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Nós, os médicos brasileiros

Editorial

NÓS, OS MÉDICOS BRASILEIROS

Dizem os sociólogos que há um processo histórico pelo qual uma ocupação se transforma numa profissão. Tudo se inicia com necessidades individuais ou coletivas que precisam ser satisfeitas e, progressivamente, uma atividade acaba se transformando em ocupação remunerada. Numa fase seguinte, esta ocupação passa a sistematizar o conhecimento e a habilidade requerida para um bom desempenho. Conforme o grau de conhecimento e habilidade necessárias, esta ocupação passa a requerer a presença de uma entidade de ensino para graduar os novos técnicos. Mais adiante, estes técnicos com o intuito de proteger o seu mercado de trabalho, e eventualmente evitar os desvios éticos dentro da ocupação, propõem uma entidade corporativa para lutar por seus direitos e estabelecer um código de comportamento ou de ética esperado. Finalmente, a sociedade se dá conta que suas necessidades serão melhor atendidas se o Estado regulamentar os direitos e deveres desses técnicos, bem como a maneira como eles são formados para exercer o seu ofício. Assim, cria leis e regulamentos que definem claramente que a sociedade estará melhor atendida se a ocupação se transforma numa profissão. A profissão médica não fugiu a esse processo. Até um passado recente, colegas descrevem uma época grandiosa da profissão. Ensino primoroso, com mestres que ensinavam a importância da relação médico-paciente, o valor da anamnese e do exame clínico minuciosos e, além disso, a intangibilidade do segredo profissional.

Anos dourados do exercício de uma medicina pura, com honorários profissionais sagrados, sem cobranças exorbitantes. O cirurgião realmente um cirurgião, com formação médica ampla e o clínico propedeuta e terapeuta nato. Respeito social e científico para o profissional, e dedicação, acima de tudo, para o paciente.

Nos últimos 20 anos, gradativamente, ocorreram transformações em todas as áreas de atividade. Surgem novos objetivos e novos paradigmas que impõem novos comportamentos. E a nossa medicina, obviamente, também vem mudando nessa "evolução". Cabe identificar problemas e buscar soluções que possam aprimorar a sua atuação.

Há problemas quanto ao ensino médico. A abertura desenfreada e desestruturada de novas escolas médicas resultou em salários aviltantes de professores e funcionários e no sucateamento de equipamentos e instalações. Desse modo observou-se, em muitas situações, uma defasagem entre a medicina ensinada e a praticada em clínica privada. Assim como ocorreu no ensino médio, surgiram escolas privadas cobrando anuidades exorbitantes sem a qualidade de ensino esperada. Conseqüentemente, verifica-se prejuízo aos alunos além do desestímulo à carreira acadêmica que contribui para manter um ciclo vicioso. O inegável avanço tecnológico, a par do aprofundamento do conhecimento científico dos diferentes segmentos biológicos humanos, terminou por conduzir a medicina ao deslumbrante caminho das especialidades e de suas subdivisões. Este universo expandido de conhecimentos capacita o aluno, coloca-o em contato com a super intimidade dos fenômenos científicos, torna-o conhecedor profundo de fatos pontuais de áreas médicas específicas. Leva, porém, à especialização anacrônica. É o predomínio da parte em detrimento de todo. Proliferam os especialistas e desaparecem os generalistas antes conhecidos como "médicos da família", cujas placas, de saudosa memória, diziam "Clínica Geral – Cirurgia", "Médico de Crianças", "Médico de Senhoras – Partos e Operações", entre outras. Por sua vez, o profissional formado necessita, desde que seja atuante e responsável, de aprendizagem e treinamento, a fim de suprir suas deficiências de formação e também para acompanhar as inovações que se aglomeram ininterruptamente.

Evidentemente, a política assistencial sofreu alterações profundas tanto no plano público quanto no privado. Ambos são compelidos a atualizar todo o arsenal propedêutico e terapêutico, sem êxito na maioria das vezes devido às restrições econômicas. Como conseqüência, discrepâncias notáveis na qualidade de atendimento entre serviços primários e terciários são observadas. A rede pública é carente. Hospitais abandonados e postos de saúde insuficientes. Esse cenário favorece o desenvolvimento de empresas privadas que lucram com a doença de uma população cada vez mais carente e salários médicos que não refletem nem de longe a responsabilidade de diagnósticos e tratamentos. Instituições que em outros tempos foram modelos não só no Brasil como na América Latina, transformaram-se em trampolins políticos onde os arranjos feitos nos bastidores superam o saber e a liderança científica.

A clínica privada foi, por outro lado, assaltada por estruturas atípicas, os planos de saúde, que se disseminaram rapidamente, foram destruindo a dignidade da atividade médica profissional. Esses planos, de modo geral, privilegiam a quantidade pela qualidade. Oferecem honorários espúrios e aceitam qualquer tipo de atendimento desde que as necessidades de seus clientes sejam esvaziadas.

Como conseqüência inevitável desse panorama, a relação entre os componentes do indissociável binômio médico-paciente vem sofrendo profundas modificações. Com o desaparecimento do generalista em detrimento do especialista surgem grandes lacunas na assistência médica ao ser humano, onde se deixa ao paciente a difícil tarefa de ligar o sinal/sintoma ao profissional especialista escolhido. A Pediatria, por acompanhar o crescimento e desenvolvimento da criança, do nascimento até a adolescência, terminou por ocupar, ainda que timidamente, o espaço do médico de família. Com a "era da informação" o médico deixou de ser "senhor absoluto da verdade", que determina de maneira autoritária a conduta sem considerar a opinião do paciente. Surgiu o paciente mais exigente, ainda que carente, detentor de informações que se não forem do pleno domínio do profissional geram conflitos e ansiedades. Esse contexto exige do médico o dispêndio de tempo, energia e recursos econômicos para estar capacitado a conhecer, avaliar e, eventualmente, empregar novos recursos com segurança. Adicionalmente, deve saber interpretar as informações e esclarecer ao cliente sobre aspectos não divulgados aos leigos, sobre limitações e aplicabilidade individualizada de novos métodos. Na medicina avançada atual o médico é obrigado a tomar decisões inusitadas que causam dilemas éticos relacionados com a natureza e os limites da vida humana. Contudo, as decisões pessoais e as relações interpessoais, bases da ética tradicional, tornaram-se insuficientes para o atual universo ético. Como corolário desse novo perfil do paciente e da nova relação médico-paciente, estaria surgindo um crescente número de ações de responsabilidade civil, segundo informações das seguradoras. Nos Estados Unidos, os custos dos seguros dos hospitais e dos médicos são repassados para os preços dos serviços e os lucros para as seguradoras e escritórios de advogados, gerando uma verdadeira indústria do erro médico. O Cremesp consultou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e concluiu que em nosso meio o discurso alarmista ainda não tem fundamento porque o Judiciário tem se mostrado cauteloso com este tipo de ação e o número de processos não sustenta a tese.

É importante e mesmo necessário que se resgate o papel do médico, figura de confiança do paciente, de sua família, da sociedade, e que trate não apenas da doença mas sobretudo do doente. O Cremesp defende uma reformulação do ensino e da forma de organização e contratação do médico, capacitando-o a trabalhar com uma sociedade consciente, respeitando o direito a informação e autonomia do paciente. Lembra ainda que a relação médico-paciente deve ser calcada na confiança mútua, sentimento que jamais existirá quando a opção é pelo conflito. Se assumir esta atitude defensiva, ou seja, o seguro, vendo o paciente como um potencial inimigo, a relação de confiança mútua estará irremediavelmente quebrada. O debate sobre temas como remuneração justa, a garantia da profissão exercida de maneira independente, sem pressões ou exigências do "managed care" são alguns dos graves problemas enfrentados. Parece, entretanto, que o melhor caminho é o da parceria: a sociedade brasileira deve participar desta discussão, pois é para ela que o trabalho médico é dirigido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2001
  • Data do Fascículo
    Jun 2001
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