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A evolução da participação nas organizações autogeridas iugoslavas

ARTIGOS

A evolução da participação nas organizações autogeridas iugoslavas

Roberto Venosa

Professor-chefe do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV

1. INTRODUÇÃO

Ao contrário do que vem ocorrendo nos países mais industrializados, o tema da democratização do poder nas empresas tem sido objeto de poucos estudos em países em vias de industrialização. Em países tais como França, EUA, Noruega, Suécia, Alemanha, a participação no processo decisório é discutida em academias e também vários empreendimentos participativos estão em curso. A idéia em si não é nova, porém a ênfase em estruturas organizacionais não hierárquicas é relativamente recente, mais precisamente, data do final da II Guerra Mundial.

Curiosamente, no Brasil pouco se discute e menos ainda se exercita a democratização da tomada de decisão, principalmente no âmbito das empresas. Curiosamente, não porque ela seja melhor que outras formas de decidir, mas porque no nosso país observa-se uma avidez histórica de absorção e difusão das teorias e práticas geradas nos pólos detentores do "conhecimento".

Embora seja um tema estimulante, não pretendemos discutir, neste trabalho, as possíveis razões do hiato que separa os temas privilegiados nas ciências sociais (em particular o da democracia industrial em países industrializados e aqueles que são foco de atenção no Brasil.

Pretendemos examinar aqui um caso de participação na tomada de decisões: o caso iugoslavo.

A Iugoslávia, sem sombra de dúvidas, é o país que, hoje em dia, leva avante o compromisso de implementar, a nível nacional, um modelo participativo para a gestão das empresas. O que não quer dizer que se pratique participação plena e igualdade total de influências no processo decisório em organizações autogeridas iugoslavas, e sim quer dizer que o modelo participativo introduzido a partir do final da década de 40 e consolidado (ao menos formalmente) na década de 60 exibe um perfil onde elevados índices de participação poderiam, em tese, ser praticados (veja figura 1).


A discussão do caso iugoslavo é importante, ao menos para colocar em suspenso a crença de que as organizações hierarquizadas são um pré-requisito para a eficiência empresarial. Os elevados índices alcançados para o PIB na Iugoslávia durante os anos 50 e 60 evidenciam que: se a participação não aumenta necessariamente a produtividade e a eficiência das empresas, pelo menos ela não as diminui.

A rigor, dois aspectos correlatos da evolução da participação nas organizações iugoslavas deveriam ser mais bem detalhados, a saber:

1. Quais são as implicações do modelo de autogestão na Iugoslávia?

2. Como se processou a industrialização da economia e a modernização da sociedade na Iugoslávia?

Estes aspectos são importantes para a caracterização da especificidade da "via iugoslava para o estado moderno", mas infelizmente este detalhamento envolveria mais espaço, do que acreditamos dispor.1 1 Estes aspectos, bem como outros, estão diretamente relacionados à emergência da autogestão na Iugoslávia e foram abordados pelo autor em sua dissertação de doutoramento L'Autogestion en Yugoslavie: 1950-1970. Une tentative de réévaluation du Processus de l'institutionalisation d'une typologie de l'organisation, defendida em outubro de 1979, junto à Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, France.

Neste texto procuraremos detalhar como se procedeu a implementação de modelo autogestionário iugoslavo. Ao final, posto que a Iugoslávia passou por três momentos sócio-políticos distintos (1. pós-revolucionário; 2. consolidação do partido; 3. prioridade para a autogestão), indicaremos a linha geral das mudanças havidas na sociedade iugoslava durante as décadas de 50 e 60, quando se consolidou, progressivamente, a versão iugoslava para a democracia industrial.

2. A EVOLUÇÃO DA PARTICIPAÇÃO

A introdução de unidades participativas nas comunidades de trabalho iugoslavas produziu-se gradualmente, como poderemos constatar na tabela 1.

Examinando os dados desta tabela podemos concluir que o número total de unidades organizadas de forma participativa aumentou de 1952 a 1972, sobretudo no setor industrial.

A participação formal, medida pela relação participantes/membros, entretanto, exibe índices inferiores aos que poderíamos esperar. Com efeito, a participação formal no setor industrial jamais excedeu 20%, no setor agrícola esteve sempre abaixo de 7% e no setor terciario nunca superou 45%. Uma análise cuidadosa destes dados, centrada principalmente nos índices de participação formal, leva-nos à formulação da hipótese de que estratégias de dominação podem ser praticadas, pela camada detentora do poder, a partir da manipulação do processo de circulação e sucessão das elites dirigentes.

Os dados coletados por Tannenbaum reforçam esta hipótese (veja gráfico 1 e tabela 2 e 3). Tannenbaum ao medir os níveis de influências desejadas e percebidas pela comunidade laboral identificou uma hegemonia constante da camada tecno-burocrática. O estudo de Tannenbaum sugere também a existência de uma diferença de influências desejadas e percebidas entre o grupo de trabalhadores e o Conselho de Trabalhadores, o que pode conduzir a uma segunda hipótese; qual seja, de que existe uma nítida separação entre interesses de representantes e representados, indicando mesmo que o Conselho dos Trabalhadores não é percebido como o órgão legítimo de representação dos interesses da população trabalhadora dentro das empresas. O que é confirmado pela tabela 2.


Podemos também notar, a partir da tabela 3, que a influência dos operários é mais acentuada nas questões internas à empresa. Os debates envolvendo diretrizes administrativas, política de negócios, relações com o mercado são aceitos como sendo da alçada exclusiva da direção. Esta constatação induz à conclusão que o saber técnico administrativo é um componente essencial da legitimidade do poder, uma vez que a direção detém este conhecimento. Como em outras sociedades do chamado Terceiro Mundo, também na Iugoslávia, que se industrializa, o monopólio do conhecimento técnico-administrativo ajuda a organizar as estratégias de mobilidade social, chegando mesmo a adquirir a conotação mítica de emancipação. Daí os operários "reconhecerem" sua incapacidade para decidir sobre assuntos que "demandariam um conhecimento mais especializado".

Com efeito, Mozina, em seus estudos sobre participação nas empresas iugoslavas, recolheu dados suficientes para caracterizar a preferência dos operários por discussões que envolvam assuntos de interesse imediato (veja tabelas 4 e 5). Poderíamos ler estes resultados sob a categoria teórica de "alienação". Esta leitura nos obrigaria a aceitar a necessidade de uma vanguarda, no caso iugoslavo a Liga dos Comunistas, como "catalisadora" da desalienação. Existe uma outra leitura possível, via sociologia do conhecimento. Sob esta segunda perspectiva poderíamos aceitar que uma prática cotidiana de linha de produção não pode levar a uma visão de mundo distante desta prática. Neste caso, diminui bastante a possibilidade de "conscientização" e a relação vanguarda/ massa seria estruturalmente repressiva. Isto não quer dizer que os operários sejam incapazes de tomar decisões de "caráter global" e sim pretende sugerir que, paralelamente à industrialização da economia ocorre uma tendência a se construir socialmente uma distribuição "legítima" do poder, na qual as camadas que detêm o saber técnico-administrativo manipulam as oportunidades de mercado.

De modo geral, podemos constatar que o poder nas organizações autogeridas está distribuído automáticamente. Obradovic fornece elementos suficientes para esta constatação, ressaltando o aparente paradoxo entre o modelo formal participativo e a prática autoritária, quando examina a intensidade e a extensão da participação em discussões distintas (veja tabelas 6, 7, 8 e 9):

"In general the results suport the hypothesis that in the process of decision making on the Central Workers Council meetings the more intensive participation is contributed by the individuals of higher educational level, experts and managers, while the other socio-professional groups participate much less intensively. Also the analysis of participation according to the nature of the problems discussed shows that along with the dominance of one group representing elite, the participation of other groups varies according to the nature of the problem. In the sphere of economic activity related to market, the most intensive participation is contribute by specialists and functional organizations, indicating most intensive activity of the group usually called technocracy. Solving the problems related to the cooperation with other companies, the elite usualy participating is the specialists for some fields and the League of Communists, as the cooperations are determined by the political aims and motives. The results show that in all the fields, specially when the problems of cooperation with other companies and those of distribution of income are treated, there is a close connection between the political and technocracy structures. This link is always present and in many cases even the fusion of the two structures is visible."2 2 Obradovic, Josip. Distribution of participation in the process of decision making on problems related to the economic activity of the enterprise. First Int'l Conference on Self-Management and Participation, Dubrovnik, 1972. v. 2, p. 136-63.

Aparentemente, a influência dos grupos técnicos e administrativos tendem a crescer á medida que são atingidos graus mais sofisticados de tecnologia. Pelo menos assim podemos concluir, observando os dados coletados por Supek (veja tabelas 10 e 11). Os trabalhadores têm perdido progressivamente o controle das decisões mesmo nos conselhos. Os trabalhadores têm sido, também, cada vez menos numerosos nos órgãos participativos. Examinando-se a composição dos conselhos de trabalhadores em duas datas, 1965 e 1970, podemos notar que:

1. Os funcionários com formação universitária aumentaram sua representatividade, 6% em 1965 e 10% em 1970.

2. Os funcionários de formação técnica e administrativa também aumentaram sua representatividade, 2% em 1965 e 4% em 1970.

3. Os de formação média (escolaridade secundária) dispunham de 13% da representação em 1965 e de 16% em 1970.

Tudo indica que os membros dos conselhos dos trabalhadores tendem a aceitar como legítima e "mais adequada" a orientação da prática autogestionária, pelos "mais qualificados e mais competentes" do ponto de vista profissional.

É importante, também, assinalar que a proporção de operários nas unidades participativas decresceu (de 74% em 1965 para 68% em 1970), enquanto a representação da administração cresceu 2% .e a dos membros da direção cresceu 3%. Embora a participação numérica dos operários ainda seja grande, pelo que já foi visto até agora, pode-se concluir que eles detenham uma pequena margem de controle sobre as decisões. Em linhas gerais podemos verificar que os operários tendem a ser ainda menos numerosos nos Conselhos de Gestão que nos Conselhos dos Trabalhadores (veja tabelas 12 e 13).

3. A REAÇÃO DOS TRABALHADORES

A reação dos trabalhadores a esta crescente hegemonia tecno-burocrática se fez notar rapidamente.

O número de greves aumentou entre 1958 e 1969 (veja tabela 14) o que indica um acréscimo da insatisfação e um distanciamento maior entre os interesses de representantes e representados. Inicialmente, a Liga dos Comunistas tentou negar a existência de greves. Em seguida, as denominou de "paradas de trabalho". Qualquer que seja o rótulo, as implicações são as mesmas. O termo "parada de trabalho" não tem outro sentido que o de expressar a evidência que a greve se exprime fisicamente por uma parada de trabalho, ou mais precisamente, uma "parada" com abandono ou não do local de trabalho.

Na maioria das vezes, as greves estiveram ligadas às disputas que opunham gerente e operários sobretudo em problemas salariais (veja tabela 15). A maioria das greves teve como motivo um conflito sobre salários: ou muito baixos, em diminuição ou em atraso. Estes baixos salários às vezes eram conseqüência de uma situação econômico-financeira ruim da empresa ou simplesmente devido a erros contábeis na alocação de provisões e fundos.

Em geral, as greves opunham de um lado administração e do outro operários, o que é um dado significativo para a compreensão das formas de conflitos existentes entre as classes e frações de classe na sociedade iugoslava (veja tabela 16).

A reação dos gerentes em face da contestação operária procedeu-se rapidamente e se traduziu em um aumento do controle. A direção das empresas tentou aumentar tanto quanto possível a previsibilidade de comportamento nas unidades de participação. As medidas adotadas foram as seguintes:

1. Controle da rede de informações: os relatórios a serem distribuídos nas assembléias dos conselhos de trabalhadores passaram a ser preparados por grupos de especialistas. Os operários praticamente não participam na elaboração destes relatórios. Além disso, os boletins de divulgação interna, os jornais, as circulares, etc., também, passaram a ser redigidos pelos assessores técnicos.

2. Controle das relações com o ambiente: as relações com outras empresas foram mais centralizadas na direção. Os gerentes se apresentam como os legítimos representantes de toda a comunidade de uma empresa quando discutem diretrizes econômicas, financeiras e políticas para o setor onde a empresa atua. Da mesma forma, as discussões com os líderes de organizações sócio-políticas, como os sindicatos, a Liga, a Aliança Socialista, têm sido prioritariamente da alçada da direção.

Examinando o que ocorreu na Iugoslávia entre 1950 e 1970 podemos aceitar que a sociedade iugoslava sofreu uma lenta passagem de um período revolucionário para a institucionalização gradativa de um centralismo democrático. Esquematicamente, existiriam três modelos que poderiam representar esta mudança na distribuição do poder nas organizações iugoslavas (veja tabela 17).

Tudo leva a crer que durante os primeiros anos (1945 a 1955) o modelo turbulento predominou, embora o pano de fundo já fosse o modelo centralista (1955 a 1965). Este último facilitou a emergência de camadas tecno-burocráticas e tornou possível a passagem para um modelo pluralista. Poderíamos mesmo sugerir que, a partir do fim da década de 60, a distribuição plural do poder foi a tendência dominante. Observando-se que a Iugoslávia como outros países do Terceiro Mundo sofre as ambigüidades da importação de tecnologia, modernização social e industrialização não balanceada e tendo em vista a existência de graves desequilíbrios regionais, podemos aceitar que o modelo centralista está na base do controle ideológico-repressivo do processo de modernização, enquanto o modelo plural responde pela legitimidade e hegemonia crescentes do saber técnico.

Em suma, a estratificação do poder, seguindo um ou mais modelos, sempre existiu na Iugoslávia. Na medida em que todos os modelos são estruturalmente autoritários e que em nenhum deles pode-se atingir a participação plena, é um tanto difícil se compreender porque os iugoslavos optaram por esta estrutura formal (figura 1) para suas empresas. Ou a tecnocracia, num ato de histeria religiosa teria aceitado se submeter no futuro ao controle operário, o que seria o primeiro caso na história, ou a ação vigilante da Liga tenderia a corrigir os desvios e assegurar a subordinação das camadas tecno-burocráticas aos desígnios da classe operária. Neste último caso surge uma dificuldade, pois a Liga detém o poder de repressão, mas não poder hegemônico. Ou, por último, tudo não seria mais que um complô. A esse respeito podemos afirmar que na Iugoslávia a participação total não vai além da teoria e, como sabemos, toda teoria é uma conspiração.

  • 2 Obradovic, Josip. Distribution of participation in the process of decision making on problems related to the economic activity of the enterprise. First Int'l Conference on Self-Management and Participation, Dubrovnik, 1972. v. 2, p. 136-63.
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    Estes aspectos, bem como outros, estão diretamente relacionados à emergência da autogestão na Iugoslávia e foram abordados pelo autor em sua dissertação de doutoramento
    L'Autogestion en Yugoslavie: 1950-1970. Une tentative de réévaluation du Processus de l'institutionalisation d'une typologie de l'organisation, defendida em outubro de 1979, junto à Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, France.
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    Obradovic, Josip.
    Distribution of participation in the process of decision making on problems related to the economic activity of the enterprise. First Int'l Conference on Self-Management and Participation, Dubrovnik, 1972. v. 2, p. 136-63.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 1981
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