O trabalho, que antes era visto apenas como meio de sobrevivência e acúmulo de riqueza, tornou-se uma das principais dimensões da vida humana, fazendo com que os indivíduos sejam identificados mediante as atividades que realizam. Assim, o trabalho adquiriu um novo sentido para os indivíduos, uma vez que a realização pessoal está intimamente relacionada ao seu reconhecimento perante a sociedade. Diversos estudos têm abordado o trabalho por meio dos sentidos que os trabalhadores atribuem à atividade que realizam, como é o caso da presente pesquisa que investiga os sentidos produzidos por uma categoria distante das profissões formais: as prostitutas. Nesse intuito, objetiva-se apreender os sentidos subjetivos produzidos por mulheres que atuam na prostituição, em boates do interior de Minas Gerais. Para tanto, buscou-se, inicialmente, contextualizar a prostituição como profissão, desvendar a trajetória das participantes e a inserção delas nessa atividade, e levantar os sentidos subjetivos relacionados ao trabalho na prostituição. Participaram da pesquisa seis prostitutas que trabalham em boates. O levantamento dos dados deu-se por meio de uma entrevista que focou especificamente um fato marcante na trajetória profissional dessas mulheres. Optou-se pelo estudo de natureza qualitativa baseada na epistemologia qualitativa (Rey, 2005), e as análises foram fundamentadas pela acepção de sentido subjetivo. Rey (2005) defende que, entre o pensamento e a linguagem, está a emoção e que, por isso, nem sempre os sentidos subjetivos podem ser captados nas expressões diretas do sujeito. Ao final, apreenderam-se sentidos subjetivos relacionados ao trabalho na prostituição que se relacionam a violência, aborto induzido, abandono, desconfiança, preconceito, discriminação, humilhação, medo, insegurança e solidão. A análise dos sentidos subjetivos das prostitutas perante o trabalho que realizam mostrou-se oportuna para o entendimento de aspectos importantes da relação entre as participantes da pesquisa e os sentidos que atribuem ao seu trabalho, e possibilitou evidenciar que as relações no espaço do trabalho estão permeadas por inúmeras outras que ocorrem em outros espaços sociais de atuação dos sujeitos.
Trabalho; Sentidos subjetivos; Mulheres prostitutas; Relações de gênero; Prostituição
ABSTRACT
Work, which was once seen only as a mean of survival and accumulation of wealth, has become one of the major dimensions of human life, causing individuals to be identified through the activities they perform. Thus, work took on a new meaning for individuals, since personal fulfillment is closely related to its recognition in society. Several studies have addressed work through the senses that workers attach to the activities they carry out, as the case of the present research that investigates the sense produced by a particular category, distant from formal professions: prostitutes. To that end, the objective is to capture the subjective senses produced by women working as prostitutes in nightclubs in the countryside of Minas Gerais. For this, it was sought, in the first place, to contextualize prostitution as a profession, unravel the life trajectory of participants and their insertion in this activity, and raise the subjective senses related to work in prostitution. Six prostitutes, who work in nightclubs, participated in the survey. The data collection was performed through an interview focusing specifically on a milestone in the professional trajectory of these women. The qualitative study based on the Qualitative Epistemology (Rey, 2005) was adopted and analyses were based on the comprehension of subjective sense. The author argues that between the thought and the language, lies the emotion, and, therefore,subjective senses cannot be always captured in the subject’s direct expressions. Finally, subjective senses related to work in prostitution were comprehended, relating to violence, abortion, abandonment, mistrust, prejudice, discrimination, humiliation, fear, insecurity and loneliness. The analysis of subjective senses of prostitutes regarding their work proved timely for the understanding of important aspects of the relationship between the research participants and the senses they ascribe to their work and made it possible to evidence that relations in the work environment are permeated by countless others which occur in other social environments of the subjects’ activity.
Work; Subjective senses; Female prostitutes; Gender relations; Prostitution
RESUMEN
El trabajo, que antes fue mirado solamente como una forma de sobrevivir y acumulación de riqueza, se convirtió en una de las principales dimensiones de la vida humana, haciendo con que las personas sean identificadas por las actividades que realizan. Así, el trabajo ha adquirido un nuevo sentido para las personas, una vez que la realización personal está íntimamente relacionada a su reconocimiento delante de la sociedad. Diversos estudios han abordado el trabajo a través de los sentidos que los trabajadores atribuyen a la actividad que realizan, como es el caso de esta investigación que busca los sentidos producidos por una categoría distante de las profesiones formales: las prostitutas. Con esa intención, el objetivo fue aprender los sentidos subjetivos producidos por mujeres que actúan en la prostitución en clubes nocturnos en el interior del Estado de Minas Gerais. Desde esta perspectiva, se ha buscado, en el inicio, contextualizar la prostitución como profesión, develar la trayectoria de las participantes y su inserción en esa actividad y relacionar los sentidos subjetivos relacionados al trabajo en la prostitución. Fueron entrevistadas seis prostitutas que trabajan en clubes nocturnos. La recopilación de datos se realizó por entrevistas con foco específico en un hecho destacado en la trayectoria profesional de estas mujeres. Se decidió por estudio de naturaleza cualitativa enfocada en Epistemología Cualitativa (Rey, 2005) y los análisis fueron fundamentados por la acepción de sentido subjetivo. El autor argumenta que entre el pensamiento y el lenguaje está la emoción, y que por eso ni siempre los sentidos subjetivos pueden ser comprendidos en las expresiones directas del sujeto. Al final, se aprehendieron sentidos subjetivos relacionados al trabajo en la prostitución que están conectados a la violencia, aborto provocado, abandono, desconfianza, prejuicio, discriminación, humillación, miedo, inseguridad y soledad. El análisis de los sentidos subjetivos de las prostitutas delante del trabajo que realizan se mostró muy oportuno para el entendimiento de aspectos importantes de la relación entre las entrevistadas y los sentidos que atribuyen a su trabajo, y posibilitó evidenciar que las relaciones en el espacio del trabajo están permeadas por numerosas otras formas que se producen en otros espacios sociales de actuación de los sujetos.
Trabajo; Sentidos subjetivos; Mujeres prostitutas; Relaciones de género; Prostitución
1 INTRODUÇÃO
O trabalho, mais que um meio de sobrevivência e acúmulo de riquezas, tornou-se uma das principais dimensões da vida humana, de modo a interferir na inserção do homem na sociedade e delimitar os espaços de mobilidade social. Por isso, os indivíduos são identificados mediante as atividades que realizam. Dessa forma, o trabalho adquiriu um novo sentido para os indivíduos, uma vez que a realização pessoal está intimamente relacionada ao reconhecimento do trabalho perante a sociedade (Silva, 2011.)
No entanto, observa-se que tal reconhecimento está atrelado às percepções que a sociedade tem da natureza do trabalho e do trabalhador em si. No que se refere à questão do gênero a que pertence tal trabalhador, alguns estudos (Soihet, 1997; Perrot, 2007; Del Priore, 2006) demonstram que o gênero feminino tem sido alvo de discriminações e diferenciações no decorrer da história.
Desde a sua formação como um campo interdisciplinar nos anos 1970, os estudos sobre gênero têm travado importantes debates, que vão além da constatação de que as sociedades estabelecem significados distintos para o masculino e o feminino. É prudente destacar que, quando se abordam aspectos relacionados ao gênero para pensar o masculino e o feminino nas relações sociais, não se trata de fazer referências a um dado biológico, mas a uma construção histórica e sociocultural, imbricada de valores, diversidades e relações sociais e de poder. Assim, a ideia de gênero diz respeito às formas como cada sociedade constrói significados sobre as diferenças sexuais e estrutura as relações entre homens e mulheres (Scott, 1989;Soihet, 1997).
Quanto à natureza do trabalho, é cogente mencionar que algumas atividades profissionais têm menos reconhecimento na sociedade. Trata-se de atividades marginais na sociedade que não possuem visibilidade social, cujos trabalhadores têm baixa escolaridade, pouca qualificação, baixos salários, más condições de trabalho, entre outros fatores.
Entre as profissões vistas como marginais na sociedade, está a prostituição, caracterizada pela oferta de serviço sexual. A definição desse tipo de trabalho por seu aspecto comercial refere-se ao ato de comercializar serviços de natureza sexual, como prazer, fantasias, sexo, carícias, entre outros. Além de ser vista como uma atividade clandestina no mercado, a prostituição enfrenta outras questões relacionadas ao aspecto moral dessa profissão. Segundo Ferreira (2009, p. 15), incidem sobre ela as piores qualificações, “porque é uma atividade das sombras, de um domínio ambíguo e perigoso, sistematicamente usado e explorado, mas ao mesmo tempo evitado, por ser degradante e até criminoso”. No entanto, quando se observam suas especificidades, verifica-se que a prostituição se realiza de maneira similar ao modo de organização do trabalho legal, das empresas e das instituições, com suas regras e sua lógica.
A partir dessa constatação, surge a necessidade de abordar a questão da prostituição por meio das próprias prostitutas, explorando os sentidos produzidos por elas acerca do trabalho que realizam. Surge, então, o problema a ser pesquisado:
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Que sentidos subjetivos podem ser apreendidos por meio do trabalho de mulheres prostitutas que atuam em boates do interior de Minas Gerais?
Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo apreender os sentidos subjetivos do trabalho realizado por mulheres prostitutas em cidades do interior de Minas Gerais. Para tanto, recorreu-se à epistemologia qualitativa desenvolvida por Rey (2005), entendida, nas ciências antropossociais, como uma busca de compreensão da pesquisa como um processo de comunicação e de diálogo, uma vez que o homem se comunica permanentemente nos diversos espaços sociais em que vive.
2 REVISÃO DA LITERATURA
2.1 GÊNERO E SEXUALIDADE
Nesta seção, discutem-se algumas nuances da sexualidade feminina no decorrer de alguns períodos históricos, relatando como foram construídos alguns tabus que impediram que a mulher pudesse viver sua sexualidade. Trata-se de uma questão de gênero, uma vez que existiu uma disparidade nas relações entre homens e mulheres, já que ao homem foi atribuído o papel de dominador.
As discussões sobre sexualidade remetem sempre ao corpo: um “corpo na história, em confronto com as mudanças do tempo” (Perrot, 2007, p. 62). A prostituta tem no corpo o seu trabalho. Um corpo que foi, por muito tempo, negado às mulheres.
O corpo remete à sexualidade, entendida, nesse contexto, como uma categoria que se refere às características humanas, e não somente ao órgão sexual feminino e masculino e ao funcionamento dele: “Inclui todas as dimensões de uma pessoa, como o biológico, o psicológico, o social, o emocional, o cultural e o espiritual” (Trindade & Ferreira, 2008, p. 418). A sexualidade transcende a biologia das estruturas corporais e dos processos fisiológicos que materializam e objetivam o sexo a partir do determinismo biológico de ter nascido homem ou mulher.
Compreende-se a questão da negação da sexualidade feminina com Freud (Salomão, 2009) que, ao comparar homem e mulher, apresenta a mulher como um ser “a menos”, estigmatizada pela ausência do pênis, como se fosse portadora de uma sexualidade inferior. E esse estigma marcou a visão freudiana da mulher, a qual se conservou ligada a uma tradição que considerava a mulher como um “homem mutilado” (Zeferino, 2002) e, portanto, incapaz de viver sua sexualidade.
Perrot (2007, p. 63) comenta o posicionamento de Freud perante a sexualidade feminina. Segundo a autora, ele faz da “inveja do pênis” a obsessão da mulher. A anatomia feminina torna a mulher “um ser em concavidade, esburacado, marcado para a possessão, para a passividade” (Perrot, 2007, p. 63). Por causa da genitália, a mulher é tida como inferior, sendo até meados do século XVIII considerada apenas um receptáculo pronto para receber o esperma, que seria o único responsável por gerar filhos. Somente no início do século XIX, descobrem-se a ovulação e a importância dela no processo reprodutivo. De acordo com a autora, a mulher passou a ser confundida com o próprio sexo e se reduziu a ele, marcando seu lugar na família e na sociedade.
Ao longo da história, criou-se a ideia de que a mulher necessitava de cuidado e proteção. Araujo (2001) relata que, no Brasil colônia, as mulheres eram submetidas à vigilância constante da família, da sociedade e, principalmente, da Igreja. Segundo Perrot (2007, p. 59), o sexo das mulheres precisava ser protegido, fechado e possuído. Nesse sentido, o hímen e a virgindade sustentam essa ideia: “Ao esposo é dado o direito, na noite de núpcias, de se apoderar de sua mulher, torná-la sua posse. O cristianismo torna a castidade e o celibato um estado superior”.
Del Priore (2006) discute essa questão da proteção dada à mulher e relata que a Igreja atuava principalmente na organização familiar e no controle da sexualidade. A Igreja se apoderou da mentalidade patriarcal e enfatizou as relações de dominação entre os sexos, condenando a esposa a se tornar “uma escrava doméstica exemplarmente obediente e submissa” (Del Priore, 2006, p. 31). A mulher existia para cuidar dos afazeres da casa e servir ao esposo com seu sexo. Araujo (2001) mostra uma Igreja poderosa, exercendo forte pressão para adestrar a sexualidade feminina. O terrível mito do Éden era lembrado constantemente às mulheres.
Toda essa proteção direcionada à sexualidade da mulher estava relacionada com o fato de pouco se saber a respeito dos desejos femininos da época. De acordo com Perrot (2007, p. 65), como a sexualidade feminina era um mistério, atemorizava. Na época, essa sexualidade era vista por dois polos: avidez e frigidez. Segundo Perrot (2007, p. 65), uma mulher ávida por sexo é considerada “um poço sem fundo, onde o homem se esgota, perde suas forças e sua vida beira a impotência”. Para Kierkegaard (como citado em Perrot, 2007, p. 65), afirma que “a mulher inspira o homem enquanto ele não a possui”. Conforme Perrot (2007), essa posse o aniquila. Dessa forma, a sexualidade da mulher que não pode jamais ser satisfeita amedronta o homem.
Araujo (2001) comenta que o fato de as mulheres poderem opinar e reconhecer a potencialidade sexual dos homens trazia certo temor. As mulheres insaciáveis deixavam os homens inseguros quanto à masculinidade deles. E observa-se que as mulheres faziam mesmo comparações.
Na época do colonialismo brasileiro, era comum as senhoras se visitarem. Nessas visitas de vizinhas ou parentes, comentava-se o desempenho sexual masculino da noite anterior. Essas reuniões femininas eram, portanto, vistas como uma ameaça aos dotes masculinos.
Del Priore (2006), ao tratar do sexo no casamento, menciona que o ideal era aderir ao discurso da Igreja e dos manuais de casamento sobre as práticas conjugais. O desejo feminino era visto como algo que desequilibrava o matrimônio, e a beleza física era temida por associar a mulher a um instrumento do pecado.
Em relação à frigidez feminina, Perrot (2007) relata que se trata do pressuposto de que as mulheres não sentem prazer, não desejam o ato sexual, não gostam do sexo. Daí, surge a ideia de que o homem precisa buscar prazer em outro lugar: amantes e prostitutas são então encarregadas de sanar essa necessidade masculina.
Justamente por temerem a sexualidade feminina e pouco conhecerem sobre ela, “os homens sonham, cobiçam, imaginam o sexo das mulheres. É fonte do erotismo, da pornografia, do sadomasoquismo” (Perrot, 2007, p. 66). O prazer feminino é intolerável. Mulheres ávidas por sexo são consideradas perigosas, maléficas, semelhantes a feiticeiras.
Ainda no início do século XIX, o sexo consentido e até exigido (procriação) é aquele que acontece após o matrimônio. Del Priore (2006) relata a importância do casamento para as mulheres. Trata-se daquilo que elas tinham como mais precioso. Os pais buscavam casar as filhas muito cedo, com 12 anos já podiam se casar. O casamento era visto como um negócio. O amor era totalmente dispensável quando se buscava um esposo. As adolescentes se casavam quase sempre com homens mais velhos, por quem não alimentavam nenhum sentimento. A autora ressalta que isso fez com que, no casamento, esse amor também não existisse, principalmente o “amor-paixão” que se refere ao desejo sexual dos cônjuges.
De acordo com Del Priore (2006, p. 31), “a mulher seria, portanto, provedora e recebedora de um amor que não inspirasse senão a ordem familiar”.
Figueiredo (2001) aponta que o casamento aparece como o lugar da concupiscência, em que o desejo e a carne poderiam viver devidamente domesticados pela finalidade única de propagação da espécie. No matrimônio, os casais viveriam relações de obrigação recíproca de uma sexualidade disciplinada sob a vigilância dos padres e da ordem cristã.
A história parece acompanhar as ideias de Freud ao tratar as mulheres como seres castrados e, portanto, incapazes e podadas no direito de vivenciar a própria sexualidade. Nas palavras de Perrot (2007, p. 76),
[...] corpo desejado, o corpo das mulheres é também, no curso da história, um corpo dominado, subjugado, muitas vezes roubado, em sua própria sexualidade. Corpo comprado também [...]. A gama de violências exercidas sobre as mulheres é ao mesmo tempo variada e repetitiva. O que muda é o olhar lançado sobre elas, o limiar de tolerância da sociedade e o das mulheres, a história de sua queixa
Perrot (2007) afirma que, diante dessas condições de dominação e submissão, o direito de a mulher vender sexo aparece como um progresso, desde que ela se limitasse à remuneração de um serviço sexual. Trata-se do princípio da mulher livre em um mercado livre que leva algumas feministas a defender o direito das mulheres de se prostituírem. A autora ressalta, portanto, que a prostituição é motivada, na maioria dos casos, pela miséria, pela solidão e é também acompanhada de uma exploração do corpo e do sexo das mulheres.
2.2 O TRABALHO DE MULHERES PROSTITUTAS
A prostituição feminina é uma prática que acompanha a história da humanidade, de tal modo que nenhuma civilização escapou da sua convivência. Há relatos bíblicos sobre a prostituição na história de Maria Madalena, e, no decorrer da história, pode-se observar sua presença na sociedade.
Na Antiguidade, porém, as prostitutas eram figuras nobres na sociedade. Roberts (1998) relata que, no período da pré-história, a mulher era associada à grande deusa, criadora da força da vida, e estava no centro das atividades sociais. Com tal poder, ela controlava sua sexualidade. Segundo a autora, por volta de 3000 a.C., ao verificarem como bovinos se reproduziam, as tribos nômades tomaram consciência do papel masculino na reprodução. Diante disso, as sociedades matriarcais da deusa começaram então a ser subjugadas. Novas formas de casamento foram introduzidas, especificamente destinadas a controlar a sexualidade das mulheres.
Roberts (1998) relata que, nas grandes cidades, a grande deusa continuou a ter sua importância. As sacerdotisas da deusa participavam de rituais sexuais religiosos. Nesses rituais, as pessoas buscavam ser abençoadas, e, por isso, as sacerdotisas possuíam certo status na sociedade da época. Para a autora, elas se constituem como as primeiras prostitutas da história.
Conforme menciona Roberts (1998), por volta de 2000 a.C., as mulheres foram classificadas como prostitutas. Daí começou a diferenciação moral entre as esposas, consideradas seres morais, e as prostitutas, imorais. As prostitutas tornaram-se então pecadoras, e os rituais sexuais não foram mais aceitos.
De acordo com Rossiaud (1991), o Renascimento marca um momento de grande rejeição à prostituição. A sociedade passou a valorizar a mulher, e o casamento ganhou importância notável. O autor explica que a mulher começou a participar mais na sociedade, até mesmo porque a constituição da família tornou-se essencial.
Na modernidade, observa-se a busca de autonomia por parte das mulheres, e isso vai intervir na prostituição. Os movimentos feministas influenciaram nesse sentido por buscarem direitos até então negados às mulheres. Dentre eles, o direito de vivenciar o sexo como um ser biológico que dele necessita tal como os homens, abandonando a antiga noção da mulher submissa ao homem, inclusive no que se refere à sexualidade. A partir disso, as prostitutas vão iniciar sua organização.
Essa organização tem se consolidado por meio da formação de associações e da execução de ações pautadas na compreensão partilhada por mulheres (prostitutas e aliadas) e outras pessoas (homens, travestis, transexuais) que entendem que o exercício da prostituição é atravessado por temas como economia, sexualidade, migração, racismo e colonialismo. De tal forma que as questões sobre a prostituição e a complexidade dela não concernem apenas às prostitutas, mas também à sociedade como um todo. Nessa compreensão, o combate a leis e atitudes que criminalizam e estigmatizam as prostitutas constitui-se em refutar dispositivos normativos que são empregados para silenciar e conformar todas as mulheres, marcando com estigma que transgride e não aceita o controle social imposto às mulheres (Osborne, 1991).
No que se refere à organização da categoria, Oliveira (2008) relata um importante marco para a prostituição, o dia 2 de junho de 1975, que consagrouo início da organização política da categoria, quando 150 prostitutas ocuparam a Igreja de Saint-Nizier, em Lyon, na França, e protestaram contra multas, prisões e até assassinatos que ocorreram e que nem chegaram a ser investigados. Cerca de 200 prostitutas percorreram as ruas em carros, distribuindo filipetas com denúncias de que eram vítimas de perseguição policial, o que as impedia de trabalhar.
No Brasil, acredita-se que a prostituição tenha iniciado com as escravas da corte que prestavam, além dos serviços domésticos, serviços sexuais tanto para os senhores quanto para os demais homens da corte. Porém, foi em 1930 que a prostituição atingiu o auge no Brasil, tendo maior representatividade, naquela época, no Rio de Janeiro (Oliveira, 2008).
Conforme relata Leite (2009), o movimento associativo de prostitutas no Brasil foi marcado pelo I Encontro Nacional de Prostitutas, em 1987, em que se criou a Rede Brasileira de Prostitutas, que luta pelo reconhecimento legal da profissão.
Moraes (1995) aponta que o objetivo inicial daquele encontro foi fomentar o surgimento de associações de prostitutas em diversos pontos do país, de modo a favorecer a articulação de uma rede de contato e intercâmbios para reivindicar direitos sociais. A dinâmica do encontro foi organizada por meio de grandes plenárias e discussões em pequenos grupos. A autora reconhece que a configuração desse encontro como marco na história das associações brasileiras de prostitutas se deve ao lastro dessa questão no espaço público, isto é, à maneira como ecoaram as formas pelas quais buscava se organizar esse segmento social que antes era percebido como um grupo alienado e que passa a ter outra visibilidade na mídia. Após a realização desse evento, a prostituição deixa de ocupar apenas as páginas policiais e passa a ser noticiada também como questão social e política.
Posteriormente, em 1992, foi criada a organização não governamental (ONG) Davida no Rio de Janeiro, que tem como uma de suas representantes Gabriela Leite, reconhecida por sua luta em prol da causa das prostitutas. A partir daí, outras associações de profissionais do sexo foram constituídas em diversos Estados. Das ações da ONG Davida, surgiu a Daspu, uma grife que cria e produz a moda das prostitutas, roupas e acessórios característicos da categoria. Tanto a Davida como a Daspu ganharam visibilidade na mídia e conseguiram mostrar à sociedade um pouco do, até então desconhecido, mundo da prostituição.
Na atualidade, observa-se que houve um crescimento vertiginoso da prostituição nos últimos anos, principalmente nos países do Hemisfério Sul, conforme menciona Poulin (2005 como citado em Rosa, 2008). No Brasil, a prostituição tem encontrado terreno fértil, o que tem feito com que se prolifere consideravelmente, independentemente do tipo de prostituição a que se refere.
No presente estudo, trabalhou-se com a prostituição de boate, inserida como uma modalidade de alto meretrício. Segundo Silva e Blanchette (2008), as boates são ambientes fechados cuja razão de existência declarada é a oferta de outras diversões além dos serviços sexuais (shows de danças, striptease ou sexo ao vivo), onde as mulheres da casa estão disponíveis para a prostituição. Esses locais geralmente oferecem quartos, onde os programas são realizados, e o cliente paga um valor extra para utilizá-los.
Independentemente da modalidade de prostituição a que esteja se referindo, nota-se que a discriminação e o preconceito em relação a essas profissionais estão presentes. Ainda que esse mercado tenha crescido consideravelmente no Brasil nos últimos anos, observa-se que tal crescimento não tem colaborado para diminuir a condenação moral direcionada às prostitutas.
Silva e Blanchette (2008) relatam que a prostituição no Brasil pode ser compreendida por dois eixos tradicionais. O primeiro entende que se trata de um fenômeno semicriminoso. Nesse sentido, a prostituição é vista como uma questão de ordem pública, trazendo à cena as autoridades instituídas do Estado que têm como dever fiscalizar a prostituição, sendo a polícia e os médicos chamados a desempenhar esse papel.
Já o segundo eixo aborda a prostituição a partir de valores morais. De acordo com Silva e Blanchette (2008, p. 2), as diversas igrejas do Brasil veem a prostituta como pecadora, enquanto outros agentes morais não religiosos a situam como mulher vulnerável e até escravizada: “Se os religiosos conservadores entendem a prostituta como uma vagabunda que precisa ser controlada ou reformada, os seculares tendem a percebê-la como ‘uma fodida’ que precisa ser salva”. Segundo os autores, ambas as visões têm em comum o fato de condenarem moralmente a prostituição, tida então como atividade essencialmente degradante que há de ser combatida.
O estigma carregado pelas prostitutas é, para algumas, motivo de tristeza e solidão, uma vez que se torna difícil a criação de laços afetivos na sociedade. Em relação aos efeitos dessa estigmatização, Abel (2011) revela que a forma como elas lidam com essas questões, resistindo ou gerindo, tem forte impacto na saúde dessas profissionais, principalmente no que se refere ao adoecimento por problemas psicológicos.
Dessa forma, observa-se que esses fatores tornam o trabalho na prostituição algo depreciativo e imputador de estigmas voltados para a moralidade, configurando-se em discriminação e preconceitos vivenciados por essas mulheres na sociedade. A discussão sobre sentidos subjetivos de Rey (2003) auxilia na compreensão da relevância que os sentidos atribuídos pelas prostitutas ao tipo de trabalho que desempenham e influencia na constituição de suas subjetividades.
2.3 OS SENTIDOS SUBJETIVOS DO TRABALHO
O conceito de sentido subjetivo desenvolvido por Rey (2003) é elaborado a partir de uma definição de sentido pela sua relação inseparável com a subjetividade. Em seus trabalhos, Rey (2003, p. 127) define sentido como sentido subjetivo, que é
[...] a unidade inseparável dos processos simbólicos e as emoções num mesmo sistema, no qual a presença de um desses elementos evoca o outro, sem que seja absorvido pelo outro. [...] O sentido subjetivo representa uma definição ontológica diferente para a compreensão da psique como produção cultural.
O sentido subjetivo representa uma unidade integradora de elementos diferentes, processos simbólicos e emoções, e é a integração desses elementos que define o sentido subjetivo. Ele não aparece diretamente na expressão intencional do sujeito, ou seja, nem sempre aparece diretamente numa frase ou palavra. Os sentidos subjetivos aparecem de forma indireta na qualidade da informação, que pode ser identificada no lugar em que uma palavra se encontra numa frase ou em uma narrativa; na comparação de significações distintas que podem ser observadas em uma expressão, no nível diferenciado de tratamento de temas. A informação pode vir ainda “na forma com que se utiliza a temporalidade, nas construções associadas a estados anímicos diferentes, nas manifestações gerais do sujeito em seus diversos tipos de expressão, etc.” (Rey, 2005, p. 116).
O conceito de sentido subjetivo dá particular sustentação à concepção de subjetividade desenvolvida por Rey (2005). A subjetividade é legitimada pelo fato de ser “uma produção de sentidos subjetivos que transcende toda a influência linear e direta de outros sistemas da realidade” (Rey, 2005, p. 22).
Os conceitos referentes ao trabalho demonstram que o sentido que o indivíduo atribui ao próprio trabalho tem considerável relevância na constituição de sua subjetividade. O trabalho é algo que acompanha o homem desde os primórdios da humanidade. Embora tenha seus significados modificados no decorrer do tempo, o fato é que o trabalho sempre representou parte da identidade das pessoas, interferindo consideravelmente na concepção que fazem de si mesmas e dos outros.
Não se sabe ao certo a origem da palavra trabalho. De acordo com Cunha (1987 como citado em Dourado, Holanda, Silva, & Bispo, 2009), trabalho remete ao latim tripaliare, que significa martirizar com o tripalium, sendo este um instrumento formado por três estacas utilizadas para manter presos os bois ou cavalos difíceis de ser domados. No latim vulgar, significa “pena ou servidão do homem à natureza”.
Para Freud (Salomão, 2009), o trabalho é a atividade que proporciona certa direção à vida, noção de realidade, e também representa uma possibilidade de vínculos entre as pessoas. Com base nessa concepção freudiana do trabalho, pode-se compreender por que pessoas em situação de não emprego ou desemprego sofrem diante dessa condição. O trabalho orienta caminhos a serem seguidos e aproxima as pessoas, logo, quando não trabalha, o indivíduo se vê deslocado na sociedade à qual pertence.
Em decorrência do aumento mundial do desemprego, os indivíduos passaram a valorizar cada vez mais o fato de possuir um trabalho, principalmente porque a sociedade discrimina as pessoas desempregadas, atribuindo a elas desqualificação, incapacidade e até marginalização. Nesse sentido, o trabalho passa a ter uma dimensão psicológica na vida do trabalhador, afetando a forma como este percebe o mundo e a si próprio na sociedade.
Dessa forma, conforme Assis e Macedo (2008), o trabalho, como construtor de identidade e inclusão social, interfere na vida das pessoas como um todo. Nesse sentido, Codo, Soratto e Vasques-Menezes (2004) afirmam que o trabalhador constrói a identidade na relação diária com a própria vida, estabelecendo uma tríplice relação entre identidade-trabalho-relações sociais e afetivas.
O trabalho ocupa um lugar central na vida das pessoas. À seguinte questão “Se tivesse bastante dinheiro para viver o resto da sua vida confortavelmente sem trabalhar, o que você faria com relação ao seu trabalho?”, mais de 80% responderam que, ainda assim, trabalhariam (Morin, 1997, p. 27). Os motivos para tal resposta estão no fato de que as pessoas se relacionam e interagem por meio do trabalho, sentem-se pertencentes a determinado grupo, têm uma ocupação e passam a ter um objetivo na vida.
Mendes (2007, p. 43) relata que o sentido do trabalho depende basicamente “da relação entre a subjetividade do trabalhador, do saber fazer e do coletivo do trabalho”. Para essa autora, o trabalho estará sempre associado ao binômio prazer-sofrimento, uma vez que pode ser fonte de patologias, adoecimentos, como também de saúde. Em todas essas situações, o trabalhador atribui novas significações às relações dinâmicas entre organização do trabalho e processo de subjetivação. Mendes (2007, p. 30) entende subjetivação como o “processo de atribuição de sentido com base na relação do trabalhador com sua realidade de trabalho, expresso em modos de pensar, sentir e agir individuais ou coletivos”.
Morin (2002), por sua vez, realizou uma pesquisa com estudantes de Administração e administradores. Os resultados se aproximam daqueles obtidos pelo grupo MOW1. Entre os estudantes de Administração, foram identificados cinco motivos para o trabalho: 1. realizar-se e atualizar o potencial; 2. adquirir segurança e ser autônomo; 3. relacionar-se com os outros e estar vinculado em grupos; 4. contribuir para a sociedade; e 5. ter um sentido na vida, o que inclui ter o que fazer e manter-se ocupado. De acordo com a autora, as características que o trabalho deve ter são consoantes com os motivos que estimulam esses estudantes ao trabalho: é necessário haver boas condições de trabalho (horários convenientes, bom salário, preservação da saúde); oportunidade de aprendizagem e realização adequada da tarefa; trabalho estimulante, variado e com autonomia.
Na perspectiva da psicodinâmica, Dejours (1987 como citado em Dourado et al., 2009, p. 351) afirma que o trabalho deve fazer sentido tanto para o sujeito que o realiza quanto para os companheiros e a sociedade. Para esse autor, o sentido do trabalho se constitui pelo “conteúdo significativo em relação ao sujeito, que envolve a dificuldade prática da tarefa”, e pelo “conteúdo significativo do objeto que envolve mensagens simbólicas que a tarefa pode também veicular para alguém” (Dejours, 1987, citado em Dourado et al., 2009, p. 351).
Pelos estudos abordados, verificou-se que o sentido do trabalho ultrapassa a antiga noção de que ele é apenas um meio de subsistência na sociedade. Nas pesquisas, é demonstrado que, além de ser a principal fonte de sobrevivência para as pessoas, o trabalho é visto também como forma de ser aceito no meio social, interagir com outras pessoas, tornar-se membro de um grupo e se realizar como ser humano.
No entanto, observa-se que o trabalho pode ser considerado motivo de discriminação e preconceito para algumas pessoas em decorrência de sua natureza. É o caso das prostitutas, que sofrem, pela atividade que realizam, estigmas que as impedem de ser aceitas socialmente.
METODOLOGIA
O presente estudo caracteriza-se como qualitativo, baseado na epistemologia qualitativa desenvolvida por Rey (2005), entendida, nas ciências antropossociais, como uma busca de compreensão da pesquisa como um processo de comunicação e de diálogo, uma vez que o homem se comunica permanentemente nos diversos espaços sociais em que vive. No desenvolvimento da investigação, realizaram-se pesquisas bibliográfica e de campo.Nesta pesquisa, a construção do conhecimento fundamenta-se especialmente nos três princípios básicos da proposta metodológica da epistemologia qualitativa (Rey, 2003). O primeiro princípio é de que “a Epistemologia Qualitativa defende o caráter construtivo interpretativo do conhecimento” (Rey, 2005, p. 5). Esse fundamento implica entender o conhecimento como produção permanente, “e não como apropriação linear de uma realidade que se nos apresenta” (Rey, 2005, p. 5). O caráter construtivo-interpretativo do conhecimento visa romper com a dicotomia entre o empírico e o teórico. O segundo atributo é a legitimação do singular como fonte de produção do conhecimento, o que implica considerar a pesquisa como uma produção teórica. O teórico, nesse caso, não é o restringido a fontes de saber preexistentes ligadas ao processo de pesquisa, mas sim ao que se expressa na atividade “pensante e construtiva do pesquisador” (Rey, 2005, p. 11). O terceiro atributo consiste em entender a pesquisa nas ciências antropossociais como um processo de comunicação e diálogo. A ênfase dada à comunicação no processo de construção do conhecimento baseia-se no fato de que grande parte dos problemas sociais e humanos tem raízes, direta ou indiretamente, na comunicação entre as pessoas
Caracterizam-se como sujeitos desta pesquisa seis prostitutas atuantes em boates que se mostraram decididas e interessadas em participar do estudo. Por critério de acessibilidade, optou-se por investigar o interior de Minas Gerais, especificamente as cidades de Arcos, Lagoa da Prata, Córrego Fundo e Formiga.
O momento empírico apresentado neste estudo constitui-se de parte de uma entrevista em que foi solicitado às participantes que relatassem um momento marcante na trajetória delas como prostitutas. Elas tiveram a liberdade de relatar qualquer situação que haviam vivenciado na carreira profissional. As falas foram gravadas e posteriormente transcritas para análise.
A construção e a análise da informação se deram pela captação das expressões dos sujeitos pesquisados, produzidas por meio do instrumento utilizado no momento empírico programado. Após a transcrição dos relatos que mostraram os fatos marcantes vivenciados pelas entrevistadas, buscou-se evidenciar trechos representativos de tais momentos e apreender os sentidos subjetivos presentes em cada um deles. A análise das expressões e emoções dos sujeitos conjugadas com os relatos destacados possibilitou a produção de indicadores de sentidos subjetivos a partir dos quais foram construídas categorias de análise. Neste estudo, o processo de construção da informação não se orienta por uma lógica preconcebida, mas se caracteriza por um processo mental e reflexivo do pesquisador que, ao longo da pesquisa, vai construindo o próprio modelo teórico.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1 CARACTERIZANDO AS MULHERES PROSTITUTAS PARTICIPANTES DA PESQUISA
No caso da prostituição, muitas trabalhadoras utilizam “nomes de guerra” e não revelam o nome real na boate. Com o propósito de resguardar as identidades das entrevistadas, optou-se por identificá-las com nomes fictícios, selecionados a partir de uma pesquisa realizada em um blog (http://www.testosterona.blog.br) que apontou os nomes de prostitutas mais comuns no Brasil. Assim, as participantes da pesquisa foram nomeadas como Natasha, Rebeca, Jéssica, Kelly, Camila e Mel. A seguir, faz-se uma breve apresentação de cada uma delas:
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Natasha, apesar de não gostar de relatar sua idade, tem 43 anos; é solteira; tem cinco filhos com idades de 27, 25, 23, 21 e 12 anos; é natural de Montes Claros e, atualmente, reside em Arcos com os filhos e um genro; possui ensino fundamental completo; não tem outra ocupação senão a prostituição e obtém, nessa atividade, uma renda de aproximadamente R$ 1.800,00 mensais em boates. Atualmente, trabalha na cidade de Formiga.
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Rebeca tem 28 anos. Separada, tem cinco filhos, com idades de 12, 9, 6, 4 e 2 anos. Dois dos filhos moram com a irmã dela e os demais com o pai. Ela é natural de Novo Cruzeiro, cidade no norte de Minas Gerais, e não possui residência fixa, ou seja, reside nas boates em que trabalha. Sua escolaridade é ensino fundamental incompleto e trabalha somente como prostituta, o que lhe rende aproximadamente R$ 1.400,00 mensais.
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Jéssica é uma mulher negra de 27 anos. Separada de dois casamentos, não tem filhos. É natural de Montes Claros e mora na cidade com os irmãos. Possui ensino médio incompleto e não tem outra ocupação além da prostituição, que lhe rende aproximadamente R$ 1.200,00 mensais.
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Kelly tem 26 anos; é separada; tem quatro filhos com idades de 10, 8, 4 anos e oito meses, que moram com a avó dela. Ela é natural de São João del-Rey, cidade em que mantém residência. Tem ensino fundamental completo e sua única ocupação é a prostituição. Nessa atividade, ela obtém uma renda de aproximadamente R$ 2.000,00. No momento da pesquisa, Kelly trabalhava em uma boate na cidade de Formiga.
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Camila tem 30 anos, cabelos louros longos; é solteira e tem dois filhos, com idades de 12 e 8 anos. Possui ensino fundamental completo e trabalha exclusivamente como prostituta. A renda mensal gira em torno de R$ 4.500,00. É natural de Malacacheta, no norte de Minas Gerais, onde mantém residência.
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Mel é uma garota de 24 anos; é solteira e não tem filhos. Possui ensino superior incompleto e trabalha também como manicure em Ribeirão Preto, cidade onde reside. A renda mensal como prostituta é de aproximadamente R$ 4.000,00. É natural de Cerquilho, mas mora há oito anos em Ribeirão Preto. Ela é estudante de Direito e relata que o trabalho como prostituta auxilia no pagamento dos estudos. Estava na boate de Lagoa da Prata somente nas férias de julho. Geralmente, Mel consegue os programas pela internet, pois é cadastrada em um site de encontros. Também atende nos finais de semana, em uma boate de Ribeirão Preto.
Por meio das descrições apresentadas, observou-se que as participantes possuem características bastante comuns. Quatro delas (Natasha, Rebeca, Jéssica e Camila) são naturais de cidades situadas no norte de Minas Gerais, região da qual migram muitas pessoas em busca de trabalho. A maioria tem filhos e é responsável pelo próprio provimento econômico. Cinco delas possuem idade inferior a 30 anos. Como indicado anteriormente, apenas Jéssica completou o ensino fundamental, já que tem o ensino médio completo. As outras, com exceção de Mel (que estuda Direito), não completaram o ensino fundamental. A renda que conseguem com a prostituição varia de R$ 1.200,00 a R$ 4.500,00. Essa renda é considerada alta se analisarmos o nível de escolaridade das participantes, comparada à de outros tipos de trabalho assalariado. A seguir serão discutidas as características e os sentidos do trabalho para essas mulheres
4.2 QUEM CONTA UM CONTO...: FATOS QUE MARCARAM A TRAJETÓRIA DAS PROSTITUTAS
Foi solicitado que as participantes relatassem um fato que tivesse marcado a trajetória delas como prostitutas. Poderia ser qualquer fato ocorrido que se relacionasse ao trabalho por elas realizado.
4.2.1 Natasha: “na minha carreira, por exemplo, já tentaram me matar, fazendo programa...”
Menina, na minha carreira, por exemplo, já tentaram me matar, fazendo programa. Um rapaz muito bem-vestido, muito bem trajado, chegou na boate, pagou R$ 300,00 para mim ir no motel com ele uma hora, só que ele não foi para o motel, ele parou na metade do caminho, inclusive no bairro onde eu morava, já colocou uma arma no meu pescoço, queria que eu cheirasse farinha [cocaína] com ele, falei com ele que eu não curtia, sabe?! E ele insistindo, só que aí, eu com o celular ligado no 190, virei e falei com ele: “Vou chamar a polícia se você não parar com isso”. Aí ele começou a me bater, sabe?, começou a bater na minha cara e chegava minha cara no painel. Aí eu peguei e falei para ele: “Eu estou chamando a polícia”. Só que aí no debater com ele, meu dedo apertou mesmo o 190, e o policial ficou ouvindo do outro lado, só que quando eu vi, o que me salvou foi isso que ele já tinha rasgado minha roupa, já tinha me batido, sabe?! Aí a polícia chegou duma vez, sabe?, já chegou, tirou ele do carro, batendo, ele estava nu também, o policial me levou até em casa e o outro levou ele, e ele falando: “Ninguém vai me prender sou filho do juiz tal o que...”, e o policial batendo nele. Aí o policial falou assim ó: “Isso é bom para vocês aprender, vocês, garota de programa, nunca mais vocês fazerem saída porque a gente cansa de avisar que esse negócio de fazer saída é muito perigoso”. Sabe?! E a partir desse dia eu aprendi, eu nunca mais fiz uma saída, sabe?! Eu tomei trauma. Foi um fato muito marcante da minha vida. Aí eu só faço nas boates, qualquer dinheiro que me oferecem eu não gosto de saída. Não dá certo.
Natasha relata um momento trágico que viveu em sua carreira como prostituta, uma tentativa de assassinato por parte de um cliente. Isso faz emergir sentidos subjetivos significativos. Logo no início, ela menciona uma situação em que foi enganada por um cliente que aparentava ser uma boa pessoa e que se propôs a pagar um valor superior pelo programa caso Natasha saísse da boate com ele. Ao informar o valor pago por esse cliente, “R$ 300,00”, nota-se um indicador de sentido subjetivo que demonstra a importância que a questão financeira tem para ela, ou seja, Natasha decidiu se arriscar e sair com o cliente porque estava sendo bem paga para isso.
No relato de Natasha, aparecem elementos comuns à prostituição que podem indicar sentidos subjetivos do trabalho. O primeiro relaciona-se às drogas, que são comumente consumidas por prostitutas, o que aparece em outros momentos empíricos: “[o cliente] queria que eu cheirasse farinha [cocaína] com ele”. O outro se relaciona à violência contra as prostitutas, que pode ser identificado no momento em que Natasha faz as seguintes afirmações: “[o cliente] colocou uma arma no meu pescoço”, “aí ele começou a me bater, sabe?, começou a bater na minha cara e chegava minha cara no painel”, “ele já tinha rasgado minha roupa, já tinha me batido”. Esses dois indicadores de sentido subjetivo demonstram que, no cotidiano, as prostitutas, ao exercerem o trabalho, lidam com a violência dos clientes. Natasha mostra o perigo da profissão, que também aparecerá em outros momentos deste trabalho.
Diversos estudos (Leite, 2009; Oliveira, 2008; Sousa, 2012) abordam a questão da violência na prostituição. Pelo lado dos riscos, ao questionar convenções de gênero e ao adotar modos de agir incompatíveis com os atributos naturalizantes comumente associados à chamada “mulher honesta”, a prostituta passa a representar uma ameaça à moral vigente e torna-se alvo de violência, preconceito e discriminação.
Outro trecho da fala de Natasha revela o indicador de sentido subjetivo que remete ao preconceito da sociedade. Quando o policial que atendeu ao chamado afirma “Isso é bom para vocês aprender, vocês, garota de programa, nunca mais vocês fazerem saída porque a gente cansa de avisar que esse negócio de fazer saída é muito perigoso”, ele corrobora o pensamento de várias pessoas, ou seja, as prostitutas merecem passar por essas situações violentas no trabalho, em decorrência da atividade que as torna vulneráveis a tais comportamentos.
4.2.2 Rebeca: “era só um pedaço de carne estranha, mas era meu filho...”
Nossa, um cara que tem aqui perto, que de vez em quando ele dá uma passadinha aqui na boate, a gente trabalhando. Um cara que mora ali na cidade vizinha
ali. Apaixonei. Mais agora eu não sou mais apaixonada não. Mais ainda faz parte da minha vida. É... Com ele, só com ele. Não, eu me relacionei com ele durante um ano e pouco, mas ele na casa dele porque ele é casado, né?! Aí eu engravidei, mas eu perdi o menino. Perdi o bebê dele. Perdi não, né?, eu fiz aborto. Lá em Pains mesmo. Uma mulher me deu uns remédios pra eu tomar e depois eu fui lá. Aí ela enfia um negócio na gente tipo um gancho e puxa o bebê. Nem era bebê direitinho, mas já tava formado. Eu tive todos os meus filhos, só esse que não teve jeito. Me marcou porque eu me sinto muito mal até hoje. Era só um pedaço de carne estranha, mas era meu filho, né?. Só que quando eu falei pro cara que eu tava grávida, ele só me deu essa opção. Ele falou que, se eu acabasse com o casamento dele, ele me matava. Ele também falou que nem sabia se era dele, que podia ser da cidade inteira. Mas ele sabia que era dele, porque a gente transava só sem camisinha. Porque ele trabalha numa calcinação aqui perto, aí eu ia lá pra ver ele e acabava rolando. Aí não tinha camisinha
Rebeca relata um momento de arrependimento em sua trajetória como prostituta, o aborto que fez de um filho que teria com um cliente por quem se apaixonou. No relato, aparecem indicadores de sentidos subjetivos que remetem a três questões: a gravidez indesejada na prostituição, o fato de se apaixonar por um cliente e o arrependimento por ter feito o aborto.
Rebeca, inicialmente, não relataria o que fez, mas depois decide contar. Ela diz: “Aí eu engravidei, mas eu perdi o menino. Perdi o bebê dele. Perdi não, né?, eu fiz aborto”. Observou-se que ela tem consciência de que fez algo errado e por isso tenta se justificar dizendo “Nem era bebê direitinho...”, “Eu tive todos os meus filhos, só esse que não teve jeito”. Embora Rebeca busque uma justificativa para o ato, observa-se que ela sente certo remorso por isso: “Era só um pedaço de carne estranha, mas era meu filho”.
A gravidez na prostituição também pode significar um problema para as mulheres assim como em outras profissões. O fato de ter um bebê que necessita de cuidados pode vir a impedir que elas realizem o trabalho. Dessa forma, é comum a realização de aborto por prostitutas, como relata Rebeca.
O indicador de sentido subjetivo que aponta para o fato de Rebeca estar apaixonada pelo cliente é perceptível nos seguintes trechos: “apaixonei“ e “mas ainda faz parte da minha vida”. O restante do relato, no entanto, mostra que essa paixão não era correspondida: “Ele falou que, se eu acabasse com o casamento dele, ele me matava. Ele também falou que nem sabia se era dele, que podia ser da cidade inteira”. Esse trecho explicita o desejo do cliente em manter o casamento e a desconfiança por Rebeca ser prostituta, indicando um sentido subjetivo que reforça o preconceito, ou seja, filho de prostituta não tem pai.
Outra possível análise é compreender a distinção que as pessoas, principalmente os homens, fazem entre a moça “para casar” e a prostituta, cujo papel é satisfazer os desejos sexuais masculinos e proporcionar diversão. De acordo com Juliano (2004), em matéria de gênero, a ideologia dominante divide as mulheres em “boas” e “más”, isto é, entre as que procuram ou não seguir as convenções e os papéis impostos socialmente a elas. A mulher boa está associada à esfera privada, ela é mãe/filha/avó/esposa do lar, comedida e paciente, ao passo que a mulher má associa-se à vida pública, ela é degenerada/desviante/amante/puta e age por impulso. Ao ser associada ao polo das mulheres más, à prostituta é atribuída uma desvalorização extrema que se manifesta por ações de violência física ou simbólica. Essas últimas consistem em dispositivos que visam negar que a mulher prostituta possa exercer papéis sociais e possuir atributos associados às demais mulheres.
4.2.3 Jéssica: “Não deu certo porque eles tira a gente daqui, mas não confia mais”
Olha, o que mais me marcou foi quando um cliente meu aqui me tirou da boate, montou uma casa pra mim e me assumiu como mulher dele. Me marcou porque eu nunca pensei que isso pudesse acontecer comigo. Porque geralmente os clientes nem olha pra gente fora daqui. Tipo assim, quando você encontra eles na rua. E ele não importou, ele me tirou daqui, e a gente morou junto um ano como marido e mulher mesmo. Ele gostava de mim mesmo. Você me perguntou se eu gostava dele, eu gostava, me sentia bem na vida de casada [risos]. Não deu certo porque eles tira a gente daqui, mas não confia mais. Acho que ele gostava de ter eu lá sempre, mas não confiava nem pra eu ir na padaria. E quando eu demorava um pouco, ele ficava doido. Nem trabalhar direito ele tava conseguindo. Principalmente agora mais pro final. Aí eu cansei, a gente tava brigando demais. Peguei minhas coisas e voltei pra cá. Acho que era isso que ele queria que eu fizesse, porque até hoje ele não falou nada comigo.
Jéssica relata um momento surpreendente em sua vida: o casamento com um cliente. No relato, aparecem diversos indicadores de sentido subjetivo que demonstram como ela ficou surpresa por esse acontecimento: “[o cliente] me tirou da boate, montou uma casa pra mim e me assumiu como mulher dele”. Observa-se que a saída da boate era algo desejado por ela. O fato de ter uma casa e um marido significava a possibilidade de dar outro rumo para sua história. No trecho “eu nunca pensei que isso pudesse acontecer comigo”, observa-se a surpresa diante do ocorrido, ou seja, Jéssica não tinha esperança alguma de sair da prostituição e constituir uma família.
Outros sentidos subjetivos que aparecem no relato demonstram o preconceito vivenciado por ser prostituta. Embora tenha se casado, o marido não confiava nela, e o que parecia a solução tornou-se o maior problema: “Não deu certo porque eles tira a gente daqui, mas não confia mais”. Essa fala indica que o fato de ser prostituta torna difícil o relacionamento amoroso, pois a desconfiança prevalece, ou seja, o parceiro não acredita na mudança de comportamento. Dessa forma, a (ex) prostituta nunca será alguém confiável.
Deixar de ser prostituta ou “sair da vida”, como muitos dizem, significa retomar a vida moralmente aceita, reconquistar a moral, tornar-se uma pessoa melhor. No entanto, observa-se que não é tão simples como parece. Jéssica se comportou conforme as expectativas da sociedade para uma boa esposa, conforme relata em outras ocasiões na pesquisa, ou seja, gostava do marido e da vida de casada, não o traiu em momento algum e desejava inclusive ter filhos. No entanto, não foi suficiente para que ganhasse a confiança do parceiro, pois carregará consigo o estigma de prostituta, ainda que não exerça mais essa atividade.
4.2.4 Kelly: “Mas foi bom começar assim, porque eu ainda ia ter muitos iguais a ele na vida”
Um fato marcante foi meu primeiro programa, quando eu me separei pela primeira vez do meu marido. A minha mãe já tinha me falado como que era pra eu fazer. Ela me deu umas dicas. Foi ela que arrumou esse cliente pra mim. Ele tava viajando com um caminhoneiro que ela saía. Aí eles chegaram, e ela falou com ele de mim, e ele topou. Era um cara de uns quarenta e poucos anos, casado e eu fui com ele pra o hotel que ele tava na beira da rodovia. Hotelzinho ruim. Ele era muito sério, quase não conversava. A gente chegou no quarto, ele falou assim: “Pode tirar a roupa e deitar aí que eu já venho”. Eu tirei a roupa e deitei, e fiquei esperando. Minha mãe tinha falado que era bom conversar antes, dá uns esfregas, mas ele tava muito sério, aí eu também não falei nada. Eu falei assim: “Você não quer pedir uma cerveja pra gente?”, aí ele falou que não bebia. Ele tava no banheiro, quando vê ele saiu de lá pelado, com o negócio duro já e deitou na cama. Antes ele falou: “Oh, eu sou casado, não tenho costume de trair minha esposa, mas já tem quase um mês que eu tô fora de casa e não tô aguentando mais”. Ele veio pra cima de mim e fez o que tinha de fazer, né?. Só que eu nunca tinha transado com ninguém a não ser meu marido. Eu fiquei calada igual ele, e enquanto ele mexia, parece que eu saí do meu corpo, parece que não era eu que tava ali. Foi rápido. Ele terminou, deixou o dinheiro em cima da mesa e falou que, quando voltasse do banheiro, não queria me ver ali mais. Eu comecei a chorar, me vesti, peguei o dinheiro e saí. Me marcou porque ele me tratou como se eu fosse um objeto e só. Mas foi bom começar assim, porque eu ainda ia ter muitos iguais a ele na vida.
Kelly compartilha o momento que marca o início de sua carreira na prostituição. Trata-se do primeiro programa que realizou. O relato é marcado por indicadores de sentidos subjetivos que se relacionam às dificuldades encontradas para tornar-se prostituta. O primeiro elemento é apontado quando ela fornece detalhes sobre a maneira fria e indiferente com que foi tratada pelo primeiro cliente: “Oh, eu sou casado, não tenho costume de trair minha esposa, mas já tem quase um mês que eu tô fora de casa e não tô aguentando mais”. Na fala, o cliente demonstra que se tratava apenas de saciar uma necessidade fisiológica, ou seja, não se tratava de prazer ou desejo algum por Kelly. O fato de esse cliente falar dessa forma com Kelly demonstra desprezo por ela. Em outro momento, ela revela: “Ele terminou, deixou o dinheiro em cima da mesa e falou que, quando voltasse do banheiro, não queria me ver ali mais”. Após ter a necessidade satisfeita, o cliente não quer mais a presença da prostituta. Observa-se que ele demonstra repugnância por Kelly, o que pode ser confirmado neste trecho: “ele me tratou como se eu fosse um objeto e só”.
Nesse relato, outro ponto interessante é a menção que Kelly faz à mãe em dois momentos. Primeiro, Kelly afirma que a mãe lhe deu dicas de como deveria se comportar durante o programa e, em seguida, diz que foi a mãe quem negociou o programa. Esse elemento pode indicar a importância que essa mãe tem na vida de Kelly, ainda que suas atitudes não sejam condizentes com o que comumente se espera de uma mãe. A forma como relata leva a crer que ela vê essa atitude da mãe como uma tentativa de ajudá-la. Quando se analisa a vida de Kelly, constata-se que ela foi abandonada pela mãe e que somente anos depois elas se reencontraram. Outro fato a se ressaltar é que a mãe é prostituta. Aparece então um sentido subjetivo que demonstra o quanto a figura da mãe é importante para ela e pode ter influenciado a decisão de se prostituir.
4.2.5 Camila: “É por isso que eu só faço programa em boates arrumadas igual essa; em zona rural, canto de rodovia, eu não vou de jeito nenhum”
O que mais me marcou na prostituição foi um assassinato que aconteceu numa boate que eu tava. Eu não conhecia bem a menina, mas a gente conversava muito, e ela era boa pessoa. Eu lembro do cara que matou ela até hoje. Eu até ajudei a fazer o retrato falado dele, mas nunca foi preso. Eu tava bebendo na mesa com eles. Podia ser eu no lugar dela. Ela era nova demais, bonita, cheia de plano. Ninguém sabe o que aconteceu que levou ele a matar ela daquele jeito. Coisa de psicopata mesmo. Eu vi ele saindo da boate, mas pensei que ela ainda tava no quarto se lavando, sei lá. Mas aí ela foi demorando pra voltar, e o cara que tomava conta da gente foi no quarto pra pegar o dinheiro com ela. Aí ele viu e começou a gritar a gente. Quando eu cheguei, ela tava nua na cama, era só sangue... com um saco plástico na cabeça amarrado com um cadarço no pescoço, com as mãos amarradas pra trás, toda esfaqueada, cheia de buraco no corpo inteiro. Eles tiveram relação sexual, não sei se antes ou depois de matar ela. Chamamos a polícia, eles até fizeram os procedimentos de rotina, mas não deu em nada. Eu lembro que ela não tinha mãe nem pai. Aí a irmã dela falou que não ia lá buscar o corpo, e a gente mesmo enterrou na cidade. As pessoas falavam que ela tinha caçado isso, que isso é o que acontece com puta safada. Foi muito ruim pra mim, e eu penso nisso até hoje. É por isso que eu só faço programa em boates arrumadas igual essa; em zona rural, canto de rodovia, eu não vou de jeito nenhum. Mas nada garante, né? Igual aqui tem câmera, mas dentro do quarto não tem. Se quiser matar a gente, mata.
Camila também relata um momento de violência que presenciou em sua carreira na prostituição. Trata-se do assassinato de uma colega de boate por um cliente, o que a deixou amedrontada. No relato, aparecem três diferentes indicadores de sentido. O primeiro refere-se à violência e à insegurança, existentes nos ambientes em que ocorre prostituição, como já relatado por Natasha. O segundo sentido remete ao medo que Camila sente de que o mesmo fato aconteça com ela. O terceiro, e também já mencionado, relaciona-se com o preconceito e descaso da sociedade por se tratar de um crime envolvendo prostitutas.
Nos trechos “Ninguém sabe o que aconteceu que levou ele a matar ela daquele jeito. Coisa de psicopata mesmo“ e “Quando eu cheguei, ela tava nua na cama, era só sangue...”, pode-se observar um indicador de sentido subjetivo que demonstra o requinte de violência com que a colega foi assassinada. O fato é que isso ocorreu dentro da boate, e ninguém viu ou ouviu nada suspeito, mostrando a falta de segurança a que essas profissionais muitas vezes estão sujeitas.
Segundo Moreira e Monteiro (2012), a mulher prostituta não foge ao contexto de violência historicamente construído. Para a sociedade, a atividade que ela exerce é ilícita e moralmente reprovável, o que a expõe a uma violência ainda maior. O tipo de ambiente onde ela atua também a deixa mais vulnerável, pois, na rua, está sujeita às agressões arbitrárias da polícia, dos agenciadores, dos clientes, principalmente em relação ao acerto do “programa” e uso da camisinha.
Diante da situação relatada, é aceitável que Camila sinta medo ao exercer seu trabalho: “Eu tava bebendo na mesa com eles. Podia ser eu no lugar dela”. Nessa parte do relato, aparece um indicador de sentido que remete à percepção de Camila de que o fato poderia ter acontecido com ela e com qualquer outra prostituta. Nota-se que ela tem consciência do risco iminente a que está sujeita todos os dias em seu ambiente de trabalho: “Igual aqui tem câmera, mas dentro do quarto não tem. Se quiser matar a gente, mata”. Esse trecho indica que as boates não oferecem segurança suficiente para suas profissionais.
Camila relata ainda a reação das pessoas ao que havia acontecido: “As pessoas falavam que ela [a colega] tinha caçado isso, que isso é o que acontece com puta safada”. Essa fala indica todo o preconceito, discriminação e banalização de algo com tamanha gravidade somente por ter ocorrido com uma prostituta.
4.2.6 Mel: “ser prostituta afasta as pessoas da gente e faz a gente também se afastar”
O que me marcou foi um dia que uma colega minha, bem mais velha, hoje ela nem faz programa mais, ela me disse que ser prostituta afasta as pessoas da gente e faz a gente também se afastar: “Não fica nessa vida muito tempo, senão você vai acabar como eu: sozinha!”. Quando ela me disse, eu pensei: “Claro que não, eu vou continuar levando a minha vida normalmente...”. E agora eu vejo que é assim mesmo; tipo assim, as amigas que eu tinha em Cerquilho eu quase não vejo, e acho que, por não poder ser sincera e verdadeira com elas e contar o que eu faço, eu preferi me afastar, sabe? E o mesmo acontece com namorado. Eu já tentei namorar um cara depois que eu faço programa, mas não dá. Me senti mal. E eu também evito de fazer amizades, porque as pessoas começam a participar de sua vida, e é complicado esconder de todo mundo. Eu trabalho muito e vejo que isso me impede de ter uma vida social normal. Tipo final de semana. eu tô trabalhando, não tem jeito de sair à noite. Às vezes bate uma solidão; tipo assim, no domingo à tarde, que quase não aparece programa... Mas eu escolhi isso, né?, e por enquanto ainda não dá pra sair dessa. Espero não ser tarde depois.
Mel relata um conselho que recebeu de uma colega mais experiente no ramo da prostituição. No trecho em que se apresenta tal conselho, emergem sentidos subjetivos que levam a considerar que a solidão é algo comum na vida das prostitutas. A colega de Mel é uma ex-prostituta, por isso ela diz: “Não fica nessa vida muito tempo, senão você vai acabar como eu: sozinha!”. A fala indica que a vivência dela como prostituta afastou as pessoas e a levou a uma vida solitária.
Observa-se, no decorrer do relato, que Mel percebe que os dizeres da colega eram verdadeiros, pois, após quatro anos na prostituição, ela já se sente sozinha. Em “as amigas que eu tinha em Cerquilho eu quase não vejo, e acho que, por não poder ser sincera e verdadeira com elas e contar o que eu faço, eu preferi me afastar”, Mel explicita um sentido subjetivo que indica que o fato de ser prostituta é o motivo pelo qual ela decidiu se afastar de alguns dos amigos, pois não se sente sincera ao omitir seu verdadeiro trabalho. No restante do relato, aparecem outros elementos que apontam também para o sentimento de solidão que ela sente por não ter namorado nem amigos para compartilhar seus momentos.
Ao final de seu relato, observa-se que Mel compreende que a solidão é fruto da escolha que fez ao se tornar prostituta. Verifica-se que ela pretende, no futuro, deixar essa atividade, para então retomar os relacionamentos amorosos e as amizades. No entanto, percebe-se que ela teme que, quando esse momento chegar, assim como aconteceu a colega, ela já tenha afastado as pessoas o suficiente para permanecer sozinha.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve como objetivo apreender os sentidos subjetivos do trabalho produzidos por mulheres prostitutas em cidades do interior de Minas Gerais. Utilizou-se a epistemologia qualitativa de Rey (2005) que enfatiza as questões histórico-culturais, rompendo com a dicotomia entre o social e o individual, e passa a entender a subjetividade como produção permanente de sentidos subjetivos na pressão recíproca entre a subjetividade social e a individual.
Observou-se que os sentidos subjetivos produzidos em um dado espaço social afetam consideravelmente os demais espaços sociais dos quais o sujeito participa, o qual também é afetado pela subjetividade existente nesses espaços. Dessa forma, tem-se o entendimento de Rey (2003) ao afirmar que a subjetividade é um sistema complexo, que se forma de maneira simultânea nos planos individual e social. A subjetividade das prostitutas como trabalhadoras é influenciada por sentidos subjetivos relacionados a outros espaços sociais, principalmente a família e a sociedade. Em contrapartida, esses espaços sociais afetados também influenciam o espaço social do trabalho. Nesse sentido, acredita-se que há uma inter-relação constante entre os diversos espaços sociais dos quais as prostitutas são participantes.
Os relatos sobre os fatos que marcaram a trajetória das participantes indicaram alguns sentidos subjetivos que puderam ser apreendidos em relação ao trabalho que essas profissionais realizam. Conforme se observou, tais relatos convergiram em alguns aspectos, já em outros abordaram temáticas diferenciadas, tendo em vista a história vivida por cada participante e a percepção que fazem da própria realidade.
Os fatos relatados indicaram sentidos relacionados a aspectos negativos do trabalho na prostituição: violência, aborto induzido, abandono, desconfiança, preconceito, discriminação, humilhação, medo, insegurança e solidão. Nos relatos, as participantes conseguiram apontar importantes temáticas que merecem ser discutidas no âmbito da prostituição.
No que se refere à violência, observa-se que ela esteve presente em diversos trechos dos relatos. Em alguns momentos, foi sofrida pelas próprias participantes; em outros, por colega de trabalho; e os atos violentos partiram sempre de clientes. A violência contra prostitutas tem sido mostrada na mídia e relatada em estudos que abordam a relação do ato com a prostituição. Por estarem disponíveis a momentos de intimidade com os clientes, as prostitutas tornam-se alvos fáceis para homens violentos. O mais agravante, nesse sentido, é a banalização desses crimes pela sociedade, pois ainda que se fale tanto em violência contra a mulher, atribui-se, no caso das prostitutas, ao trabalho que realizam a justificativa para a ocorrência de atos violentos.
O aborto induzido foi outro tema que surgiu no relato de uma das participantes. Observa-se que se trata de prática comum na prostituição, pois algumas profissionais acabam engravidando contra vontade. Por se encontrarem em idade fértil, com vida sexual ativa e nem sempre usando métodos contraceptivos adequados, a gravidez indesejada representa uma possibilidade, porém relacionada ao trabalho, e não à vida pessoal. De acordo com o estudo realizado por Madeiro e Rufino (2012), a interrupção da gravidez entre prostitutas apresenta prevalência mais elevada que a população geral em diversos países. Ainda que ilegal, reconhece-se que o aborto é uma prática bastante comum no Brasil. O problema maior em torno dessa questão é o risco de morte que se impõe às prostitutas ao realizarem o procedimento abortivo na clandestinidade, como foi o caso da participante que relatou o fato ocorrido com ela.
Outros sentidos subjetivos apreendidos relacionaram-se às muitas formas de preconceito, discriminação e humilhação a que estão sujeitas as prostitutas no exercício do trabalho. Trata-se do caráter imoral atribuído à prostituição pela sociedade no decorrer do tempo, o que torna seus profissionais indivíduos desmerecedores de qualquer respeito. Por causa da concepção da sociedade sobre essas trabalhadoras, estigmas são atribuídos às prostitutas, como a desconfiança vivenciada por uma das participantes que culminou no término de seu relacionamento conjugal. Ainda que “sair da vida” seja algo por algumas delas desejado, essa atitude não modifica a percepção que as pessoas têm a respeito delas.
Nos relatos, evidenciou-se também que o trabalho na prostituição não oferece segurança para as profissionais. Em tempos em que as empresas ressaltam com tanta veemência a importância da segurança no trabalho, chega a ser desumana a condição a que estão expostas essas mulheres. A prostituição evoluiu como mercado no atual cenário capitalista, no entanto continua estagnada no que diz respeito aos direitos das trabalhadoras como seres humanos.
Em se tratando de mulheres prostitutas, ou seja, pertencentes ao gênero feminino, observa-se que alguns estereótipos se acentuam ainda mais em decorrência do papel que a sociedade espera de uma mulher. No decorrer da história e na atualidade, ser prostituta é ir contra as expectativas sociais relacionadas ao papel das mulheres. Isso aumenta o preconceito em relação a essas trabalhadoras e afeta o sentido que atribuem ao trabalho delas.
Ademais, conforme afirma Rey (2003), a esfera social vai influenciar as demais esferas a que o indivíduo pertence e será também por estas influenciada. No caso das prostitutas, o papel que desempenham como mulheres na sociedade estará sempre comprometido pelo trabalho que realizam e este será influenciado pelo “não cumprimento” desse papel conforme as expectativas da sociedade.
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O Meaning of Working International Research Team (MOW) é uma equipe de investigação que passou a se destacar na condução de pesquisas com amostras representativas de diferentes países, com o intuito de definir e identificar variáveis que expliquem os significados que os sujeitos atribuem ao seu trabalho.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Dez 2015
Histórico
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Recebido
20 Jul 2014 -
Aceito
17 Jul 2015