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Modêlo de desenvolvimento econômico a dois setores

ARTIGOS

Modêlo de desenvolvimento econômico a dois setores

Luiz Carlos Bresser Pereira

Professor-Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas

"Portanto, para que o sistema de preços possa funcionar adequadamente, impõe-se que as modificações estruturais mais importantes sejam previstas e superadas antes de se tornarem um fator impeditivo da aceleração do desenvolvimento econômico." - ANTÔNIO DELFIM NETTO.

O desenvolvimento econômico é um processo de crescimento da renda per capita acompanhado por modificações estruturais da sociedade em seus aspectos econômico, político, social e cultural. Prever essas modificações estruturais de caráter econômico, para em seguida sugerir medidas visando a superá-las através da política e do planejamento econômico, é a missão por excelência do economista.

Para que seja possível essa previsão das transformações estruturais, é preciso que alcancemos uma visão bem clara do processo teórico dos países subdesenvolvidos. Uma das contribuições mais brilhantes nesse sentido foi oferecida por HANS W. SINGER, economista membro do Secretariado das Nações Unidas, em um artigo publicado há mais de 10 anos, no qual era apresentado um modêlo numérico de desenvolvimento econômico bastante simples.1 1 ) Cf. HANS W. SINGER, "O Mecanismo do Desenvolvimento Econômico", in Revista Brasileira de Economia, Ano 7, n.º 1, março de 1963, págs. 7 a 30, Rio de Janeiro, GB, Fundação Getúlio Vargas. Êsse artigo tornou-se em breve um clássico da literatura econômica sôbre o desenvolvimento. Neste artigo apresentaremos uma adaptação do modêlo SINGER, visando a melhor ajustá-lo às condições econômicas típicas de países que já tenham um certo nível de desenvolvimento eccnômico. Além disso é preciso admitir que, ao montarmos nosso modêlo, embora não pretendêssemos limitá-lo exclusivamente às economias dos países latino-americanos, fomos naturalmente levados a nela nos basear, mais do que nas economias da Ásia e da África, que nos são menos familiares. Isto naturalmente permitiu que chegássemos a uma série de conclusões algo diferentes das apresentadas por SINGER.

O MODÊLO DE SINGER

Em seu modêlo SINGER supõe uma economia formada por 1.000 pessoas com renda per capita de US$ 1,00. No modêlo em questão, 70% da população trabalharia na agricultura e 30% no setor não-agrícolá. Em contrapartida apenas 40% da renda total seria gerada no setor agrícola, o que resultaria em uma renda per capita de apenas 57 dólares, contra 200 dólares no setor não-agrícola. A população aumentaria a uma taxa de 1,25%. A relação capital-produto seria de 6 no setor não-agrícola e de 4 no agrícola.

Dos 70% da população trabalhando nà agricultura contra apenas 40 % da renda originada nesse setor, SINGER deduz que "é somente com referência ao eihprêgo e não com referência à renda nacional que a agricultura pode ser descrita como a atividade básica dos países subdesenvolvidos".2 2 ) Idem, ibitem, pág. 10 Feita essa observação, e verificado que nos países desenvolvidos a relação típica de emprêgo no setor agrícola e não-agrícola não é aproximadamente 30/70, mas de 20/80 ou de 15/85, SINGER apresenta a hipótese básica de seu trabalho: "A velocidade ou taxa de desenvolvimento econômico pode ser descrita pelo ritmo segundo o qual a relação 70/3 0 na estrutura ecômica vai se aproximando da relação 80/20."3 3 ) Idem, ibidem, pág. 11. E daí êle estabelece que, salvo para os países como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália, onde o desenvolvimento foi associado à colonização, poder-se-á admitir como hipótese que um processo rápido de desenvolvimento se caracterizará pela permanência da população agrícola estável em números absolutos, aumentando apenas a população do setor não-agrícola devido ao crescimento vegetativo e ao êxodo rural. Estabelecidos êsses postulados e hipóteses básicas, SINGER coloca as três principais tarefas com as quais se confronta a economia em questão para se desenvolver: a) equipar as 8,75 pessoas transferidas do setor agrícola para o não-agrícola; b) aumentar a produção agrícola sem aumentar o número de pessoas; e c) equipar as 3,75 pessoas relativas ao crescimento vegetativo da população não-agrícola. Em face a êsses três problemas coloca-se a pergunta: qual o investimento necessário para fazer frente aos mesmos?

Para equipar as 8,75 pessoas, que correspondem ao processo de "industrialização" (é SINGER quem coloca essa palavra entre aspas), transferindo-os do setor agrícola, SINGER acredita necessários 1.600 dólares por pessoa, ou seja, um total de 14.000 dólares. Para aumentar a produção agrícola em um mínimo de 3%, e dada a relação capital-produto de 4, serão necessários 4.800 dólares de investimentos nesse setor. Finalmente, para o crescimento vegetativo da população do setor não-agrícola SINGER , partindo novamente da relação capital-produto de 4, e da hipótese de que bastaria garantir-lhes a mesma renda de 200 dólares, conclui que seria necessário investir 800 dólares por pessoa, e portanto 3.000 dólares para as 3,75 pessoas.

Temos assim 14.000 mais 4.800 mais 3.000 dólares de investimentos, totalizando 21.800 dólares, que, aplicados às relações capital-produto cu produto-capital, permitiriam um crescimento da renda per capita de aproximadamente 3%. Mas, observa o autor, êsse investimento, correspondendo a 21% do produto, é excessivo para os países subdesenvolvidos. Em situação normal, êles estão em condições de poupar 6%. Como resolver o problema? SINGER oferece quatro soluções que podem ser aplicadas concomitantemente: a) baixar a relação capital-produto, aumentando a produtividade do investimento; b) aumentar a poupança; c) reduzir a taxa de crescimento da população; e d) suplementar os recursos nacionais com recursos do exterior.

O NÔVO MODÊLO

Ao construirmos nosso modêlo, baseado no de SINGER que acabamos de expor, conservamos uma série de premissas e postulados sem alteração. Em primeiro lugar, mantivemos a hipótese de que o desenvolvimento ocorrerá sem que aumente a população agrícola, transferindo-se todo o excedente para o setor não-agrícola. Essa hipótese nos parece, em termos gerais, bastante adequada para caracterizar o processo de desenvolvimento. É uma especificação da hipótese mais geral, já tantas vêzes comprovada que não cabe aqui ser discutida, de que o processo de desenvolvimento praticamente se identifica com o de industrialização. Em uma região que apresentou nas últimas décadas um acelerado ritmo de desenvolvimento, como o Estado de São Paulo, por exemplo, a população urbana cresceu de 1940 para 1960 de 3.168.000 habitantes para 8.149.000, enquanto a população rural no mesmo período permanecia quase estável, variando apenas de 4.012.000 para 4.826.000.4 4 ) Cf. PLADI - Plano de Desenvolvimento Integrado, 1964. pág. 41, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado.

Conservamos também, para descrever o processo de desenvolvimento, a função de Harrod-Domar,

em que Y é a renda, I o investimento e α a relação marginal produto-capital. Admitimos que essa função, que torna o desenvolvimento resultado exclusivo do investimento e de sua produtividade expressa pela relação marginal produto-capital, não traduz de maneira inteiramente satisfatória o processo de desenvolvimento. O trabalho é dela excluído como fator dé desenvolvimento, supondo-se não só que a oferta de trabalho é absolutamente elástica, como também que a elasticidade de substituição do capital pelo trabalho é igual a zero. Ora, essas premissas não são necessàriamente válidas. Todavia, apesar dessas restrições, decidimos usar também a função Harrod-Domar, dada sua extraordinária simplicidade, que a torna uma função de produção altamente operacional.

No QUADRO I apresentamos as principais coordenadas numéricas de nosso modêlo. Ao invés de uma renda per capita de 100 dólares, partimos de uma renda de 200. Cobrimos assim uma faixa de países em um estágio de desenvolvimento um pouco superior ao daqueles descritos pelo modêlo de SINGER. Partindo de uma renda por habitante de apenas 100 dólares difícilmente um país terá condições para realizar seu '"arranque" econômico, entrando em um processo de industrialização rápida. Um país nessas condições estará ainda provávelmente na fase de equipar sua agricultura ou sua mineração de exportação, que lhe darão condições mínimas para a industrialização. E já que o processo de desenvolvimento que estamos descrevendo identifica-se com o de industrialização pareceunos conveniente partir de uma renda per capita mais elevada. É claro que não pretendemos com isso afirmar que o país com uma renda per capita de cêrca de 100 dólares não tenha necessàriamente condições de industrialização (a índia é um caso conspícuo provando o contrário), nem que um paia com renda ao redor de 200 dólares tenha sempre condições de industrialização. Essa é apenas uma aproximação.


A distribuição da população, com 60% na agricultura e 40% no setor não-agrícola, é bem típica dos países subdesenvolvidos. SINGER usou uma relação 70/30 , o que se explica dado o mais baixo nível de desenvolvimento econômico em seu modêlo. Em relação à renda, fizemos provir 30% do setor agrícola contra 70% do setor não-agrícola. Essa é aproximadamente a proporção observada em um grande número de países subdesenvolvidos, inclusive no Brasil. Como resultado, a renda per capita do setor agrícola, fixada em 100 dólares, atinge a 50% da renda per capita média. Essa proporção ficou portanto dentro dos limites de 50 a 60%, que é quanto geralmente representa a renda per capita da agricultura em relação à renda per capita média nos países subdesenvolvidos.

SINGER usou uma taxa de crescimento, da população de 1,25%. Essa pode ser uma taxa típica para um grande número de países da Ásia e da África, onde, dado o nível extremamente baixo das condições de higiene e saúde pública, a taxa de mortalidade pouco se reduziu. Já nos países latino-americanos essa taxa tem se aproximado dos 3%. Decidimos, pois, por uma taxa que nos deixasse no meio-têrmo, ou seja, 2%.

Quanto à relação produto-capital, fomos um pouco mais otimista do que SINGER. Usou êle uma relação produtocapital de 0,18% (ou uma relação capital-produto de 6) para a indústria, e 0,25 para a agricultura. Com uma produtividade do capital dessa ordem, dificilmente, um país se desenvolverá. Permanecerá estagnado, fugindo aos objetivos dêsse modelo, que é o de descrever um processo de desenvolvimento. Para aquêles países que já começaram, ou estão em condições de iniciar sua industrialização, podemos esperar uma relação produto-capital bem mais favorável. A relação produto-capital do Brasil, por exemplo, foi durante muitos anos de aproximadamente 0,50. Portanto, em têrmos que ainda nos parecem razoàvelmente conservadores, estabelecemos uma relação produtocapital de 0,50 para a agricultura e de 0,25 para o setor não-agrícola. A relação produto-capital mais alta na agricultura é fácilmente explicável. A experiência tem comprovado seguidamente que nos países subdesenvolvidos é possível com um mesmo investimento, aumentar mais facilmente a renda na agricultura do que na indústria e no setor terciário. Isto evidentemente não significa que o desenvolvimento seja mais fácil através da agricultura. Há tôda uma série de limitações à oportunidade de investimentos na agricultura, a começar pela baixa elasticidade da renda da procura dos produtos agrícolas, que torna impossível tal via de desenvolvimento. Uma relação produto-capital mais alta na agricultura do que nos demais setores significa apenas que os investimentos nela necessários para o desenvolvimento são menores.

Finalmente, para terminarmos esta comparação entre dados básicos de nôvo modêlo e o de SINGER, cumpre observar que conservando a premissa básica de que o desenvolvimento se define fundamentalmente pela transferência da população do setor agrícola para o não-agrícola, estávamos implicitamente reafirmando a tese de que o desenvolvimento é antes de mais nada um processo de transformação estrutural da sociedade. Neste modêlo limitamo-nos a traduzir algumas transformações básicas de caráter econômico e populacional. As mudanças econômicas básicas são as seguintes: o aumento constante da participação da renda do setor não-agrícola na renda global, a industrialização necessária para absorver a população rural e o decorrente crescimento do setor terciário. O desenvolvimento do mercado interno e tôdas as suas conseqüências estão implícitos no modêlo. Como se verá adiante, o comércio exterior também foi incluído. A transformação estrutural nesse setor, prevista pelo modêlo, reside na redução da participação do comércio internacional na formação da renda. O processo de redistribuição de renda que é típico do desenvolvimento surge no modêlo através da modificação na participação da renda por parte dos dois setores. As transferências e redistribuições de renda entre grupos sócio-econômicos não poderiam ser incluídas sem que se complicasse extremamente o modêlo. Por isso foi excluída uma série de transformações econômicas de menor importância, e tôdas as transformações básicas de caráter social, político e cultural. Tratando-se de um modêlo econômico, que é uma abstração a partir da realidade, onde se busca tão-sòmente a distribuição do desenvolvimento; seria plenamente justificável que excluíssemos as transformações de natureza não econômica.

ALGUMAS RELAÇÕES BÁSICAS

Estabelecidas as coordenadas econômicas básicas de nosso modêlo, passemos aos aspectos dinâmicos, colocando a questão: qual o investimento necessário para se assegurar a essa economia um crescimento da renda per capita, D, de 3% ao ano? A escolha dessa taxa de 3% é arbitrária. Consideramo-la uma boa taxa de desenvolvimento, que permitirá ao país dobrar sua renda por habitante em cêrca de 24 anos. Uma taxa de 2%, que permitirá a um país dobrar sua renda em 35 anos ainda seria aceitável. Se o leitor desejar, poderá refazer os cálculos que apresentaremos a seguir, partindo dessa segunda taxa de crescimento da renda por habitante.

Para respondermos a pergunta sôbre qual o investimento necessário, devemos antes estabelecer algumas relações básicas. Aplicando-se a função Harrod-Domar temos que:

Por outro lado, considerando a renda per capita Y, e a taxa de crescimento da mesma, D, podemos escrever outra igualdade elementar em economia:

Como temos apenas a relação produto-capital para cada um dos setores em separado, calcularemos o investimento necessário em cada um dos setores. O investimento será simplesmente a soma dos investimentos setoriais.

Com base, agora, nessas relações elementares, podemos desenvolver nosso modêlo. Faremos duas abordagens ao mesmo, cada uma partindo de uma taxa diferente de crescimento da agricultura. Começaremos sempre por êsse setor porque é aquêle no qual se pode falar em uma "taxa mínima" de crescimento, abaixo da qual, por exemplo, o abastecimento da população será pôsto em risco. É claro que a premissa subjacente a essa afirmação é a de que a economia em questão será ou deverá ser auto-suficiente em matéria de alimentação.

Primeira Abordagem

Em nosso modêlo, como não há crescimento da população agrícola, o aumento porcentual da renda per capita será igual ao da renda no setor agrícola.

Em nossa primeira abordagem admitiremos que essa taxa peja de 3 %, igual, portanto, ao crescimento da renda per capita da economia como um todo. Essa taxa de crescimento da renda per capita para a agricultura parece, à primeira vista, razoável. Se a renda por habitante da economia em geral cresce à taxa de 3%, seria em princípio de se esperar que a mesma taxa ocorresse no setor agrícola. Caso contrário teríamos, aparentemente, um processo através do qual a renda per capita do setor não-agrícola tenderia a se distanciar cada vez mais da do setor agrícola.

Além disso, aumentando Dg à mesma taxa de D, a população agrícola garantiria para si os benefícios do desenvolvimento. A participação de Yg em Y tenderia à diminuição apenas devido ao fato da população agrícola não crescer.

Temos, pois, aplicando a equação (2), e lembrando que a relação produto-capital na agricultura é de 0,5,

O investimento agrícola necessário será, portanto, de 6% da renda agrícola, cujo valor é de 30.000 dólares. Conseqüentemente o investimento agrícola necessário será de 1.800 dólares. Tal investimento produzirá um crescimento de Yg de 900 dólares.

Vejamos, agora, qual será o investimento necessário no setor não-agrícola. Como é evidente:

Aplicando-se essa igualdade, e tendo-se em mente que o crescimento da renda total será de 5%, isto é, de 5.000 dólares, temos que,

Usando-se a relação, (2) ligeiramente modificada e substituindo a taxa de crescimento da renda pelo próprio crescimento da mesma, o investimento necessário no setor não-agrícola será o seguinte;

O investimento necessário no setor não-agrícola será de 16.400 dólares, ou seja, de 23,4%. O investimento total necessário seria de 18.200 dólares, correspondendo a 18,2% da renda.

Vejamos, porém, qual seria o crescimento da renda per capita no setor não-agrícola,

O crescimento da renda no setor não-agrícolá seria pois de '5,85%, ou seja, uma taxa um pouco superior à observada na economia em geral. Todavia, levando-se em conta que a taxa de crescimento da população nesse setor seria de 5%, teríamos, aplicando-se a igualdade (3), uma taxa de crescimento da renda per capita de 0,85% apenas. Essa taxa é evidentemente muito reduzida, especialmente quando comparada com a de 3% postulada para o setor agrícola, e explicada pelo fato de haver uma transferência de população do setor agrícola para o não-agrícola, sendo a renda per capita do primeiro setor três vêzes e meia maior do que a do segundo. O súbito aumento de renda daqueles elementos da população que passam de um setor para outro faz com que a média de crescimento geral baixe. Se não houvesse essa transferência, a taxa de crescimento da renda por habitante no setor não-agrícola seria também de 3% (já que a essa taxa crescem, nessa Drimeira abordagem do problema, tanto a renda per capita global como a do setor agrícola).

Em qualquer hipótese, explicado ou não o problema, o fato é que a taxa de 0,85% para o setor não-agrícola é muito baixa. Em suas linhas gerais, não espelha um processo típico de desenvolvimento porque o processo de industrialização tornar-se-ia relativamente lento. Tentaremos, pois, uma segunda abordagem.

Segunda Abordagem

Nessa segunda abordagem o problema será determinar a taxa mínima de desenvolvimento da agricultura. Na primeira abordagem estabelecemos, através de um raciocínio bastante simples, uma taxa de desenvolvimento da agricultura igual à da economia como um todo. Será isso necessário? Veremos que de fato essa taxa poderá variar amplamente em tôrno dos 3% previamente estabelecidos, dependendo das hipóteses que estabeleçamos a respeito da elasticidade da demanda de produtos agrícolas de consuma interno, Ygc, da participação da agricultura de exportação na produção agrícola total, e do coeficiente de aumento das exportações de produtos agrícolas, Ygc, sôbre aumento da renda.

Se por exemplo, a produção fôsse tôda interna, e os preços não variassem relativamente, a dieta da populaçao so não sofreria se o crescimento da agricultura fôsse de 2%, ou seja, igual à taxa de crescimento da população. Mas, nesse caso, não haveria o natural aumento do consumo de produtos agrícolas decorrente do aumento da renda per capita.

A fim de determinarmos a taxa mínima de crescimento da renda no setor agrícola, partiremos de algumas hipóteses bastante simples:

1) A elasticidade-renda da demanda de produtos agrícolas de consumo interno será de 0,8.

Em outras palavras, quando a renda total aumentar de 1, a procura de alimentos e matérias-primas agrícolas aumentará de 0,8. Em face à lei de ENGEL essa é uma hipótese perfeitamente realista. À medida que cresce a renda, tende a decrescer a participação da alimentação na mesma. 2) Devido a uma política de substituição de importações, não haverá aumento das exportações de produtos agrícolas. O coeficiente

será igual a zero, permacendo constante a produção de produtos agrícolas de exportação. Essa é novamente uma hipótese perfeitamente admissível. O processo de industrialização tem sido feito em um grande número de países pelo processo de substituição de importações. É dessa forma que os países subdesenvolvidos têm em geral superado a barreira que constitui, para seu desenvolvimento, a limitação ao aumento das exportações. Por uma série de razões já amplamente discutidas, entre as quais se salientam a baixa elasticidade-renda da demanda de produtos agrícolas nos países desenvolvidos, a tendência à deterioração das relações de troca, a produção de sucedâneos artificiais nos países desenvolvidos e a constante entrada de novos países produtores no mercado internacional, tem sido extremamente difícil para os países subdesenvolvidos que, já tendo um grau mínimo de desenvolvimento (como é o caso de economia-modêlo que estamos descrevendo), iniciarem o processo de industrialização, por meio do aumento de suas exportações. A única alternativa que, lhes resta nesses casos é a de adotar uma política de substituição de importações. Tal política, embora não possa ser aplicada indefinidamente, e não obstante provoque uma série de artificialismos na economia, tem sido o único meio que resta a muitos dos países subdesenvolvidos para se desenvolverem. Dessa forma êles conseguem aumentar sua renda mesmo sem aumentar a produção de produtos agrícolas de exportação.

3) A produção de produtos agrícolas de exportação corresponde a 50% da produção agrícola total. Êsse é um dado que varia grandemente de país para país. Usamos um número redondo, inclusive, com o objetivo de simplificar nossos cálculos.

4) Os preços relativos dos produtos agrícolas permanecerão constantes. Essa é também uma hipótese simplificadora, adequada a um modêlo. Nada assegura essa constância dos preços relativos dos produtos agrícolas. No Brasil êsse problema já foi amplamente discutido, levandos os últimos estudos à conclusão de que os preços relativos da agricultura permaneceram aproximadamente constantes nos últimos 15 anos5 5 ) Cf. ANTÔNIO DELFIM NETTO, "Nota sobre Alguns Aspectos do Problema Agrário", in Temas e Problemas, Primeiro Caderno, 1964, págs. 5 a 41, São Paulo, Associação Comercial de São Paulo. .

Caso os preços relativos se modificassem, a favor ou contra o setor agrícola, teríamos de introduzir uma série de complicações desnecessárias em nosso modêlo. Isso não significa que um processo inflacionário estivesse obrigatoriamente excluído do modêlo. Teoricamente, os preços absolutos podem subir, ocorrendo portanto a inflação, sem que se modifiquem os preços relativos. Todos os preços subiriam à mesma taxa. A inflação, portanto, é perfeitamente compatível com o modêlo. Nêle usamos dólares, por se tratar de uma moeda universal e pràticamente estável. De nada adiantaria incluirmos diretamente a inflação em nosso modêlo. Seríamos obrigados em seguida a desinflacionar todos os números para obter o crescimento real da renda.

Estabelecidas essas hipóteses, podemos montar a seguinte equação, que nos dará o crescimento mínimo da renda e da renda per capita (que no caso são iguais) do setor agrícola:

Em outras palavras, já que a produção agrícola de exportação corresponde a 50% da produção agrícola total, sua taxa de crescimento mínimo somada à taxa de crescimento mínimo da produção agrícola de consumo interno e dividida por dois anos dará o crescimento mínimo de renda agrícola global.

Ora, segundo nossa hipótese número 2, não haverá crescimento da produção agrícola de exportação. Logo,

Por outro lado, segundo a hipótese número 1, vimos que a elasticidade-renda da demanda de produtos agrícolas de consumo interno será igual a 0,8. Podemos escrever, portanto:

Aplicando-se a equação (8) podemos, pois, escrever:

O crescimento necessário da produção e da renda do setor agrícola em nosso modêlo é, portanto, de 2% ao ano. Um aumento da produção abaixo dessa taxa implicaria num crescimento maior da procura em relação à oferta, que teria imediatas repercuções no sistema de preços e importaria em abastecimento deficiente da população. Sem dúvida o problema poderia ser resolvido com a importação de produtos agrícolas. Mas estamos estabelecendo como hipótese de trabalho nesse modêlo que o país seria autosuficiente no. setor de alimentação e não realizaria importações de matérias-primas agrícolas. Usaremos, portanto, como ponto de partida para o desenvolvimento de nosso modêlo a taxa de 2% para o crescimento da renda do setor agrícola.

Com uma taxa de crescimento da renda e da renda por habitante no setor agrícola de 2% a renda agrícola crescerá de $ 30.000 para $ 30.600. Por outro lado, aplicando-se a equação (2) teremos o seguinte investimento agrícola necessário:

O investimento no setor agrícola necessário será, portanto, de 4% ou seja $ 1.200.

No setor não-agrícola obteremos novamente o investimento necessário e o aumento da renda resultante por diferença. Se o aumento da renda global, necessário para um crescimento de 3% da renda per capita, é de $ 5.000, e se a renda no setor agrícola crescer apenas $ 600, a renda do setor não-agrícola deverá crescer de $4.400.

Aplicando-se novamente a equação (2), ligeiramente modificada de forma a obtermos diretamente dólares, temos o investimento necessário de:

O investimento no setor não-agrícola, portanto, será de 25% da renda, e o investimento total, no valor de $ 18.800, corresponderá a 18,8% da renda global.

Finalmente, a renda do setor não-agrícola crescerá a uma taxa de aproximadamente 6,3%, o que significa um crescimento da renda per capita nesse setor de 1,3%, em comparação com os 2% do setor agrícola.

Comparando-se essa abordagem com a primeira verificamos que está melhor fundamentada no que diz respeito ao crescimento necessário do setor agrícola, e os resultados a que chega, quanto ao crescimento da renda per capitano setor não-agrícola, é mais razoável. Ao invés de 0,85%, temos um crescimento de 1,3%. Portanto, nesse modêlo não chegamos ainda à fase em que a renda per capita do setor agrícola começa a crescer a uma taxa maior do que a do outro setor, de forma a reduzir-se a diferença de nível de renda entre ambos.

CONCLUSÕES

Está terminada a exposição do modêlo, tanto em seu aspecto estático quanto dinâmico. Pretendemos com êle representar, da forma a mais esquemática e simples possível, a estrutura econômica e o processo de desenvolvimento de economias subdesenvolvidas que já estão em condições de levar adiante um processo de industrialização. Espero que êste modelo ajude o leitor, especialmente o leigo, que não faz da Economia sua profissão, a compreender melhor o mecanismo do desenvolvimento.

Algumas conclusões podem ser inferidas do modelo anteriormente exposto. Limitar-nos-emos apenas àquelas que dizem respeito ao investimento necessário.

Primeiramente, cumpre observar que em têrmos globais a taxa de formação de capital de 18,8% é em geral muito elevada para os países subdesenvolvidos. Parece-nos arriscado estabelecer uma taxa máxima de poupança de 6%, por exemplo, como alguns pretendem, para esses países. Sem dúvida a renda por habitante muito baixa das economias pobres torna difícil uma taxa de poupança elevada. Mas, a poupança e o desenvolvimento dependem de uma série tão intrincada de fatores, entre os quais os estritamente econômicos nem sempre são os mais importantes, que não nos parece lícito afirmar que semelhante taxa de capitalização seja impossível para um país subdesenvolvido. Se não é possível, todavia, é certo que é muito difícil, constituindo-se em uma barreira fundamental ao processo de desenvolvimento.

Além do aumento de poupança, porém, existem outros meios de resolver o problema. O capital estrangeiro, especialmente os financiamentos públicos e privados e os investimentos privados no setor industrial poderão constituir-se em suplemento precioso ao processo de desenvolvimento, desde que convenientemente estimulados e controlados. Por outro lado, o investimento global necessário poderá ser reduzido se fôr conseguido um aumento da relação prcduto-capital, ou seja, um aumento de produtividade do capital. O Brasil, por exemplo, deveu grande parte de seu desenvolvimento pós-guerra a uma elevada relação produto-capital, bem superior àquela apresentada no modêlo.

Em segundo lugar, ainda em relação ao investimento necessário, é importante observar que apenas 6,4% do investimento corresponde ao investimento no setor agrícola. Em outras palavras, para assegurar a taxa de desenvolvimento per capita de 3 % para a economia como um todo, o grande esforço de investimento deve ser realizado nos demais setores não-agrícolas, especialmente, diríamos, no setor industrial e no de transportes e energia. Esta última especificação não é conclusão necessária do modêlo. Teoricamente, a maior parte do investimento adicional poderia ser realizado, por exemplo, no setor comercia l. Mas em regra é isso que acontece.

Por que êsse investimento tão pequeno no setor agrícola em comparação com o necessário no setor não-agrícola? A diferença é gritante especialmente em têrmos per capita. Enquanto, no primeiro setor, teremos um investimento por habitante de apenas 4 dólares, no segundo o investimento necessário será de 88 dólares. Êsse fenômeno, todavia, pode ser explicado em função da análise anteriormente apresentada do modêlo.

• O processo de transferência da população do setor agrícola para o não-agrícola. Trata-se fundamentalmente de um processo de urbanização. O pessoal transferido deve ser equipado convenientemente, tornando-se necessário para isso grandes investimentos.

• Embora a maioria da população viva no setor agrícola, apenas 30% da renda deriva dêsse setor. Seria, então, de se esperar um investimento menor nesse setor.

• A relação produto-capital no setor é muito mais elevada do que no setor não-agrícola. Em nosso modêlo usamos respectivamente as relações 0,5 e 0,25. A prcdutividadde do investimento agrícola seria pois o dôbro da verificada no outro setor. Poder-se-ia perguntar: por que não concentrar todo o investimento no setor agrícola que tem essa relação produto-capital mais alta?

• Porque os investimentos no setor não-agrícola devem ser muito maiores. Existe uma limitação às possibilidades de exportação de produtos agrícolas por parte dos países subdesenvolvidos, sobre a qual já nos referimos anteriormente. Não havendo em geral possibilidade de aumento significativo das exportações de produtos agrícolas, as oportunidades de investimentos nesse setor ficam restritas às possibilidades do mercado interno.

• Teríamos no mercado interno uma baixa elasticidaderenda (em nosso modelo 0,8) da demanda de produtos agrícolas limitando novamente as oportunidades e necessidades de investimento no setor.

Finalmente, podemos verificar através do modêlo que apresentamos que, apesar do grande investimento realizado no setor não-agrícola, a taxa de crescimento per capitanesse setor é menor, 1,3%, do que a do setor agrícola, 2 %. A taxa de crescimento do produto no setor não-agrícola é mais de três vêzes maior (6,3% contra 2%) do que do setor agrícola, mas como neste não há crescimento da população, cujo incremento marginal é todo dirigido para o setor não-agrícola, em têrmos per capita a situação inverte-se. Conclui-se, portanto, da necessidade de os governos dos países subdesenvolviddos, em sua política econômica, dedicarem uma especial atenção aos investimentos industriais. No setor agrícola, onde em geral existe uma ampla faixa de desemprêgo disfarçado, bastaria um investimento relativamente pequeno para que seja liberada a mão-de-obra necessária para o setor não-agrícola, e para que o consumo interno de alimento fôsse atendido, e para que a renda per capita da população dêsse setcr crescesse de 2 %. Já no setor não-agrícola, o grande investimento realizado não produziria um aumento da renda per capita maior do que 1,3%, devido à pressão para baixo sôbre êsse crescimento médio, causada pela transferência para outro setor de todo o crescimento vegetativo da população do setor agrícola, cuja renda per capita é três vêzes e meia menor do que a do setor não-agrícola. Ora, a população do setor não-agrícola estaria sempre pressionando pará que sua renda por habitante crescesse satisfatôriamente, e o não atendimento dessa exigência poderia transformar-se em um sério obstáculo ao desenvolvimento.

Em conclusão, por todos êsses fatores, nosso modêlo nos leva ã dedução já tantas vêzes verificada, que a industrialização é a via por excelência de desenvolvimento para os países que já criaram uma base agrícola que lhes permita participar do comércio internacional e importar os equipamentos necessários ao "arranque" inicial.

  • 4) Cf. PLADI - Plano de Desenvolvimento Integrado, 1964. pág. 41, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado.
  • 1
    ) Cf. HANS W. SINGER, "O Mecanismo do Desenvolvimento Econômico", in
    Revista Brasileira de Economia, Ano 7, n.º 1, março de 1963, págs. 7 a 30, Rio de Janeiro, GB, Fundação Getúlio Vargas.
  • 2
    ) Idem, ibitem, pág. 10
  • 3
    )
    Idem, ibidem, pág. 11.
  • 4
    ) Cf. PLADI - Plano de Desenvolvimento Integrado, 1964. pág. 41, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado.
  • 5
    ) Cf. ANTÔNIO DELFIM NETTO, "Nota sobre Alguns Aspectos do Problema Agrário", in
    Temas e Problemas, Primeiro Caderno, 1964, págs. 5 a 41, São Paulo, Associação Comercial de São Paulo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jul 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1967
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