Open-access Intubação traqueal e o paciente com o estômago cheio

Tracheal intubation and the patient with a full stomach

Resumos

A aspiração pulmonar do conteúdo gástrico, apesar de pouco frequente, exige cuidados especiais para sua prevenção. A depressão da consciência durante a anestesia predispõe os pacientes a esta grave complicação pela diminuição na função do esfíncter esofágico e dos reflexos protetores das vias aéreas. Guias de jejum pré-operatório elaborados recentemente sugerem períodos menores de jejum, principalmente para líquidos, permitindo mais conforto aos pacientes e menor risco de hipoglicemia e desidratação, sem aumentar a incidência de aspiração pulmonar perioperatória. O uso rotineiro de agentes que diminuem a acidez e volume gástrico parece estar indicado apenas para pacientes de risco. A intubação traqueal após indução anestésica por meio da técnica de sequência rápida está indicada naqueles pacientes, com risco de aspiração gástrica, em que não há suspeita de intubação traqueal difícil. A indicação correta da técnica, sua aplicação criteriosa e a utilização racional das drogas disponíveis podem promover condições excelentes de intubação, com curto período de latência, rápido retorno da consciência e da respiração espontânea, caso haja falha na intubação traqueal.O presente artigo tem como objetivo discutir os métodos atualmente utilizados para controlar o volume e o pH do conteúdo gástrico, proteger as vias aéreas durante as manobras de intubação e reduzir o refluxo gastroesofágico.

Intubação intratraqueal; Aspiração do conteúdo gástrico; Jejum; Cartilagem cricóide


Pulmonary aspiration of gastric contents, despite its infrequent occurrence, demands special preventive care. Decreased oesophageal sphincter function and protective airway reflexes caused by depression of consciousness, predispose patients to this severe complication. Recently developed preoperative fasting guidelines suggest shorter fasting periods, especially for liquids, providing more comfort to patients and less risk of hypoglycemia and dehydration, without increasing incidence of perioperative pulmonary aspiration. Routine use of drugs decreasing gastric acidity and volume seems to be indicated only for high risk patients. Tracheal intubation after rapid sequence induction of anesthesia is indicated for patients at risk of gastric content aspiration without suspicion of difficult intubation. Adequate indication of the technique, its judicious application and rational use of available drugs may promote excellent intubation conditions, with fast onset, early return to consciousness and spontaneous breathing should tracheal intubation fail. This review intends to discuss methods recently used to control volume and pH of the gastric content, protect the airways during the intubation maneuver and to decrease the gastroesophageal reflux.

Intratracheal intubation; Respiratory aspiration; Fasting; Cricoids cartilage


ARTIGO DE REVISÃO

Eduardo Toshiyuki MoroI; Norma Sueli P. MódoloII

ICo-Responsável pelo Centro de Ensino e Treinamento da Sociedade Brasileira de Anestesiologia (Faculdade de Medicina da PUC-SP e Conjunto Hospitalar de Sorocaba). São Paulo, SP

IIProfessora adjunta e Livre-docente do Depto de Anestologia da Faculdade de Medicina da Unesp, Botucatu, SP

RESUMO

A aspiração pulmonar do conteúdo gástrico, apesar de pouco frequente, exige cuidados especiais para sua prevenção. A depressão da consciência durante a anestesia predispõe os pacientes a esta grave complicação pela diminuição na função do esfíncter esofágico e dos reflexos protetores das vias aéreas. Guias de jejum pré-operatório elaborados recentemente sugerem períodos menores de jejum, principalmente para líquidos, permitindo mais conforto aos pacientes e menor risco de hipoglicemia e desidratação, sem aumentar a incidência de aspiração pulmonar perioperatória. O uso rotineiro de agentes que diminuem a acidez e volume gástrico parece estar indicado apenas para pacientes de risco. A intubação traqueal após indução anestésica por meio da técnica de sequência rápida está indicada naqueles pacientes, com risco de aspiração gástrica, em que não há suspeita de intubação traqueal difícil. A indicação correta da técnica, sua aplicação criteriosa e a utilização racional das drogas disponíveis podem promover condições excelentes de intubação, com curto período de latência, rápido retorno da consciência e da respiração espontânea, caso haja falha na intubação traqueal.O presente artigo tem como objetivo discutir os métodos atualmente utilizados para controlar o volume e o pH do conteúdo gástrico, proteger as vias aéreas durante as manobras de intubação e reduzir o refluxo gastroesofágico.

Unitermos: Intubação intratraqueal. Aspiração do conteúdo gástrico. Jejum. Cartilagem cricóide.

SUMMARY

Pulmonary aspiration of gastric contents, despite its infrequent occurrence, demands special preventive care. Decreased oesophageal sphincter function and protective airway reflexes caused by depression of consciousness, predispose patients to this severe complication. Recently developed preoperative fasting guidelines suggest shorter fasting periods, especially for liquids, providing more comfort to patients and less risk of hypoglycemia and dehydration, without increasing incidence of perioperative pulmonary aspiration. Routine use of drugs decreasing gastric acidity and volume seems to be indicated only for high risk patients. Tracheal intubation after rapid sequence induction of anesthesia is indicated for patients at risk of gastric content aspiration without suspicion of difficult intubation. Adequate indication of the technique, its judicious application and rational use of available drugs may promote excellent intubation conditions, with fast onset, early return to consciousness and spontaneous breathing should tracheal intubation fail. This review intends to discuss methods recently used to control volume and pH of the gastric content, protect the airways during the intubation maneuver and to decrease the gastroesophageal reflux.

Key words:Intratracheal intubation. Respiratory aspiration. Fasting. Cricoids cartilage.

INTRODUÇÃO

Apesar da baixa incidência, a aspiração pulmonar do conteúdo gástrico pode ter consequências devastadoras para o indivíduo. A depressão da consciência durante a anestesia predispõe os pacientes a esta grave complicação pela diminuição da função do esfíncter esofágico e dos reflexos protetores das vias aéreas. Alguns pacientes apresentam maior risco de aspiração pulmonar, determinado pelo tempo de jejum insuficiente, por condições que retardam o tempo de esvaziamento gástrico ou pela presença do refluxo gastroesofágico. O presente artigo tem como objetivo discutir os métodos atualmente utilizados para controlar o volume e o pH do conteúdo gástrico, proteger as vias aéreas durante as manobras de intubação e reduzir o refluxo gastroesofágico.

Definições1

refluxo: passagem de conteúdo gástrico para o esôfago;

regurgitação: passagem de conteúdo gástrico para a orofaringe (sem esforço);

vômito: passagem de conteúdo gástrico para a orofaringe associada à peristalse retrógrada e contrações musculares abdominais;

aspiração: inalação de material sólido ou líquido para um nível abaixo das cordas vocais;

pneumonite aspirativa: reação inflamatória pulmonar aguda e não-infecciosa, resultado da aspiração;

pneumonia aspirativa: reação inflamatória pulmonar aguda mediada por agentes infecciosos.

Incidência e fatores de risco

A maior parte dos estudos sobre a incidência de aspiração pulmonar do conteúdo gástrico é baseada em investigações retrospectivas de dados obtidos no período perioperatório. A taxa de mortalidade, segundo estudos retrospectivos realizados em diferentes centros, variou de zero a 4,5% dos casos de aspiração pulmonar2.

Os dados abaixo representam um resumo dos resultados obtidos nestes trabalhos1:

Cirurgia eletiva

1/ 2000 a 3000 adultos

1/ 2600 pacientes pediátricos

Cirurgia de emergência

1/ 600 - 800 adultos

1/ 400 pacientes pediátricos

Cirurgia obstétrica

1/ 430-900 cesariana

1/ 6000 parto via vaginal

Anestesia regional

1/ 30 000

Kluger et al.3 avaliaram 244 casos de aspiração pulmonar relatados ao Australian Anaesthetic Incident Monitoring Study (AIMS). Segundo os autores, os principais fatores relacionados com aspiração pulmonar foram: cirurgias realizadas em caráter de emergência, anestesia inadequada, presença de doença abdominal, obesidade, emprego de opióides, posição de litotomia e dificuldade de intubação.

Segundo informações obtidas na base de dados da ASA Closed Claims4, a aspiração pulmonar perioperatória foi responsável por 158 relatos que estão resumidos na Tabela 1.

Os valores críticos para o risco de pneumonite aspirativa, derivados de modelos animais, são o volume do conteúdo gástrico maior que 0,4 ml.kg-1 e o pH menor que 2,5 5. Porém, diferenças entre as espécies tornam a extrapolação para humanos difícil e imprecisa. Além disso, pacientes saudáveis com jejum pré-operatório prolongado, frequentemente apresentam volume gástrico maior que 0,4 ml.kg-1 e pH menor que 2,5 6,7.

Assim, apesar de haver evidências de uma relação direta entre volume aspirado e gravidade da pneumonite8, a relação entre o volume gástrico e o volume aspirado tem sido contestada e a sua validade necessita de mais estudos para ser esclarecida9.

O volume do conteúdo gástrico é resultado do balanço entre a entrada (dos alimentos, da saliva e do suco gástrico) e a saída deste material para o duodeno. Água e outros fluidos passam pelo estômago rapidamente. Entretanto, o tempo de esvaziamento gástrico para sólidos varia consideravelmente. Entre os tipos de alimentos ingeridos, o esvaziamento dos lipídeos é mais lento, o das proteínas mais rápido e o dos carboidratos, intermediário10. Não existe uma definição absoluta para alimento sólido. Em termos práticos, sólidos são alimentos que se encontram neste estado no estômago 11. Assim, a gelatina é sólida antes da ingestão, mas se encontra no estado líquido no estômago. Por outro lado, o leite forma componentes sólidos no interior do estômago, levando horas para seu esvaziamento.

Prevenção da aspiração pulmonar do conteúdo gástrico

Métodos utilizados para prevenir a aspiração pulmonar incluem o controle do conteúdo gástrico, redução do refluxo gastroesofágico e proteção das vias aéreas. Isto é obtido por meio do jejum pré-operatório, diminuição da acidez gástrica, estímulo ao esvaziamento gástrico e manutenção da competência do esfíncter esofágico 12. A proteção das vias aéreas requer compressão da cartilagem cricóide (manobra de Sellick)13, posicionamento adequado do paciente, intubação traqueal sob indução com a técnica sequência rápida ou com o paciente acordado e a aspiração da sonda gástrica antes da indução da anestesia (quando previamente posicionada)14.

CONTROLE DO CONTEÚDO GÁSTRICO

Jejum Pré-operatório

Apesar do conhecimento acumulado até o momento, não é possível predizer com certeza o conteúdo gástrico. Pacientes saudáveis com jejum prolongado podem, no dia da cirurgia, apresentar vômito com conteúdo da refeição do dia anterior. Outros podem apresentar hipoglicemia, desidratação e irritabilidade.

O objetivo do jejum pré-operatório é diminuir o risco e o grau de regurgitação do conteúdo gástrico, prevenindo assim a aspiração pulmonar e suas consequências. A antiga orientação "nada por boca após meia-noite" tem sido substituída por períodos menores de jejum pré-operatório. Existem vários benefícios quando pacientes, principalmente as crianças, ingerem líquidos antes da anestesia, incluindo aumento da satisfação e diminuição da irritabilidade, aumento do pH gástrico, diminuição do risco de hipoglicemia, lipólise e desidratação2.

Estudos em diferentes centros, envolvendo crianças que ingeriram vários tipos de líquidos sem resíduos (água, chá, café, suco de fruta sem polpa, todos sem álcool e com pouco açúcar) em volumes variáveis, concluíram que a ingestão de líquidos, sem limite de volume, pode ser permitida, com segurança, 2 horas ou mais antes da cirurgia 15,16.

Normalmente, o ritmo de produção de secreção ácida do estômago é de 0,6 ml.kg-1.h-1, mas pode aumentar de forma considerável durante o jejum e a fome6.

Foi observada, em muitos casos, a diminuição do pH gástrico com o aumento da duração do jejum pré-operatório. A ansiedade é um estímulo emocional que pode aumentar a produção de HCl, de forma similar à fase cefálica da secreção gástrica, o que explica o aumento do volume e da acidez gástrica após jejum prolongado. O aumento do pH gástrico dos pacientes que receberam líquidos 2 a 3 horas antes da intervenção cirúrgica pode ser resultado de diluição das secreções ácidas e/ou decréscimo na sua produção pela diminuição dos níveis de ansiedade e fome. A diminuição do volume gástrico nos pacientes que receberam líquido, poucas horas antes da cirurgia, pode ocorrer por estimulação da motilidade do estômago causada pela entrada de líquido frio e/ou pela distensão física do estômago4. Grupos de revisão têm elaborado recomendações para o jejum pré-operatório (Tabela 2)17.

A American Society of Anesthesiologists, por meio da ASA Task Force on Preoperative Fasting 18, desenvolveu um guia prático para o jejum pré-operatório e para o uso de fármacos que reduzem o volume e a acidez gástrica. Baseado em extensa revisão da literatura, o guia se refere a pacientes saudáveis, de todas as idades, submetidos a procedimentos eletivos, sem incluir pacientes com maior risco de aspiração. Tais recomendações podem ser adotadas, modificadas ou rejeitadas de acordo com as necessidades clínicas individuais e estão sujeitas às revisões periódicas de acordo com a evolução do conhecimento sobre o assunto. As recomendações estão resumidas na Tabela 3.

A American Society of Anesthesiologists Task Force on Obstetrical Anesthesia19 recomenda que a ingestão moderada de líquidos sem resíduos pode ser permitida para gestantes em trabalho de parto não complicado. Nos casos em que há outro fator de risco associado (diabetes, obesidade mórbida, via aérea difícil) ou paciente com risco elevado para evolução para parto cesariano, deve haver restrição líquida determinada "caso a caso". Com relação aos sólidos, a comissão concorda que o período de 6 a 8 horas (dieta leve ou rica em gordura) para cesarianas eletivas é o mais apropriado. Pacientes em trabalho de parto não devem ingerir sólidos.

Profilaxia farmacológica

Os antagonistas dos receptores H2, quando administrados 90 a 120 minutos antes da cirurgia, reduzem o volume e a acidez gástrica. No entanto, pacientes que recebem estes agentes de forma regular podem desenvolver tolerância, o que parece não ocorrer com os inibidores da bomba de prótons. Estes últimos são mais eficazes quando administrados em doses subsequentes (na noite anterior e na manhã da anestesia). Apesar da eficácia comprovada para a diminuição do volume e da acidez gástrica, não há evidências de que a administração profilática dos inibidores da bomba de prótons ou dos antagonistas H2 reduza a incidência de aspiração ou a intensidade da lesão pulmonar em pacientes que aspiraram20.

Os agentes gastrocinéticos, dos quais a mais conhecida é a metoclopramida, podem diminuir o risco de aspiração por diminuir o volume do conteúdo gástrico, enquanto os antiácidos atuariam apenas no pH. No entanto, também não há evidências concretas de que estes fármacos são capazes de reduzir a incidência ou a gravidade da aspiração pulmonar. Os antiácidos particulados podem aumentar o risco de lesão pulmonar se houver aspiração, portanto devem ser evitados. A ASA Task Force on Preoperative Fasting 18 considera que não existem evidências que apóiem o emprego rotineiro destes fármacos em indivíduos saudáveis, mas apenas em pacientes de risco. Para os casos obstétricos deve-se considerar o emprego de antiácidos não-particulados, dos antagonistas H2 e/ou da metoclopramida como prevenção da aspiração pulmonar19.

INTUBAÇÃO TRAQUEAL

Paciente acordado versus indução com a técnica de sequência rápida

A indução da anestesia deve ser realizada com atenção especial para a possibilidade de hipóxia e aspiração pulmonar do conteúdo gástrico. Estas complicações podem ser evitadas pela apropriada inserção de um tubo na traquéia. No entanto, segundo dados do ASA Closed Claims4, 42% dos casos de aspiração pulmonar ocorreram durante a laringoscopia e a intubação traqueal. Não há evidências consistentes para se determinar com segurança qual a melhor técnica de abordagem das vias aéreas dos pacientes de risco para aspiração pulmonar, ou seja, com o paciente acordado ou após indução com a técnica de sequência rápida. O mais racional talvez seja avaliar cada caso de uma forma isolada. Assim, a intubação traqueal das crianças e dos pacientes que não colaboram deve ser realizada, sempre que possível, após indução com a técnica de sequência rápida. Por outro lado, uma vez identificada a dificuldade de intubação, a conduta preconizada é a passagem do tubo oro ou nasotraqueal com o paciente acordado, precedida da devida preparação (sedação consciente, antissialagogo, anestesia tópica ou bloqueio do nervo laríngeo superior e do ramo lingual do nervo glossofaríngeo). Independentemente da técnica adotada, o preparo do equipamento que deve incluir, além do material para intubação traqueal, um aspirador e um laringoscópio de reserva e equipamento para possível falha de intubação (máscara laríngea ou fibroscópio)21.

Posicionamento

A melhor posição para o paciente durante a indução da anestesia e a laringoscopia ainda não foi demonstrada de forma definitiva. Sellick13, durante a descrição da técnica de compressão da cartilagem cricóide, sugere que o paciente esteja em posição supina, com leve rebaixamento do dorso, para facilitar a drenagem do conteúdo gástrico caso ocorra regurgitação. Jeske et al.22 avaliaram pacientes com estômago cheio, em posição com dorso elevado e rebaixado, e não observaram diferença significativa na incidência de refluxo gastroesofágico entre os grupos. Porém, quando a eficácia da pré-oxigenação foi avaliada, a posição de elevação do dorso (20º) foi significativamente mais eficaz que a posição sem elevação23. Talvez a opção mais racional para o posicionamento do paciente durante a indução da anestesia seja a de dorso elevado (20-30º) durante a pré-oxigenação e, caso ocorra regurgitação, deve-se adotar imediatamente a posição de dorso rebaixado.

Sonda gástrica

É comum a prática de inserção da sonda gástrica antes da anestesia nos pacientes de risco para aspiração pulmonar, com o objetivo de esvaziar o estômago. Sellick recomenda, em seu trabalho original13, que a sonda seja retirada antes da indução da anestesia. Porém, dois estudos em cadáveres mostraram que a eficácia da manobra de Sellick não está diminuída com a sua presença 24,25. Assim, a sonda funcionaria como uma passagem segura do conteúdo gástrico quando uma compressão eficaz na cartilagem cricóide fosse aplicada.

Parece não haver diferença significativa na incidência de aspiração pulmonar quando diferentes calibres de sonda gástrica são empregadas26. Um balão associado à sonda tem sido empregado com sucesso, como objetivo de ocluir a cárdia e, portanto impedir o refluxo gastroesofágico 27. Esta sonda com balão gástrico tem sido estudada em conjunto com a máscara laríngea. Observou-se que a sonda não dificultava a inserção da máscara laríngea e vice-versa. Esta associação representa uma boa opção para manipulação de vias aéreas difíceis em pacientes sob risco de aspiração 28.

Pressão na cartilagem cricóide

Sellick13, em 1961, descreveu a importância da pressão aplicada na cartilagem cricóide para prevenção da regurgitação e, portanto, para a prevenção da aspiração do conteúdo gástrico. Estudos realizados em cadáveres sugerem que a força aplicada deve ser de 30 a 40 N (equivalente a 3 a 4 kg) para que seja eficaz, mesmo em situações de aumento da pressão gástrica. No entanto, durante o vômito, a manobra deve ser suspensa, pois pode haver ruptura esofágica. Diferentes autores têm demonstrado a eficácia da pressão na cartilagem cricóide para prevenção da insuflação gástrica e para a redução da incidência de refluxo em crianças e adultos29. No entanto, quando aplicada de forma incorreta, pode dificultar a laringoscopia e a intubação traqueal30.

Warner et al31, avaliaram mais de 60.000 crianças submetidas à anestesia geral e observaram que a incidência de aspiração pulmonar foi de 0,04% (24 casos). Segundo os autores, a manobra de Sellick havia sido aplicada em todas as crianças que apresentaram esta complicação. Segundo informações do ASA Closed Claims 4, 11% dos casos de aspiração pulmonar ocorreram apesar da aplicação da pressão na cartilagem cricóide.

Meek et al32 empregaram um modelo de via aérea para avaliar a compressão na cartilagem cricóide realizada por 135 anestesiologistas e observaram que apenas um terço dos profissionais aplicaram a força recomendada. Em dois estudos radiológicos (ressonância magnética e tomografia computadorizada)33,34 que avaliaram voluntários, não anestesiados, com a cabeça em "posição neutra", mais de 50% dos indivíduos apresentavam o esôfago em posição lateral em relação à linha média do corpo vertebral. Quando a posição da cartilagem cricóide foi considerada, a incidência de desvio lateral foi de 33%. Segundo Smith et al.33,34, após a aplicação da manobra de Sellick, estes valores foram de 90% e 67%, respectivamente, o que sugere que, em alguns casos, a compressão da cartilagem cricóide pode não ser transmitida para o esôfago de forma eficaz.

Durante a indução da anestesia, enquanto o paciente estiver consciente, a força aplicada na cartilagem cricóide deve ser de aproximadamente de 10 N e de 30 N quando houver perda da consciência35. Uma referência prática para conhecer qual a força a ser aplicada na cartilagem cricóide seria o emprego de seringas de 20 ml (BD). A força necessária para comprimir 10 ml de ar, quando o bico da seringa se encontra fechado é de aproximadamente 30 N36.

Falha na intubação em paciente inconsciente e com estômago cheio

Olsson et al.37, avaliaram casos de aspiração pulmonar e observaram que em 67% destes pacientes houve dificuldade no manuseio da via aérea. O primeiro passo do algoritmo da via aérea difícil, elaborado pela American Society of Anesthesiologists, é a identificação dos pacientes com provável intubação traqueal difícil38. No entanto, quando a dificuldade no manuseio das vias aéreas somente é percebida após indução da inconsciência, a ventilação sob máscara facial seria imediatamente recomendada, mas no paciente de estômago cheio esta conduta exige alguns cuidados. Segundo Moynihan et al.39, a compressão na cartilagem cricóide é capaz de impedir a insuflação gástrica desde que a ventilação seja aplicada com pressão menor que 40 cmH2O. Nesta situação seria possível ventilar o paciente de forma suave, desde que a manobra de Sellick fosse aplicada de forma correta. Contornado o risco de hipóxia, a melhor opção seria despertar o paciente e considerar outras técnicas não-invasivas de acesso à via aérea (fibroscopia; laringoscópios não convencionais; máscara laríngea como um guia para intubação, com uso de fibroscópio ou não; intubação com estilete guia, estilete luminoso ou tubo trocador; intubação retrógrada; intubação nasal ou oral às cegas; broncoscopia rígida). Quando isto não for possível, as opções seriam a traqueostomia ou a cricotireoidostomia cirúrgica ou percutânea40.

A ventilação e a oxigenação podem ser facilitadas pelo emprego da máscara laríngea, mas segundo alguns estudos a manobra de Sellick dificulta o seu correto posicionamento 41,42. Nestes casos, pode ser necessária a interrupção da manobra temporariamente, o que parece ser uma opção razoável, já que a compressão da cartilagem cricóide pode se tornar ineficaz após poucos minutos de aplicação 43.

Apesar da máscara laríngea e de outros acessórios supra-glóticos não isolarem a laringe do trato gastrintestinal, o emprego destes instrumentos de acesso à via aérea parece não aumentar a incidência de vômito e de aspiração pulmonar. Em uma metanálise envolvendo 10.000 anestesias em que se empregou a máscara laríngea, a incidência de aspiração foi de 0,02%44. No entanto, como o emprego da máscara laríngea está associado a uma redução na barreira pressórica representada pelo esfíncter esofágico inferior45, deve-se evitar a utilização nos casos em que há história de refluxo gastroesofágico em pacientes que apresentam aumento da pressão intra-abdominal ou quando há retardo do esvaziamento gástrico. A máscara laríngea de intubação (FastrachTM), apresenta modificações que permitem o direcionamento das intubações traqueais. Quando comparada com a máscara laríngea tradicional, é mais curta e apresenta diâmetro maior. O desenvolvimento de um novo modelo de máscara laríngea, ProSeal (Laryngeal Mask Company, Henley on Thames, UK) permite, através de uma abertura esofágica, a passagem de sonda para melhor drenagem do conteúdo gástrico, além de melhor bloqueio à insuflação gástrica durante a ventilação com pressão positiva. Estudo recente mostra que a ProSeal é mais eficaz que a tradicional máscara laríngea na prevenção do refluxo, o que a torna uma boa opção para pacientes com risco de aspiração e com falha de intubação traqueal46, 47.

"Não intubo, não ventilo"

Quando a ventilação com a máscara facial ou com a laríngea se tornar ineficaz, deve-se adotar técnicas alternativas que incluem o emprego do CombitubeTM, da fibroscopia (com ou sem a máscara laríngea como guia), do estilete luminoso ou de laringoscópios não-convencionais. Outras opções são a intubação às cegas, a ventilação com jato trans-traqueal ou a utilização de técnicas invasivas de emergência como a traqueostomia ou a cricotireoidostomia38.

Uso racional dos fármacos

O intervalo entre a perda da consciência e a intubação traqueal constitui o período de maior risco para a aspiração do conteúdo gástrico. Um dos maiores desafios para os protocolos de indução com a técnica de sequência rápida é a redução deste período de risco, mantendo excelentes condições de intubação traqueal, ou seja, hipnose, relaxamento muscular e bloqueio da resposta autonômica à laringoscopia, com rápida instalação e de curta duração. Isso pode ser obtido com o emprego de agentes hipnóticos (propofol, tipental, etomidato ou cetamina), opióides (alfentanil ou remifentanil) e bloqueadores neuromusculares (rocurônio ou succinilcolina). Deve-se evitar broncoespasmo, laringoespasmo e instabilidade hemodinâmica21.

A intubação traqueal sem bloqueador neuromuscular é possível, principalmente com a associação do remifentanil ao propofol48 ou com o tiopental 49. Entretanto, Schlaich et al.50, em 2000, encontraram condições de intubação consideradas ruins em 40% dos pacientes após a administração do propofol (2 mg.kg-1) e do remifentanil (1,5 µg.kg-1) sem o emprego de bloqueador neuromuscular, o que predispõem os pacientes ao trauma de vias aéreas, à falha de inserção do tubo traqueal e à dificuldade de ventilação51. Assim, a técnica de indução com sequência rápida sem bloqueador neuromuscular deve ser reservada para aqueles casos em que há contra-indicação ao uso da succinilcolina ou emprego dos bloqueadores neuromusculares adespolarizantes.

Succinilcolina versus rocurônio

A succinilcolina foi introduzida na prática clínica em 1951 e, a despeito de seus inúmeros efeitos colaterais, continua sendo empregada até os dias atuais52. Sua popularidade se deve ao curto tempo de latência, que se situa entre 30 e 60 segundos e a sua ultracurta duração (menos de 10 minutos)53. A incidência de complicações graves, tais como o desencadeamento de hipertermia maligna, da hipercalemia fatal, assim como bradidisritmias, o aumento das pressões intragástrica e intra-ocular, tem levado à busca de agentes do tipo adespolarizante, sem estes efeitos indesejáveis, mas com tempo latência e duração semelhantes.

O rocurônio vem se consagrando para o uso em pacientes com estômago cheio, pela rápida instalação do bloqueio nas cordas vocais e a relativa estabilidade cardiovascular. No entanto, apresenta maior tempo de ação, limitando seu uso em procedimentos curtos ou impõe maior risco aos pacientes com possibilidade de intubação difícil caso haja falha na intubação traqueal21.

Em uma meta-análise que comparou a frequência de condições excelentes de intubação traqueal, os autores concluíram que a succinilcolina foi mais eficaz quando comparada ao rocurônio54.

CONCLUSÃO

A aspiração pulmonar do conteúdo gástrico, apesar de pouco frequente, exige cuidados especiais para sua prevenção, como o controle do conteúdo gástrico, a redução do refluxo gastroesofágico e a proteção das vias aéreas. Guias de jejum pré-operatório elaborados recentemente sugerem períodos menores de jejum, principalmente para líquidos, permitindo mais conforto aos pacientes e menor risco de hipoglicemia e desidratação, sem aumentar a incidência de aspiração pulmonar perioperatória. O uso rotineiro de agentes que diminuem a acidez e o volume gástrico está indicado apenas para pacientes de risco. A proteção das vias aéreas requer a manobra de compressão da cartilagem cricóide, posicionamento adequado do paciente, intubação traqueal sob indução com a técnica sequência rápida ou com o paciente acordado. A utilização racional dos fármacos disponíveis deve proporcionar excelentes condições de intubação traqueal, promover curto período de latência, rápido retorno da consciência e da ventilação espontânea caso haja falha na intubação. Entretanto, até o presente momento, nenhuma técnica descrita representa segurança completa contra a aspiração pulmonar.

Conflito de interesse: não há

Artigo recebido: 07/08/07

Aceito para publicação: 27/07/08

Trabalho realizado no Centro de Ensino e Treinamento da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, Faculdade de Medicina da PUC-SP e Conjunto Hospitalar de Sorocaba, SP

* Correspondência: Rodovia Raposo Tavares. Km 113 Avenida Araçoiaba SR 2 - UA 85 - Condomínio Fazenda Lago Azul. CEP 18190-000 - Araçoiaba da Serra - SP. edumoro@terra.com.br

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  • Intubação traqueal e o paciente com o estômago cheio
    Tracheal intubation and the patient with a full stomach
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Recebido
      07 Ago 2007
    • Aceito
      27 Jul 2008
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