RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo compreender em que medida ocorrem ações de gaslighting no ambiente de trabalho. Para tal, elaboramos uma pesquisa empírica, na qual visitamos 37 empresas de diferentes portes, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e entrevistamos 72 trabalhadores com diversos traços psicográficos. Essas entrevistas e nossas anotações de campo foram submetidas à Análise Crítica de Discurso. Identificamos duas categorias a priori (“gaslighting racial” e “gaslighting misógino”), duas emergentes (“gaslighting LGBTQIAP+-fóbico” e “gaslighting instrumental”), e construímos a axial, denominada “gaslighting pecuniário”. O campo revelou que gaslighting ocorre em todos os tipos de empresas pesquisadas e é uma estratégia de manipulação exercida por homens brancos heterossexuais não só sobre grupos não hegemônicos, mas contra seus pares. Este estudo traz como implicações gerenciais e à teoria a discussão e reflexão sobre como práticas discriminatórias têm sido naturalizadas e marginalizadas, não só no campo de estudos, mas na cultura organizacional.
Palavras-Chave: gaslighting; misoginia; racismo; LGBTQIAP; manipulação
RESUMEN
Esta investigación tiene como objetivo comprender hasta qué punto se producen las acciones de gaslighting en el entorno laboral. Para ello, realizamos una encuesta empírica, en la que visitamos 37 empresas de diferentes tamaños, en Río de Janeiro y São Paulo, y entrevistamos a 72 trabajadores de diferentes rasgos psicográficos. Estas entrevistas y nuestras notas de campo fueron sometidas a un análisis crítico del discurso. Identificamos dos categorías a priori, (“gaslighting racial” y “gaslighting misógino”), dos emergentes (“gaslighting LGBTQIAP + -fóbico” y “gaslighting instrumental”) y construimos la categoría axial, llamada “gaslighting pecuniario”. El campo reveló que el gaslighting ocurre en todo tipo de empresas y es una estrategia de manipulación ejercida por hombres blancos heterosexuales no solo sobre grupos no hegemónicos, sino contra de sus pares. Este estudio trae como implicaciones gerenciales y teóricas, la discusión y refexión sobre cómo las prácticas discriminatorias han sido naturalizadas y marginadas, no solo en el campo de estudios, sino en la cultura organizacional.
Palabras clave: gaslighting; misoginia; racismo; LGBTQIAP; manipulación
ABSTRACT
This research aims to understand the extent to which gaslighting actions occur in the work environment. To this end, we conducted an empirical survey, in which we visited 37 companies of different sizes, in Rio de Janeiro and São Paulo and interviewed 72 workers of different psychographic traits. These interviews and our field notes were subjected to Critical Discourse Analysis. We identified two categories a priori, (“racial gaslighting” and “misogynistic gaslighting”), two emerging ones (“LGBTQIAP + -phobic gaslighting” and “instrumental gaslighting”) and built the axial, called “pecuniary gaslighting”. The field revealed that gaslighting occurs in all types of companies and is a manipulation strategy exercised by heterosexual white men not only on non-hegemonic groups, but against their peers. This study brings as managerial implications and theory, the discussion and reflection on how discriminatory practices have been naturalized and marginalized, not only in the field of studies, but in the organizational culture.
Keywords: gaslighting; misogyny; racism; LGBTQIAP+; manipulation
INTRODUÇÃO
Gaslight (À meia-luz, em português) é um filme de 1944, cuja protagonista é Paula, vítima de jogos psicológicos e manipulação por parte de seu marido, Gregory.
Paula é sobrinha e única herdeira de uma famosa cantora de ópera (Alice), que tem a casa invadida e é assassinada, sem que suas valiosas joias sejam levadas. Depois do assassinato da tia, Paula, que morava em Londres, se muda para a Itália, onde conhece e se casa com Gregory, o qual insiste que o casal retorne e volte a residir na casa de Alice. Paula hesita, pois não tem mais amigos na cidade; todavia aquiesce.
Alegando a intenção de aplacar a ansiedade da esposa, Gregory sugere que guardem todos os móveis de Alice no sótão. Nesse processo, Paula encontra uma carta, escrita pelo desconhecido Sergis Bauer, endereçada a sua tia.
Gradualmente, Gregory isola sua esposa do mundo exterior, asseverando que ela é paranoica e que tudo o que ele faz é para o bem dela, porque seus nervos estão à for da pele e está imaginando coisas. Paula começa a acreditar que está realmente imaginando coisas, que tem um comportamento disfuncional, que não deve sair em público nem confiar em ninguém, e, paralelamente, o marido revela-se ciumento e acusador sempre que alguém expressa interesse pela esposa.
Gregory, que, na verdade, é Sergis Bauer, o assassino da tia de Paula, determinado a obter a posse das joias e confante de que elas estão escondidas no sótão da casa, inventa viagens de negócios para, secretamente, usando as escadas dos fundos, ir até lá procurá-las.
Como toda a casa é iluminada por lâmpadas a gás, cada vez que Gregory ilumina o sótão, a iluminação do resto da casa fica mais fraca, o que impressiona Paula, que também tem certeza de que ouve passos no cômodo superior.
Gregory não apenas assegura que ela está imaginando coisas como também sugere que a esposa está muito cansada e que sua memória não está funcionando bem. Assim, sutilmente, ele arranja as situações para que pareça a Paula, e a todas as outras pessoas ao seu redor, que ela é cleptomaníaca, bem como que tem escondido objetos e movido móveis e quadros pela casa. Obviamente, quando o marido confronta Paula sobre esses fatos e eventos, ela não tem nenhuma lembrança deles, o que apenas confirma a "suspeita" de Gregory de que a esposa está delirando e com problemas mentais. Paulatinamente, a confança de Paula em seu próprio juízo, capacidade de julgamento e faculdades mentais se deteriora dramaticamente.
O objetivo de Gregory é convencer Paula de que está enlouquecendo, para que saia do caminho e ele se aposse da casa a fim de localizar as joias. A "iluminação a gás" (gaslighting) à qual o título do filme se refere é a tentativa de Gregory de convencer Paula a não confiar em seu próprio julgamento e faculdades; isto é, no limite, não confiar em si mesma. Valendo-se desse filme como uma metáfora, em que medida a mesma estratégia de gaslighting é praticada nas organizações para desqualificar denúncias e pleitos de grupos não hegemônicos, como indivíduos LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Transgêneros, Queers, Intersex, Assexual, Pansexual e demais orientações sexuais e identidades de gênero), mulheres e negros? Esta é a nossa pergunta de pesquisa.
Para respondê-la, conduzimos uma pesquisa empírica em organizações de diferentes setores e portes, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Além das múltiplas visitas, que resultaram em observações registradas no nosso diário de campo, também entrevistamos indivíduos de diversos perfis identitários que nelas trabalham. Ao final, buscamos contribuir com o estudo para uma compreensão mais abrangente da natureza da relação entre os gaslighters e os indivíduos silenciados e negligenciados pelos discursos organizacionais hegemônicos, bem como apresentar implicações práticas e uma agenda de pesquisa para avançar nos estudos da temática.
GASLIGHTING E HEGEMONIA MASCULINA: O MARCO TEÓRICO
Gaslighting, a rigor, tem sido usado para categorizar a hospitalização involuntária como uma forma de abuso (Lear & Hale, 2020) e, no contexto de relações interpessoais, se refere à manipulação por meios psicológicos, quando a sanidade mental de um indivíduo é questionada (Fordon, 2019). Gaslighting é um comportamento desonesto de manipulação (Abramson 2014), que também se manifesta nas relações sociais nos ambientes de trabalho (Paige, 2019). Dessa forma, gaslighters são os indivíduos que fazem declarações falsas, negam afirmações verdadeiras feitas por sua(s) vítima(s), com a intenção específica de desestabilizá-la(s), minando sua confança nos seus sentidos e senso de realidade (Davis & Ernst, 2019).
Os gaslighters compartilham as seguintes características: não toleram a possibilidade de que alguém discorde deles ou os critique, tampouco aceitam que os outros vivam, ajam ou se comportem de modo diferente do que eles consideram correto (Abramson, 2014). Assim, gaslighting se revela um instrumento de manipulação que objetiva neutralizar as críticas e até mesmo a possibilidade de que sejam feitas, pois as vítimas têm sua capacidade de expressão e credibilidade minadas, bem como sua autoimagem questionada (Suskind, 2020).
O processo de gaslighting pode ser categorizado como epistêmico ou manipulativo. No primeiro caso, os gaslighters agem como base na reivindicação tácita de um papel de superioridade. Assim, sob a ótica da vítima, há uma pressão moral e psicológica, que sequestra sua autoconfança epistêmica; ou seja, a concepção de si mesma como um locus independente de experiência, pensamento e julgamento (Sinha, 2020). Por mais que a vítima confe em si mesma, no seu juízo e memória, permanece latente o desafio de como enfrentar a discordância epistêmica dos outros (Stark, 2019). Já a manipulativa é quando o gaslighting é mascarado como proteção ou, até mesmo, elogio, como advogar que a vítima é “boa demais”, “tem alma pura” ou “ingênua” (Stark, 2019).
No que tange à motivação, gaslighting é um processo de projeção identitária (Suskind, 2020), pois, quando algo incomoda o gaslighter, sem que este seja capaz de identificar ou reconhecer a razão, responsabiliza outrem. Seria um simples processo de projeção, como o de alguém que, sem reconhecer a própria raiva, começa a se questionar, com medo, se os outros estão com raiva dele (Abramson, 2014). Entretanto, o processo de projeção torna-se nocivo quando há a necessidade de que outra pessoa se torne o objeto da angústia, frustração ou insatisfação. Nesse processo, não raramente, as vítimas questionam a sua compreensão da realidade. Na visão de Podosky (2021), depende da ordem linguística em que a manipulação ocorre.
Esses dois tipos de estratégias de manipulação apresentadas reforçam o que Dijk (2011) propõe como as estratégias de manipulação que se estabelecem discursivamente a partir da relação entre discurso e conhecimento, pois o que conecta o discurso com o social é a cognição, compreendendo que esta se dá individualmente (modelos mentais) e de maneira coletiva (cognição social e memória social), a partir de conhecimentos e crenças socialmente compartilhados (Dijk, 2011).
A prática de gaslighting tem sido objeto de estudo em diferentes áreas do conhecimento, seja pela Psicologia Social do trabalho, ao interpretar os sinais de distúrbios no comportamento de indivíduos, traços de personalidade, relacionamentos tóxicos, narcisismo, racismo (Johnson, Nadal, Sissoko, & King, 2021), seja na área de Ciências Sociais e relações de trabalho, ao associar esse fenômeno às características de líderes e indivíduos nas organizações, cujo abuso de poder revelam nos bastidores das empresas com práticas de manipulação, por vezes muito próximas do assédio moral e que, no limite, resultam em sofrimento e prejuízos psicológicos, principalmente aos grupos não hegemônicos e minorizados (Sweet, 2019).
Sob a ótica da psicanálise, gaslighting é uma técnica abusiva usada por narcisistas em que a realidade da vítima é reescrita, o julgamento é prejudicado e há uma mudança inegável em seu equilíbrio mental, quando o narcisista tenta quebrar o espírito da vítima no jogo mais cruel do controle da mente (Calef & Weinshel, 1981). A rigor, é a reificação da hegemonia masculina (Pullen, Thanem, Tyler, & Wallenberg, 2016) e da heteronormatividade (Connel & Messerschmidt, 2013), cujo objetivo é sequestrar o capital social dos grupos não hegemônicos (Bourdieu, 2010).
De fato, por ser uma forma de abuso psicológico, que se constrói por meio do reforço de ideias e crenças, e da manipulação do estado mental e do ambiente físico das vítimas (Roberts & Andrews, 2013), gaslighting está diretamente associado a um grupo dominante (Tobias & Joseph, 2020). Geralmente, os gaslighters são indivíduos do sexo masculino que se valem dessa estratégia para instaurar ou reproduzir relações sociais que geram e asseguram seu domínio (Carpenter, 2018).
Por isso, nesta pesquisa, dedicaremos o marco teórico não às características e construções sociais dos grupos não hegemônicos marginalizados, mas, exclusivamente, à hegemonia masculina, cuja lógica institucionaliza os conceitos de “normal”, “natural” e “comum” (Carrigan, Cornell, & Lee, 2018) e fundamenta as práticas de gaslighting contra esses grupos (Tobias & Joseph, 2020). Cabe ainda ressaltar que, embora grupos em desvantagem social, em vulnerabilidade e em luta constante contra o privilégio de grupos dominantes sejam chamados de grupos minoritários, nesta pesquisa serão denominados grupos não hegemônicos, buscando maior alinhamento contextual e teórico.
A hegemonia masculina jaz na questão de como um grupo particular de homens – brancos, heterossexuais, com acesso ao capital econômico – apodera-se das posições privilegiadas de riqueza e de poder no corpus social e é capaz de naturalizar e reproduzir, legitimamente, as relações sociais que geram e asseguram seu domínio (Bourdieu, 2010). Ela se manifesta e perpassa todas as relações sociais, visto que é exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominador quanto pelo dominado (Pullen et al., 2016).
Assim, o controle ideológico opera discursivamente como forma de dominação operacionalizada a partir de termos que representam supostos poderes “superiores”, como os da Natureza, Deus, Ciência, Razão ou o povo, muito utilizados para legitimar a superioridade dos homens, brancos e héteros e naturalizar as suas estratégias de opressão (Gomes & Felix, 2019), a partir do que é “natural”, uma suposta necessidade de controle exercido pelo homem sobre as outras pessoas, “criado por Deus”, do ponto de vista da definição entre os papéis de gênero, ou “cientificamente comprovado”, como pode ser exemplificado nos casos em que se busca colocar o homem como mais forte, mais racional, mais firme, entre outras construções discursivas que constroem esse lugar de poder e opressão (Dijk, 2011).
O gaslighting e a hegemonia masculina, assim, se estendem para além da violência nas relações interpessoais, criando e exacerbando desequilíbrios de poder, e oferecem, portanto, uma oportunidade para aprofundar a análise e identificação dessas formas de poder não reconhecidas e de gênero e sua mobilização nas relações de trabalho em uma série de situações.
PERCURSO METODOLÓGICO
Na pesquisa de campo, foram realizadas observações não participantes em 37 empresas (21 em São Paulo e 16 no Rio de Janeiro), de diversos segmentos e diferentes portes, nas quais o acesso aos pesquisadores se deu via consultoria, treinamento ou convite. Cada empresa foi visitada, em média, três vezes num período de 30 meses, durando cada visita entre duas e seis horas, ao longo das quais foram feitas anotações de campo. Também realizamos 72 entrevistas presenciais, com profissionais dos mais diferentes perfis psicodemográficos.
Em observância aos preceitos éticos de protocolo de pesquisa, aos entrevistados era informado o objetivo da pesquisa, garantido o anonimato e a confidencialidade de seus relatos, bem como solicitada a autorização para que a conversa fosse gravada. O protocolo de pesquisa, bem como o estudo, foi ainda submetida e aprovada por um comitê de ética em pesquisa.
O diálogo foi dividido em duas partes: na primeira, coletavam-se os dados demográficos (gênero, orientação sexual, idade, ascendência, escolaridade, área de formação, cargo e empresa) e, posteriormente, conversou-se sobre as vivências e experiências pessoal e profissional desses indivíduos. Para efeito de análise, agrupamos os respondentes em quatro identidades autodeclaradas distintas: a) homens brancos heterossexuais (HBH); b) mulheres; c) negros e d) LGBTQIAP+. Dos entrevistados que ocupavam cargos gerenciais, 12 eram HHB, seis, mulheres, dois, negros e dois, gays.
Resumidamente, as empresas e os respondentes ficaram assim classificados:
Tabela 1 Perfil dos respondentesTipo de empresa | HHB | Mulheres | Negros | LGBQTIAP+ |
---|---|---|---|---|
Multinacional | 16 | 8 | 3 | 6 |
Nacional (grande porte) | 5 | 5 | 1 | 1 |
Pequena | 5 | 3 | 1 | 2 |
Pública | 2 | 2 | 3 | 2 |
Familiar | 3 | 1 | 2 | 1 |
Total | 31 | 19 | 10 | 12 |
No caso de interseccionalidade (por exemplo, mulheres negras homossexuais), a fala do respondente foi alocada em função da sua narrativa, ou seja, contextualizada com a ação social expressa pelo argumento, podendo ser no seu papel de mulher ou no seu papel e identidade do grupo LGBTQIAP+. Sob o olhar da pós-modernidade, os sujeitos têm múltiplas identidades simultâneas que coexistem (Hall, 1997), o que os leva a criar novos caminhos, mesmo que a custo de profundas e dolorosas sanções rumo a uma reorganização identitária; no limite, “uma busca para tornar-se um outro” (Revuz, 1998, p. 227). Essa reinvenção de si é o que chamamos de deslocamento identitário, ou seja, o movimento de ir e vir que retira o sujeito de um lugar (inclusive posição discursiva) para outro (Neves, 2008). Valeremo-nos desses dois termos e exemplos para análise dos entrevistados.
As entrevistas foram transcritas e submetidas à Análise Crítica do Discurso (ACD), pois consideramos que os sujeitos constituem e são constituídos por essas ações e que o discurso é uma prática social, que constitui estruturas sociais, ao mesmo tempo que é moldado e restringido por essas estruturas (Fairclough, 2013). Para tratarmos os dados, valemo-nos da ACD (Dijk, 2011), em que o discurso, ao constituir e ser constituído pelas práticas sociais (Fairclough, 2013), tem a cognição social como ponte entre estruturas discursivas e estruturas sociais. Dessa forma, ao analisarmos, a partir dos discursos, os conhecimentos que são compartilhados por determinado grupo de pessoas, desvelamos a forma com que estruturas ideológicas agem para legitimar e marginalizar grupos sociais.
Ao cruzarmos nossas notas de campo com os relatos de todos os entrevistados, identificamos duas categorias a priori, duas emergentes e a axial. As a piori são “gaslighting racial” (Davis & Ernst, 2019) e “gaslighting misógino” (Stark, 2019); as emergentes denominamos: “gaslighting LGBTQIAP+-fóbico e “gaslighting instrumental”; por fim, a axial é o “gaslighting pecuniário”.
Revelações do campo
Partimos das premissas ontológicas de que as realidades dos indivíduos são construídas a partir da linguagem de suas experiências pessoais, portanto um indivíduo e seu mundo são elementos indissociáveis (Hafermalz & Riemer, 2020), de que as estruturas sociais e discursivas se relacionam a partir de um contexto composto por participantes, seus papéis, objetivos, que configuram a situação espaço-temporal (Dijk, 2011), e de que as relações de dominação partem da articulação entre a perspectiva dos indivíduos e a forma como os discursos revelam conhecimentos e práticas sociais/coletivas.
Gaslighting: que mi-mi-mi é esse que vem da Sapucaí?
O samba-enredo da Escola de Samba Estácio de Sá, de 1987 (Que ti-ti-ti é esse?), nos serviu de inspiração para o título desta subseção, pois a diversidade da força de trabalho ocupou espaço nas falas dos gerentes, majoritariamente HBH, sendo chamada de “buzz”, “modismo” ou “ti-ti-ti”.
A primeira seleção lexical denota a reprodução do linguajar da mídia corporativa para uma estratégia corporativa que visa captar a atenção do público; assim, as políticas de diversidade nada mais seriam do que uma ação de marketing deslocada da realidade, e contraditória entre o discurso e as práticas adotadas (Saraiva & Irigaray, 2009). Já “modismo” remete a algo temporário, o que sugere que as políticas de diversidade não devam ser levadas a sério nem respeitadas. De fato, essa desqualificação fica evidente pelo uso da seleção lexical “ti-ti-ti”, que remete às noções de confusão, tumulto ou desordem, antônimos de gerenciamento, planejamento e organização, elementos considerados essenciais e valorizados na vida organizacional.
Nas entrevistas com os grupos não hegemônicos, os termos mais repetidos foram “batalhas cotidianas”, “preconceito”, “frescura” e “mi-mi-mi”, que denotam o desprezo e desqualificação à dor que esses indivíduos sentem. Em suas falas, as mulheres, os LGBTQIAP+ e os negros asseveraram, repetidas vezes, que quando reclamaram de discriminação ou perseguição ouviram, nomeadamente dos HBH, respostas como: “É impressão sua”, “Imagina”, “Lógico que não, leia lá na política e código de ética da empresa”.
Os negros, mulheres e LGBTQIAP+ que ocupavam cargos gerenciais perceberam-se vítimas dessa prática, ou seja, suas identidades tornavam-nos alvos de ataque coordenado entre os HBH.
Esses discursos sugerem que os gaslighters se valem da tática de deslocamento, ou seja, criam projeções (“política e código de ética da empresa”) ou jogos de imagem (“impressão sua”) para desqualificar os argumentos dos grupos não hegemônicos, bem como distrair a audiência que estiver à volta, dessa forma, deslocando a atenção dos fatos, das alegações e evidências, questionando a capacidade de julgamento e, às vezes, até o caráter das vítimas das ações ou comentários discriminatórios. Esses agressores aniquilam a possibilidade de existência de um locus autônomo de pensamento, julgamento e ação de suas vítimas (Spear, 2019), num jogo de manipulação, principal elemento constitutivo das diferentes estratégias de gaslighting (Fordon, 2019), apresentadas a seguir.
Categoria a priori 1: gaslighting racial
Nesta categoria, construída com base nas pesquisas de Davis e Ernst (2019), agrupamos as falas dos indivíduos que se autoidentificaram como negros, as quais sugeriram que gaslighting é um processo que depende de espetáculos raciais, como evidenciado no seguinte evento discursivo:
É comum ouvirmos que, aqui no Brasil, não existe essa história de raças, que somos uma democracia racial e o passado [escravidão] ficou no passado; mas todo o alto escalão são brancos. Pretos, só os seguranças e a tia do café.
Aqui, nosso interlocutor identifica um paradoxo que se evidencia no antagonismo “democracia racial” e “pretos, só os seguranças e a tia do café”, pois, por mais evidente que seja o abismo que exista entre os empregados brancos e negros, isso é sempre negado pelo grupo dominante, que desqualifica toda e qualquer denúncia com o argumento de que, no nosso país, “não existe esta história de raças”. Fica explícita a ausência de uma reflexão crítica sobre as desigualdades resultantes dos anos de escravidão e exemplificadas pelo entrevistado ao apresentar as posições profissionais ocupadas pelos negros na organização.
Na mesma linha argumentativa, um empregado HBH dessa organização afirmou que “aqui é um dos melhores lugares para se trabalhar. Saiu na Exame. Temos uma superpolítica de RH. Todo mundo aqui é igual”. Esse argumento respalda-se numa publicação da mídia de negócios para desqualificar o paradoxo apontado pelo empregado negro. Ademais, a perversidade da naturalização e inquestionabilidade dessa pretensa meritocracia defendida na afirmação de que “todo mundo aqui é igual” reside no fato de se eliminar qualquer espaço para críticas e denúncias, o que configura um gaslighting epistêmico, pois sequestra a autoconfança dos negros. De fato, esse empregado se questionou: “Como confrontar a Exame?”, “Como questionar a política da empresa e não pôr o meu emprego em jogo?", “As políticas da empresa foram feitas de brancos para os brancos, assim como as leis”.
Ademais, o uso da primeira pessoa do plural (“Temos uma superpolítica” e “todo mundo aqui”) evoca a noção de grupo a partir da construção de uma diferenciação nós versus eles ( D i j k , 2 011). Essa metaestratégia constrói discursivamente uma visão positiva do grupo e de diferenciação dos outros, criando uma homogeneização ideológica e reforçando um sentido de não pertencimento aos que não acreditam na ideia apresentada.
Esses discursos denunciam como as políticas organizacionais são utilizadas como recurso retórico e argumentativo para afirmar a abertura à diversidade da organização, ainda que essa não seja vivida pelos grupos marginalizados. Essa estratégia discursiva se dá a partir do uso de um documento oficial, institucional, com o objetivo de construir um imaginário de neutralidade e justiça, a “superpolítica de RH”. O descolamento entre o que é argumentado a partir dessas políticas de RH e o depoimento do empregado mostra como essas políticas na empresa analisada se reduzem, na prática, a meras narrativas, que ofuscam a existência de uma estrutura de poder central; são um instrumento de dominação, cujo objetivo é assegurar os privilégios dos brancos e subjugar qualquer voz dissonante.
Este jogo de manipulacão e dominação é construído de modo que as vítimas percam a concepção de si mesmas como um locus independente de experiência, pensamento e julgamento (Sinha, 2020). Assim, gaslighting racial é uma estratégia que reifica a construção histórica do Brasil, os processos econômicos, políticos e sociais que perpetuam, normalizam e naturalizam a supremacia do colonizador europeu.
Categoria a priori 2: gashlighting misógino
Construída com base nos estudos de Fordon (2019), esta categoria foca o gaslighting manipulativo (Podosky, 2021) usado pelos HBH para minar as mulheres, negando e desqualificando suas falas, testemunhos e eventuais denúncias.
Essa estratégia serve como instrumento de controle e exercício de poder, para que as normas e regras do patriarcado sejam cumpridas, desencorajando as mulheres a fazerem acusações contra os seus agressores. A repetição e o sucesso dessa tática permitem que os HBH escapem impunes e, mais do que isso, incentivam seus pares a serem cúmplices e se comportarem da mesma forma, de modo a consolidar e perpetuar a hegemonia masculina.
Nossas entrevistadas afirmaram que são, sistematicamente, ignoradas e silenciadas, nas interações sociais no ambiente corporativo e, quando sinalizam tal fato, são desmentidas e ridicularizadas, como explicitado nos seguintes eventos discursivos, que selecionamos por retratarem e resumirem os depoimentos das entrevistadas:
Nas reuniões, somos constantemente interrompidas.
Eu faço uma proposta e sou ignorada; um homem fala a mesma coisa, todos os outros concordam.
Não adianta você gritar, espernear, bater na mesa, denunciar na empresa; sempre dizem que é impressão minha, que não é nada disso, que é mi-mi-mi.
Se reclamo, dizem que é porque estou “naqueles dias de mulher” ou precisando de um namorado.
A violência misógina fica patente no não reconhecimento do espaço e direito de fala das mulheres (“interrompidas”, “sou ignorada”); na ridicularização das mulheres, como se sua indignação fosse resultado de pretensas causas fsiológicas (“naqueles dias de mulher”) ou na falta de uma presença masculina ao lado (“precisando de um namorado”). O gaslighting se manifesta na redução de qualquer crítica ou denúncia à mera impressão ou “mi-mi-mi”, assim as vítimas têm sua capacidade de expressão e credibilidade minadas, bem como sua autoimagem questionada (Davis & Ernst, 2019).
No depoimento específico de uma trabalhadora negra, a misoginia foi caracterizada como um elemento fundante do sistema social, no qual as mulheres indisciplinadas são submetidas a vários tipos de agressões e tratamentos hostis, no sentido de “domesticá-las” (seleção lexical usada pela interlocutora) e forçá-las a cumprir as regras do jogo patriarcal, que determina que as fêmeas sejam dóceis, amáveis, graciosas e recatadas.
Por meio de nossas notas de campo, entendemos que a misoginia é imposta por meio do componente de deslocamento do gaslighting; isto é, os homens (ou seus pares e aliados), que são acusados de abuso ou agressão por mulheres, as punem por essas acusações atribuindo-lhes defeitos para "explicar" suas acusações. As notas de campo revelaram-se essenciais por desvelar a ideologia por trás dos discursos enunciados, bem como seus significados, crenças e contexto: quem fala/escreve; sobre o quê, para quem, quando e com que objetivo (Dijk, 2011).
Já os defeitos usados para descrever as mulheres estão relacionados ao caráter ou à natureza do defeito atribuído. A rigor, tudo depende de quão desafador é para o acusado negar a acusação; assim, quanto mais forte a evidência de abuso, mais difícil é deslocar a acusação. Dessa forma, o defeito é retratado como um elogio, como evidenciado nos seguintes discursos de HBH: “mulheres são muito criteriosas e detalhistas”, “são muito frágeis e qualquer coisa magoa”, ou, ainda, “elas querem se meter em tudo, controlar tudo, como se fossem mães”.
Os esquemas ideológicos nesses discursos pontuam informações negativas da pessoa, negando-lhe pertencimento ao grupo (Dijk, 2011). Essa mesma estratégia pode ser usada em autodescrições positivas, ao tratar a empresa e os líderes dela como justos, imparciais e abertos à diversidade em contraponto às pessoas que reivindicam ações de opressão e, por isso, são equivocadas, frágeis ou dramáticas.
Uma entrevistada reclamou ter sido interrompida numa reunião e, na mesma hora, o acusado negou o fato e recebeu a solidariedade de três outros homens, que negaram que tal fato houvesse ocorrido e acusaram-na de estar confusa. Todavia, o que mais chocou essa interlocutora foi o silêncio ensurdecedor das outras duas mulheres presentes na reunião, inclusive da diretora, que conduzia a discussão de planejamento estratégico.
Esse relato sugeriu a existência de gaslighting misógino e de que isso é um fenômeno coletivo, pois conta com a cumplicidade de outros HBH nesse jogo, com o objetivo de induzir as mulheres a suprimirem ou duvidarem de seus próprios sentidos e julgamentos, como ocorreu com Paula, a protagonista da peça de Hamilton. Dessa forma, por ser uma ação coletiva, conjunta e coordenada, geralmente conduzida em público, pode ser considerada uma forma de opressão psicológica (Suskind, 2020). A segunda constatação é que mulheres também podem se valer dessa estratégia para manipular outras mulheres, o que sugere que gênero não é uma categoria hermética e que a hierarquia organizacional e diferenças sociais devem ser consideradas nessa discussão.
Por fim, as mulheres denunciaram uma outra tática de gaslighting misógino, que denominamos deslocamento. Esta ocorre quando é implausível para o acusado negar que ele incorreu numa transgressão social. Isso ocorreu quando um empregado foi denunciado por assédio sexual durante uma festa de confraternização da empresa. O incidente foi testemunhado por diversos empregados, que depuseram a favor da vítima. Quando pressionado, o infrator admitiu que sua conduta não foi aprovável, mas buscou minimizar o dano, argumentando que só estava elogiando a colega (ao chamá-la de “gostosa”) e brincando (ao escorregar as mãos sobre suas costas). Nessa mesma ocasião, os colegas desse HBH, também em tom jocoso, responsabilizaram a vítima pelo próprio assédio que sofreu, pois “ela é bonita demais” e “se veste de modo provocante”.
Quando envolve questões de assédio sexual, o gaslighting misógino se vale dos valores machistas da sociedade, os quais preconizam que ser desejada sexualmente é algo positivo, de tal forma que as mulheres devem acreditar que se trata apenas de um ferte, e que não gostar de um galanteio é sinal de imaturidade. Consequentemente, elas toleram, superam um eventual desconforto e, não raramente, até criticam as mulheres que reclamam do assédio. Esse comportamento machista por parte de algumas mulheres fragiliza todas as mulheres.
O gaslighting misógino responsabiliza as mulheres por suas queixas, dado que estas não são confáveis e são causadas pelos seus próprios defeitos. A repetição e naturalização dessa estratégia faz com que as mulheres acreditem que são realmente defeituosas, e seus sentimentos negativos são causados por uma falha pessoal, e não pela conduta dos homens. No limite, o gaslighting misógino é uma estratégia de opressão psicológica, que engendra sentimentos de estereotipagem, dominação cultural ou objetificação sexual, usada para punir as mulheres que desafiam a sociedade machista.
Se, por um lado, a literatura já sinalizava a existência do gaslighting racial (Davis & Ernst, 2019) e do gaslighting misógino (Fordon, 2019), o campo revelou a existência de outras categorias, como o gaslighting LGBTQIAP+ fóbico, que é discutido a seguir.
Categoria emergente 1: gaslighting LGBTQIAP+ fóbico
Da mesma forma que ocorre com os grupos não hegemônicos discutidos anteriormente, os indivíduos LGBTQIAP+ também sinalizaram ser vítimas de gaslighting, dado que suas orientações afetivo-sexuais são patologizadas. De fato, tanto as nossas observações de campo quanto os discursos da maioria dos entrevistados de todos os grupos revelaram o caráter heteronormativo que prevalece nos ambientes corporativos e que influenciam as relações sociais que ocorrem nessas arenas.
Três entrevistados desse grupo denunciaram que o gaslighting LGBTQIAP+ fóbico se disfarça por meio do que é chamado, no mundo digital, de trolagem, que, por definição, são comportamentos ou comentários pretensamente bem-humorados, que visam ironizar ou debochar de alguém, sem que esse sujeito perceba o que está ocorrendo.
A trolagem nos remete à chamada “piada interna” ou dog whistle (apito de cachorro), numa referência ao instrumento que não é ouvido por humanos, mas pode ser captado por cães. Na prática, ela consiste no uso de símbolos e códigos (verbais e não verbais) que, aparentemente, parecem não ter nenhuma conotação negativa; contudo, na verdade, seu conteúdo reproduz e reforça ideias racistas, preconceituosas, homofóbicas e xenófobas.
Nas interações sociais, apenas quem pertence ao mesmo grupo social entende esses códigos, entretanto há o risco potencial de conflito quando alguém de fora decifra a mensagem e acusa o infrator (chamado de trol). Este tende a negar a denúncia e alegar que é apenas um delírio do denunciante. Mais uma vez, observa-se o jogo de manipulação, característica primária do gaslighting.
Nesses depoimentos, foi sugerido que o motivo por se falar tão pouco desses códigos é uma ação intencional desses radicais, para que propaguem suas mensagens de ódio sorrateiramente. Nossos interlocutores fzeram um paralelo com membros do governo Bolsonaro, que fazem uso repetido desses gestos e associaram o discurso conservador da atual administração federal à piora na qualidade de vida social dos LGBTQIAP+, mesmo nos ambientes corporativos. Isso ficou evidente no seguinte evento discursivo:
Ficou normal xingar os gays; a música do Chico nunca foi tão atual: "joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é feita para apanhar, ela é boa de cuspir, maldita Geni ”.
A seleção lexical “Geni” remete ao estereótipo do homossexual masculino, ridicularizado em muitos filmes, novelas e romances literários. As Genis têm sua humanidade sequestrada; são objeto de entretenimento, piadas, anedotas e termos chulos, cuja função é edificar uma linguagem coletiva, que institucionaliza os conceitos de “normal”, “natural” e “comum” (Carrigan et al., 2018), e explicita o contraponto aos valores percebidos como masculinos: “coragem”, “autonomia”, “habilidade”, “aventura” e “solidariedade grupal” (Connel & Messerschmidt, 2013). Em tempo, vale ressaltar que a escolha de chamá-los de Geni reproduz um contexto discursivo e social mais complexo. Na música “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, Geni, que tem como nome de batismo Genivaldo, é uma travesti que sofre agressões e humilhações em sua cidade.
O gaslighting LGBTQIAP+ fóbico fica caracterizado por essa prática linguística, a qual, simultaneamente, mascara e reforça posturas LGBTQIAP+ fóbicas, bem como atribui um déficit de credibilidade a esse grupo não hegemônico.
A estratégia manipulativa para desacreditar os indivíduos LGBTQIAP+, suas falas, testemunhos e eventuais denúncias, é fundamentada na associação dos homens homossexuais à pretensa fragilidade feminina; dos bissexuais, à indecisão; e dos transexuais, a desequilibrados mentais. Assim, os HBH sequestram o capital social (Bourdieu, 2010) desses indivíduos, desqualificam-nos e comprometem sua ascensão profissional, ao sinalizarem que eles não possuem atributos valorizados no mundo corporativo, e, ainda, amedrontam muitos que ainda não assumiram sua orientação afetivo-sexual ou de gênero.
Todavia, ao longo de nossa pesquisa de campo, percebemos que gaslighting é uma estratégia, majoritariamente, usada por HBH, mas que suas vítimas não se limitam aos grupos não hegemônicos. Ela também pode ser usada contra outros HBH quando há algo maior em jogo. Dessa forma, identificamos a segunda categoria emergente, a qual denominamos gaslighting instrumental.
Categoria emergente 2: gaslighting instrumental
O campo também revelou que é um equívoco entender gaslighting apenas como uma estratégia de discriminação e ações que reificam a misoginia, o racismo e a LGBTQIAP+ fobia incrustados na sociedade brasileira.
A rigor, essa arte de manipulação psicológica, cujo objetivo é que a vítima seja percebida como louca ou incapaz pelos demais, também é utilizada como um instrumento nas disputas organizacionais. Nesse caso, a vítima pode ser qualquer um, inclusive um HBH, conforme relatado no seguinte discurso de João, empregado de uma multinacional no Rio de Janeiro:
Eu e o Alberto sempre fomos amigos. Entramos na empresa na mesma época, trabalhamos na mesma equipe, sempre fzemos happy hour e as família são, quer dizer [pausa], eram [pausa] amigas. Quando apareceu a vaga para trabalhar em São Paulo, cargo melhor, salário mais alto, nosso chefe disse que um de nós dois iria pegar a vaga. A partir daquele momento, Alberto mudou. Fazia questão de sempre insinuar que eu era muito prolixo, que eu falava de forma confusa. Até nas reuniões fazia isso e daí perguntava a quem estava em volta: “Você também não acha?”. Acho que até eu acreditei no que eu falava de mim. Acho que nunca mais fui o mesmo. Não consigo confiar mais em ninguém, nem em mim mesmo [...] Ele ganhou a promoção.
A lógica da dominação masculina (Bourdieu, 2010) pressupõe que os homens sejam mais objetivos que as mulheres (Pullen et al., 2016), e esta foi a base da manipulação conduzida por Alberto, como ficou evidente na seleção lexical do nosso interlocutor: “fazia questão de sempre insinuar que eu era muito prolixo”. De fato, essa estratégia se caracterizou como gaslighting epistêmico, dado que Alberto, o gaslighter, reivindicou tacitamente um papel de superioridade (Stark, 2019).
Já sob a ótica de João, houve uma pressão moral e psicológica, que minou sua autoconfança e, no limite, a concepção de si mesmo como um locus independente de experiência, pensamento e julgamento (Sinha, 2020) e, assim, por mais que confasse em si mesmo, no seu juízo e memória, não foi capaz de enfrentar a discordância epistêmica dos outros, conforme explícito na seleção lexical: “perguntava a quem estava em volta: 'Você também não acha?' Acho que até eu acreditei no que eu falava de mim”.
No Weltanschauung masculino heteronormativo, a pior humilhação que um homem pode sofrer é ser transformado em mulher, ser feminilizado, ter sua virilidade questionada ou ser obrigado a se comportar como se fosse mulher (Connel & Messerschmidt, 2013), e foi assim que João se percebeu. Ao ter (pseudo) comportamentos retratados como femininos, ele se deparou com a pressão que as mulheres enfrentam cotidianamente: a de ter a obrigação de estar incessantemente vigilante de seu corpo, exposto à humilhação e ser ignorado ou silenciado (Carrigan et al., 2018).
Esta categoria foi denominada gaslighting instrumental, pois tal comportamento é motivado por razões instrumentais e, no caso em questão, revelou-se uma estratégia eficaz, dado que Alberto foi bem-sucedido e João, um HBH, arcou com o sofrimento psicológico, assim como as mulheres, negros e LGBTQIAP+.
Categoria axial: gaslighting pecuniário
Ao relermos as transcrições e confrontá-las com nossas observações, constatamos que as quatro estratégias de gaslighting identificadas guardavam similaridades nas suas lógicas e táticas.
A lógica central jaz na hostilidade misógina, um fenômeno coletivo e impetrado por meio de ações comuns, as quais seguem roteiros, culturalmente aceitos e tolerados, que refletem ideologia androcêntrica reinante (Pullen et al., 2016); já no que tange às táticas, os quatro gaslightings identificados foram categorizados como epistêmicos ou manipulativos (Sinha, 2020; Stark, 2019).
Entretanto, quanto à motivação, as mulheres e os indivíduos LGBTQIAP+ entendem que os gaslighters são motivados por projeção (Abramson 2014) ou por algum incômodo, causado por questões que os assediadores, talvez, não sejam capazes de identificar ou reconhecer, como sexualidade reprimida, por exemplo. Essa análise nos pareceu muito simplória, e questionamonos o se haveria algum motivo em comum por trás do uso dessa estratégia de manipulação. Assim, debruçamo-nos, mais uma vez, sobre todo o material coletado e identificamos a categoria axial, a qual interconecta as a priori e as emergentes, e que denominamos gaslighting pecuniário.
A rigor, sob o manto da misoginia, racismo, LGBTQIAP+ fobia e o gaslighting de pares (HBH, no caso), jazia a disputa por capital social e, no limite, um retorno pecuniário. De fato, a sociedade androcêntrica institucionalizou o que é “normal”, “natural” e “comum” (Carrigan et al., 2018), bem como supervaloriza valores associados à masculinidade, como “coragem”, “autonomia”, “habilidade”, “aventura” e “solidariedade grupal” (Connel & Messerschmidt, 2013). Dessa forma, os HBH valem-se de várias estratégias – inclusive o gaslighting – para apoderarem-se de posições privilegiadas de riqueza e de poder no corpus social, desqualificando grupos não hegemômicos e marginalizados, ou qualquer outro que os ameace, como foi o caso de Alberto, que atribuiu a João traços definidos como femininos (ser prolixo, falar de maneira confusa).
O gaslighting pecuniário ficou evidenciado no discurso de uma mulher, que trabalha numa multinacional em São Paulo, quando questionada sobre o porquê de haver discriminação: “Você sacode bem a história, enquanto não cair a moedinha, você não achou o real motivo”. Foi justamente a seleção lexical “moedinha” que nos fez propor que o gaslighting, no ambiente e trabalho, assim como no filme, não se limita a atos de perversidade, dignos de psicopatas (Calef & Weinshel, 1981); a rigor, há sempre um interesse ulterior, ou seja, um retorno pecuniário.
Implicações do estudo
No discurso terapêutico da Psicologia, gaslighting é geralmente tratado como um fenômeno relacional (Lear & Hale, 2020), limitado a relações individuais, e o objetivo do terapeuta é ajudar aqueles que estão presos em relacionamentos abusivos a se libertarem e se recuperarem de eventuais danos psicológicos, como a depressão, por exemplo (Fordon, 2019). Todavia, neste estudo, entendemos que gaslighting vai além: é um fenômeno político e discursivo, inserido num determinado sistema social.
Defendemos que as implicações políticas desse fenômeno tendem a ser minimizadas propositalmente, no bojo dos processos de silenciamento e invisiblização a que os grupos não hegemônicos têm sido, historicamente, submetidos. O uso dessa estratégia de violência emocional revela-se mais eficaz para mobilizar e controlar as vítimas, uma vez que elas passam a se questionar se realmente estão sendo atacadas e, ao terem suas faculdades mentais e de discernimento questionadas, tornam-se inseguras (Podosky, 2021) e passam a demonstrar traços comportamentais não valorizados no mundo corporativo (Johnson et al., 2021; Paige, 2019).
A rigor, gaslighting é uma manipulação que, ao neutralizar as críticas e até mesmo a possibilidade de que sejam feitas, sufoca as vítimas, desqualifica suas falas, mina a credibilidade, corrói a autoimagem, bem como as intimida. O objetivo central de aniquilar a possibilidade de existência de um locus autônomo de pensamento, julgamento e ação vai além de questões psicológicas. Gaslighting tem por objetivo final preservar e acumular mais capital social (Bourdieu, 2010) e, no limite, obter vantagens econômico-financeiras.
Do ponto de vista discursivo, o gaslighting se apresenta como um ato de fala (Searle & Rogers, 1969), isto é, uma ação que se realiza exclusivamente de maneira discursiva pela linguagem, como as ameaças, promessas e pedidos.
Com o aumento do espaço que as discussões sobre diversidade ganharam no mercado, empresas de diferentes setores, como as que foram analisadas nesta pesquisa, criaram políticas e áreas institucionais voltadas à diversidade. Isso fez com que as práticas de opressão, marginalização e violência acontecessem, cada vez mais, de maneira velada, simbólica e, como apresentado em nossos resultados, discursiva. Nesse sentido, o gaslighting pode ser analisado como uma categoria de atos de fala, que desvela uma estratégia silenciosa de deslegitimação de grupos marginalizados no contexto organizacional.
Majoritariamente, essa estratégia é usada pelo grupo dominante (HBH) para desqualificar e, literalmente, “jogar uma cortina de fumaça” nos movimentos de enfrentamento e resistência das mulheres, negros, LGBTQIAP+ e todos os grupos não hegemônicos e, ao fazê-lo, assegurar os privilégios e benefícios de serem a identidade dominante.
Apesar de todos os grupos não hegemônicos terem identificado os HBH como os principais agressores em potencial, não ficou evidente que haja solidariedade entre si, o que garante a eficácia das estratégias de manipulação adotadas pelos gaslighters.
De fato, os HBH, de uma forma ou de outra, circunscrevem as mulheres e os LGBTQIAP+ dentro de uma mesma categoria, pois as estratégias discursivas usadas para (des)qualificá-los são sempre as mesmas, antônimos dos traços socialmente percebidos como masculinos. Dessa forma, fica evidente que, sob o manto dos discursos LGBTQIAP+ fóbicos, jaz a misoginia, que os precede.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os principais desdobramentos desta pesquisa se referem à possibilidade de construção de uma agenda para a pesquisa em relação a temáticas que discutam os binômios semelhanças/diferenças no âmbito social e no contexto organizacional, principalmente no que se refere à ampliação e ao aprofundamento de estudos das formas mascaradas de violência no ambiente de trabalho, dando espaço para a voz e reforçando a credibilidade daqueles que são silenciados e negligenciados pelos discursos organizacionais hegemônicos.
Embora este seja um primeiro estudo exploratório, os resultados da análise abrem caminho para pesquisas futuras sobre as práticas de gaslighting e violência aos grupos não hegemônicos no campo organizacional, bem como para aprofundar as discussões teóricas em cada um deles, especificamente mulheres, negros, LGBTQIAP+ e até os não contemplados nesta pesquisa, como os mais pobres, residentes nas periferias e comunidades, deficientes físicos e mentais, com afliações partidárias, crenças religiosas, por exemplo. Outra vereda de pesquisa se dá em casos de gaslighting em que os indivíduos apresentam diferenças hierárquicas e pertencem a grupos e classes sociais diversos. O estudo fornece a base para uma pesquisa mais sistemática voltada para o desenvolvimento e teste de teoria, expandindo a análise para outros métodos, como casos contrastantes ao longo do tempo e espaço (estudos de caso comparativos e longitudinais).
Outra sugestão está no aprofundamento da análise das políticas institucionais de diversidade das organizações, seus discursos oficiais divulgados internamente e externamente e as práticas de violência simbólica registradas nessas mesmas organizações. Acreditamos que, com isso, se construa um caminho de rastreio de práticas de gaslighting, dada a ambiguidade que se impõe aos empregados que ouvem de maneira sistemática que fazem parte de uma empresa diversa, mas experimentam outra realidade na prática.
Do ponto de vista empírico, é uma responsabilidade inequívoca das organizações incluir como parâmetro de análise de resultados os aspectos de justiça social e qualidade de vida dos seus empregados, o que implica reconhecer suas diferenças para poder tratá-los em pé de igualdade. Isso posto, a igualdade nas relações de gênero, social e racial figura como um desafio normativo e prático para as organizações e instituições. Busca-se, também, com este estudo, contribuir para que as organizações criem políticas de diversidade concretas, consistentes e relevantes, com foco na inclusão de grupos marginalizados e na transformação de práticas. Espera-se, com isso, construir nas organizações espaços emocionalmente mais seguros, saudáveis, produtivos e diversos.
NOTA
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Versão preliminar deste artigo foi apresentada no XLV Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD) em 2021.
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Editor Associado: Silvia Pereira de Castro Casa Nova
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
23 Abr 2021 -
Aceito
02 Maio 2022