter e a agravar a chamada distribuição perversa. Isto porque, ao definir o perfil de demanda pelas decisões sobre produtos que são fabricados e comercializados, as empresas freqüentemente inundam sociedades nas quais as necessidades fundamentais da maioria da população ainda não foram atendidas com produtos sofisticados e lançados simultaneamente nos países centrais. Outra observação, que entre nós se levanta de maneira crítica, diz respeito à situação de privilégio fiscal desfrutada pela empresa, enquanto indivíduos, e particularmente os assalariados, arcam com a maior parte do ônus tributário.

Toda essas ponderações sobre divergências não são incorporadas pelos modelos de planejamento empresarial existentes, que permanecem inteiramente voltados aos objetivos empresariais e sempre considerando o meio-ambiente como beneficiário de atividade empresarial. Claramente, o pressuposto da convergência e objetivos sociais e da sociedade global contribuem para dar à estratégia um caráter ingênuo, na melhor das hipóteses.

1.4 Um outro pressuposto que constitui o palco de toda a estratégia empresarial, o ponto onde todas as grandes decisões são postas à prova e onde cada empresa joga o seu destino, é o mercado. A existência do mercado é um elemento sem o qual nenhum modelo estratégico fará qualquer sentido. É evidente que o mercado dos modelos estratégicos não é o mercado absolutamente livre, racional e competitivo da teoria econômica clássica. Reconhece-se ao mercado características de oligopólio, de monopólio, por vezes, e seguramente de outras "imperfeições". Nada disso, porém, é suficiente para que se elimine o mercado como elemento decisivo. A organização em forma de oligopólio, predominante no capitalismo moderno, embora com regras peculiares, se vista de uma perspectiva clássica não elimina, de forma alguma, a competição entre empresas. E nesta disputa empresas crescem, diminuem, competem por parcelas de mercado e inegavelmente perecem.

A colocação terminológica própria da área, ao usar termos como estratéia e tática, conquista de parcela de mercado, ou ao classificar estratégias em defensivas, agressivas e ofensivas, denota claramente analogias bélicas onde se trava uma guerra entre empresas tendo como campo de trabalho o mercado. Portanto, nenhum dos modelos estratégicos é inteligível sem um mercado e sem competição entre empresas.

1.5 Freqüentemente criticado e revisto, por vezes descartado, mas, na realidade, sempre presente na estratégia empresarial, está o velho conceito de ciclo de vida do produto. A idéia é fundamental para conceder à própria atividade de formulação estratégica um caráter permanente. Eliminado o ciclo de vida do produto, teríamos a possibilidade de definir o limite determinado de produtos para uma empresa que se manteria indefinidamente. Não há dúvida de que o ponto nevrálgico de toda formulação estratégica está na equação produto/serviço - mercado, ou seja, em definir quais os produtos e/ou serviços com os quais a empresa entraria nos vários mercados disponíveis. Se a idéia de ciclo de vida do produto é eliminada, o equacionamento produto/serviço - mercado poderia, teoricamente, realizar-se de uma vez por todas, pois uma vez montada a equação o mercado consumiria indefinidamente um produto ou serviço que lhe conviesse. Seria o modelo ideal de uma economia absolutamente estável e estática.

Entretanto, na medida em que as preferências do consumidor, as inovações tecnológicas e a competição levam a que produtos entrem em fases de instabilidade e de inevitável declínio, surge a necessidade de revisão permanente das equações produto/serviço - mercado da empresa, o que dá à estratégia empresarial um caráter também permanente.

O fato de o ciclo de vida do produto estar presente no pensamento estratégico ê que confere especial importância à empresa inovadora e que privilegia de modo indiscutível a inovação. Acredito que tendemos a considerar como empresa plenamente capaz e amadurecida apenas aquela que inova, gerando através de seus esforços de pesquisa e de desenvolvimento novos produtos, serviços, tecnologias e processos. Isto, todavia, não implica reconhecer que a maioria das empresas,seja inovadora. Na verdade, apenas um reduzido número adota estratégias de fato ofensivas, apoiadas na fabricação e na comercialização de produtos novos.

O conceito de ciclo de vida do produto é aceito e adotado como pressuposto da estratégia empresarial, conferindo à área o seu caráter dinâmico de permanente inquietude em busca de novas alternativas de negócios.

1.6 A decorrência inevitável de tudo o que foi mencionado até agora é que resta à empresa um único objetivo, que é o crescimento, sendo o crescimento máximo ao longo de um número de anos longo o bastante para poder ser expressivo a meta primordial, e no fundo exclusiva, de qualquer empresa que possa ser considerada como bem sucedida.

O crescimento máximo, que é outra palavra para designar acumulação, conceito econômico clássico, é fundamentalmente o objetivo da empresa. O próprio lucro surge, sob esta perspectiva, como tendo caráter instrumental. O lucro não tem sido a finalidade da atividade empresarial, mas o meio para gerar recursos com os quais dar sustentação ao crescimento da empresa. A política de dividendos das empresas tem-se pautado por, primeiramente, reservar a maior parcela dos lucros para reinvestimento, destinando parte sempre menor ao pagamento dos dividendos - em geral, o mínimo imprescindível para não comprometer a posição da empresa no mercado acionário. A bonificação é um expediente que acaba reduzindo ainda mais o desembolso da empresa para pagamento de dividendos.

Outros objetivos empresariais sempre mencionados, como responsabilidade social, não têm, na verdade, o caráter de objetivos, mas de atividades secundárias, de forma alguma desprezíveis. Pelo contrário, são sempre louváveis as preocupações que a estratégia empresarial possa ter para com outros grupos além do dos proprietários. No entanto, numa economia de mercado, e, portanto, capitalista, a empresa só poderá cuidar de outras responsabilidades, como as sociais, na medida em que for bem sucedida e sólida enquanto empresa que logre maximizar a sua taxa de acumulação a longo termo.

Como podemos perceber, os pressupostos que, nos parece, orientam a literatura e, até recentemente, a prática de estratégia empresarial não envolvem incertezas; pelo contrário, envolvem elevada certeza de que a atividade empresarial não só continuará ocorrendo num contexto social, político e econômico favoráveis, mas deverá tornar-se crescentemente melhor para as atividades empresariais. Não há dúvida que é difícil encontrar área que tenha nascido e se estruturado em clima de maior otimismo. Isto explica a perplexidade ante os novos tempos, não porque sejam necessariamente mais desfavoráveis, mas apenas porque são incertos, não sendo mais possível ter como assegurado um futuro tão radiante como o presente e o passado.

2. ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O PRESENTE DA ESTRATÉGIA EMPRESARIAL

2.1 Na verdade, o que freqüentemente se chamou de planejamento empresarial, de estratégia empresarial e por vezes também de planejamento estratégico não eram mais do que projeções para o futuro do que ocorrera no passado e continuava acontecendo no presente. Esta característica era comum aos esforços pioneiros da ambiciosa futurologia, como podemos constatar em vários escritos produzidos nos anos 60. Um livro que marcou época e conheceu traduções em várias línguas, como o de Hermann Kahn, era simplesmente uma projeção, com raras exceções, das taxas de crescimento populacional e econômico registradas ao longo da década de 50 com projeções de desenvolvimentos tecnológicos já em fase de maturação nos ramos que lideravam a inovação tecnológica no mesmo período. Acredito que a releitura, não só do livro de Hermann Kahn, mas de muitos trabalhos futurológicos, nos decepcionaria exatamente porque foram incapazes de fazer qualquer previsão, limitando-se a pressupor que o futuro seria uma repetição do passado.

Acredito que o mesmo se passou até recentemente no planejamento estratégico da maioria das empresas. Quase sempre se projetava para o futuro os resultados do passado acrescidos de uma taxa de crescimento que variava na dependência da conjuntura econômica e do maior ou menor otimismo ou propensão a assumir riscos por parte dos executivos e empresários. A maior parte da estratégia empresarial voltava-se para a expansão, ou seja, o crescimento futuro com o uso da mesma linha de produtos que a empresa já possuía. Quando os recursos acumulados, ou seja, a lucratividade obtida com a linha de produtos que se explorava, e também as oportunidades em linhas alternativas, eram aceitas pelos decisores, pensava-se em diversificação. Neste caso, esta surgia como maneira de absorver bons lucros gerados pela empresa em suas bem-sucedidas atividades e também como oportunidade de aumentar a taxa de crescimento.

A incerteza obriga a que a estratégia empresarial se volte decididamente para o estudo ambiental e delineie alternativas semelhantes ao planejamento contingencial, que tem um passado na estratégia militar.

Embora o meio-ambiente tenha sido sempre invocado como importante e necessário à formulação da estratégia empresarial, acredito que isto sempre cumpriu mais uma função retórica do que propriamente explicativa. Olhava-se sempre para aspectos limitados do meio-ambiente, como a demanda para um produto, ou simplesmente se considerava o meio-ambiente estável e sem turbulências. Para fazermos uso efetivo do meio-ambiente em estratégia empresarial devemos reconhecer com humildade que o conhecemos muito mal. Trabalhos científicos mais sistemáticos sobre meio-ambiente apenas começaram, e, portanto, quase tudo está ainda por ser investigado e conhecido.

No entanto, a precariedade dos conhecimentos sobre o meio-ambiente empresarial não elimina a influência de que se reveste para a formulação de estratégia empresarial. O que devemos fazer, já que o futuro é incerto, é procurar trabalhar com os "cenários" da futurologia, ou seja, com futuros possíveis. Como não se pode prever, a não ser de modo muito rudimentar e subjetivo, as probabilidades de ocorrência dos vários futuros e as maneiras como afetariam determinada empresa, só resta montar planos contingenciais, ou seja, diversas alternativas de ação empresarial, adequadas aos vários futuros possíveis. Tal situação implica naturalmente esforços muito maiores por parte dos que se ocupam de estratégia empresarial, submetendo-os, no presente, às incertezas que são futuras.

2.2 Dos pressupostos que até o momento foram utilizados pela estratégia empresarial, acho que boa parte deles se mantém na atual situação de incerteza. É evidente que a expansão permanente da economia é um ponto a rever, e o que mais perplexidade tem gerado. É importante reconhecer que pelo menos duas gerações de empresários e executivos nasceram, cresceram e se profissionalizaram num período de crescimento econômico excepcionalmente acelerado, acompanhado de grande floração tecnológica. A partir da década dos 70 a situação alterou-se e isto se passou antes mesmo que a crise energética, gerada pelo brusco encarecimento do petróleo, ocorresse. A queda no ritmo de crescimento dos países europeus e dos EUA não atingiu a economia brasileira de imediato. O nosso "milagre" prosseguiu até o final de 1973 ou meados de 1974, quando relutantemente começamos a enfrentar as dificuldades que aqui também começavam a chegar. A "sinistrose" è injustificada, na medida em que de forma alguma a nossa economia, desde 1974 até o momento, deu mostras de tendência recessiva, em que pesem muitos temores. Dificuldades vêm ocorrendo, alguns ramos e setores podem ter perdido dinamismo, mas, no conjunto, a economia mantém a sua vitalidade, altera prioridades, embora a taxas menos espetaculares de crescimento.

Quanto aos obstáculos de natureza social, política e da base de recursos naturais, cabem reservas. O crescimento se fez e continua em boa medida sendo feito às custas de tecnologias de circuito aberto que são defletoras de recursos naturais, destruidoras dos equilíbrios ambientais e que levam, a longo prazo, à exaustão de muitos recursos vitais. A atual preocupação com o petróleo é legítima. Mas ele é apenas um dos preciosos recursos cuja exaustão se delineia. A manter-se o mesmo tipo de tecnologia, por certo outros recursos terão sua existência no planeta ameaçada.

Do ponto de vista político e social, já não é mais possível conviver com as dificuldades geradas pelos modelos de crescimento que até hoje existiram. Regimes políticos autoritários, repressivos e voltados para o atendimento dos interesses de apenas uma parcela da sociedade têm sido freqüentemente encontrados, ao lado de modelos econômicos de crescimento elevado. Lamentavelmente, o caso brasileiro ilustra o que acabamos de mencionar. Não há como deixar de reconhecer que é incrível que, numa economia que cresceu tanto nos últimos 50 anos, ainda tenhamos a miséria e a privação como alternativa exclusiva à maioria de nossa população.

A estratégia empresarial num país como o Brasil poderia ter papel importante para compatibilizar metas empresariais e sociais. Acredito que um crescimento empresarial que se oriente para o desenvolvimento de produtos e serviços de consumo massificado seria a forma de implementar uma política de investimentos que contribuísse para a redistribuição de renda. Em nosso país, quase sempre, a maioria das empresas apoiaram seus programas de crescimento no lançamento de produtos e serviços destinados ao consumo da parcela da população de maior poder aquisitivo. Isto nos leva, portanto, à revisão de outro pressuposto da estratégia empresarial que é a convergência entre objetivos empresariais e objetivos da sociedade global. É necessário reconhecer que tal convergência não existe necessariamente, sendo fácil desfilar exemplos, e a responsabilidade pela adequação cabe sem dúvida à empresa.

Os outros três pressupostos tradicionais de fundamentação da estratégia empresarial, a saber, o ciclo de vida do produto, a maximização do crescimento empresarial e a existência de um mercado competitivo, mantêm-se válidos para a formulação das estratégias nos dias atuais, e, portanto têm que ser levados em consideração pelas empresas.

2.3 Quando se estabelece uma perspectiva de incerteza, em geral a reação empresarial é defensiva. Elementos integrantes desta reação são reduções de custos, eliminação de recursos que se imaginam ociosos ou em excesso, tanto físicos e financeiros, como humanos. Medidas de redução e recursos levam à demissão de pessoal, diminuição dos níveis de estoques, aproveitamento mais adequado do espaço físico de que a empresa dispõe, redução de disponível financeiro e sua canalização para itens do imobilizado ou para investimentos de renda fixa ou variável. Além disso, seguir-se-ão, a nível de operações, as tradicionais medidas de racionalização que procuram reduzir custos e aumentar eficiência e produtividade.

A situação de incerteza, e sobretudo a reação habitual da maioria das empresas diante dela, é paradoxal. Isto porque a criatividade ou a inovação, elemento importante para a superação da incerteza, implica que a empresa conte, de certa forma, com recursos em excesso. A noção de slack resources leva a que haja recursos na empresa, cuja disponibilidade e ociosidade constituem a própria matéria-prima da inovação. Sem um certo desperdício de tempo, pessoas e dinheiro não há como criar, pois o processo criativo implicará erros, experimentos malsucedidos, produtos que não dão certo, até que alguns resultados positivos sejam obtidos.

A conclusão que se tira do que acaba de ser exposto é que, na reação defensiva que adota para enfrentar a incerteza, a empresa procure cortar o mínimo, ou pelo menos evite proceder a cortes ou reduções errados ou inadequados. Assim, a empresa deve procurar manter os recursos de que de fato necessita, ou de que mais necessita, e evitar abrir mão dos recursos que podem ser indispensáveis ao encontro de alternativas. Numa economia dinâmica e onde a inovação é uma constante, seria altamente inconveniente dispensar pessoas envolvidas em desenvolvimento de novos produtos, ou reduzir de forma drástica verbas destinadas a tais projetos. Ao fazê-lo a empresa reduziria, talvez a um nivel fatal, suas probabilidades de superar a crise.

Atualmente, um ótimo exemplo a observar é o da indústria automobilística dos EUA. Por inércia, a indústria ateve-se fortemente aos produtos que desenvolveu. O grande automóvel, espaçoso, confortável e com potência excessiva, era o símbolo da própria indústria automobilística daquele pais. Acreditava-se que simbolizava o pioneirismo, o caráter inovador da indústria, e sua manutenção, de certa forma, era associada com a sobrevivência da própria indústria. Noutros termos, a indústria como um todo relutava em rever sua equação produto/mercado, acreditando que a turbulência era passageira. O ano em curso vem-se revelando catastrófico, com as quatro empresas operando no vermelho. Até a mística General Motors, que desde 1921 não mostrava prejuízo, acusava um déficit em suas operações referentes aos quatro primeiros meses de 1980. A competição européia e japonesa, sobretudo a segunda, está conquistando rapidamente parcelas de mercado das empresas norte-americanas. E isto graças ao oferecimento de um novo produto que é mais adequado à situação atual, de escassez e aumento do preço do combustível - produto mais barato, porque produzido mais eficientemente, e mais bem fabricado, pois o nível de eficiência da indústria japonesa parece maior. Lentamente, a indústria automobilística norte-americana começa a reagir. Poucos negariam que aquilo de que as empresas norte-americanas mais necessitam para enfrentar os europeus e os japoneses são novos produtos ou automóveis, que terão que ser forçosamente menores, mais baratos, mais bem construídos, como motores mais eficientes e que utilizem menos combustível. Se as empresas da indústria automobilística norte-americana reagiram à turbulência e à incerteza em que atualmente se encontram abrindo mão dos recursos (físicos, humanos, financeiros e tecnológicos) necessários ao desenvolvimento de novos automóveis, adequados à nova situação que se criou ao longo da década passada, por certo estarão caminhando para a extinção. Não seria possível evitar que o mercado norte-americano continuasse a ser conquistado passo a passo por competidores estrangeiros.

2.4 A estratégia empresarial privilegiada teoricamente as empresas inovadoras, ou seja, as que adotam uma estratégia ofensiva. Isto não significa, todavia, que a maioria das empresas sejam inovadoras ou ofensivas. Pelo contrário, a maioria adota estratégias defensivas e imitativas, que se baseiam na observação cautelosa do comportamento das empresas inovadoras e do mercado.

Em princípio, estratégias imitativas e defensivas, se podem levar a bons resultados, com redução de riscos em épocas de expansão e pouca ou nenhuma turbulência, são pouco recomendáveis em períodos de incerteza. Simplesmente porque a incerteza e a turbulência questionam e contestam as práticas empresariais vigentes. Assim, o que menos se recomenda é seguir e procurar imitar o que está sendo posto em dúvida. Como resultado do questionamento, conclui-se que a oportunidade de superação da incerteza e de abandono da área de turbulência está no desenvolvimento de novos produtos, mercados e processos. Por isso, a estratégia de inovação é a mais adequada e recomendável aos momentos de incerteza. Quando primeiro se delineou no Brasil a crise energética, com tintas ainda fracas e por mãos de pintores ainda tíbios porque perplexos com o que se vislumbrava, a indústria automobilística reagiu de forma cautelosa e defensiva a propostas de alterações de seus produtos. Em meados da década passada a indústria ainda cogitava de manter o seu destino, aqui em nosso país, atrelado ao petróleo. Foi apenas no último triênio, e mais acentuadamente a partir de 1978, que as empresas decidiram pelo abandono da posição até então defendida e se lançaram, com vigor, à adaptação de seus motores para que consumissem álcool e possivelmente outros combustíveis que não o petróleo. A manutenção da estratégia defensiva no caso parecia conduzir toda a indústria, junta' mente com a de autopeças, ao seguro declínio. Aparentemente, a nova estratégia está abrindo perspectivas de que a indústria volte a crescer com o dinamismo que conheceu noutros momentos. Uma alteração que ocorre, portanto, na estratégia empresarial em períodos de incerteza é que aumentam as probabilidades de sucesso exatamente daquelas empresas que adotam estratégias inovadoras e ofensivas.

2.5 O atual clima de incerteza tem a peculiaridade de revestir-se de certo pessimismo. O fato de que durante a década de 70 se tenham feito propostas de estancamento do crescimento econômico por razões ecológicas, como aconteceu com o Clube de Roma, demonstra o pessimismo alarmista. Tal atitude estendeu-se um pouco à perspectiva econômica e à estratégia empresarial. O próprio crescimento empresarial era visto como tendo que ser inevitavelmente paralisado, cedendo lugar a um equilíbrio sem crescimento. Isto é uma atitude que não me parece justificável. Se é fato que muitas das tecnologias em uso são ecologicamente perigosas, isto deve fazer com que se procure eliminar o risco ecológico que apresentam, aperfeiçoando-as ou substituindo-as por outras - jamais, porém, paralisando a atividade econômica que com elas se realiza. Da mesma forma, há em nossos dias um certo pessimismo com relação às próprias possibilidades da inovação tecnológica, como se tivéssemos chegado ao limite das possibilidades do tipo de economia que desenvolvemos. Certamente, há épocas mais criativas e menos criativas tecnologicamente. Contudo, não se pode inferir o término ou o declínio inevitável da inovação tecnológica do fato de nos encontrarmos num período talvez menos fecundo do que outros.

Nenhuma estratégia empresarial em momentos de incerteza deve pressupor a estagnação ou a involução tecnológica. O futuro continuará trazendo inovações tecnológicas que, como sempre, terão grande impacto sobre a atividade empresarial, e que deverão ser observadas com atenção pelos responsáveis pela estratégia empresarial, pois são elementos fundamentais ao desenvolvimento de novas equações produto/mercado.

O que deve ser mantido é o objetivo de crescimento da empresa. É um pressuposto tradicional de estratégia empresarial e que deve continuar sendo buscado. Isto obriga a que se mantenha a atitude de busca de oportunidades, que podem ser numerosas em momentos de incerteza e de grandes mudanças.

2.6 Períodos de incerteza e turbulência, onde ocorrem mudanças bruscas, podem abalar empresas que desfrutam de grande solidez apoiada em domínio de mercado, produtos e tecnologias. Isto se deve ao fato de que tais domínios podem ruir por razões alheias à vontade e ao controle da empresa, impossibilitando muitas vezes a articulação de medidas de salvação. Portanto, a turbulência pode erodir posições aparentemente inabaláveis. O que se deve inferir de tal situação para a estratégia empresarial é a necessidade de manutenção de aguda vigilância.

A mesma turbulência acaba por criar oportunidades para que novas atividades surjam, seja em empresas já existentes, através da realocação de seus recursos, seja pela criação de empresas novas. Nosso país constitui excelente exemplo de clima de turbulência em que se criaram oportunidades ímpares. Basta que se proceda ao levantamento da idade das empresas que hoje encabeçam as atividades econômicas nacionais. Verificar-se-á que a idade média é muito baixa, sendo que muitas não ultrapassam os 30 anos de existência.

As observações aqui trazidas objetivam tão somente estimular a reflexão sobre estratégia empresarial, área de prática administrativa relativamente recente. Não se pretende oferecer receituário com soluções prontas, porque a natureza dos problemas impede que isto se faça. As receitas, por ineficazes, contribuiriam para o agravamento e não para auxiliar na busca de soluções dos problemas.

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    Documento de trabalho apresentado no Seminário sobre o titulo acima, organizado pelo NPP/RAE da EAESP/FGV, em outubro de 1980.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1980
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