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Wright Mills: sociologia

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Professor no Instituto de Letras, Ciências e Educação da Unesp (Campus de Araraquara)

Fernandes, Heloísa Rodrigues, org. Wright Mills: sociologia. Trad. Aldo Bocchini Neto e Mitsue Morissawa. São Paulo, Ática, 1985. 216 p. (Coleção Grandes Cientistas Sociais.)

Fazer resenhas, comentários de livros, artigos para jornais e revistas (especializadas ou não) é trabalho que executo com prazer há pelo menos 10 ou 12 anos. Alguns desses escritos, entretanto, foram concluídos mais por dever profissional do que por outra razão; mais com a finalidade de chamar a atenção do leitor para aspectos relevantes ou significativos de um dado campo de estudo do que por puro envolvimento. Assim, ao abrir esta coletânea de textos de Charles Wright Mills, organizada pela Profª Heloísa R. Fernandes, comecei a ler com prazer e só fui parar seis ou sete horas depois, quando o cansaço e o frio me venceram. Mas ao longo dessas seis ou sete horas, uma série de recordações foi surgindo, idéias se estruturando, a importância da obra de Wright Mills (mesmo com seus equívocos e ambigüidades) ganhando realce. É sobre isso tudo que pretendo falar nas próximas linhas, em que procurei chamar a atenção para aspectos significativos das preocupações do sociólogo norte-americano, tão precocemente desaparecido.

Meu primeiro contato com textos de Wright Mills (1916-1962) ocorreu em 1972, quando ainda cursava os semestres iniciais do curso de graduação em administração pública na EAESP, e se deu através de José Paulo Carneiro Vieira, que lecionava sociologia no antigo Departamento de Ciências Sociais da Escola. Zé Paulo, como era conhecido, graduara-se em administração de empresas e, ainda jovem, tornou-se professor na Escola. Vidrado em Mills, o Zé, sempre que tinha chance, conversava com os jovens sobre seus livros. Foi graças a suas sugestões que li A imaginação sociológica, A elite do Poder e A nova classe média (depois, em cursos com Maurício Tragtenberg, isso foi aprofundado), bem como por intervenção do Zé um outro amigo me presenteou com Transgressão e controle, de Albert Cohen, e Ritual de la interacción, de Erving Goffman (edição argentina da Editorial Tiempo Contemporâneo). Até por volta de 1982 ou 1983, Zé Paulo ainda se divertia, utilizando trabalhos de Mills em seus cursos de Sociologia I, com a garotada de 18 a 20 anos. Zé, meu bom José, a você "toda a afeição da ausência", como diria Vinícius de Morais.

A coletânea organizada pela Profª Heloísa R. Fernandes, do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, procurou, além de reter momentos significativos de sua produção intelectual, esboçar um retrato de quem a produziu. A opção por esse critério derivou de uma dupla necessidade, qual seja: "selecionar algumas publicações de uma obra muito ampla" (e extremamente diversificada) e apresentar trabalhos que sejam "estratégicos para a compreensão do pensamento de Mills e, na medida do possível, ainda não acessíveis em português". Em sua Introdução (Mills, o sociólogo artesão) Heloísa destaca que o autor só deixou sua terra natal (Waco, no Texas) aos 23 anos, após se graduar em filosofia e sociologia em 1939. Trabalhou na Universidade de Wisconsin (1940-45) e, a partir de 1946, na de Columbia. Nesse período foi colega de Paul Lazarsfeld e, por intermédio de Hans Gerth - com quem organizou e publicou uma excelente coletânea da obra de Weber, From Max Weber: essays in sociology (em português, Ensaios de sociologia) - manteve contato com o grupo de filósofos alemães que haviam emigrado para os EUA com a ascensão do fascismo, entre os quais se destacam Adorno, Horkheimer e Franz Newman, devendo a eles sua preocupação mais sistemática com os movimentos radicais europeus e com a tradição marxista.

A partir de meados dos anos 50, Mills inicia uma série de viagens à Europa, à União Soviética e à América Latina. Essas viagens acabam por ajudá-lo na superação do nacionalismo provinciano da cultura norte-americana a que estava sujeito, bem como no reconhecimento da outra face desta mesma sociedade - o imperialismo - cuja visibilidade só se manifesta do lado de fora de suas fronteiras. A partir dessa nova perspectiva, Mills produziu alguns de seus livros mais significativos, tais como A elite do poder (1956), As causas da próxima guerra mundial (1958), A imaginação sociológica (1959), a antologia Imagens do homem: a tradição clássica no pensamento sociológico (1960), e Os marxistas (publicado apenas em 1963). Nestes livros o autor critica as principais correntes da sociologia norte-americana, representadas pela "Grande Teoria" (Talco tt Parsons) e pelo "Empirismo Abstrato" (Paul Lazarsfeld); adverte que uma tentativa de destruição de Cuba por parte dos EUA poderia desencadear a terceira guerra mundial; propõe-se a divulgar o marxismo em seu país, através de um alentado volume de quase 500 páginas; esmiúça, de maneira polêmica, a sociedade norte-americana, através de A elite do poder. De acordo com seu amigo Irving Louis Horowitz (autor de C. Wright Mills, an American utopian, 1983), após a publicação desse texto, "as grandes instituições 'filantropóides' - com uma única e honrosa exceção - recusaram todos os seus pedidos de bolsas" para pesquisa.

Heloísa Rodrigues destaca ainda que, para se compreender o pensamento de Mills em toda a sua extensão, deve-se levar em conta "o momento político e cultural da década de quarenta que, na melhor das hipóteses, é a década da falência e dissolução do próprio radicalismo, o que, em outras palavras, é a outra face da prosperidade econômica, do conformismo e da crescente comemoração do American way of life do pós-guerra. Neste processo os intelectuais americanos deixavam de se pensar como rebeldes e radicais. Dentro deste quadro geral, Mills foi um dos intelectuais que se recusaram à derrota; para ele, como e enquanto intelectual, o pensamento só pode ser crítico e radical". E em seus trabalhos, procurou suas respostas a partir da formulação de três questões gerais: a) como conservar uma perspectiva crítica da sociedade?; b) quais os grupos sociais que têm uma "possibilidade objetiva de poder"? c) como elaborar "opiniões políticas audazes e claras, opiniões que permitam sua difusão como ideologias eficazes"?

Longa parte da Introdução se preocupa, também, com o oneroso ajuste de contas que a sociologia de Mills realiza com o pragmatismo (sobretudo, o pragmatismo de Dewey).

Criticando o pragmatismo, Mills afirma que este "não se torna impaciente e político", ao contrário, isola-se nos círculos intelectuais e acadêmicos: "Talvez por causa desta posição ele nunca atingiu uma orientação política adequadamente ancorada..." Ele exigia a prática, mas se isolou dos grupos sociais e das classes. Nas mãos de Mills, o pragmatismo "retrabalhado", via discurso sociológico, quer tornar-se o discurso público. Através de seus livros, artigos, resenhas, cursos e conferências, Mills sempre procurou ser um sociólogo prático, entendendo a sociologia como a ferramenta que objetiva a desalienação dos homens. Nesse sentido, analisou a sociedade norte-americana em todas as suas dimensões, conhecendo-a profundamente para poder informar aqueles que precisavam saber; "Numa sociedade em que grande parte do poder e do prestígio se baseia em mentidas, o interesse autêntico pela verdade se converte numa das poucas posses dos despossuídos."

Em síntese, "a promessa da sociologia não se limita à mera busca da verdade, pois esta é eminentemente prática. E a verdade, para ser prática, deve ser apresentada ao público, deve ser comunicada, precisa ser partilhada: procura seu destinatário. Isto significa que o próprio discurso, para ser ativo, deve ser calibrado. Suas palavras necessitam ser estrategicamente escolhidas e pesadas de acordo com a esfera realmente aberta à sua influência. Só desta forma o intelectual cumpre a sua missão de tornar a verdade ativa - articulando a verdade àqueles a quem se destina..." Assim, todos os seus trabalhos explicitam o público ao qual se destinam, isto é, aqueles que devem ouvir uma verdade específica e, a partir disso, fazer algo, sejam eles os norte-americanos, os estudantes, o clero, os jornalistas, os líderes sindicatis etc.

Essa coletânea, organizada em 1979, inexplicavelmente permaneceu inédita até abril de 1985. Azar nosso, pois nessas pouco mais de 200 páginas localizamos, exemplarmente condensados, os momentos relevantes da produção sociológica de Mills. As, referências bibliográficas detalhadas, as argumentações bem construídas e as amplas pesquisas de campo vão desaparecendo: "a urgência do tempo marca crescentemente a investigação e o estilo. Urgência que revela tão bem este artesão que se recusa à apatia e à desistência". Enquanto seu coração infartado resistiu, Charles Wright Mills acabou seguindo, nas palavras de Heloísa, o "percurso de uma desilusão contínua": a elite do poder, a classe operária, a nova classe média, a sociedade de massa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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