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Liberalismo e sindicato no Brasil

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Ricardo Luiz Coltro Antunes

Vianna, Luiz Werneck - Liberalismo e sindicato no Brasil, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1976, 288 p.

A obra de Werneck Vianna, pelo seu caráter abrangente, polêmico e crítico veio satisfazer os anseios de significativa parcela de estudiosos de ciência política e de amplos setores da sociedade engajados na vida social e política brasileira.

Faz-se mister ressaltar alguns pontos fundamentais discutidos ao longo deste trabalho: a dinâmica das classes sociais e seu relacionamento com o Estado, a organização e desenvolvimento do movimento operário e sindical desde o início do século até praticamente os dias mais recentes, a atuação do Estado enquanto agente direto no processo de acumulação industrial e o fracasso do liberalismo enquanto projeto ideológico das frações burguesas no pós-30.

Já na sua Introdução, com rigor teórico louvável, W. Vianna capta a problemática do liberalismo: "trata-se de resolver a compatibilidade do indivíduo livre com a sociedade política, ou se se quiser, de como articular um sistema jurídico que oponha o privado ao público". A intervenção deste sobre aquele se efetiva em múltiplos aspectos. O mercado, o trabalho e a empresa, anteriormente estranhos à regulamentação jurídica, são penetrados por larga e copiosa legislação. O direito do trabalho expressará a emergência da classe trabalhadora na luta contra o pacto original do liberalismo, impondo restrições legais ao indivíduo possessivo. Vê-se a "publicização do privado", provocando a intervenção do Estado sobre as condições de compra e venda da força de trabalho. O direito do trabalho, de conquista da classe trabalhadora, vira-se contra ela. "A sociedade se converte em palco da contenda entre grupos sociais, e não mais entre simples indivíduos".

Nos dois primeiros capítulos o autor faz uma análise das relações antagônicas que envolvem de um lado a burguesia industrial - de inspiração liberal-fordista - e, de outro, a classe operária, onde "boa parte de sua movimentação organizada esteve praticamente localizada no esforço de romper o estatuto da ortodoxia liberal".

Convém lembrar que a ortodoxia liberal, na sua versão clássica consagrada pelo Código Civil de 1916, assim como o Estado edificado pela oligarquia agrário-exportadora, se constituíram no caldo de cultura funcional e adequado à emergência e expansão da burguesia industrial.

O esgotamento do projeto liberal, que se inicia nos anos 20, será consumado pela incapacidade das novas frações dominantes emergentes no pós-30; a crise de hegemonia então verificada expressará a falência do liberalismo. A este respeito voltaremos pouco adiante.

Ainda no capítulo primeiro, o autor propõe uma nova periodização para o movimento operário e sindical através da sua articulação com o sistema político-institucional. Procura captar, e consegue indubitavelmente, "a variação institucional ocorrida na definição das organizações sindicais, combinadas com o papel concreto desempenhado sobre o mercado pelo Estado e pelo movimento operário e sindical". A percepção deste movimento dar-se-á a partir da dupla dimensão: a) "de como as classes dominantes concebem tal ou qual sistema de ordem e o modo através do qual nele inseriram as classes subalternas; b) de como as classes subalternas legitimaram a ordem estatuída e de como, e através de que forma e com que intensidade, a ela resistiram".

Seu trabalho atinge no capítulo terceiro um dos pontos mais brilhantes: rediscute as várias interpretações da historiografia brasileira, apontado suas relevantes contribuições sem deixar, porém, de ressaltar seus limites metodológicos.

Denota no fim dos anos 20 o "impacto de uma crise que se reveste de pelo menos três grandes dimensões: econômica, marcada pela lenta e gradual decadência dos negócios da agroexportação do café, que a crise cíclica do capitalismo em 29 acelerará"; política, marcada pelo acirramento das dissidências intra-oligárquicas e pelos levantes tenentistas e, a crise social verificada com a mudança qualitativa do movimento operário, que abandonava a "ação direta" em prol da "frente única".

Percebe o autor o movimento político-militar de 30 como o deflagrar da crise política e econômica. "A incidência crítica de um repercutia no outro, embora os impulsos que definiam a conjuntura" viessem ora do político, ora do econômico. Descarta, pois, tanto as abordagens "economicistas" quanto as "politicistas".

O caráter heterogêneo da nova composição de poder esgotará qualquer possibilidade efetiva de convivência com o liberalismo, dado que nenhuma fração dominante obterá o consenso das classes subalternas.

A partir da categoria "Estado autonomizado no político", Vianna faz relevante discussão sobre o novo caráter do Estado no pós-30. Após implacável crítica à noção de "Estado de Compromisso", recoloca a forma corporativa do Estado, como um "instrumento burguês de realização do industrialismo.

Todos concordariam, diz ele, em que, com o Golpe de 1937, finda o "compromisso", enveredando o Estado, conscientemente, pelos rumos da modernização e industrialização. Onde se encontram então as origens deste processo: no Golpe ou no Movimento de 1930? Aproxima-se da segunda possibilidade. Para tal análise é mister negar-se o viés empiricista que tenta ver a burguesia industrial - e não a verá - como classe agente no Movimento de 30. É necessário captar, isto sim, qual a fração de classe beneficiária do conjunto de medidas então implementadas. O caráter de que se reveste o Estado no pós-30 é sugerido como sendo um regime de trânsito para o industrialismo e dissimulação do conflito entre as classes fundamentais da sociedade. Esse caráter corporativista será, pois, a antítese do liberalismo. Neste momento, outro ponto alto: o de recolocar a tese leninista da "revolução pelo alto" ou a "via prussiana" para a modernização e a capitalização no Brasil: "para efeitos do debate sobre a modernização no pós 30 brasileiro, interessa-nos aqui recuperar conceitualmente o caminho prussiano, expresso também na fórmula de "revolução pelo alto". À maneira prussiana, a modernização e a capitalização transformam as relações sociais agrárias, tendo como agente decisivo a grande propriedade da terra, que progressivamente se capitaliza. A especificidade de uma formação social capitalista dependerá, pois, do encaminhamento da questão agrária. Os indicadores da modernização no pós-30 seriam: o fenômeno migracional, o intenso crescimento urbano e a incessante expansão industrial.

"O modelo prussiano de dominação não se adequaria ao sistema de mando da oligarquia agrário-exportadora... ; diversamente, a fração burguesa agrário não-exportadora, quando se apropria do aparato do Estado já o faz em aliança com os setores urbanos emergentes... A modernização agrária, intimamente articulada ao centro urbano-industrial, pressuporá a industrialização, como decorrência de uma política centrada na expansão do mercado interno". Esta articulação redundará no derradeiro passo para a consumação da revolução burguesa no Brasil. Mais uma vez, com peculiar brilhantismo, o autor rediscute outra tese fundamental: as frações burguesas não-exportadoras, abafadas durante a hegemonia cafeeira, criarão agora as bases para promover "pelo alto" o desenvolvimento do conjunto das frações dominantes em moldes especificamente burguesas. É necessário lembrar que a revolução não deve ser vista aqui na sua forma clássica - o que seria crasso erro - mas sim como uma mudança na qual "as velhas classes dominantes e as velhas formações econômico-sociais não foram destruídas mas se fundiram com os elementos das novas classes". (Veja Carlos Nelson Coutinho - Cadernos Debate n. 1, p. 76 ou Escrita-Ensaio n. 1, p. 8-9.)

Em outras palavras, não significa necessariamente a transição de um modo de produção para outro. Para W. Vianna, a modernização pelo alto não acarreta a idéia de que tal processo tenha levado ao poder político a burguesia industrial, mas sim que os interesses industriais "encontraram apoio e estímulo eficaz na nova configuração estatal... Num certo sentido, toda revolução pelo alto assume a configuração particular de uma revolução passiva, como Gramsci a descreveu no Risorgimiento, isto é, de uma revolução sem revolução..."

O caráter centralizador e intervencionista do Estado; a rigorosa disciplina a que se submeteram os fatores de produção, principalmente a força de trabalho industrial, expressarão a natureza modernizadora do novo Estado. A legislação trabalhista age como importante instrumento no processo de acumulação industrial, "mantendo os salários do exército industrial (a partir da decretação do salário mínimo, RLCA) orbitando numa trajetória pouco acima da mínima".

A ortodoxia corporativista atinge sua plenitude, como mostra o autor no capítulo 5, com a Constituição de 1937 e a conseqüente implantação do Estado Novo. A negação do conflito de classes, a absorção do indivíduo pelo Estado, o primado do econômico ensejando uma organização político-social específica caracterizam na claríssima expressão da Vargas o conteúdo do novo Estado: "um regime forte, de paz, de justiça e de trabalho".

No último capítulo Vianna nos dá uma mostra do quadro vigente no pós-46: "liberalismo em política, corporativismo quanto à organização sindical. O indivíduo possessivo será liberto dos freios e ressalvas da vontade nacional, mas as classes subalternas deviam continuar subordinadas ao ideário de colaboração e de harmonia entre classes sociais".

Ainda neste capítulo, com a mesma acuidade, desmascara o caráter "liberal" do Golpe de 1945: no momento em que frações das classes dominantes rompiam o pacto corporativista (vide Manifesto dos Mineiros) estabelece-se uma aliança dos setores varguistas com a esquerda operária, iniciando-se um processo de redemocratização "pelo alto'', e, ao mesmo tempo, propiciando maior penetração do Partido Comunista junto à classe operária. Mostra, portanto, que a aliança da esquerda operária com as forças pró-Vargas foi não só proveitosa, mas condição necessária para o avanço do movimento operário no Brasil.

O 29 de outubro significava que as classes econômica e socialmente dominantes não admitiam a interferência dos de baixo". Neste sentido o golpe que depôs Vargas foi essencial mente antidemocrático, apesar de na aparência revestir- se de um caráter "liberalizante". Como decorrência, diz W. Vianna, "não foi no terreno prático, em razão das alianças realizadas ao final do governo de Vargas, que se impuseram os condicionamentos que preservaram os princípios sindicais da CLT. Essa foi uma opção da Constituinte sob Dutra, e que contou com a oposição dos petebistas egressos do queremismo e da esquerda operária". Imputar à aliança do PC com os setores varguistas a permanência da CLT no pós-45 é, portanto, um grave engano carente de sustentação empírica.

"As forças triunfantes da redemocratização 'pelo alto' sem Vargas tendo impedido a consagração constitucional do princípio da autonomia sindical restringindo o direito de greve e dado seqüência ao papel institucional da Justiça do Trabalho sob o Estado Novo, devolviam ao Estado seu corte hierático e preservavam o corporativismo".

Enfim, Vianna nos presenteia com sua obra que, no mínimo, é polêmica, criativa e até piopioneira. Uma obra que preenche tais quesitos fala por si só ...

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 1977
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