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Considerações sôbre a política salarial no Brasil

ARTIGOS

Considerações sôbre a política salarial no Brasil

Heinrich Rattner

Professor Contratado de Sociologia da Escola de Administração de Emprêsas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas

"Os cidadãos do País devem sentir com tal fôrça que pertencem à Nação, que estão dispostos a participar com boa vontade dos sacrifícios comuns, quando, mediante o adequado processo político, êstes são considerados necessários..." - GUNNAR MYRDAL

INTRODUÇÃO

Aproximando-se o fim do quarto ano em que vigora a atual política salarial do govêrno brasileiro, um balanço e uma avaliação crítica se impõem em relação às premissas, práticas, resultados e conseqüências dessa política.

Repelida e atacada pelos sindicatos e pelos operários, elogiada e apoiada por organizações patronais, a política salarial do govêrno tornou-se assunto diário da imprensa escrita e falada, e objeto de comentários daqueles diretamente envolvidos, ou seja, operários, empregados, funcionários públicos e, sobretudo, donas de casa.1 1 ) Vide O Estado de São Paulo de 10-10-1967, 15-10-1967, 31-10-1967, 8-11-1967, 16-11-1967, etc.

Anualmente, ao aproximar-se a época dos "aumentos" salariais - entre outubro e dezembro, conforme a categoria profissional - cresce a efervescência nos meios trabalhistas, discutem-se os diferentes índices do "Custo de Vida", enquanto são iniciadas as barganhas em redor do porcentual reivindicado de reajustamento. Oficialmente, os representantes dos empregados e dos empregadores se reúnem a fim de discutir e fixar a taxa de reajustamento.

Não lhes sendo possível chegar a um acôrdo, e isto tem acontecido, em fins de 1967, com quase tôdas as grandes categorias profissionais, metalúrgicos, têxteis, bancários, etc., o caso é encaminhado sob forma de dissídio coletivo à Justiça do Trabalho, à qual cabe, teoricamente, fixar a taxa de reajustamento. Na realidade, todavia, os índices de reajustamento são determinados de antemão e impôstos com rigor pela política do govêrno federal, deixando pouca ou nenhuma margem à barganha e a acôrdos livremente celebrados, entre patrões e empregados.

Êsse procedimento é melhor ilustrado pela análise dos acontecimentos envolvendo a questão salarial, em São Paulo e na Guanabara, maiores centros industriais do País, conforme relatado pela imprensa, em outubro e novembro de 1967.

Em meados de outubro de 1967, os metalúrgicos, cujo sindicato representa, segundo a estimativa de seus dirigentes, 220.000 associados, pleiteou um reajuste salarial de 56,7%, reconhecidamente fora da realidade, ou seja, da política salarial do govêrno. Justificaram os dirigentes o quantum exigido com o seguinte raciocínio: o aumento do custo de vida, de um ano para cá, mais a diferença entre o resíduo inflacionário do ano passado e o dêste ano, mais metade da taxa do resíduo inflacionário previsto de 1967/8 e, finalmente, a taxa de elevação de produtividade, estimada em 2,0%, chegando assim ao total de 56,7%.

Como era de se prever, essa taxa não poderia ser obtida através de um acôrdo com os empregadores, e tão pouco por meio de um pronunciamento da Justiça do Trabalho, por contrariar frontalmente a política salarial oficial.

Reivindicações semelhantes foram levantadas pelos sindicatos dos trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem, representando aproximadamente 60.000 têxteis. O sindicato operário reclama uma "atualização dos salários, com pagamento das diferenças referentes aos anos 1965 e 1966, para repor o poder aquisitivo da categoria profissional, sendo essas diferenças, respectivamente de 16,7% e de 24,4%, pois a alta do custo de vida foi, em 1965, de 61,7% e, em 1966, de 54,4%, enquanto o reajustamento dos salários foi inferior a êsses índices oficiais"...2 2 ) "Têxteis pedem Reajustamento". In O Estado de São Paulo, 10-10-1967.

Uma análise, mesmo superficial, das diferentes ocorrências e das respectivas decisões proferidas pela Justiça do Trabalho, mostra certa indecisão e até confusão, por parte dos patrões e dos próprios organismos oficiais.

Assim, no caso dos bancários, enquanto os banqueiros tinham concordado com um reajuste de 30,0%, o Conselho Nacional de Política Salarial do Ministério do Trabalho e Previdência Social determinou a redução dessa taxa a 19,0%, que seria o nível máximo permitido pelo govêrno. Entretanto, o procurador regional do Trabalho recorreu ao Tribunal Superior do Trabalho da decisão do TRT, que tinha concedido aos bancários paulistas um aumento de 30,0%, advogando uma redução ao nível de 24,0%, que corresponderia ao índice oficial.

No que concerne aos metalúrgicos paulistanos, o TRT fixara, em começos de novembro de 1967, um aumento de 26,0%, rejeitado por unanimidade, em assembléia geral dos sindicalistas.

É interessante notar as divergências surgidas nas decisões individuais dos juízes trabalhistas, no julgamento do dissídio coletivo: três juízes votaram, dando aos trabalhadores 26,0% ; dois fixaram a taxa em 25,0% ; um dêles decidiu por 21,2%; e outro, finalmente, votou a favor de um reajustamento de 56,0%.3 3 ) O Estado de São Paulo, 8-11-1967.

Tendo o govêrno federal, todavia, fixado o aumento dos vencimentos de seus funcionários civis e militares em 20,0% sôbre os níveis do ano passado (1966), logo seguido pelas diferentes administrações estaduais e municipais, não pode haver dúvida quanto ao desfêcho da campanha salarial das diversas categorias profissionais, pois os reajustes de salários, de acôrdo com a política oficial, têm sido fixados sistemàticamente em níveis inferiores ao aumento do custo de vida.

Não pretendemos aqui abordar os aspectos éticos do problema, tampouco o problema será analisado sob o ângulo da Justiça Social - que geralmente muda na medida em que mudam os detentores do poder trataremos de analisar os fundamentos teóricos dessa política, suas premissas e objetivos, tais como aparecem constantemente nas declarações oficiais das autoridades, desde o Ministro do Trabalho e da Previdência Social, até os diferentes porta-vozes dos ministérios da Fazenda ou do Planejamento. Decorridos mais de três anos desde a implantação da nova política salarial, torna-se imperiosa uma avaliação crítica de seus resultados, ou seja, de sua eficácia como instrumento de inibição e de contrôle do processo inflacionário.

Nas condições específicas da conjuntura brasileira, todavia, o estancamento da inflação não pode ser considerado como um fim em si; o contrôle do processo inflacionário é postulado na política econômica oficial como condição sine qua non da retomada do processo de desenvolvimento econômico, isto é, do crescimento constante do Produto Nacional, do aumento correspondente de oportunidades de emprêgo, da expansão do comércio interno e externo, etc., o que deve resultar, a prazo relativamente curto, em elevação geral do nível de vida da população brasileira.

Analisando o comportamento e a evolução dos salários, do custo de vida, da taxa cambial e de outros fatôres determinantes da economia, tentaremos responder às seguintes indagações:

• Os assalariados conseguiram, através da nova política salarial manter a sua participação no Produto Nacional, conforme o proclama como uma de suas metas o Plano de Ação Econômica do govêrno (PAEG) ?

• Até que ponto a política salarial adotada contribuiu para a redução da taxa inflacionária?

• As medidas anti-inflacionárias do govêrno, expressas pela política salarial, levaram à ampliação do setor industrial através de novos investimentos que criaram novas oportunidades de emprêgo?

• Finalmente, à luz das respostas às indagações precedentes, teria sido justificado o sacrifício exigido e impôsto a milhões de brasileiros, das classes menos favorecidas, em nome de uma política que teria beneficiado a tôda a Nação?

Tentaremos, embora dentro dos limites dêste trabalho, responder a essas indagações, analisando sucessivamente o enunciado da política salarial do govêrno, expresso pela Lei n.º 4725 e pelos Decretos n.º 15 e 17, e suas conseqüências sôbre o nível de remuneração do trabalho, bem como sôbre a participação dos trabalhadores na distribuição da Renda Nacional e, finalmente, seus efeitos sôbre a economia, sob o ângulo da expansão do mercado nacional e a conseqüente criação de novos empregos.

É importante examinarmos, também - uma vez admitida a necessidade da "acumulação primitiva" como forma de capitalização rápida, nos países em vias de desenvolvimento - as eventuais alternativas a essa política.

INFLAÇÃO E POLÍTICA SALARIAL

Nos últimos anos, antes das mudanças políticas de 1964, sob o impacto de ondas inflacionárias contínuas, os salários foram revistos, pràticamente, de ano em ano, de acôrdo com o aumento do custo de vida. Assim, as categorias profissionais mais numerosas e, geralmente, melhor organizadas, conseguiram a recomposição, embora por tempo muito curto, de seu salário real anterior e, às vêzes, obtendo um reajustamento superior à própria taxa de inflação, melhoraram um pouco seu poder aquisitivo.

Cumpre observar, por outro lado, que mesmo durante a vigência dessa política "liberal" de reajustamentos salariais, a participação do Trabalho no Produto Nacional Bruto decresceu de 63,3% em 1947, para 58,3% em 1960.4 4 ) Fonte: Separata da Revista. Brasileira de Economia, citado em Visão de 21-9-1967, pág. 25.

Em outras palavras, o salário real do trabalhador brasileiro foi fixado e mantido em níveis extremamente baixos, mesmo durante os anos de rápida expansão industrial, isto é, apesar de um aumento do salário real em têrmos absolutos, houve um decréscimo devido à diminuição da participação percentual de remuneração do trabalho.

Entre 1949 e 1959, enquanto a produção física (volume de produção) tem crescido em mais de 90,0%, os salários reais aumentaram em apenas 26,0%, diminuindo assim a participação da mão-de-obra nos custos das emprêsas industriais a uma parcela raramente superior a 10,0% do custo global da produção.

Conforme o Anuário de Estatística do IBGE, no ano de 1962, o total de salários pagos aos operários na Indústria de Transformação no Brasil correspondia a 8,3% do Valor da Produção, e mesmo incluindo os vencimentos e ordenados dos empregados de escritório e dos quadros superiores de administração essa parcela se eleva a 12,6% do Valor Global da Produção.5 5 ) Registro Industrial de 1962, Anuário Estatístico do Brasil, IBGE, 1965.

De acôrdo com êsses dados, parece sumamente parcial e incorreta a afirmação de que o "aumento" dos salários foi o fator determinante do processo inflacionário. Todavia, parece ter sido êste o raciocínio dos responsáveis pela nova política salarial, a partir de 1964, ao formularem seus critérios e procedimentos, conforme explicita a Lei 4725.

É suficientemente conhecido o teor da Lei que determina, em consonância com os propósitos do govêrno de reduzir a taxa de inflação, até sua eliminação completa, o reajustamento dos salários, com base no salário médio real dos últimos vinte e quatro meses. Essa fórmula encontraria justificação somente na medida em que também os preços dos bens e serviços fôssem reconduzidos ao seu nível médio dos últimos vinte e quatro meses.

Surgiu, contudo, mais uma dificuldade no raciocínio aritmético dos legisladores, devido à continuação do processo inflacionário, muito embora e reconhecidamente, com índices inferiores aos do ano 1964. A fim de manter o salário médio real, sugeriu-se, então, a inclusão à fórmula do chamado "resíduo inflacionário", ou seja, 50,0% do aumento de custo de vida, previsto para o ano seguinte ao reajustamento, seria acrescentado ao salário médio real recomposto. Ficou patente, porém, - e reconhecido por todos que com seriedade e honestidade seguem a evolução da economia nacional - que as taxas admitidas e fixadas pelo govêrno como "resíduo inflacionário" o foram em níveis irreais, ou seja, muito abaixo da taxa de desvalorização real da moeda nacional, prejudicando assim novamente os assalariados.

A título de exemplo apenas, citamos o resíduo inflacionário de 10,0%, previsto pelo govêrno para todo o ano de 1966. Entretanto, já nos primeiros três meses daquele ano, o aumento de custo de vida tinha superado largamente os 10,0% previstos para o ano todo, e até o fim do ano de 1966, ultrapassara os 40,0% (a saber, 41,3% na Guanabara e 46,6% em São Paulo, Capital), sem que se tivesse tentado corrigir o que constituiu uma transgressão da própria Lei por um lado, e uma redução brutal do poder aquisitivo da população trabalhadora por outro.

De fato, comparando-se os índices oficiais sôbre o aumento do custo de vida com os dos reajustes salariais, não se pode fugir da conclusão de que houve uma queda planejada e violenta das remunerações de amplas camadas da população urbana, operários, empregados e funcionários públicos, nos últimos três anos, que deixou seu poder aquisitivo num nível pouco superior a 50,0% do que era nos anos imediatamente anteriores a 1964. (Vide Quadro 1.)


Está previsto, à base dos aumentos concedidos às diversas categorias profissionais, bem como dos reajustamentos prometidos aos funcionários públicos federais, estaduais e municipais, a partir de março de 1968, e sobretudo em função dos aumentos ocorridos nos impostos, no preço da gasolina e da desvalorização da taxa cambial, todos com efeitos imediatos sôbre o custo de vida, um nôvo reajustamento do Salário Mínimo de 20,0%.

Considerando os níveis de preços e do salário mínimo, em março de 1964, como índice 100, em fins de 1967 o primeiro terá alcançado 570, aproximadamente, contra apenas 250 do segundo, e mesmo antecipando o reajuste de 20,0%, o índice do salário mínimo não ultrapassará 300, pelo seguinte mecanismo: ao aumento do custo de vida de mais de 90,0% em 1964, correspondeu um reajustamento do salário mínimo regional, em fevereiro de 1965 na Guanabara e em São Paulo, de 57,0%; enquanto as taxas médias de reajustamento das principais categorias profissionais foram fixadas em redor de 45,0%.

Em 1965, o custo de vida subiu mais de 65,0%, e, novamente, os reajustes em começos de 1966, não ultrapassaram os 30,0% sôbre os níveis anteriores. Da mesma maneira, em 1966, enquanto a elevação dos preços ultrapassou os 40,0%, o aumento concedido em março do ano seguinte foi de 25,0% e, finalmente, neste ano de 1967, em que o custo de vida deve ter subido ao redor de 30,0%, o govêrno federal estabeleceu a taxa de reajuste para seus funcionários civis e militares, em 20,0%, sendo que essa porcentagem será provàvelmente adotada também na hora de aumentar o salário mínimo.

Diante dêsses dados dificilmente contestáveis, impõe-se a conclusão de que muito embora a política de contenção da inflação do govêrno tivesse alcançado relativo êxito no setor da compressão dos salários da população trabalhadora, o sucesso não foi o mesmo quando analisados de perto o comportamento de outros fatôres inflacionários da economia brasileira, tais como: as desvalorizações cambiais, os deficits recorrentes e cada vez maiores do Tesouro Nacional e, sobretudo, o comportamento do setor privado da economia, aumentando constantemente seus preços, apesar das tentativas tímidas do poder público de controlar os preços dos produtos industriais (CONEP) e os dos produtos agrícolas (SUNAB).

O próprio govêrno, tendo fixado as taxas de correção monetária das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional em níveis superiores às dos reajustamentos salariais concedidos nos últimos anos, favoreceu ostensivamente a uma parcela da população, aquêles que "podem investir". Fenômeno idêntico ocorre no setor da política cambial, onde as desvalorizações periódicas da moeda nacional geralmente beneficiam, sob forma de "restituição da paridade anterior entre a moeda nacional e estrangeira", um pequeno mas poderoso grupo econômico ligado à exportação.

Comparamos novamente, a título de ilustração, o aumento do custo de vida com a correção monetária das ORTN e, em segundo lugar, com as taxas de câmbio estabelecidas, nas desvalorizações sucessivas da moeda nacional:

Deduzimos das cifras apresentadas neste quadro e no anterior que, face a um aumento do custo de vida de aproximadamente 470%, de janeiro de 1964 até dezembro de 1967, foram concedidos aumentos, ou melhor, reajustamentos salariais, no total de 200%, mesmo incluindo-se os 20% previstos para o início de 1968. No mesmo período, os exportadores obtiveram reajustes da taxa cambial ao redor de 433% e os investidores, que emprestaram dinheiro ao govêrno, usufruíram de uma correção monetária de 180% no período de apenas três anos.

Enquanto a classe trabalhadora, ou seja, os que vivem dos rendimentos de seu trabalho, obtiveram cumulativamente reajustes no valor de 150%, os investidores em ORTN conseguiram, através da correção monetária, durante o mesmo período de dezembro de 1964 até dezembro de 1967, aproximadamente 180%, além de uma série de vantagens em relação ao Impôsto de Renda, podendo descontar até 30% dos investimentos realizados da Renda Bruta, ou ainda, investir até 50% do impôsto devido em empreendimentos no Nordeste e Norte do País; mais 5% (pessoa jurídica) ou 10% (pessoa física) na aquisição de ações de emprêsas privadas (Decreto n.º 157), etc.

Os paladinos e defensores dessa política de transferência de parcelas substanciais da Renda Nacional de um segmento da população para outro, numèricamente reduzido, argumentam que esta seria a única maneira de superar as pressões inflacionárias e, assim, de reconduzir o País à estabilidade econômica e, posteriormente, à retomada do processo de desenvolvimento.

Antes de examinar as implicações e conseqüências da política salarial atual para o processo de desenvolvimento, devemos, todavia, analisar um outro adendo à fórmula adotada para os reajustes salariais e que se refere ao aumento da produtividade.

AUMENTO DE PRODUTIVIDADE E REAJUSTES SALARIAIS

De acôrdo com a Lei, deve ser incorporado à taxa de reajustamento salarial, calculada pela média aritmética do salário real dos últimos vinte e quatro meses, mais o resíduo inflacionário, uma determinada porcentagem a ser fixada pelo Conselho Nacional de Economia (órgão posteriormente extinto) e que representaria o aumento na participação dos assalariados no Produto Nacional Bruto. Essa taxa que foi fixada, após muitas discussões, em 2,0% para o ano de 1966, corresponderia à elevação da "produtividade nacional".

O processo e os critérios adotados para seu cálculo, entretanto, ficaram longe de estabelecer um procedimento claro e inequívoco para sua aplicação futura, em que pese a importância dêsse índice para a avaliação do progresso econômico do país.

Em primeiro lugar, o acréscimo de 2,0%, face a uma queda do poder aquisitivo de 10% ou 15% não é compensatório.

Em segundo lugar, entendendo-se a taxa de produtividade como resultante de um crescimento global da economia, torna-se necessário indagar sôbre o comportamento setorial da mesma. Se em um determinado ano a agricultura se beneficiar de condições climáticas excepcionais, elevando substancialmente a participação dêsse setor no PBN, o acréscimo seria creditado também ao setor industrial, eventualmente sofrendo de uma recessão? E em casos contrários, havendo colheitas reduzidas e, portanto, aumentos nos preços dos produtos alimentares, os empregados na indústria e no comércio, ou melhor, a população trabalhadora urbana sofreria além dos efeitos da oferta reduzida, também uma redução em seus salários?

Ademais, num país de dimensões continentais, como o é o Brasil que, em seu estado atual de desenvolvimento econômico e social, está longe de constituir um mercado nacional integrado, a adoção de uma taxa de produtividade nacional para fins de reajustes salariais é uma medida completamente irreal e mistificadora. As discrepâncias regionais ocultas sob forma de uma taxa de produtividade nacional, longe de diminuir e assim aproximar os níveis de vida e de produtividade das diversas regiões, só tenderiam a perpetuar-se, em prejuízo, evidentemente, das partes mais pobres e atrasadas do território nacional. Porque se é verdade que, para desenvolver-se o Brasil como um todo, é necessário aumentar a produtividade de sua economia, tanto mais isto se aplica às regiões subdesenvolvidas do país.

Finalmente, qualquer observador familiarizado com a estrutura da nossa economia sabe distinguir entre os setores mais dinâmicos, altamente capitalizados, e empregando relativamente pouca mão-de-obra, e aquêles setores que primam por uma organização e métodos administrativos arcaicos, equipamentos obsoletos e, conseqüentemente, apresentam elevados custos de produção, enquanto ocupam, todavia, grandes contingentes de mão-de-obra não qualificada.

Querer computar as taxas de produtividade dêsses dois tipos de emprêsa, sem considerar as condições gerais e específicas de cada setor e ramo industrial, simplesmente não demonstra seriedade de propósitos.

Não podemos, contudo, subestimar as dificuldades para o cálculo de taxas de aumento de produtividade, nas condições econômicas e políticas atuais, seja para as emprêsas, para os ramos industriais ou para as atividades setoriais da economia nacional. Isto porque a maneira tècnicamente recomendável e viável para levantarem-se objetivamente os resultados de uma emprêsa, durante um determinado período, implicaria na participação ativa dos empregados ou de seus representantes sindicais nos quadros administrativos e na elaboração das diretrizes, econômicas, financeiras e comerciais da emprêsa. Pois não são raros os casos em que firmas conseguem elevar sua "produtividade" (Volume ou Valor de Produção/por número de homem/horas de trabalho), devido a uma mecanização excessiva da produção, facilitada por favores cambiais na importação, mas cujos resultados não beneficiam em absoluto a população, afligida pelo desemprêgo tecnológico e pagando, ao mesmo tempo, preços mais elevados por mercadorias produzidas com custos menores.

Portanto, para que um aumento de produtividade traga efetivamente benefícios para a economia e para a população, é preciso que pelo menos uma parte dêle seja transferida aos consumidores sob forma de preços reduzidos, ou para os trabalhadores sob a forma de salários reais mais elevados.

No que tange à situação brasileira, tôdas as evidências são contrárias às hipóteses acima. Entre 1949 e 1959, enquanto a produção física por trabalhador cresceu em mais de 90%, os salários reais aumentaram em apenas 26%. Em outras palavras, a participação da mão-de-obra nos custos industriais decresceu de modo significativo, conforme se depreende também do Quadro 3.


A um aumento médio de 59% da população trabalhadora, nos quatro municípios, correspondeu uma elevação média no Valor de Transformação Industrial de 201% que, por sua vez, não foi compensada por uma elevação proporcional, ou mesmo parcial, do poder aquisitivo dos assalariados. Por outro lado, os preços dos bens de consumo alimentícios e manufaturados continuaram a subir, acompanhando ou, freqüentemente, liderando o processo inflacionário, conforme ilustra o gráfico comparativo da evolução do custo de vida e dos salários de 1955 a 1967.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política salarial dos governos pós-revolucionários se manifesta na concessão de reajustamentos salariais sistemàticamente inferiores ao aumento real do custo de vida, sob a alegação de que êste seria o único caminho e meio eficaz para deter a inflação e devolver a estabilidade à moeda e à economia nacionais. Consideram as autoridades, portanto, os reajustamentos salariais como causa e não como efeito da inflação, esquecendo-se ou ignorando os verdadeiros focos inflacionários, tais como: os deficits crescentes do próprio govêrno, a queda de tendência secular dos preços de nossos produtos de exportação, que induz à desvalorização cambial e, sobretudo, a estrutura inadequada do mercado nacional, que obriga as emprêsas a trabalhar com capacidade ociosa.

O resultado inegável dessa política foi diminuir a participação dos assalariados na distribuição da Renda Nacional, através da transferência de uma parcela dos salários para as classes ou camadas capazes de realizar poupanças e, portanto, de investir. Uma política de investimentos maciços por parte do setor empresarial privado e público que contribuísse para ampliar o nível de emprêgo geral poderia justificar os sacrifícios impostos à população trabalhadora em nome do bem-estar geral. A indústria brasileira, entretanto, não criou os empregos que dela se esperavam e não foi capaz de absorver as contingentes de mão-de-obra que ingressaram no mercado de trabalho urbano pelo crescimento demográfico ou pelas migrações internas, do campo para as cidades. Entre 1950 e 1960, a participação da mão-de-obra industrial no total da população ativa não se modificou pràticamente (baixou de 9,8 para 9,1%), enquanto o Produto Industrial elevou sua participação no PNB de 20,4% para 28,2%.6 6 ) Fonte dos dados brutos: Contas Nacionais. In Revista Brasileira de Economia, Fundação Getúlio Vargas.

Além disso, a concentração de recursos, através de lucros elevados, nas mãos de uma camada restrita da população "capaz de investir", não resultou em investimentos produtivos proporcionais na Indústria ou na Agricultura. Investimentos especulativos, consumo ostentatório ou entesouramento improdutivo consumiram boa parte dos recursos canalizados para os que "investem".

Sob êste prisma, a compressão paulatina dos salários reais da classe trabalhadora não somente é injustificável, mas se mostra também, ao contrário das afirmações oficiais, prejudicial aos interêsses da Nação que aspira ao desenvolvimento econômico e social. As condições elementares para a "decolagem" desenvolvimentista, tais como a criação de novos empregos, aproveitando em primeira linha a abundância de mão-de-obra, enquanto se estabelecem critérios judiciosos para o emprêgo do fator escasso - capital; a expansão do mercado interno através da distribuição mais igualitária da Renda Nacional; a integração nacional, dotando o campo com estruturas econômicas e sociais adequadas à uma sociedade moderna, tôdas elas implicam e exigem uma mudança radical na política salarial do poder público. Persistindo a orientação atual, é inevitável o aumento do desemprêgo bem como a capacidade ociosa das emprêsas, que serão obrigadas a aumentar seus preços, devido à elevação do custo unitário. Nos últimos tempos, fontes oficiais falaram repetidamente sôbre a "inflação dos custos" que teria se instalado em lugar da "inflação de demanda" no Brasil. Na realidade, diante da contração do mercado consumidor, já em si restrito devido à estrutura econômica do País, em que 40 a 50% da população não participa da economia de mercado e vive em nível de subsistência apenas, não sobra às emprêsas outra alternativa do que descarregar os custos crescentes sôbre os preços dos produtos, estimulando assim, novamente, a espiral inflacionária.

A política salarial do govêrno atual e a dos anteriores deve ser inserida no contexto das respectivas políticas globais de desenvolvimento, cada uma das quais reflete determinada ideologia e filosofia política.

Constitui um truísmo a afirmação de que desenvolvimento não se faz sem "acumulação primitiva", ou seja, anos de poupança forçada, às custas do consumo da população ou parte dela, a fim de criar os recursos em capital necessários para a implantação de uma infra-estrutura econômica sólida. Cada país e cada regime, que pretende ingressar no caminho da industrialização e de desenvolvimento, deve fazer a opção e tomar decisões sôbre quantos sacrifícios e de quem êstes devem ser exigidos, seja sob forma de impostos ou de baixos salários, expropriações sem indenizações, etc.

A História dos últimos dois séculos mostra que o limite para a acumulação primitiva, quando imposta às custas da classe operária, é dado pela necessidade de sobrevivência dos trabalhadores e seus familiares, futura reserva de mão-de-obra do sistema, por um lado e pela revolta dos mesmos, espontânea no início e organizada sob forma de reivindicações salariais, sociais e políticas, em seguida, liderados por sindicatos ou por partidos políticos operários. Essa luta da classe operária, visando a uma participação crescente, ou pelo menos proporcional ao aumento de sua produtividade, no Produto Nacional, constitui paradoxalmente um dos fatôres dinâmicos do sistema de produção capitalista, impulsionando-o constantemente ao aperfeiçoamento e ao progresso tecnológico, a fim de contrabalançar a pressão dos trabalhadores. Êstes, quanto melhor organizados e doutrinados por suas lideranças políticas e sindicais, mais autonomia e maior fôrça de barganha alcançam, inclusive no campo das reivindicações sociais e políticas. Como afirma CELSO FURTADO "[...] se a pressão no sentido de elevação dos salários reais não encontrasse barreira de qualquer ordem, seria de esperar que a renda social tendesse a redistribuir-se em favor dos assalariados, o que acarretaria redução na taxa de poupança da coletividade, declínio na taxa de investimentos e, por fim, estagnação econômica. Tal não ocorreu, porque a classe capitalista tem em suas mãos um poderoso instrumento de contra-ataque, que é a orientação e o contrôle do progresso tecnológico [...]"7 7 ) FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, pág. 6.

Nos países capitalistas mais avançados, a classe capitalista conseguiu compensar a escassez relativa da fôrça de trabalho, resistindo também às lutas reivindicatórias do operariado, através do desenvolvimento tecnológico no sentido de multiplicar mecanismos poupadores de mão-deobra, ou substituidores de trabalho por capital, tendo resultado dessa dinâmica a elevação gradual do nível de vida das populações e na expansão do sistema econômico global.

O processo de industrialização brasileira, iniciado e mantido até o presente sob forma de "substituição das importações", apresenta uma dinâmica e características qualitativas diferentes: o alto nível tecnológico, importado dos países mais avançados, que possibilitou elevada produtividade às emprêsas, dispensando ao mesmo tempo grandes quantidades de mão-de-obra; a capacidade de absorção extremamente limitada do mercado nacional para os produtos da indústria nascente, devido à estrutura predominantemente agrária, com apreciável parcela da popu>lação vivendo em nível de subsistência; o crescimento excessivamente rápido da população em geral, são apenas alguns dos fatôres que alteraram fundamentalmente as condições e a dinâmica do processo de industrialização.

A concentração da população nas áreas urbanas, criando uma imensa reserva de mão-de-obra não qualificada, pressiona tremendamente os níveis salariais, sobretudo em face da exigüidade da demanda por parte das indústrias trabalhando com alta densidade de capital. É esta, sem dúvida, uma das causas pela não-emergência de uma fôrça de trabalho organizada, capaz de barganhar e lutar, a fim de assegurar para si uma parcela crescente do Produto Nacional.

Por outro lado, as pressões, aspirações e reivindicações da massa urbana amorfa e heterogênea têm sido canalizadas e aproveitadas por indivíduos ou grupos políticos populistas, demagogos antes e depois de sua ascensão ao poder. Em conseqüência, o movimento sindical operário, embora obtivesse como dádiva uma série de vantagens e benefícios, inclusive a própria Legislação Trabalhista, os Institutos de Previdência Social, férias anuais pagas, etc., nunca conseguiu livrar-se da tutela do Estado, do poder público que, atravessando todos os regimes e períodos presidenciais, continua controlando, intervindo e reinando de modo absoluto no seio dos sindicatos operários e dos empregados.

Um movimento sindical livre e independente é um dos requisitos para a dinâmica do desenvolvimento capitalista, enquanto sua tutela pelo poder público, com tôdas as vantagens por êle concedidas, não permite aos assalariados alcançar o nível de vida condizente com os padrões, exigências e aspirações da civilização industrial. Em períodos de crise cíclica ou estrutural do sistema, a subserviência dos sindicatos ao poder do Estado permite uma compressão violenta dos salários reais, com reflexos igualmente violentos sôbre o nível de vida da população e, a curto prazo, sôbre o nível das atividades econômicas em geral.

Longe de resolver ou, pelo menos, atenuar os problemas, essa política de compressão salarial tende somente a agravar as contradições, levando a economia e a sociedade a um verdadeiro impasse.

A redução drástica do poder aquisitivo da população urbana empregada, principalmente consumidora dos bens industriais, leva as emprêsas, premidas entre a exigüidade dos mercados e a concorrência, a uma racionalização e conseqüente demissão em massa dos empregados que, na inexistência de novas oportunidades, vão engrossar o exército de reservas da mão-de-obra, cuja função principal é pressionar ainda mais os níveis salariais, no sentido de baixa, o que, por sua vez, resulta em níveis de consumo baixos. Em conseqüência, longe de estimular o consumo e assim reativar o processo de expansão industrial, essa política leva inexoràvelmente à estagnação e à crise econômica latente. Numa conjuntura semelhante, apesar dos salários reduzidos, não há atrativos para novos investimentos, seja porque as emprêsas existentes trabalham com capacidade ociosa, ou seja porque as perspectivas, tanto econômicas quanto políticas, em relação aos novos empreendimentos são consideradas inseguras e de grande risco para os investidores nacionais e estrangeiros.

Finalmente, a própria racionalização e o aperfeiçoamento técnico das emprêsas é incompatível com uma mão-deobra de baixo nível educacional e cultural. Os baixos padrões de consumo hão de refletir-se forçosamente no estado de nutrição, saúde, instrução e cultura dos empregados na indústria, comércio e administração pública, cujo rendimento ou "produtividade" no trabalho tenderá a decrescer, obstruindo assim o processo de desenvolvimento.

Não se pretende com isto afirmar que a única fôrça motivadora para os trabalhadores sejam os aumentos salariais e, tampouco queremos negar a importância do esfôrço coletivo, no sentido de realizar poupanças necessárias aos investimentos no caminho do desenvolvimento econômico e social.

Apenas convém lembrar as palavras de MYRDAL, de que, ao aplicar medidas de coerção e ao impor sacrifícios a uma parcela ou a tôda a população, "[... ] os cidadãos devem sentir que pertencem à Nação e que estão dispostos a participar dos sacrifícios comuns [...]." A consciência da necessidade dêsses sacrifícios, e a disposição de renunciar a benefícios econômicos imediatos, só pode ser resultado de uma participação ativa e intensa de tôda a população no processo político, sem a qual, nas palavras do "Cidadão de Genebra", a fôrça do govêrno nunca se transforma em Direito e a sua Justiça nunca adquire fôrça moral suficiente para se impor ao consenso da coletividade.

  • 1) Vide O Estado de São Paulo de 10-10-1967, 15-10-1967, 31-10-1967, 8-11-1967, 16-11-1967,
  • 3) O Estado de São Paulo, 8-11-1967.
  • 4
    4) Fonte: Separata da Revista. Brasileira de Economia, citado em Visão de 21-9-1967, pág. 25.
  • 5) Registro Industrial de 1962, Anuário Estatístico do Brasil, IBGE, 1965.
  • 7) FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, pág. 6.
  • 1
    ) Vide
    O Estado de São Paulo de 10-10-1967, 15-10-1967, 31-10-1967, 8-11-1967, 16-11-1967, etc.
  • 2
    ) "Têxteis pedem Reajustamento". In
    O Estado de São Paulo, 10-10-1967.
  • 3
    )
    O Estado de São Paulo, 8-11-1967.
  • 4
    ) Fonte: Separata da Revista.
    Brasileira de Economia, citado em
    Visão de 21-9-1967, pág. 25.
  • 5
    ) Registro Industrial de 1962,
    Anuário Estatístico do Brasil, IBGE, 1965.
  • 6
    ) Fonte dos dados brutos: Contas Nacionais. In
    Revista Brasileira de Economia, Fundação Getúlio Vargas.
  • 7
    ) FURTADO, Celso.
    Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, pág. 6.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jul 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1968
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