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Perestroika: desafios da transformação social na URSS

RESENHA

Afrânio Mendes Catani

Professor da Faculdade de Educação da USP

PERESTROIKA: DESAFIOS DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NA URSS

LENINA POMERANZ (org.)

São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 1990, 244 págs.

Tradução de Konstantin Asryants e Éssio Simonatti.

Há algum tempo Lenina Pomeranz, professora na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, vem se dedicando ao estudo das transformações econômicas recentes ocorridas na União Soviética. Doutora pelo Instituto Plekhanov de Planejamento e Economia Nacional (Moscou), Lenina escreveu três trabalhos fundamentais sobre o tema: "O investimento estrangeiro na URSS" (RAE, 29(3):6771, julho-setembro, 1989); "Perestroika: as transformações nas relações de propriedade na URSS" (Novos Estudos CEBRAP, nº 26, março, 1990, págs. 164-78) e Observações sobre a Evolução da Perestroika na URSS (USP, Instituto de Estudos Avançados, Série "Documentos", agosto, 1990). E, em dezembro último, organizou e fez uma longa e detalhada introdução ao volume Perestroika: Desafios da Transformação Social na URSS, lançado pela Editora da USP.

Escreve a organizadora que a idéia do livro "surgiu depois de uma viagem de estudos de três meses à URSS entre setembro e dezembro de 1988, durante a qual foi possível compilar, seletivamente, o conjunto de textos que pareceu o mais apropriado para introduzir a perestroika ao público acadêmico e não acadêmico interessado no tema." A evolução dos acontecimentos, entretanto, tornou a seleção dos textos parcialmente superada: "já não se tratava, em fins de 1990, de 'introduzir' a perestroika, mas de observar e avaliar o seu amadurecimento e as modificações que sofreu no processo de sua implementação. Com isto, foram substituídos alguns textos na área de economia e acrescentados outros dois, relativos à situação político-partidária e à questão das nacionalidades, passando-se para a introdução uma apresentação da perestroika e de sua evolução."

Nesse sentido, Lenina Pomeranz esclarece que a perestroika - que começou a ser gradativamente implantada a partir de 1985, com a ascensão de Mikhail Gorbatchev ao poder na URSS - além de envolver transformações básicas na economia contempla, igualmente, transformações na esfera das instituições sociais e políticas. "A glasnost (transparência), como abertura democrática, abriu caminho para a reforma do Estado e para as discussões ideológicas, nas quais a reconstituição da história e a crítica da burocracia e das deficiências da organização social e da burocracia, assim como a formação do homem soviético, substituindo a versão formal da realidade, indicam as questões reais que hoje se põem no pais"(p.11). A organizadora aponta, igualmente, a dupla perplexidade que afetou a todos os cidadãos (soviéticos ou não), diante do caráter radical das propostas de reconstrução do sistema, atingindo, por um lado, seus críticos e, por outro, os que endossavam os ideais do socialismo. No primeiro caso, "a perplexidade adveio diante da inesperada e impiedosa autocrítica do sistema, feita sem aparente pressão de movimentos sociais nesse sentido, ou seja, feitas do alto. A perplexidade juntou-se à desconfiança em relação às transformações propostas, desconfiança essa que só se desfez (...) durante o dramático desenrolar dos acontecimentos que tiveram lugar nos países do Leste europeu." No segundo caso, "a perplexidade adveio da revelação das condições reais de funcionamento do sistema, seja na esfera da economia, seja na esfera social e política, e aumentou diante da direção que assumiram os referidos acontecimentos no Lesle europeu" (págs.11-12).

A primeira parte ("Economia", págs. 49-127) dedicada a apresentar a estratégia da perestroika "as bases que levaram à sua formulação e os instrumentos com que está sendo gradativamente implementada" (p.12), inicia-se com o artigo "Uma das lições Econômicas da Perestroika", de autoria de Abel Aganbeguian, assessor informal de Gorbatchev e presidente do Departamento de Economia da Academia de Ciências da URSS. Aganbeguian avalia os erros cometidos no processo de implementação da perestroika e formula a conformação do que chama de mercado plenamente desenvolvido, através da implantação dos mercados de bens, de trabalho, de capital e de câmbio. Leonid I. Abalkin, primeiro vice-ministro para a economia e ex-redator da revista Questões de Economia, em "Problemas e Contradições da Economia Soviética no Período de Transição", identifica três grandes obstáculos: a definição do modelo de socialismo almejado como objetivo da perestroika; as questões da operacionalização da reforma, considerando as atuais condições das quais a economia parte e, finalmente, a reversão de expectativas - que ele chama de "tendências negativas".

Nicolai Petrakov ("Problemas Atuais da Formação do Mercado na URSS"), membro da Academia de Ciências da URSS e assessor informal de Gorbatchev, esboça em seu texto uma reforma monetária como caminho para a formulação do programa de estabilização econômica acoplada a uma reforma global do sistema de preços. I.V. Borozdin, chefe de laboratório do Instituto Central de Economia Matemática da Academia de Ciências da URSS, sumariza as discussões em torno da reforma dos preços, sugerindo as funções que cabem ao Estado para a sua regulamentação e, conseqüentemente, para o controle dos preços. A primeira parte encerra-se com o artigo "Reestruturação (Perestroika) do Mecanismo de Funcionamento da Esfera Agroindustrial", de L.V. Nikiforov, chefe do Departamento de Relações Agrárias do Instituto de Economia da Academia de Ciências da URSS. Nele, Nikifarov analisa o resultado das várias reformas agrícolas anteriores, sugerindo que o arrendamento seria a forma de restabelecer as relações do homem com a terra e de romper com aquilo que chama de "princípios burocráticos de base territorial da gestão".

A segunda parte ("Aspectos Político e Social", págs. 131-242) contém textos selecionados "para cobrir os aspectos econômicos, sociais e políticos da perestroika, em seu momento mais recente de implementação" (p.12). Tatiana I, Zaslavskaia, socióloga e economista, diretora do Instituto de Pesquisas da Opinião Pública da URSS e deputada do Congresso de Deputados do Povo - "a quem cabe, segundo Aganbegüian, a renovação áo$ estudos sociológicos e a mponsabüiáule pela implantação das pesquisas empíricas e de opinião pública, desconhecidas anteriormente" (p.43) -, é autora de Perestroika e Socialismo, em que analisa as premissas sociais que conduziram à perestroika como necessidade, define SÜlS objetivos sociais e as etapas de sua implementação, bem cu mo aponta os problemas sociais que devem surgir com essa implementação (desemprego e maior diferenciação de renda), sugerindo inclusive medidas para enfrentá-los.

Len Karpinski, observador político do jornal Novidades de Moscou, escreveu 'Tor que o Stalinísmo não sai de Cena?". Nele, Karpinski afirma que "o stalinísmo mo sai de cem porque se erigiu num sistema de crenças, em sistema ideológico montado sobre dogmas, mitos e estereótipos que marcam o modo de pensar de um enorme contingente de pessoas". A perestroika representa, segundo ele, "um sistema de demonstrações positivas, no qual se privilegiam os fetos e a análise, em contraposição am dogmas anteriores" (.p.44).

L. Gudkov, I. Levada, A. Levinson e L. Sedov, pesquisadores do Instituto de Pesquisa da Opinião Pública, discutem o burocratismo como expressão das condições sociais e políticas específicas de expansão da burocracia na URSS - "Burocratismo e Burocracia: Esclarecimento dos Conceitos", enquanto que I. Kon, pesquisador do Instituto de Etnografia da Academia de Ciências da URSS, dedica-se ao estudo das causas psicológicas da inércia, da despersonalização da vida social mediante a repressão da individualidade, do sentimento hipertrofiado da própria fraqueza e da apatia social, da deformação do princípio do coletivísmo e do modo de pensar ("A Psicologia da Inércia Social"). Nicolai Popov, também do Instituto de Pesquisas da Opinião Pública, em "Crise de Confiança - Crise do Poder" (escrito antes das eleições aos soviets republicanos e locais, em março de 1990), "depois de descrever o estado de ânimo e as esperanças da população às vésperas da perestroika, aponta a queda que nele se verificou, refletida na perda de confiança das massas no sistema de poder (...) Tal comportamento reflete, segundo Popov, a conscientização das massas a respeito da dualidade de poder que se formou na situação política: de um. lado, um poder legislativo, eleito pelo povo; de outro, um poder real, que continua nas mãos do aparelho partidárioestatal" (p.44). O livro se encerra com o estudo de Galina Starovortova (do Instituto de Etnografia da Academia de Ciências e deputada do Congresso de Deputados do Povo da URSS), "Paradoxo Étnico e Estereótipo do Pensamento", mostrando como ressurgiu o sentimento nacional no país - é bom não esquecer que o Estado soviético reúne perto de 150 nacionalidades no interior de seu território - e mapeando a questão particular da República da Rússia, cuja compreensão é fundamental frente ao papel que ela passou a desempenhar no processo político recente.

Enquanto escrevo esta resenha, quase todas as atenções estão voltadas para o conflito que se desenvolve no Oriente Médio, e a grande imprensa acabou dando pouco destaque ao "pacote" que Gorbatchev lançou sobre os soviéticos no final de janeiro, retirando cerca de 47 bilhões de rublos da economia, ou seja, algo próximo de um terço de toda a moeda em circulação. O "pacote" soviético guarda muitas semelhanças com os recentes similares argentino e brasileiro, cujos fracassos foram estrondosos. Ao que consta, na URSS os resultados não serão muito diferentes, pois além de o Estado não parar de emitir moeda e de enfrentar uma série de pressões para rião cumprir o plano (oriundas de várias das Repúblicas), a pouca confiança que os soviéticos tinham no sistema bancário acabou por estiolar-se - razão peia qual a leitura de Perestroika: Desafios da Transformação Social na URSS torna-se fundamental, uma vez que o livro fornece material para que muitos erros históricos possam ser evitados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1991
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